Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
286/09.5TASTR-A.E1
Relator: ANA LUÍSA BACELAR
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DETENÇÃO FORA DE FLAGRANTE DELITO
NULIDADE DO MANDADO
PRISÃO PREVENTIVA
ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Data do Acordão: 01/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O art. 12.º da Lei nº 38/2008, de 6 de Agosto, que aprovou a orgânica da Polícia Judiciária, consagra um regime especial de detenção, no âmbito das competências da Policia Judiciária. Efectivamente, de acordo com o preceito legal referido, a Polícia Judiciária tem competência para ordenar a detenção fora de flagrante delito, nos casos em que é admissível prisão preventiva e existam elementos que tornam fundado o receio de fuga ou não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária. O requisito cumulativo consagrado no nº 2 do artigo 257.º do Código de Processo Penal, imposto para as autoridades de polícia criminal surge como alternativo para as situações da competência da Polícia Judiciária.

2. As medidas de coacção alicerçam-se em exigências processuais de natureza cautelar que não “brigam” com a presunção de inocência que se mantém até prova da efectiva culpabilidade do arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

Nos autos de inquérito que, …, correm termos pelos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, por despacho judicial de 5 de Outubro de 2009, proferido após primeiro interrogatório de arguido detido, foi imposta a F., devidamente identificado nos autos, a medida de coacção de prisão preventiva.

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. O recorrente foi detido fora de flagrante delito, mediante a exibição de Mandado de Detenção emitido pelo OPC, alegadamente nos termos do estatuído no art. 257º nº 2 do CPP.

2. Exige a Lei Penal Adjectiva que para a emissão de Mandado de Detenção pelo OPC (no caso a Polícia Judiciária) se encontrem preenchidos cumulativamente as condições previstas nas alíneas a) b) e c) do nº 2 do art. 257º do mesmo CPP.

3. No caso vertente, não existia qualquer perigo ou receio de fuga por banda do recorrente, o qual já por uma vez (em 2007) fora interceptado em Vila Nova de Milfontes, por suspeita da prática de assédio sexual a menor adolescente (15 anos) não tendo, já então o seu comportamento revelado o mínimo intuito de fuga às suas responsabilidades. De resto, ouvido pela Meritíssima Juíza, o arguido confessou de pronto o seu desvio com foros criminais, corroborando, em síntese, os depoimentos dos menores ouvidos em sede de Inquérito, como os autos dão conta.

4. Inexistindo “fundado receio de fuga” do aqui recorrente (o qual, apesar de pressentir que contra o mesmo corria processo-crime, não se ausentou da sua residência, ou do emprego e muito menos do país) e sendo a exigência contida nas alíneas do nº 2 do art. 257º do CPP de carácter cumulativo, não poderia o OPC emitir contra o recorrente o Mandado de Detenção inserto nos autos.
5. Ao assim proceder foi violado, pelo O.P.C. em causa (Polícia Judiciária) o disposto no art. 257º nº 2 alínea b) do CPP, por ausência dos respectivos pressupostos, a saber a eventual existência de elementos que tornassem “fundado o receio de fuga”.

6. Pelo que o mandado de detenção em causa é nulo e de nenhum efeito.

7. Por outro lado, tendo-se o presente Inquérito iniciado em Abril/Maio de 2009, e tendo toda a prova indiciária sido produzida nos meses subsequentes até finais de Setembro de 2009 (essencialmente com as declarações dos menores e de familiares), dispunha o OPC encarregue da investigação, da faculdade de, em qualquer dia útil (2 ou 6 de Outubro de 2009 que fosse) solicitar ao Digno MP que emitisse o respectivo Mandado de Detenção.

8. Assim sendo, era absolutamente desnecessário ir deter o arguido no dia em que este assistia a um casamento na terra, e levá-lo ao Tribunal a um dia Feriado (5 de Outubro), uma vez que não existia de facto, qualquer situação de urgência ou de perigo na demora, a que alude a alínea c) do nº 2 do art. 257º do CPP.

9. Sendo que esta alínea do nº 2 do art. 257º do CPP se prende com situações inesperadas (de comunicação imprevista da prática de crimes), e não com situações já pela Polícia (e pelo Digno MP) conhecidas há bastos meses e que inesperadas ou imprevistas nada tinham.

10. Nestes termos, foi violado o disposto na alínea c) do nº 2 do art. 257º do CPP, também aqui por manifesto erro interpretativo, o que, também por esta via, torna nulo e de nenhum efeito, o respectivo Mandado de Detenção. Sem conceder,

11. Não existem hoje crimes incaucionáveis. No caso dos autos não existe o perigo perturbação do decurso do inquérito, nem quanto (ao perigo) de aquisição, conservação ou veracidade da prova: o arguido, trabalhador impoluto e pessoa querida na terra, de pronto confessou os seus crimes, mostrando-se repeso e envergonhado. Corroborando em síntese a versão dos menores. Na busca, efectuada a casa do recorrente, foi recolhida prova das alegadas práticas por este levadas a cabo. Como assim se poder concluir que o arguido iria “comprar o silêncio das vítimas”? Com o devido respeito, não faz qualquer sentido.

