Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
613/08.2TBVNO-I.E1
Relator: ASSUNÇÃO RAIMUNDO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Havendo da parte da Autora, bem como do seu legal representante, uma actuação dolosa, nessa medida, deverá a primeira ser condenada como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.os 1 e 2, alínea a) e 543.º do actual Código de Processo Civil, e o segundo responsabilizado pela multa e indemnização que venham a ser determinadas, ao abrigo do disposto no artigo 544.º do CPC.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 613/08.2TBVNO-I.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes que compõem a Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Instância Central de Santarém, Secção do Comércio, Juiz 2, corre termos o Processo de Insolvência nº 613/08.2TBVNO em que é insolvente “(…) – Sociedade de Construção, Limitada” e do qual o presente processo é apenso.
Nos presentes autos, em sede de contestação a ré “Massa Insolvente de (…) – Sociedade de Construção, Limitada”, representada pelo seu administrador, requereu a condenação da autora “(…) – Empreendimentos Imobiliários, S.A.” como litigante de má fé, devendo ser afectado o mandatário desta, e em consequência, serem condenados no pagamento, cada um, de € 10.000,00.
Proferida a sentença final, foi ordenado o cumprimento do artigo 458º do Código de Processo Civil (na versão em vigor naquela data), tendo, em exercício do contraditório, o legal representante da autora vindo alegar que não é por a autora ter apresentado uma versão diferente da alegada pela ré, que esta não seja verdadeira, sendo que, da matéria alegada pela autora não se poderá inferir que esta tenha litigado de má-fé.
Apreciado o referido pedido veio a ser proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, o Tribunal decide:
a) Condenar a autora “(…) – Empreendimentos Imobiliários, S.A.” como litigante de má fé;
b) Condenar a autora “(…) – Empreendimentos Imobiliários, S.A.” no pagamento de uma multa no valor de 3 (três) UC’s;
c) Condenar a “(…) – Empreendimentos Imobiliários, S.A.” no pagamento à “Massa Insolvente de (…) – Sociedade de Construção, Limitada” de uma indemnização de valor a fixar ulteriormente;
d) Responsabilizar o administrador (…) pela multa e indemnização em que a sociedade vai condenada.
e) Absolver o mandatário da autora como litigante de má-fé.”

Inconformada com a decisão veio a “(…) – Empreendimentos Imobiliários, S.A.” recorrer da mesma apresentando as seguintes conclusões:
1) Conforme resulta de fls., foi proferido Despacho que concluiu da forma acima transcrita;
2) Salvo o devido respeito, que é muito, deverá este Venerando Tribunal alterar e revogar tal decisão;
3) Não se fez prova de que os Recorrentes tenham agido com má-fé e muito menos com negligência grave;
4) Não se podem condenar os Recorrentes como litigantes de má-fé e no pagamento de indemnização só pelo facto de existir uma “suposição” nesse sentido;
5) Nesta parte, tem o Despacho recorrido de ser revogado, com todas as consequências legais daí resultantes;
6) Cumpre apreciar a validade da aplicação da multa e no pagamento de indemnização à parte contrária como litigante de má-fé;
7) Para que se poder condenar os Recorrentes como litigantes de má-fé, seria necessário ouvir-se estes antes da decisão final;
8) A condenação por litigância de má-fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC, que proíbe as decisões-surpresa – vide Acórdão do TRC, de 20.12.2011, proferido no Processo 487/11.6TBPBL.C1;
9) O que não aconteceu;
10) Quando não tenha sido objecto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que preceda a decisão, deve o Tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má-fé – Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 440/94, de 07.06.1994, MONTEIRO DINIZ, DR, II Série, de 1.9.94, nº 103/95, MESSIAS BENTO, DR, II Série, de 17.6.95, e nº 357/98, de 12.5.98, GUILHERME DA FONSECA, DR, II Série, de 16.7.98;
11) Embora a condenação por litigância de má-fé possa ter lugar oficiosamente, a audição da parte antes de ser proferida é necessária, sob pena de violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição da decisão-surpresa, artigo 3º, nº 3, do CPC;
