Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1359/22.4T8FAR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: GERENTE COMERCIAL
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Ao invadir e ocupar parcela do prédio da demandante, deslocando terras, cortando vegetação e depositando pedras sem autorização desta, o réu violou o direito de propriedade da apelante.
II. Encontrando-se assente sem impugnação que o réu actuou em representação da sociedade ré, está em causa a actuação ilícita de um gerente de que resultaram danos a terceiro, situação abrangida pela previsão do artigo 79.º do CSC.
III. Trata-se de um tipo de responsabilidade delitual, remetendo portanto para os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito formulados no artigo 483.º, cujo ónus de alegação e prova recai sobre o lesado (artigo 342.º, n.º 1).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1359/22.4T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Central Cível de Faro


I. Relatório
(…) instaurou contra “(…) – Comércio de Mobiliário, Unipessoal, Lda. e (…), a presente acção declarativa de condenação, pedindo a final a condenação dos RR a:
A. Restituírem-lhe a posse sobre 10 m2 da sua propriedade, na parte em que confronta com o prédio dos réus, repondo as estremas do seu prédio no estado em que se encontravam, removendo a vedação ali instalada, a terra e as pedras que ali colocaram;
B. Removerem o cabo/fio elétrico ou de telecomunicações que atravessa o seu terreno;
C. Demolirem a construção erigida junto à sua vedação;
D. Removerem os aparelhos motorizados instalados junto à vedação que confronta com o seu prédio;
E. Absterem-se da prática de atos lesivos e ofensivos da posse e do direito ao repouso, ao sossego e à sua tranquilidade;
F. Indemnizarem-na no montante de € 10.000,00 (dez mil euros) pelos danos causados.
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Citados os RR, defenderam-se por impugnação e, alegando inexistir fundamento para a pedida condenação, concluíram pela sua absolvição de todos os pedidos formulados.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Tendo os autos prosseguido para julgamento teve lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decretou como segue:
a) condenou a ré a restituir à autora a posse sobre 10 m2 da sua propriedade, na parte em que confronta com o prédio da ré, repondo as estremas do seu prédio no estado em que se encontravam, removendo a vedação ali instalada, a terra e as pedras que ali colocou;
b) Condenou a ré a abster-se da prática de actos que perturbem o exercício da posse sobre o referido terreno, pela autora;
c) Condenou a ré a pagar à autora uma indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos que, em função de critérios de equidade, se fixou no montante de € 1.000,00 (mil euros);
d) Absolveu a ré/sociedade e o réu do demais peticionado.
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Inconformada, interpôs a autora o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações produzidas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª A Autora não se conforma com a decisão proferida, nomeadamente no que se reporta a dois pontos essenciais:
A. A decisão em matéria de responsabilidade pelas custas do processo;
B. O dano susceptível de indemnização e consequente valor indemnizatório fixado e a responsabilidade apenas da Ré sociedade;
2.ª O Tribunal a quo, na douta sentença, em matéria de custas decidiu:
“Custas a cargo da autora e da ré/sociedade, na proporção do decaimento que fixa em 50% para cada uma das partes”, quando, em função dos pedidos julgados procedentes e improcedentes, deveria ter tomado decisão diferente, no que tange à repartição da responsabilidade pelas custas;
3.ª Considerando o valor fixado ao processo e os pedidos formulados, e tendo em conta que o principal pedido formulado se reportava ao reconhecimento da violação do direito de propriedade da Autora, por comportamento imputável aos Réus, deve entender-se que ao julgar procedente os pedidos formulados nos pontos a) e e) do pedido constante da PI, o Tribunal julgou procedente 87% do pedido formulado;
4.ª Tendo, ainda, em relação ao pedido de indemnização, considerando o facto de o mesmo ter sido julgado procedente, apenas não ter sido fixado todo o valor peticionado, que se considerar que metade desse pedido foi julgado procedente;
5.ª O que significa que, considerando o disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e os princípios da igualdade, proporcionalidade e do proveito que lhe estão subjacentes, devem as custas e demais encargos com o processo, incluindo o tradutor, serem fixadas na responsabilidade de 93% para a Ré e 7% para a Autora.