12. Não existe perigo de continuação da actividade criminosa. Os menores situaram (em seus abundantes depoimentos que os autos reflectem) o início e o fim dos contactos sexuais tidos e mantidos com o recorrente. Alguns referiram que tinham terminado em Janeiro de 2009 (caso do D. – a fls. 95 dos autos) outros em Abril ou Maio de corrente ano. O próprio arguido disse que começava a ser “alvo de chantagem”, vários menores confirmaram isso mesmo (depoimento de B., a fls. 119 e segs). A situação do arguido é remediada (aufere cerca de mil euros mensalmente), sendo pessoa inserida sócio-profissionalmente e muito conceituada na vila e redondezas apenas tendo delinquido por tentação ou desejo irresistível “que não conseguiu evitar”.

13. O douto despacho recorrido, violou, por erro de interpretação, o disposto no art. 204º alíneas b) e c) do CPP e o art. 193º nº 2 do CPP bem como o art. 28º nº 2 da Lei Fundamental, tendo também violado, por erro de interpretação, o disposto no art. 201º do CPP.

14. A situação dos autos aponta para a possibilidade de ao arguido ser aplicada a medida de liberdade provisória agravada com O.P.H. (art. 201º do CPP) sujeita a vigilância electrónica, podendo o arguido ir viver para casa de sua irmã mais velha e seu cunhado (praticamente seus vizinhos).

15. Deveria ainda, previamente, ter sido ordenada Perícia Psiquiátrica ao arguido, atento o conteúdo das suas declarações, o que não foi feito, mas o que se aceita, como condição prévia para ser ordenada a medida prevista no art. 201º do CPP (O.P.H.)

Pelo que o douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, por mais douto e acertado, ordene a restituição à liberdade do recorrente, sujeito a obrigação contida no art. 201º do CPP (mesmo que em casa da irmã mais velha).

O Ministério Público apresentou resposta onde formula as seguintes conclusões [transcrição]:

«1 – O recurso interposto foi dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que o Tribunal da Relação territorialmente competente para conhecer do mesmo é o Tribunal da Relação de Évora – art. 32 do CPP;

2 – O despacho recorrido foi proferido oralmente, pelo que, o prazo de interposição de 20 dias terminou no dia 25/10/2009, domingo, pelo que se transferiu para o dia 26/10/2009, sendo que, ao ter entrado por meio de telecópia no dia 27/10/2009 pela 01h e 10m, se tem o mesmo por intempestivo – art. 411º, nº 1 e 103º, nº 1, ambos do CPP e art. 279º al. e) do CC;

3 – O recurso deu entrada em juízo no 1º dia útil após o término do prazo, no entanto o arguido não liquidou a multa a que aludem os arts. 107º, nº 5 e 107-A do CPP, ex vi art. 145º do CPP, a qual seria passível de obstar à sua extemporaneidade, multa de cujo pagamento o arguido não está isento – art. 4º, nº 1 al. j) do Regulamento das Custas Processuais, o qual revogou o art. 512º, nº 2 do CPP;
4 – Bem como o recorrente não fez uso das regras do justo impedimento previstas no art. 107º, nº 2 e nº 3 do CPP, pelo que, mais uma vez há que concluir pela extemporaneidade do recurso apresentado pelo arguido, não podendo o mesmo prosseguir, devendo ser rejeitado – arts. 414º, nº 2 e 420º, nº 1, do CPP;

5 – Os actos processuais escritos praticados em processo penal por meio de telecópia, estão sujeitos à disciplina do art. 94º do CPP, o qual remete para o art. 150º do CPP, cuja actual redacção não tem aplicação no âmbito do processo penal;

6 – Os actos processuais escritos praticados por meio de telecópia estão sujeitos ao Decreto-lei nº 28/92, de 27/02, e de acordo com o seu art. 4º, nº 3, a remessa por telecópia não dispensa a obrigatoriedade de apresentação dos originais dos articulados, o que deve ocorrer no prazo de sete dias após o envio por telecópia, o que no presente caso não teve lugar, devendo assim o acto considerar-se como não praticado;

7 – A Polícia Judiciária procedeu à detenção do arguido nos termos dos arts. 27º, nº 3 al. b) da CRP, art. 11º, nº 1 al. h) e art. 12º, nº 1 al. d) da Lei nº 37/2008, de 06/08, e art. 257º, nº 2 do CPP, ao abrigo de norma especial de detenção da sua competência e na decorrência do cumprimento dos mandados de busca e apreensão;

8 – O disposto no art. 257º, nº 2 do CPP não prejudica os pressupostos especiais da detenção constantes do art. 12º da Lei nº 37/2008, de 06/08;

9 – Os crimes indiciados nos autos, p. e p. pelos arts. 171º, 173º e 174º todos do CP, são passíveis de ser punidos com pena de prisão de três a dez anos, pelo que comportam prisão preventiva – art. 202º, nº 1 al. a) do CPP, por outro lado, o resultado das buscas veio solidificar os já fortes indícios e por outro no momento em que se concluiu pela detenção do arguido, e atenta a situação de urgência e perigo na demora, já não era possível esperar pela intervenção da autoridade judiciária;