12) O que constitui uma nulidade, nos termos do artigo 201º do CPC – vide Acórdãos do TRL de 17.7.07, MARIA JOÃO ROMBA, www.dgsi.pt, Proc. nº 4049/2007-4, e do TRP de 4.7.07, CÂNDIDO LEMOS, www.dgsi.pt, Proc. nº 0722763;
13) Nulidade que desde já e aqui se requer a sua apreciação;
14) Para que a condenação como litigantes de má-fé dos Recorrentes se verifique à luz do artigo 456º do CPC, é necessário que o uso desse meio processual se mostre manifestamente reprovável e que os Recorrentes procedam com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade – vide Acórdão do STA, d 25.2.1986:BMJ, 354º-479;
15) A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação e de probidade que o artigo 264º, do CPC, impõe às partes;
16) O que na realidade não aconteceu;
17) Este é o entendimento maioritário da jurisprudência dos tribunais superiores;
18) Diz-se litigante de má-fé, segundo o disposto no artigo 456º, nº 2, do C.P.C., quem com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia de ignorar a) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; b) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; c) ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objeto ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão;
19) A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que se impõe às partes;
20) O que na realidade não aconteceu;
21) O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamorosa, chocante, ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que, com a mesma conduta, se ofendeu ou pôs em causa a imagem da justiça;
22) Não é pelo facto de determinada matéria fáctica não ter sido dada como provada, que tal equivalerá a ajuizar para o apuramento da má-fé da litigância – vide Acórdão da Relação de Coimbra de 30/04/2002;
23) A má-fé pressupõe, além do mais, a intenção de alterar a verdade dos factos de não a mera circunstância de a parte não ter provado os factos que alegou – vide Acórdão da Relação de Lisboa de 29/06/2006;
24) Não significando, também, que os Recorrentes agiram com dolo ou negligência grave, violando assim o princípio da cooperação;
25) Quer da matéria alegada pelas partes, quer da matéria dada como provada não se poderá inferir que os Recorrentes tenham litigado de má-fé e através de dolo processual, mas única e exclusivamente não logrou provar a sua versão dos factos, não significando com isto que esta seja falsa;
26) Um facto dado como não provado até pode ser verdadeiro;
27) Nesta parte, tem o Despacho recorrido de ser revogado;
28) Flui do exposto que, não basta a improcedência de pretensão deduzida por falta de prova dos factos alegados para se concluir, sem mais, pela existência de litigância de má-fé;
29) Não faz sentido que os Recorrentes sejam condenados como litigantes de má-fé, só porque alegaram uma versão dos factos desigual à dos Réus, e a Meritíssima Juiz não considerou como provados tais factos;
30) Da versão diferente dos Réus apenas resulta que é diferente, não que se demonstrasse o contrário, tudo se passando como se os factos não tivessem sido articulados;
31) Os Recorrentes não agiram com dolo, requisito essencial para a condenação como litigantes de má-fé;
32) Nunca se poderia concluir, que estão reunidos os requisitos para declarar que os Recorrentes/Oponentes actuaram no processo com litigância de má-fé;
33) Não integram nenhuma alegação de facto falso, nem alguma infracção grave do deve de cooperação, não integram também a nosso ver uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão. Nessa perspectiva, tendo em conta a disposição legal citada, não pode a parte ser condenada como litigante de má-fé. Nestes casos, em que certas alegações suscitam um juízo de censura, designadamente por terem originado trabalho escusado de investigação e apreciação, sem no entanto integrarem a noção de má-fé. Como sabemos a litigância temerária não está sancionada na nossa lei processual civil embora de jure constituendo haja muitos profissionais de Direito que a defendem, porventura muita justamente. Em todo o caso, enquanto tal litigância temerária não estiver prevista de jure constituto, não pode por si só justificar uma condenação por litigância de má-fé, que é figura diversa – Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa – Processo nº 421/05-8, de 18/05/2005;