6.ª Na decisão referente à responsabilidade civil por factos ilícitos, o Tribunal condenou a Ré a indemnizar a Autora apenas pelos danos decorrentes da violação da posse e consequentemente do direito de propriedade, não considerando outros danos causados e provados com gravidade suficiente para justificar a condenação ao pagamento de uma indemnização;
7.ª O Tribunal deu como provado que a Ré e o Réu, na ausência da Autora, praticaram um conjunto de actos perturbadores e lesivos da posse e do direito de propriedade, como consta dos factos dados como provados de 13 a 22 e que na sequência desses factos a Autora se sentir revoltada, triste, perturbada e passou a sentir-se insegura;
8.ª A revolta afecta a pessoa que vê o comportamento abusivo e violador do seu direito aproveitando a sua ausência e revela-se perturbador, pelo desamparo e desprotecção que gera;
9.ª A tristeza configura um estado de espírito que retira alegria e compromete o bem estar e a preocupação gera um efeito perturbador;
10.ª O sentimento de insegurança compromete o quotidiano da pessoa, condicionando a sua vida, como aconteceu particularmente com a Autora;
11.ª Todos estes danos causados pela ré na Autora são graves, não tendo a mesma de os suportar, comprometem o seu bem-estar e revelam dignidade mais do que suficiente para merecerem a tutela do direito e serem considerados danos não patrimoniais graves, susceptíveis de conferir direito de indemnização ao lesado;
12.ª Não podendo a Autora conformar-se com a decisão do Tribunal, de considerar que tais danos não seriam graves o suficiente para justificar a tutela do direito, entendendo que o Tribunal violou o disposto no artigo 496.º do Código Civil;
13.ª O Tribunal a quo, na fixação do montante de indemnização a pagar pela Ré à Autora, também não conferiu relevância ao facto de durante 18 meses, através de dois canos que colocou do seu terreno, ter estado a derramar um líquido para o terreno da Autora.
14.ª Tudo concatenado, devidamente, devia o Tribunal a quo ter considerado como susceptível de indemnização, por grave, todo o dano invocado e provado e, consequentemente, julgado procedente todo o pedido formulado pela Autora, fixando uma indemnização no montante peticionado, de €10.000,00 (dez mil euros), por se revelar o valor justo e proporcional ao dano sofrido, considerando o mesmo na íntegra;
15.ª Em cumprimento do disposto no art.º 490.º do Código Civil, devem ambos os réus, sociedade comercial e seu representante legal, serem condenados a pagar a indemnização respectiva.
Indicando como violadas as disposições legais contidas nos artigos 527.º, n.º 1 e 2, do CPC, 490.º e 496.º do CC, conclui pela revogação da sentença e sua substituição por outra que determine: “1. Que a responsabilidades pelas custas e demais encargos do processo sejam repartidas na proporção de 93% pela Ré e 7% pela Autora; 2. Que o pedido de indemnização seja integralmente julgado procedente e ambos os Réus sejam condenados a pagar à Autora a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a título de indemnização”.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
i. do montante indemnizatório adequado aos danos apurados e da responsabilidade solidária do réu
ii. da repartição das custas.
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II. Fundamentação
Sem impugnação, é a seguinte a matéria de facto a considerar, tal como consta da sentença recorrida:
A. Factos provados
1. A aquisição do prédio urbano sito na (…), freguesia de (…), concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o número (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…) mostra-se registada a favor da autora pela Ap. (…), de 31/10/2017, por compra.
2. O prédio da autora confronta a nascente com o prédio misto sito na (…), freguesia de (…), concelho de Faro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o número (…) e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e na matriz rústica sob o artigo (…), secção T.
3. Em Março de 2018, a autora encomendou a realização de levantamento topográfico que corresponde ao documento de fls. 128, de onde resulta que o imóvel da autora possui a área total de 4 702 m2, dos quais 4 553 m2 correspondem a área rústica e 149 m2 a área de implantação.
4. Do referido documento resulta ainda a menção a uma vedação, junto aos limites do terreno, sinalizada com tracejado de cor rosa.
5. A aquisição do prédio referido em 2. veio a ser registada a favor da ré sociedade, pela Ap. (…), de 23/9/2020, por compra a (…) e (…).