10 – Ao emitir os mandados de detenção a Polícia Judiciária actuou ao abrigo da sua competência específica, art. 12º, nº 1 al. d) da Lei nº 37/2008, de 06/08, que comporta norma especial de detenção, tendo para tal invocado factos concretos do processo que em tudo se subsumem no referido normativo, mais lhe tendo acrescentado os perigos constantes do art. 204º do CPP, e como tal não se verifica qualquer violação dos arts. 26º, nº 1, 27º, nº 1, 2 e 3 al. b) da CRP e 257º, nº 2 do CPP;

11 – A detenção é válida e legal por respeitar os normativos do art. 12º, nº 1 al. d) da Lei nº 37/2008, de 06/08, tal como é considerada válida na parte decisória do despacho recorrido, a isso não obstando o eventual erro da qualificação jurídica dos fundamentos desta mesma decisão;

12 – A profissão e actividades lúdicas do arguido, tornam-no uma pessoa influente no meio social onde se insere, bem como lhe dão acesso privilegiado a menores, locais esses onde enceta os primeiros contactos com as vítimas, pelo que urge afastá-lo de tais locais;

13 – Neste momento o arguido conhece claramente o objecto do processo, no entanto ainda não são conhecidas a totalidade das vítimas, havendo que prosseguir com as investigações, termos em que a manutenção do arguido em liberdade pode comprometer futuros depoimentos das vítimas bem como o conhecimento sobre a existência de outras, tanto mais que o próprio arguido confessou pagar às suas vítimas para nada contassem sobre as suas práticas, assim se concretizando o perigo para a aquisição da prova;

14 – Das declarações prestadas pelo arguido em sede de interrogatório retira-se que este apresenta uma completa indiferença pelos mecanismos auto-inibidores, antevendo-se por parte do mesmo um comportamento exibicionista e uma personalidade marcadamente desviante ao nível sexual, mostrando-se a sua confissão irrelevante do ponto de vista dos indícios suficientes;

15 – O próprio arguido afirmou que gosta inevitavelmente de menores, sentindo pelos mesmos um apelo ao qual não consegue resistir, o que demonstra níveis de perigosidade extrema, mostrando-se a medida de coacção de prisão preventiva a única adequada a fazer cessar os ditos impulsos;

16 – De acordo com os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade, art. 193º do CPP, nenhuma outra medida de coacção que não a de prisão preventiva se mostra suficiente, nomeadamente a de permanência na habitação, porquanto a habitação do arguido foi precisamente o local onde todos os factos, até agora conhecidos, tiveram lugar, bem como a casa da sua irmã não se mostra opção, por precisamente se situar nas imediações da casa do arguido, facto este que nunca evitou as práticas do arguido, não sendo de esperar que o fizesse agora;

17 – Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido, a não ser rejeitado por intempestivo, não merece provimento em qualquer das suas vertentes, pelo que sempre deverá manter-se integralmente o despacho recorrido.»

Na sequência de decisão, entretanto, proferida nos autos, o Recorrente procedeu ao pagamento de multa, nos termos do artigo 145º, nº 5 e nº 6, do Código de Processo Civil

O recurso foi admitido por despacho certificado a fls. 386.
Neste Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso – art. 412º, nº 1, do Código de Processo Penal

Nos presentes autos, o objecto do recurso suscita a apreciação das seguintes questões:

- nulidade do mandado de detenção;

- determinar se o despacho recorrido, que aplicou a prisão preventiva, deve ser substituído por outro que aplique ao Recorrente medida de coacção não privativa de liberdade ou medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com vigilância.

No que releva, é o seguinte o teor da decisão recorrida [transcrição]:

«A detenção efectuada, porque em cumprimento de mandado de detenção emitido nos termos dos artigos 254º, nº 1, a), e nº 2, 257º, nº 2, do Código de Processo Penal, por crimes públicos puníveis com pena de prisão, entre os quais abuso sexual de crianças, previsto nos termos do artigo 171º, nº 1 e 2, do Código Penal e punível com pena de prisão de três a dez anos, obedeceu aos requisitos legais, pelo que a declaro válida, nos termos dos artigos 254º, 257º, 258º e 259º todos do Código de Processo Penal.
Resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo de três crimes de abuso sexual de crianças, previsto nos termos do artigo 171º, nº 1 e 2, do Código Penal e punível com pena de prisão de três a dez anos, relativamente aos menores B., nascido no dia 6 de Dezembro de 1994, D. nascido no dia 11 de Agosto de 1995, e J., nascido no dia 16 de Maio de 1995, e de dois crimes de recurso à prostituição de menores, previsto nos termos do artigo 174º, nº 1 e 2, do Código Penal, e punível em alternativa com pena de prisão até três anos ou pena de multa até 360 dias, relativamente aos menores A., nascido a 5 de Março de 1994, e F., nascido no dia 10 de Novembro de 1993 (atenta a entrada em vigor do Código Penal).