34) Tendo em conta a deliberação unânime proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa e que acima se transcreveu;
35) Dúvidas não existem de que, não estão reunidos os requisitos legais para que os Recorrentes possam ser condenados como litigantes de má-fé e em indemnização à parte contrária;
36) Acresce que os Recorrentes interpuseram recurso da decisão que julgou totalmente improcedente, por não provada a presente acção, e que absolveu a Ré Massa Insolvente de (…) Sociedade de Construções, Lda., sobre o qual ainda não houve decisão proferida em sede de 2ª instância;
37) Não faz sentido os Recorrentes virem a ser condenados como litigantes de má-fé, se o objecto principal sub judice ainda se encontra a ser apreciado;
38) Não existem fundamentos para que os Recorrentes sejam condenados, quer como litigantes de má-fé, quer a pagar qualquer indemnização à parte contrária;
39) Não poderá ser o Recorrente (…) condenado nos termos já referidos, uma vez que o contrato de compra e venda que acompanhou a Petição Inicial foi celebrado no dia 28/05/2003, e este apenas foi nomeado como administrador no dia 07/06/2006;
40) Desconhece o Recorrente (…) todo o sucedido anteriormente à sua nomeação, visto que não era parte integrante do Conselho de Administração da sociedade Recorrente;
41) Não poderá o Recorrente (…) ser responsabilizado;
42) Não existem fundamentos legais e factuais para que os Recorrentes sejam condenados como litigantes de má-fé e em indemnização à parte contrária;
43) Não há direito a qualquer indemnização à parte contrária, em virtude má-fé dos Recorrentes;
44) Isto porque não houve, por parte dos Recorrentes, má-fé;
45) Os Recorrentes intervieram no processo respeitando o princípio da boa-fé, previsto no artigo 266º-A do CPC;
46) O valor da multa aplicado é excessivo, visto que não se provou a má-fé dos Recorrentes;
47) Verifica-se que no Despacho recorrido não se procedeu a uma correcta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como se efectuou uma incorrecta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;
48) Sofrendo o Despacho recorrido de nulidade por violação do disposto nas als. c) e d) do n.º 1 do artigo 668º do CPC;
49) Nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;
50) Lendo a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo do não deferimento da pretensão dos Recorrentes;
51) A decisão recorrida viola o disposto no artigo 205º da C. R. P., uma vez que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na Lei;
52) A decisão recorrida não é de mero expediente, daí ter de ser suficientemente fundamentada;
53) Aa decisão recorrida viola o disposto no artigo 204º da C. R. P., uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem os princípios nela consignados;
54) A decisão recorrida viola os princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente consignados nos artigos 13º e 20º;
55) A decisão recorrida viola o disposto no artigo 202º da C.R.P., nomeadamente o n.º 2, uma vez que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados;
56) Neste caso essa circunstância não se verifica;
57) O Tribunal, com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos dos Recorrentes, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;
58) A Meritíssima Juiz limitou-se apenas e tão só, a emitir um Despacho “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: os elementos constantes no processo; A prova produzida em sede de julgamento; Etc.;
59) Deixando a Meritíssima Juiz de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa;
60) Cometeu, pois, uma nulidade;
61) O Despacho recorrido não está fundamentado, tanto de facto como de direito, além de fazer uma errada interpretação das normas legais que enumera, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 158º do C.P.C. as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas;
62) E a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição;
63) A Meritíssima Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;
64) Cometeu, pois, uma nulidade;
65) Daí que, tenha se ser R;
66) O Despacho recorrido violou:
a) Os artigos 3º,
b) Os artigos 13º, 20º, 202º, 204º e 205º da CRP.
Pedem Deferimento.
Termos em que se requer a V. Exas., a REVOGAÇÃO do Despacho recorrido.
A insolvente contra-alegou e concluiu pela manutenção da decisão.
Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Cumpre apreciar e decidir:

De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. a título de exemplo os Acórdãos do S.T.J. de 2/12/82, BMJ nº 322, pág. 315; de 15/3/2005, Proc. nº 04B3876; de 11/10/2005, Proc. nº 05B179; de 25-5-2010, Proc. nº 8254/09.0T2SNT.L1.S1; e de 30-6-11, Proc. nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, todos publicados nas Bases de Dados Jurídicos do ITIJ), o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resultava dos arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do Cód. Proc. Civil e continua a resultar das disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2 e 639º, do N. Cód. Proc. Civil.

Nesta conformidade, a recorrente coloca à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
1. Para que se poder condenar os Recorrentes como litigantes de má-fé, seria necessário ouvir-se estes antes da decisão final, o que não aconteceu (?)
2. Os Recorrentes não agiram com dolo, requisito essencial para a condenação como litigantes de má-fé, não existem fundamentos para que os Recorrentes sejam condenados, quer como litigantes de má-fé, quer a pagar qualquer indemnização à parte contrária (?)
3. Verifica-se que no Despacho recorrido não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como se efectuou uma incorrecta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto. Sofrendo o Despacho recorrido de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil (?)

A decisão recorrida assentou na apreciação da seguinte actuação:
“ … verificamos que a autora, na pessoa do seu legal representante, veio deduzir a presente acção, pedindo, além do mais que, seja anulado e declarar-se nulo e de nenhum e efeito a resolução do ato jurídico consubstanciado na transmissão dos imóveis a favor da autora, através do despacho emitido pelo 1.º réu, e que deu causa a esta acção e condenarem-se os réus a restituírem os imóveis ao património da autora, tendo em conta a resolução do ato jurídico consubstanciado na transmissão dos imóveis a favor da autora.
Para tanto, alegou, em síntese, que cumpriu o prazo de pagamento de todas as prestações devidas a título de sinal nos termos do contrato promessa de compra e venda dos imóveis celebrado com a sociedade (…), liquidando a totalidade da compra, e desde a data da assinatura do contrato de promessa de compra e venda, e até hoje, está na posse dos imóveis.
O contrário ficou, todavia, provado em sede de audiência de discussão e julgamento, mais concretamente, resultou demonstrado que a autora nada pagou à “(…), Lda.” pela declarada transmissão dos imóveis, sabendo a autora na data de realização da escritura de compra e venda que a “(…), Lda.” não satisfazia as obrigações de pagamento vencidas a terceiros e que a aquisição dos referidos prédios obstava a que os credores da “(…), Lda.” pudessem obter pagamento através dos mesmos. Mais resultou provado que a autora e a (…) acordaram na declarada transmissão para obstar a que os credores da “(…), Lda.” pudessem obter pagamento através dos mesmos e que não seria realizado qualquer pagamento. E ainda resultou provado que 28.05.2003, os prédios em causa não foram entregues pela “(…), Lda.” à autora.
Temos, assim, face à supra mencionada factualidade – nomeadamente que a autora não entregou qualquer valor a título de contrapartida pela declarada transmissão dos imóveis – que, notoriamente, a autora alegou os factos na petição inicial consciente da inveracidade dos mesmos.
Do mesmo modo, o legal representante da autora não podia ignorar a falta de fundamento da pretensão deduzida pela sua representada nos presentes autos, na medida em que, sendo administrador daquela sociedade desde o ano de 2006 (cf. certidão comercial junta a fls. 45), foi ele próprio que, na qualidade de legal representante da autora outorgou a escritura pública de compra e venda junta a fls. 64 a 69, bem como assinou a procuração forense junta aos autos a fls. 34.
Nestes termos, verifica-se que houve actuação, pelo menos, com negligência grave, da parte da autora na presente causa, bem como do seu legal representante e que, nessa medida, deverá ser a primeira condenada como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.os 1 e 2, alínea a) e 543.º, do CPC, e o segundo responsabilizado pela multa e indemnização que venham a ser determinadas, ao abrigo do disposto no artigo 544.º do CPC.”