6. Aquando da aquisição do terreno pela ré os dois terrenos já se encontravam delimitados nas suas confrontações, quer através de vegetação, quer através da vedação aí existente, com a configuração referida no ponto 4.
7. O réu é legal representante da 1.ª ré.
8. E habita no prédio referido em 2.
9. A autora sempre cuidou do seu terreno, mantendo-o limpo, como faziam os anteriores proprietários, antes de si.
10. E decidiu dar entrada de um pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal de Faro, ao qual foi atribuído o n.º …/2020 para realização das obras de remodelação da casa ali existente, construção de uma piscina e de um muro de vedação, o qual veio a ser aprovado, por despacho datado de 18/2/2021.
11. No dia 23/9/2020, a autora enviou uma comunicação eletrónica ao réu, onde se pode ler:
“(…)
Diga-nos o que pretende fazer. Parece que está a tentar fazer uma reviravolta rápida para vender o imóvel.
Se sim, diga-nos. A (…) e o (…) também gostariam de colaborar – só precisamos de falar e saber o que pretende fazer!
No devido tempo, pretendo construir uma parede, no mesmo estilo de parede atual, no limite da propriedade, para me dar privacidade também. Estou quase a conseguir a minha licença para reconstruir completamente esta casa - o meu “passatempo” é comprar propriedades velhas e abandonadas e reconstruí-las com uma excelente qualidade. (…). - (realçado nosso)
12. No dia 2/10/2020, a autora recebeu uma comunicação eletrónica através do endereço eletrónico andresilvame.pt onde se lê:
“(…)
Com sucesso já conseguimos pedir e aprovar o desvio do poste. A obra já foi aprovada pela EDP já foi paga por voz.
Para que a EDP/CME avance com a obra do desvio do poste é apenas necessário aguardar algum tempo para que os serviços municipais aprovem a abertura de vala (já foi pedido).
Estamos a tomar diligências para que obra aconteça o mais rapidamente possível.
(…)”
13. A 26/3/2021, após regressar da Irlanda, a autora constatou que, na parte que confronta com o prédio da ré, a configuração da vedação existente (a que se alude nos pontos 4.º e 6.º) havia sido alterada, existindo vestígios de deslocamento de terra, corte de vegetação e depósito de pedras.
14. Que a ré, através do seu legal representante, ali colocou para aumentar o desnível (já existente) entre o seu terreno e o terreno da autora.
15. O que fez invadindo o terreno da autora, na sua ausência, sem qualquer tipo de autorização.
16. Alterando as estremas do prédio e ocupando cerca de 10 m2 de terreno pertencente à autora.
17. Sendo que, em caso de chuva forte e enxurrada, verifica-se o perigo de deslocamento da terra e pedras para o terreno da autora.
18. Durante a ausência da autora, a ré, através do seu legal representante, construiu um anexo junto à estrema do prédio da autora;
19. Existem dois aparelhos motorizados junto à vedação, virados para o terreno da autora.
20. A ré, através do seu legal representante, sem dar qualquer justificação ou solicitar autorização, fez passar pela vedação dois canos com origem no seu prédio, que descarregavam águas no terreno da autora.
21. Após notificação da decisão proferida no procedimento cautelar que correu os seus termos sob o n.º 1735/21.0T8FAR no Juiz 1 do Juízo Central Cível deste Tribunal, tais canos foram removidos.
22. Quando foi confrontada com os actos praticados pela ré no seu prédio, a autora decidiu confrontar o réu, o qual veio junto à vedação chamar a autora.
23. No dia 26/3/2021, pelas 17h20m, a autora enviou uma comunicação eletrónica ao réu onde se pode ler:
“(…), acabamos de regressar.
Já temos a licença de planeamento para a nossa construção.
Curiosamente você colocou um fio mesmo no local onde será a piscina, sem qualquer discussão ou acordo prévio. Além da invasão, não foi algo muito inteligente – uma vez que naturalmente as escavadoras e as máquinas irão derrubá-lo quando começarem a trabalhar. Pode fazer planos alternativos. Mas não será na minha terra.
Como é óbvio aquela merda verde e feia colocada ao longo da cerca – do meu lado – também será removida.