Já que, dos depoimentos coerentes, em si e entre si, inclusive referindo pormenores, prestados pelos menores B., D., F., J. e A., bem como, e apenas na medida da coincidência entre os mesmos, das declarações prestadas pelo próprio arguido durante o inquérito, inclusive no âmbito de primeiro interrogatório, corroboradas pela apreensão de tubos de vaselina, caixa de preservativos e pano com vestígios biológicos, que se crê ser esperma, nos locais referidos pelas mencionadas vítimas, resulta fortemente indiciado que:

O arguido, chefe da secretaria da escola EB2+3 de …, desde há 15 anos, a partir do seu local de trabalho contactava menores desta escola, com idades entre os 12 e os 16 anos, e, pelo menos desde há dois anos, até esta data (2007-2009), que praticava sexo oral e anal com os menores B., F., D., J. e A., sendo que estes encontros tinham lugar na casa do arguido, sita em …, uma ou duas vezes por semana, na sequência de contactos por telemóvel ou directos, sendo os menores transportados pelo arguido no seu veículo automóvel para o local.

No referido período de tempo o arguido manteve na sua casa com os menores indicados coito anal e oral, recorrendo ao uso de vaselina, e a troco de roupas, dinheiro, tabaco e carregamentos de telemóvel, com os quais aliciava os ditos menores, na sua maioria oriundos de famílias carenciadas.

Também nos referidos encontros em sua casa o arguido exibia aos menores filmes de natureza pornográfica com conteúdos homossexuais e heterossexuais.

A conduta do arguido manteve-se pelo menos até á data em que o menor B. foi ouvido em inquérito, tendo o arguido transportado este menor e a sua mãe até ás instalações da GNR, onde teve lugar a diligência, e, depois, a casa do menor, levando o menor a prestar depoimento inverídico e tendo-lhe feito um carregamento de telemóvel de 10 euros.

O arguido agiu sempre, prevendo e querendo praticar coito anal e oral com os menores, para satisfação dos seus impulsos sexuais, sabendo que tinham idades, á data do início da conduta e durante o ano de 2008, entre 12 e 13 anos, quer por conhecer e conviver com a família quer por causa das funções que exerce no estabelecimento de ensino que os mesmos frequentam, aproveitando-se dessas circunstâncias, bem como do facto de os mesmos serem oriundos de famílias carenciadas ou desestruturadas.

O arguido previu e quis manter os referidos contactos sexuais mediante entrega de presentes, dinheiro, tabaco, lanches e carregamento de telemóveis, bem como exibir aos menores filmes de conteúdo pornográfico.

O arguido sabia que as condutas descritas são proibidas por lei penal e tinha capacidade de entendimento e motivação segundo esse conhecimento.

Os crimes fortemente indiciados são graves, especialmente, e como resulta da respectiva moldura penal, o crime de abuso sexual de crianças (art. 171º, nº 1 e 2, CP), principalmente tendo em consideração as circunstâncias que envolveram a respectiva realização. Designadamente o facto de qualquer das vítimas ser oriunda de famílias carenciadas e frequentar o estabelecimento de ensino em que exerce funções. O que, conjugado com o facto de o arguido ser uma pessoa influente no meio e, em termos comparativos, economicamente abastada, lhe permitiu aproximar-se das mesmas, ganhando a sua confiança e/ou ascendência sobre elas, assim conseguindo através delas satisfazer os seus impulsos e desejos sexuais.

Pelo que, a demonstrar-se em juízo a realidade fortemente indiciada acredito que será condenado em pena de prisão efectiva.

Acresce, o arguido encontra-se integrado em actividades recreativas que lhe permitem o contacto com crianças e adolescentes. Mais, o arguido imputou os factos fortemente indiciados a um impulso que não conseguiu deter, tendo os mesmos inclusive ocorrido já na pendência, que conhecia, dos presentes.
Ao mesmo tempo, importa notar, a influência social e económica que o arguido tem no meio em que se encontra inserido e onde foi actuando podem pôr em causa a investigação, nomeadamente as diligências a realizar com vista à aquisição da prova, e a subsequente demonstração dos factos em juízo, inclusive considerando que as referidas vítimas se habituaram a ter, pela sua mão, dinheiro e outros bens de consumo, o que pode levar o arguido a tentar, e conseguir, comprar o respectivo silêncio, para além dos respectivos favores sexuais.

Mais, o arguido vive em casa própria e sozinho, circunstância que facilitou a actividade sexual que dá causa aos presentes.

Tudo, pois, evidenciando um qualificado perigo concreto de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação e veracidade da prova.

Necessidades cautelares que impõem a adequada reacção criminal, ou seja, a sujeição do arguido a medida de coacção necessária e adequada à respectiva prevenção, bem como proporcional à gravidade dos factos e coerente previsível reacção criminal final (pena).