Quanto à primeira questão suscitada, alega a recorrente que
A condenação por litigância de má-fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC, que proíbe as decisões-surpresa. O que não aconteceu.
Quando não tenha sido objecto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que preceda a decisão, deve o Tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má-fé – Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 440/94, de 07.06.1994, MONTEIRO DINIZ, DR, II Série, de 1.9.94, nº 103/95, MESSIAS BENTO, DR, II Série, de 17.6.95, e nº 357/98, de 12.5.98, GUILHERME DA FONSECA, DR, II Série, de 16.7.98;
Embora a condenação por litigância de má-fé possa ter lugar oficiosamente, a audição da parte antes de ser proferida é necessária, sob pena de violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição da decisão-surpresa, artigo 3º, nº 3, do CPC;
O que constitui uma nulidade, nos termos do artigo 201º do CPC – vide Acórdãos do TRL de 17.7.07, MARIA JOÃO ROMBA, www.dgsi.pt, Proc. nº 4049/2007-4, e do TRP de 4.7.07, CÂNDIDO LEMOS, www.dgsi.pt, Proc. nº 0722763;
Nulidade que desde já e aqui se requer a sua apreciação.

A recorrente não tem qualquer razão nas afirmações de facto supra descritas.
Na sentença sobre o objecto da acção, na sequência da apreciação da litigância de má-fé suscitada, lê-se a fls. 773/774 o seguinte: “… Com efeito sendo a parte uma pessoa colectiva, a decisão de ir a juízo, a conduta e a estratégia processual adoptadas são da responsabilidade dos seus órgãos ou representantes.
Assim sendo, se estes actuarem dolosamente ou de forma gravemente negligente (de má-fé), são eles que devem ser responsáveis pelo pagamento da multa, da indemnização e das custas devidas pela litigância de má-fé.
Ou seja, a responsabilidade dos representantes da pessoa colectiva é uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.
Face ao exposto, antes de mais, a fim de aferir se houve litigância de má-fé, cumpre notificar o(s) representante(s) da autora para o exercício do contraditório, nos termos do art. 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, precisamente porque são eles que podem ser condenados … só após se poderá aferir se se encontram reunidos os pressupostos do art. 459º do Código de Processo Civil.” (sublinhado nosso)
E depois, na decisão, sob a al. B) diz: “Determino a notificação do legal representante da autora para que este, no prazo de dez dias, alegue o que tiver por conveniente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 458º do Código de Processo Civil” (decisão proferida em 31-3-2013, portanto antes da entrada em vigor do N Código de Processo Civil).
Face ao exposto, nenhuma consideração nos oferece dizer, para além de constatar a temeridade com que a recorrente impugnou, naquela sede, a decisão.
Improcedem nesta parte as conclusões da recorrente.

Quanto às duas outras questões suscitadas nas conclusões de recurso, e face à fundamentação transcrita da decisão recorrida, temos de concluir que nenhuma razão assiste à recorrente.
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/3/2007, (Proc. 06A4571), “Agir de boa-fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
A litigância de má-fé, prevista nos arts. 456º e segs., actualmente, 542º e segs. do Código de Processo Civil, surge assim como um instituto tipicamente processual e que permite, no momento, velar por alguns valores do processo, sendo certo que por si não é capaz de ressarcir os prejudicados por danos ilícitos causados pelo exercício do direito de acção.
A lei processual castiga a litigância de má-fé, independentemente do resultado. Apenas releva o próprio comportamento, mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada.
Exige-se é que as condutas visadas sejam “manifestas” e “inequívocas”, requerendo uma quase certeza, por parte do julgador, dado o desmerecimento que envolvem e suscitando, àquele, prudência e cuidado e especiais cautelas – cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 5-7-2012, Proc. nº 5376/09; e de 10-0-2013, Proc. nº 50904/10.