(…)”
24. No mesmo dia, pelas 18h13m, o réu remeteu comunicação eletrónica à autora, onde se pode ler:
“(…)
Tentei falar consigo 2 ou 3 vezes mas nunca estava lá ninguém. Em relação a cobertura verde “feia” – tivemos de reparar o solo porque toda a cerca ao longo da sua propriedade estava a dar de si e tivemos de fazer algo simples para a consertar caso contrário toda a cerca cairia em algumas partes. Quando isso acontecesse, o solo com pedaços de cerca velha seria destruído e depois?! Se tiver uma ideia melhor, força.
Fiz este trabalho com as melhores intenções.
Acho que esta área (tiramos fotos do antes e depois) deverá ser também como a “recuperamos” para seu proveito, porque agora parece algo limpo em condições que não tinha antes.
Como já lhe disse o fio já foi cortado e já não o vê.
Quanto a nossa “relação de vizinhos” – acho que devíamos conversar e parar de discutir por razões mesquinhas. Para que pudéssemos ter uma vida mais calma juntos. O meu objetivo é “trabalharmos juntos” e não um contra o outro.
Espero que isto esclareça a situação e fico feliz por ter conseguido a sua licença.
(…)”
25. Ainda no mesmo dia, pelas 18h39m, a autora remeteu comunicação eletrónica ao réu onde se lê:
“A razão pela qual a cerca “caiu” é porque você colocou pedras contra ela. E o que raio é que aquela nova construção está ali a fazer?
Eu já não me sinto segura na minha própria casa com todos aqueles homens a entrar na minha propriedade.
Esse é o principal problema.
(…)”
26. E, por fim, no mesmo dia, pelas 18h59m, o réu remeteu comunicação eletrónica à autora, onde se lê:
“Querida (…),
Um dia quando estávamos lá, notamos que, nos dias anteriores, havia solo e algumas pedras que estavam a cair e havia buracos no fundo. Em seguida, fomos à sua casa para informá-la, tentamos duas vezes, mas como não havia ninguém e queríamos consertar aquilo o mais depressa possível. As pedras que colocamos após o conserto eram para ajudar a reparar melhor para que não houvesse qualquer movimento Por este motivo os nossos trabalhadores iam levar dois dias no seu lado para o consertar - nem mais nem menos e isto foi o que já vos tinha dito com as melhores intenções. Em nenhum outro momento alguém “mexeu” na sua propriedade. Pode sentir-se mais segura do que nunca em sua casa se nos cuidarmos e vigiarmos as nossas casas.
(…)”
27. Desde que se viu confrontada com a situação descrita supra, a autora ficou revoltada, triste e preocupada.
28. Sentindo-se insegura, por recear encontrar alterações no seu terreno, sempre que se ausentasse dali.
29. A ré procedeu ao desvio da trajetória dos tubos sinalizados na sequência da deslocação ao local.
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B. Factos não provados.
Não se logrou provar:
a) Que a autora paga os impostos referentes à sua propriedade;
b) Que, desde a data de aquisição do prédio referido no ponto 1.º dos factos provados, a autora faz do mesmo a sua residência no nosso país, ali pernoitando, realizando refeições, usufruindo da vista e recebendo amigos e familiares;
c) E, apesar de ser de nacionalidade irlandesa, é ali que pretende passar grande parte do seu tempo.
d) Que a autora apresentou os correspondentes projetos das especialidades (para remodelação da edificação);
e) Encontrando-se em condições de iniciar a construção;
f) Que a propriedade da autora encontrava-se delimitada com marcos;
g) A distância que medeia entre o anexo construído pela ré e o limite do terreno da autora;
h) Que os aparelhos elétricos foram colocados na ausência da autora;
i) E estando em funcionamento, geram um ruído incomodativo e persistente, afetando o descanso e tranquilidade da autora;
j) Que, na sua ausência, os réus entraram no prédio desta, fazendo passar um fio elétrico pelo seu terreno;
k) Que esse fio está localizado acima do local onde será construída a piscina da autora;
l) Que a autora prepara-se para iniciar as obras de reconstrução de moradia, construção de piscina e muro de vedação o mais breve possível,
m) Tendo já contratado uma empresa de construção para esse fim;
n) Que o réu gritou com a autora (dizendo-lhe) que fazia o que bem entendesse, sem que lhe tivesse que dar qualquer explicação, mais referindo que não tinha medo da polícia, nem da sua advogada que, aliás, conhecia muito bem;
o) A autora viu-se forçada a instalar equipamento de vigilância na sua propriedade;
p) Que, na sequência dos factos descritos, a autora tem passado noites sem dormir.
q) (Quanto aos canos), o que existiu foi uma mangueira flexível que vazou água da piscina;
r) E que apenas ali esteve por acidente; e,
s) E foi imediatamente removida (muito antes da providência cautelar).