Assim sendo, e considerando tudo quanto supra se expôs, tendo presente que o arguido reside no local do crime e as vítimas estão familiarizadas com a respectiva localização, só a sujeição do arguido, para além do termo de identidade e residência já prestado, à medida de coacção de prisão preventiva se nos afigura, para além de proporcional à gravidade dos factos, adequada, por necessária, e suficiente a prevenir o perigo concreto de continuação da actividade criminosa, atentas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos fortemente indiciados e a personalidade do arguido, e o perigo concreto de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente no que concerne à aquisição, conservação e veracidade da prova, nos termos dos artigos 191º a 196º, 202º, nº 1, alínea a), 204º, b) e c), todos do Código de Processo Penal e 171º, nº 1 e 2, e 174º, nº 1 e 2, todos do Código Penal.

Por tudo quanto ficou exposto, determino que o arguido F. aguarde os ulteriores termos do processo, para além de sujeito aos deveres e obrigações que decorrem do termo de identidade e residência já prestado, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

(...)»

1ª QuestãoNulidade dos Mandados de detenção

Com relevância para a decisão que este Tribunal é chamado a tomar, importam os seguintes factos – que resultam do teor de documentos certificados:

a) os presentes autos iniciaram-se no dia 16 de Março de 2009, com relatório social elaborado pela Segurança Social – Unidade de Desenvolvimento Social – Núcleo de Infância e Juventude, relativo aos menores F. e D. [fls. 2 a 5];

b) foi delegada na Polícia Judiciária a competência para a realização de diligências de investigação [fls. 7];

c) no âmbito de tais diligências

- foi junta ao processo ficha biográfica da Polícia Judiciária relativa a F. [fls. 28 a 30];

- foram juntos ao processo autos de denúncia, elaborados em 31 de Julho de 2007 e em 2 de Agosto de 2007, contra F., bem como auto de interrogatório deste, na qualidade de arguido [fls. 35 a 44];
- foram inquiridos M.[fls. 47 a 50], D. [fls. 52 a 54], F. [fls. 55 e 56], B. [fls. 71 a 74 e 122 a 126], I. [fls. 75 a 77], A. [fls. 93 a 96], K. [fls. 97 e 98], S. [fls. 104 a 106], F.[fls. 108 a 111], A. [fls. 113 a 115], D. [fls. 117 a 121], J. [fls. 133 a 135], J.R. [fls. 137 a 144]

- foi apreendido um telemóvel a D. [59 e 60];

- foi junto documento emitido pela Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa onde F. figura como proprietário do veículo automóvel de marca Hyundai, de cor azul, com a matrícula .. [fls. 63];
- procedeu-se à leitura dos elementos constantes do supra mencionado telemóvel [fls. 65 e 66];

- procedeu-se à identificação do titular de telemóvel, com listagem de carregamentos efectuados [fls. 80 a 84];

d) no dia 1 de Outubro de 2009, foi autorizada busca na residência, dependências e anexos, de F., sita na ….[fls. 173];

e) no dia 3 de Outubro de 2009, com o propósito de dar cumprimento aos mandados de busca, foi o F. localizado num restaurante onde decorria um casamento e, após contactado, disponibilizou-se a acompanhar à sua casa os agentes da Policia Judiciária, para realização de tal diligência [fls. 184];

f) a busca foi realizada pelas 16H00 do dia 3 de Outubro de 2009 [fls. 185 a 195];

g) no dia 3 de Outubro de 2009, foi o F. constituído arguido e interrogado nessa qualidade [fls. 216 a 224];

h) ocorreu a apreensão de telemóvel pertencente ao Arguido [fls. 225];

i) na sequência de relatório entretanto elaborado, a Senhora Coordenadora de Investigação Criminal ordenou a detenção do arguido;

j) a detenção do arguido ocorreu pelas 24H00 do dia 3 de Outubro de 2009.

Do mencionado despacho da Senhora Coordenadora de Investigação Criminal consta, na parte que interessa, que:

«Pelo exposto e nos termos dos artºs 27º, nº 3, alínea b), da CRP, 202º, nº 1, al. a), 204º, 257º, nº 2, do CPP, 11º, nº 1, h) e 12º, nº 1, d) da Lei nº 37/2008, de 06 de Agosto, determina-se a detenção do arguido F. [...] já que:

É imputado ao arguido a prática de crimes consumados na forma dolosa, alguns dos quais punidos com pena de prisão superior a 5 anos.

Estamos perante tipos de crimes graves, causadores de grande alarme e censura social, porquanto praticado sobre crianças.

Acresce que, com é de todos bem conhecido, tais comportamentos são susceptíveis de deixar marcas irreversíveis nas vítimas.

A atitude do arguido demonstra ausência total de controlo sobre os seus impulsos sexuais.

O facto de estarmos perante condutas reiteradas no tempo eleva o perigo de continuação da actividade criminosa. De referir que o arguido tem antecedentes criminais precisamente pela prática de crime de natureza sexual com adolescentes.

Existe fundado receio que o arguido agora, depois de saber da gravidade dos factos que lhe são imputados, se ausente para parte incerta furtando-se à acção da justiça, tanto mais que o seu posto de trabalho fica posto em causa e não tem família que o prenda a este local.

Existe perigo de perturbação do inquérito, uma vez que faltam ainda realizar diversas diligências no sentido de identificar outras potenciais vítimas.