Apreciando o despacho recorrido constata-se que houve uma análise cuidada, prudente e inteligente da Exm.ª Juiz sobre a conduta da autora em confronto com o que a final se provou.
E não, como refere a recorrente, nas conclusões
(…) que alegaram uma versão dos factos desigual à dos Réus, e a Meritíssima Juiz não considerou como provados tais factos; e que da versão diferente dos Réus apenas resulta que é diferente, não que se demonstrasse o contrário, tudo se passando como se os factos não tivessem sido articulados (…) Quer da matéria alegada pelas partes, quer da matéria dada como provada não se poderá inferir que os Recorrentes tenham litigado de má-fé e através de dolo processual, mas única e exclusivamente não logrou provar a sua versão dos factos, não significando com isto que esta seja falsa;
Um facto dado como não provado até pode ser verdadeiro (…)
No direito processual – 1995/96 e, agora, 2013 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligencia (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art.º 456º, nº 2, al. d), do Código de Processo Civil (actualmente 542º, nº 2, al. d)) – apenas releva o dolo.
O despacho recorrido embora tenha entendido que a actuação/situação delineada nos autos, se deve “… pelo menos, com negligência grave, da parte da autora na presente causa, bem como do seu legal representante …”, ela é para nós claramente dolosa.
A autora não podia deixar de saber que nada tinha pago à “(…), Lda.” pela declarada transmissão dos imóveis;
A autora não podia deixar de saber que na data de realização da escritura de compra e venda a “(…), Lda.” não satisfazia as obrigações e que a aquisição dos referidos prédios obstava a que os credores da “(…), Lda.” pudessem obter pagamento através dos mesmos.
A autora não podia omitir/ignorar que ela e a (…) acordaram que a transmissão tinha apenas o objectivo de obstar a que os credores da “(…), Lda.” pudessem obter pagamento através dos mesmos e que não seria realizado qualquer pagamento.
E a autora não podia ignorar que por tal motivo os prédios em causa não lhe foram entregues pela “(…), Lda.” e que nunca estiveram na sua posse.
Ora as referidas realidades foram completamente substituídas por “inverdades” alegadas na petição inicial que, nos artigos 14 a 17 afirma ter cumprido todas as prestações a título de sinal e que liquidou a totalidade da compra, estando na posse dos prédios desde a assinatura do contrato promessa de compra e venda, em 28-5-2003 (!)
Reputamos a postura da autora dolosa por trazer aos autos factos que sabia não serem verdadeiros, construindo uma realidade aparente com base num título que sabia ter sido concretizado apenas para evitar que os credores da “(…), Lda.” pudessem obter pagamento através dos prédios em questão.
Como se refere na decisão recorrida, o legal representante da autora não podia ignorar a falta de fundamento da pretensão deduzida pela sua representada nos presentes autos, na medida em que, sendo administrador daquela sociedade desde o ano de 2006 (cf. certidão comercial junta a fls. 45), foi ele próprio que, na qualidade de legal representante da autora outorgou a escritura pública de compra e venda junta a fls. 64 a 69, bem como assinou a procuração forense junta aos autos a fls. 34.
Houve da parte da autora na presente causa, bem como do seu legal representante uma actuação dolosa e, nessa medida, deverá ser a primeira condenada como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.os 1 e 2, alínea a) e 543.º do actual Código de Processo Civil, e o segundo responsabilizado pela multa e indemnização que venham a ser determinadas, ao abrigo do disposto no artigo 544.º do CPC.
Quanto ao “quantum” da multa a mesma mostra-se equitativa e adequada à gravidade da conduta da autora, nada havendo a acrescentar ao que foi determinado sobre a indemnização a pagar à ré “Massa Insolvente de (…) – Sociedade de Construção, Limitada”.

Decisão:
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.
(Texto escrito e revisto pela relatora, que assina e rubrica as restantes folhas)
Évora, 09-07-2015
Assunção Raimundo
Sérgio Abrantes Mendes
Luís da Mata Ribeiro