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De Direito
i. Da justa indemnização e da responsabilidade solidária dos demandados
A título prévio cumpre referir que, tendo a apelante circunscrito o objecto do recurso às questões que se deixaram enunciadas, e tendo-se os demandados conformado com a decisão, transitaram em julgado os demais segmentos decisórios (cfr. artigo 635.º, n.ºs 2 e 4, do CPC).
Feita tal prévia precisão, começaremos por apreciar a pretensão da apelante no sentido de ver alterada a decisão recorrida tendo em vista ser-lhe atribuída a totalidade do montante indemnizatório reclamado e, com esta conexa, a responsabilidade dos RR, que pretende solidária, indicando como violadas as disposições dos artigos 496.º e 490.º do Código Civil (disposições legais a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
Consignou-se a este propósito na decisão recorrida, que “em virtude dos factos praticados pela ré, através do seu legal representante, de que resultou a ofensa do seu direito de propriedade, a autora sentiu-se triste e ficou preocupada, sentindo-se insegura com a perspetiva de voltar a encontrar alterações no seu terreno de cada vez que dele se ausentasse”. E concluindo-se na sentença que se mostravam verificados os pressupostos cumulativos de que depende a obrigação de indemnizar por facto ilícito, estando em causa danos de natureza não patrimonial, por recurso à equidade foi a indemnização fixada no montante de € 1.000,00.
No que respeita à responsabilidade do réu, tendo-se considerado que “não se provou que o réu tenha praticado qualquer ato, a título pessoal, suscetível de causar um dano na esfera jurídica da autora”, foi decidida a sua absolvição, para o que aqui releva, do pedido indemnizatório formulado.
Apreciemos, pois, os fundamentos da discordância da apelante.
É sabido que os danos de natureza não patrimonial -e apenas estes estão aqui em causa- só beneficiam da tutela do direito quando se revistam de gravidade, conforme pressupõe e exige o art.º 496.º. Considerou-se na sentença impugnada, sem oposição dos apelados, que, pese embora a escassez dos factos apurados, a factualidade vertida nos pontos 27 e 28 evidenciava a existência de dano com gravidade suficiente para que a lei tutelasse o seu ressarcimento mediante o arbitramento de uma indemnização.
Na fixação de um “quantum” indemnizatório que seja justo e adequado ao dano sofrido, há que recorrer a juízos de equidade (cfr. artigo 496.º, n.º 4, 1.ª parte) tendo em conta os danos provados, fazendo-se ainda apelo “às regras de boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida e dos montantes fixados pela jurisprudência em casos análogos” (Acórdão do STJ de 13 de Abril de 2021, processo n.º 448/19.7T8PNF.P1.S1, em www.dgsi.pt).
Tendo em mente os enunciados critérios e a já referenciada escassez dos factos apurados, sendo desconhecida, por exemplo, a duração dos sentimentos de “revolta, tristeza e preocupação” sentidos pela autora, considerando até o teor tranquilizador das missivas enviadas pelo R., não podemos deixar de secundar o juízo feito pela 1.ª instância no sentido da adequação do montante de € 1.000,00 arbitrado.
No que se refere à responsabilização solidária dos RR, invocou a apelante o disposto no artigo 490.º, cuja previsão se reporta aos vários participantes no ilícito. Não cremos, porém, que tenha aqui aplicação, porquanto, tal como resulta dos factos provados e não impugnados, o réu pessoa singular actuou sempre na sua qualidade de gerente e em representação da sociedade demandada - cuja responsabilização, acertadamente decidida ou não, não vem questionada - resultando assim afastada uma qualquer situação de comparticipação[1].