O dia (sábado), a hora e a situação de urgência em aplicar ao arguido uma medida de coacção adequada à gravidade dos factos que lhe são imputados e tendo ainda em vista acautelar o perigo de fuga, o alarme social e a continuidade da sua actividade criminosa, impedem-nos de contactar e/ou esperar pela intervenção da Autoridade Judiciária competente.

Assim, passo mandados de detenção, nos termos do artº 258º do CPP, que assinarei.
(...)

Após, recolha do detido à zona prisional anexa à Polícia Judiciária, onde aguardará a sua apresentação no próximo dia 5 de Outubro de manhã (segunda-feira), à Exma. Sra. Procuradora Adjunta no Tribunal de Santarém, para apreciação e eventual sujeição do arguido a 1º interrogatório judicial nos termos do art. 141º e ainda para os efeitos previstos no nº 3 do art. 58º e nº 5 do art. 178º do CPP.
(...)»

Dos factos que acabam de se relatar resulta que o Recorrente foi detido fora de flagrante delito.
Não diz a lei o que seja a detenção.

Constitui, inequivocamente, privação de liberdade, essencialmente caracterizada pela provisoriedade e pela finalidade específica.

É o que decorre do disposto no artigo 254º do Código de Processo Penal, que consagra as finalidades da detenção:

«1 – A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada:

a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou

b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual.

2 – O arguido detido fora de flagrante delito para aplicação ou execução de medida de prisão preventiva é sempre apresentado ao juiz, sendo correspondentemente aplicável o disposto no artigo 141º.»

No primeiro caso, visa-se a detenção em flagrante delito [em que o arguido deve ser submetido a julgamento em processo sumário ou presente ao juiz de instrução para interrogatório judicial e eventual aplicação de medida de coacção] e a detenção fora de flagrante delito [nos casos em que é admitida a aplicação de uma medida de coacção, caso em que o detido deve também ser presente ao juiz para que lhe seja aplicada ou executada tal medida].

No segundo caso, consagram-se medidas de disciplina do processo, com vista a evitar as faltas sucessivas, aplicáveis a qualquer pessoa que seja regularmente convocada para comparecer em diligência processual.

No artigo 256º do Código de Processo Penal define-se o flagrante delito como «todo o crime que se está cometendo ou que se acabou de cometer» e equipara-se ao flagrante delito «o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar».

Aqui chegados, interessa-nos o disposto no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, onde se consagra o direito à liberdade e à segurança, nos seguintes termos:

«1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.

2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

3. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:

a) Detenção em flagrante delito;

b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;

c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;

d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;

e) Sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;

f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;

g) Detenção de suspeitos, pare efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;

i) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.

4. Toda a pessoa privada de liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.

5. A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar e lesado nos termos em que a lei estabelecer.»

É de harmonia com o disposto nesta regra constitucional que tem de interpretar-se o disposto no artigo 257º do Código de Processo Penal, que se reporta à detenção fora de flagrante delito, nos seguintes termos:

«1 – Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada, por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público.

2 – As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando:

a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva;

b) Existirem elementos que tornem fundado o receio de fuga; e

c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.»

De regresso ao processo, interessa-nos a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa das autoridades de polícia criminal.

É acto que tem natureza excepcional e que «só se justifica quando haja elementos que tornem fundado o receio de fuga e não seja possível esperar pela intervenção da autoridade judiciária. Não havendo receio de fuga, nunca será possível a ordem de detenção pelos órgãos de polícia criminal.[1] »

Todavia, após a entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto [que alterou, entre o mais, a redacção do artigo 257º do Código de Processo Penal], surge a Lei nº 38/2008, de 6 de Agosto, que aprovou a orgânica da Polícia Judiciária.
Este diploma, no seu artigo 12º, reporta-se às competências processuais, nos seguintes termos:

«1 – As autoridades de polícia criminal referidas no nº 1 do artigo anterior têm ainda especial competência para, no âmbito de despacho de delegação genérica de competência de investigação criminal, ordenar:
(...)
d) A detenção fora do flagrante delito nos casos em que seja admissível a prisão preventiva e:

i) Existam elementos que tornam fundado o receio de fuga ou não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária;

ii) No decurso de revistas ou de buscas sejam apreendidos ao suspeito objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime ou constituam seu produto, lucro, preço ou recompensa.

2 – A realização de qualquer dos actos previstos no número anterior obedece, subsidiariamente, à tramitação do Código de Processo Penal, tem de ser de imediato comunicada à autoridade judiciária titular da direcção do processo para os efeitos e sob as cominações da lei processual penal e, no caso da alínea d) do número anterior, o detido tem de ser apresentado no prazo legalmente previsto à autoridade judiciária competente, sem prejuízo de esta, se assim o entender, determinar a apresentação imediata.

3 – A todo o tempo, autoridade judiciária titular da direcção do processo pode condicionar o exercício ou avocar as competências previstas no nº 1, nos termos da Lei de Organização da Investigação Criminal.»