Analisado o acervo factual, não deixa de se reconhecer alguma dificuldade em ligar funcionalmente os actos danosos praticados pelo réu (…) à gestão da sociedade ré – sendo que, como advertem J. M. Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, vol. I, pág. 906, nada obsta a que um administrador pratique actos fora do exercício das suas funções que o responsabilizem perante terceiros, caso em que tal responsabilidade fica inteiramente sujeita ao regime do artigo 483.º do CC.
Todavia, estando assente sem impugnação que o réu actuou em tudo em representação da sociedade, está em causa a actuação ilícita de um gerente de que resultaram danos a terceiro, situação abrangida pela previsão do artigo 79.º do CSC, nos termos do qual “Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções” (vide n.º 1 do preceito). Está em causa um tipo de responsabilidade delitual, remetendo portanto para os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito formulados no artigoº 483.º, cujo ónus de alegação e prova recai sobre o lesado (artigo 342.º, n.º 1).
Comentando o preceito, anotam J. M. Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos (ob. e vol. cits., anotação ao referido artigo 79.º, págs. 904 a 913) que terceiros, para efeitos da previsão legal, são os sujeitos que não são a sociedade, os administradores ou os sócios, estando em causa a responsabilidade por factos ilícitos, culposos e danosos praticados pelos administradores “no exercício das suas funções”, isto é, “durante e por causa da actividade de gestão e/ou representação social”. E acrescentam “É, neste sentido, também (tal como a responsabilidade para com a sociedade ou os credores sociais) uma responsabilidade orgânica: de titular de órgão social no desempenho das suas funções”.
A responsabilidade perante terceiros pressupõe uma actuação ilícita, por violação de direitos terceiros, de normas legais de protecção de terceiros e/ou de deveres jurídicos.
De volta ao caso dos autos, verifica-se que ao invadir e ocupar parcela do prédio da demandante, deslocando terras, cortando vegetação e depositando pedras sem autorização desta, o réu violou o direito de propriedade da apelante, terceira para efeitos da disposição legal convocada, sendo a sua actuação ilícita. Tendo-se apurado que desta actuação do R. resultaram para aquela danos de natureza não patrimonial, que se traduziram em sentimentos de revolta, tristeza e preocupação, estamos perante danos directamente causados, tendo tido repercussão imediata na esfera jurídica da lesada, pressuposto da responsabilização do gerente nos termos do citado artigo 79.º do CSC (cfr. sobre este específico ponto, acórdão do TRL de 7 de Outubro de 2021, processo 7357/19.8T8LSB.L1-2, acessível em www.dgsi.pt).
Finalmente, atentando no acervo factual apurado, nomeadamente o teor dos pontos 6. e 20., é ainda de concluir ter o réu actuado com culpa, posto que necessariamente conhecedor dos limites dos prédios da autora e da sociedade ré, sendo que não logrou fazer prova da justificação avançada nas missivas enviadas àquela.
Assim verificados os pressupostos da responsabilidade civil, é de julgar procedente, nesta parte, o recurso interposto: sendo o réu igualmente responsável pelos danos causados, sobre ele recai também a obrigação de indemnizar.
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ii. Da repartição das custas
A propósito, consignou-se na sentença recorrida:
“A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes (…) condena em custas a parte que a elas houver dado causa (artigo 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Por força do n.º 2 do mesmo artigo, “Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”.
Em conformidade com o exposto, autora e ré deverão ser condenadas nas custas devidas no processo, na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 50% para a autora e 50% para a ré/sociedade”.
Insurge-se a recorrente, por considerar que “o principal pedido formulado se reportava ao reconhecimento da violação do direito de propriedade da Autora, por comportamento imputável aos Réus”, donde dever ser entendido que fez vencimento em 87% dos pedidos formulados de a) a e), pelo que, considerando a parcial procedência do pedido indemnizatório, as custas deverão ser repartidas na proporção de 93% a cargo dos RR e 7% a serem por si suportadas.
Vejamos:
Na sentença recorrida, como se viu, na ponderação do decaimento de cada uma das partes, fixou-se a responsabilidade de autora e da ré condenada em proporção de metade.
Conforme esclareceu o TRL (em acórdão de 7 de Fevereiro de 2019, proferido no processo 365/11.9TJLSB-A.L1-6, acessível em www.dgsi.pt), “o princípio da causalidade, em matéria de responsabilidade pelo pagamento das custas, está relacionado com o decaimento: dá causa à acção quem a perde, total ou parcialmente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2). E acrescentou-se, a propósito do preceito: “Institui-se, neste preceito, a regra da sucumbência ou decaimento: findo o processo com uma decisão de mérito ou de forma, objectivamente favorável a uma das parte e desfavorável à outra, é justo que as custas sejam suportadas pela parte decadente, na proporção em que o for, quer esteja na posição de sujeito activo ou de sujeito passivo.
O vencimento ou decaimento, total ou parcial, é aferido face à parte dispositiva da decisão e não aos seus fundamentos (Manuel de Andrade, apud Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, Vol. I, 1998, Almedina, pág. 209). O autor e o réu são vencidos quanto à parte do pedido em que decaíram e são vencedores na restante parte (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. II, 3ª edição, pág. 209).
Nos casos de decaimento, a actividade jurisdicional é imputada não apenas a um dos sujeitos, mas a ambos, e o critério para aferição desse decaimento, determinativo da medida ou proporção da responsabilidade pelo pagamento das custas judiciais, encontra-se através da equação entre o pedido que a parte formulou ou a pretensão que deduziu e a rejeição que encontrou por parte do tribunal (Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. II, pág. 205)”.
Revertendo tais considerandos para o caso vertente, verifica-se que a autora, tendo formulado 6 pedidos individualizados, dos quais apenas o indemnizatório se mostra quantificado, atribuiu à acção o valor de € 78.475,32 que, sem impugnação, veio a ser aceite pelo tribunal e assim atribuído à causa. Considerando o pedido de condenação dos RR no montante de € 10.000,00, a expressão económica dos restantes terá de corresponder ao remanescente, ou seja, € 68.575,32.
Do dispositivo da sentença verifica-se que a autora obteve vencimento parcial - uma vez que o R. (...) fora então absolvido - dos pedidos formulados em a), e) e f) (este na proporção de 10%, o que corresponde a um decaimento de 11,47% tendo por referência o valor fixado à acção, o que infirma desde logo os cálculos efectuados pela apelante), decaindo em todos os demais.
Ora, mesmo a aceitar que o pedido formulado em a) e, o com ele intimamente conexionado, pedido deduzido em e), eram os mais relevantes - ainda que nada resulte dos autos que permita um juízo fundamentado sobre a utilidade económica de cada uma das pretensões - a verdade é que uma repartição da responsabilidade tributária em partes iguais em nada se afigura prejudicar a autora, que decaiu nos demais e, significativamente, em 90% do pedido indemnizatório. Daí que, pese embora o carácter não definitivo da decisão impugnada, também no segmento agora em apreciação, posto que sempre este colectivo, em função do que aqui fosse decidido, poderia alterar os termos da responsabilidade de cada uma das partes pelas custas do processo, por infundamentada, sempre a pretensão modificativa da recorrente seria de rejeitar.
Improcede, pelo exposto, este fundamento do recurso.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela autora e, em consequência, condenam também o R. (…) a pagar-lhe a título de indemnização a quantia de € 1.000,00 (mil euros), mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.
Custas nesta e na 1.ª instância a cargo da A. e dos RR na proporção de metade para cada.
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Sumário: (…)
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Évora, 15 de Junho de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
José Manuel Barata
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[1] Faz-se notar que para efeitos penais fala-se de responsabilidade penal cumulativa, e não de comparticipação, entre a pessoa coletiva e a pessoa singular agente do crime, desde logo considerando o teor do artigo 11.º, n.º 7, do CP, nos termos do qual “a responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes”. Do assim preceituado resulta clara a dissociação da responsabilidade penal da pessoa coletiva face à da pessoa singular agente do crime (Assim, Ana Sofia Correia Magalhães “A responsabilidade penal das pessoas coletivas sob o ponto de vista processual”, acessível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/60744/1/Tese+Mestrado+-+Vers%C3%A3o+Final+-+Ana+Correia+Magalh%C3%A3es.pdf).