Entre as entidades referidas no nº 1 do artigo 11º da Lei 37/3008, de 6 de Agosto, encontram-se os coordenadores de investigação criminal [alínea h)].

Com esta regra surge um regime especial de detenção, no âmbito das competências da Policia Judiciária.

Efectivamente, de acordo com o preceito legal referido, a Polícia Judiciária tem competência para ordenar a detenção fora de flagrante delito, nos casos em que é admissível prisão preventiva e existam elementos que tornam fundado o receio de fuga ou não for possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.

O requisito cumulativo consagrado no nº 2 do artigo 257º do Código de Processo Penal, imposto para as autoridades de polícia criminal surge como alternativo para as situações da competência da Polícia Judiciária.

E não se trata de lapso do legislador, pois o nº 2 do artigo 12º da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto, torna, de forma expressa, subsidiária a aplicação do Código de Processo Penal.

Todavia, também esta regra deve ser interpretada de acordo com o disposto no já citado artigo 27º da Constituição da República Portuguesa. E buscando tal interpretação, não resta senão concluir que não existe qualquer desconformidade entre o disposto na Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto, e o imperativo constitucional em questão.

Porque, olhando para este e buscando o seu limite, pode dizer-se que a detenção é privação de liberdade só admissível, fora de flagrante delito, como preliminar da aplicação ao arguido de uma medida de coacção pela eventual prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos ou de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão.

Posto isto, considerando agora a cronologia dos acontecimentos no passado dia 3 de Outubro de 2009 [sábado], não resta senão concluir pela verificação de fundamento para a ordem de detenção do Recorrente emitida pela Senhora Coordenadora de Investigação Criminal – ser admissível a prisão preventiva e não ser possível, dada a situação de urgência e de perigo de demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária competente.
Fundamento consagrado no artigo 12º, nº alínea d), i), parte final da Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto.
Assim sendo, não ocorre o vício invocado pelo Recorrente.

2ª QuestãoAdequação da medida de coacção imposta

As medidas de coacção constituem meios processuais de limitação da liberdade individual, que têm por finalidade acautelar a eficácia de procedimentos, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias.

A aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, pressupõe a verificação, em concreto e no momento em que é aplicada, de alguma das circunstâncias consagradas nas diversas alíneas do artigo 204º do Código de Processo Penal, a saber:

a) fuga ou perigo de fuga;

b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

A imposição de medidas de coacção está sujeita ao princípio da legalidade – artigo 191º do Código de Processo Penal –, daí decorrendo que a limitação dos direitos do arguido, em função das exigências processuais de natureza cautelar admitidas por lei, só pode concretizar-se mediante a aplicação de medidas de coacção expressamente previstas na lei.

Subjacentes à aplicação de qualquer medida de coacção, estão critérios de necessidade, de adequação e de proporcionalidade – artigo 193º do Código de Processo Penal.

Do princípio da adequação resulta que a medida de coacção a aplicar deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da cautela, da finalidade a que se destina.

Do princípio da proporcionalidade resulta que a medida de coacção a aplicar deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada pela sua prática.
Do disposto no nº 2 do artigo 193º citado decorre que a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

E sempre que ao caso couber medida de coação privativa de liberdade – prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação – deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares – nº 3 do artigo 193º do Código de Processo Penal.

O carácter excepcional da prisão preventiva encontra consagração no nº 2 do artigo 28º da Constituição – «A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.»

E a excepcionalidade da prisão preventiva decorre de princípios constitucionalmente consagrados – da liberdade [artigo 27º] e da presunção de inocência do arguido [artigo 32º, nº 2].

O direito à liberdade não é um direito absoluto, admitindo restrições.

«As restrições ao direito à liberdade, que se traduzem em medidas de privação total ou parcial dela, só podem ser as previstas nos nºs 2 e 3 (...), não podendo a lei criar outras – princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade (...). Por outro lado, constituindo as restrições do direito à liberdade restrições a um direito fundamental integrante da categoria dos “direitos, liberdades e garantias”, estão sujeitos às competentes regras do art. 18º - 2 e 3, o que quer dizer, entre outras coisas, que só podem ser estabelecidas para proteger os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger (...). Tais princípios vinculam o legislador, na definição dessas medidas, e o seu correlativo aplicador (designadamente o juiz), quando disponha de margem de discricionariedade ou de livre apreciação. [2] »

Relativamente à presunção de inocência – princípio estruturante do processo criminal – cumpre referir, de acordo com as palavras de Gomes Canotilho e de Vital Moreira [3] , que não é fácil determinar o seu sentido. «Considerado em todo o seu rigor verbal, o princípio poderia levar à própria proibição de antecipação de medidas de investigação e cautelares (...). Como conteúdo adequado do princípio apontar-se-á: (...) e) proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; (...) g) natureza excepcional e de última instância das medidas de coacção, sobretudo as limitativas ou proibitivas de liberdade; h) princípio in dubio pro reo, implicando a absolvição em caso de dúvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado.»

E afigura-se-nos adequado referir, desde já, que a imposição de medida de coação – nomeadamente privativa de liberdade – não contende com a presunção de inocência, face à diversidade de pressupostos em que, uma e outra, assentam.

Efectivamente, as medidas de coacção alicerçam-se em exigências processuais de natureza cautelar que não “brigam” com a presunção de inocência que se mantém até prova da efectiva culpabilidade do arguido.

Importa concretizar o que se deixa dito e, para tanto, voltar à situação em análise.

O Recorrente não discorda da verificação dos factos, nem do enquadramento jurídico dos mesmos, que levaram à imposição de medida de coacção.

Mas não se conforma com alguns dos fundamentos que determinaram a sua sujeição a prisão preventiva – entende que não existe perigo de perturbação do decurso do inquérito, nem perigo de continuação da actividade criminosa –, pugnando para ser restituído à liberdade, sujeito a obrigação de permanência na habitação.

Vejamos se tem razão.

Quanto ao primeiro aspecto, os elementos até agora carreados para os autos infirmam a conclusão a que o Recorrente chegou.

Efectivamente, a investigação não está ainda concluída, sendo de admitir que o Recorrente tenha levado a cabo trato sexual com outros menores para além daqueles que já prestaram declarações nos presentes autos e que confirmaram práticas de natureza sexual com aquele.

Não resta dúvida de que o Recorrente é pessoa com alguma influência e capaz de procurar influenciar depoimentos que o possam prejudicar no âmbito dos presentes autos – recordem-se as declarações prestadas pelo menor B. das quais decorre que o Recorrente procurou influenciar o depoimento daquele, a troco de carregamentos de telemóvel [fls. 125, linhas 75 a 81].

Quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, afigura-se-nos que o mesmo também existe.

Num período de cerca de dois anos, o Recorrente manteve trato sexual com cinco menores.

Em 2007, dois outros menores relataram que o Recorrente os procurou aliciar para a prática de actos sexuais.

É certo que o Recorrente tem assumido tais práticas, mas em termos que não denotam auto-censura convincente nem garantia da sua não repetição – quando foi ouvido pela Polícia Judiciária, o Recorrente disse «Estou super arrependido daquilo que fiz e não voltarei tão depressa a essa situação»; quando foi ouvido pela Senhora Juiz de Instrução Criminal, disse «Tenho consciência de que o que fiz não está certo, mas não consegui evitar. Estou muito arrependido e não voltará a acontecer».

Admite o Recorrente, em sede de conclusões do recurso, apenas ter «delinquido por tentação ou desejo irresistível “que não conseguiu evitar”.»

Perante tal postura do Recorrente, não resta senão concluir que o trato sexual com menores é, efectivamente, tentação ou desejo a que o mesmo não consegue resistir.

E essa sua incapacidade afigura-se-nos, por enquanto, denunciadora de evidente perigo de continuação da actividade criminosa.

Por último, quanto à substituição da medida de coacção imposta por outra não privativa de liberdade ou pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância, cumpre referir que não estão demonstrados factos reveladores de atenuação das exigências cautelares que estiveram na base da imposição da prisão preventiva.

Recorde-se que a circunstância de o Recorrente manter trato sexual com menores no interior da sua residência permite concluir pela insuficiência da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação – mesmo com controlo electrónico e ainda que conjugada com proibição de contactos – para afastar o perigo de continuação da actividade criminosa.

Por outro lado, porque nos encontramos no domínio dos crimes de natureza sexual, ocorridos, por regra, longe do olhar de terceiros, a habitação – própria ou de terceiro – é local adequado à sua prática.
Em suma, afigura-se-nos que o Recorrente, tendo invocado factos que não se encontram demonstrados e que não infirmam a decisão em crise, não logrou justificar a sua pretensão.

E resultando dos autos a forte indiciação por factos que revestem acentuada gravidade e em razão dos quais, perante a personalidade do Recorrente e o seu modo de vida, é considerável o perigo de perturbação de decurso do inquérito e de continuação da actividade criminosa, a sujeição do mesmo à medida de coacção de prisão preventiva respeitou os critérios legais definidos pelos art. 191º, nº 1, art. 193º, nº 1 e nº 2, art. 202º, nº 1, alínea a), e art. 204º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, em obediência aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, sem atentar contra a sua característica de medida excepcional e subsidiária e sem exceder a necessária restrição à salvaguarda dos direitos e interesses violados através da conduta indiciada.

Cumpre, também, referir que foi observado o dever de fundamentação da decisão previsto no art. 97º, nº 5, do Código de Processo Penal.

E sem que se vislumbre a violação de algum outro preceito legal, a medida da prisão preventiva reputa-se como a única concretamente adequada e proporcional às exigências processuais de natureza cautelar que, relativamente ao Recorrente, os autos revelam.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em conformidade, manter integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em soma correspondente a 5 UC – art. 513º, nº 1, art. 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, e art. 8º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais [Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro].

Évora, 7 de Janeiro de 2010

(processado em computador e revisto pela primeira signatária)

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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
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(Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto)




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[1] - Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo 2008, II, página 272.
[2] - Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, Volume I, página 479.
[3] - Obra já citada, página 518.