Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
159/12.4IDSTB.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
FACTOS CONCRETOS
Data do Acordão: 04/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - A acusação (e a pronúncia) deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efetuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos atos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infração e quais os factos que o arguido realizou, sem imprecisões ou referências vagas.
II - Não basta, pois, no caso concreto, uma referência genérica ao montante constante das duas declarações periódicas de IVA, sabido que é que o acusador não tem todas as facturas que preenchem aquele montante, e, mais do que isso, as que tem nem sequer chegam para atingir o limiar dos € 7.500 a partir do qual o facto passa a constituir crime.
III - A consequência da declaração de nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº 3, do C. P. Penal, é, não a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes (como decidiu o despacho recorrido), mas antes o arquivamento dos autos.
Decisão Texto Integral:

I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos, acima identificados, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Instância Central, Secção Instrução Criminal, J 2, as arguidas “MV, LDª”e MFV foram acusada da prática de:
- A arguida ““MV, LDª”, dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art.º 105.º, n.º 1 e 4 al.ª a) e b) e 7.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5-6; e
- A arguida MFV, em autoria material e concurso efectivo, dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art.º 105.º, n.º 1 e 4 al.ª a) e b), 6.º n.º 1 e 7.º, n.º 3, do RGIT.
A acusação tinha o seguinte teor:
A arguida MV, LDª, é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a actividade de comércio a retalho de têxteis em estabelecimentos especializados.
Desde a sua constituição, em 1991, e até à presente data, a arguida MFV é a gerente da referida sociedade.
Em termos fiscais, e em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a sociedade MV, LDª encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal.
Pelo que estava obrigada a enviar mensalmente à Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, uma declaração periódica relativa ao IVA, acompanhada do pagamento do imposto exigível e apurado.
Durante o mês de Abril de 2010, a MV, LDª exerceu a sua actividade, tendo apurado IVA nas facturas que emitiu, imposto que cobrou e recebeu dos seus clientes, designadamente dos clientes "RA", "MFV" e "BRT", nas quais apurou IVA no valor global de 10.862,60 euros, tendo entregue ao Estado, durante o prazo para tal concedido, uma declaração periódica de IVA.
No entanto, apesar de ter liquidado o montante de IVA apurado nas facturas emitidas ao referido cliente, e declarado tal liquidação, a MV, LDª não procedeu à entrega do imposto nos cofres do Estado, mesmo depois de decorridos 90 dias após o prazo legalmente estabelecido para tal entrega ou depois de notificada para tal.
Adicionalmente, durante o mês de Junho de 2010, a MV, LDª exerceu a sua actividade, tendo apurado IVA nas facturas que emitiu, imposto que cobrou e recebeu dos seus clientes, designadamente dos clientes "MFV", "BRT", "FI", "ADM" e "A&F, Lda." nas quais apurou IVA no valor global de 13.141,52 euros, tendo entregue ao Estado, durante o prazo para tal concedido, uma declaração periódica de IVA.
Porém, apesar de ter liquidado o montante de IVA apurado nas facturas emitidas ao referido cliente, e declarado tal liquidação, a MV, LDª não procedeu à entrega do imposto nos cofres do Estado, mesmo depois de decorridos 90 dias após o prazo legalmente estabelecido para tal entrega ou depois de notificada para tal.
A arguida MV, LDª não fez, nem ordenou que fosse feita, a entrega dos montantes de IVA que liquidou e cobrou nos períodos fiscais acima referidos.
Antes a MV, LDª fez suas as quantias que recebeu dos clientes a título de IVA e utilizou-as para outros fins.
E fê-lo em detrimento e prejuízo da Fazenda Pública que, assim, deixou de receber as mesmas quantias.
As sucessivas decisões de não declarar e entregar o IVA foram tomadas de forma livre, deliberada e consciente pela gerente MFV que actuou movida pelo intuito de alcançar para a MV, LDª, em nome e no interesse da qual agiu, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício desta de quantias que não eram suas.
Sabia a arguida MFV que sobre a arguida MV, LDª impendia a obrigação legal de entregar nos cofres do Estado as quantias referentes ao IVA efectivamente liquidado, nos prazos estabelecidos por lei.
MFV conhecia os factos descritos e quis agir do modo enunciado, sempre livre, voluntária e conscientemente, em nome e no interesse da arguida MV, LDª, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Como prova da acusação, indicou o M.º P.º, além de outra, a seguinte:
- Comprovativos de entrega de declaração de IVA de fls. 35 e 40;
- Cópias de facturas de fls. 126 a 129, 137 a 156, 168 a 187, 189 a 191, 197 a 200, 239 a 257, 275 a 304;
- Documentos de fls. 132, 134 a 136, 157 a 167, 192 a 194, 214 a 237 (cópias de cheques)
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A arguida MFV requereu abertura de instrução, impetrando, em suma, que a acusação padece de nulidade por falta de descrição circunstanciada dos factos que integram o elemento objectivo dos crimes que lhe são assacados, designadamente, por não identificar quais as facturas que nos períodos a que se alude na acusação, foram efectivamente emitidas pela arguida, não identificando ainda qual o imposto cobrado por cada factura nesses períodos, nem o montante efectivamente recebido pela arguida por conta de cada factura ou sequer por cada cliente relativamente aos períodos em causa.
Finda a instrução, foi proferido despacho de não pronúncia com o seguinte teor, citado apenas na parte que agora interessa ao caso:
(…) na acusação destes autos refere-se que em dois períodos temporais (Abril de 2010 e Junho de 2010) a arguida sociedade “exerceu a sua actividade, tendo apurado IVA nas facturas que emitiu, e imposto que cobrou e recebeu dos seus clientes” elencando-se de seguida alguns nomes de clientes que nem se percebe muito bem se pertencem a pessoas singulares ou colectivas, tendo “apurado IVA” no valor global de € 10.862,60 em Abril de 2010, e no valor global de € 13.141,52 em Junho de 2010, tendo entregado ao estado durante o prazo para tal concedido, uma declaração periódica de IVA, sendo que nunca entregou o imposto declarado ao Estado.
(…)
De facto, os recebimentos concretos (provavelmente titulados por facturas emitidas) estão totalmente indiscriminados e esta circunstância já não é aceitável face ao disposto no artigo 287º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal, já que essa emissão, seus concretos (individuais) valores e o efectivo recebimento (ou não) dos mesmos são a materialidade fulcral que permitiria uma condenação das arguidas na hipótese de virem a ser julgadas.
Ora tudo o que temos na acusação são valores globais, conclusivos, inespecificados. Diz-se, com referência aos referidos períodos temporais, que as arguidas liquidaram “o montante de IVA” (indicando-se os valores globais, € 10.862,60 em Abril de 2010, e € 13.141,52 em Junho de 2010), mas não se sabe, de acordo com a acusação, que recebimentos concretos estiveram na base desse cálculo. Sendo que tendo-se indicado diversos clientes, diversos serviços poderão ter estado na base das diversas liquidações de IVA.
Mais, refere-se que os “montantes de IVA” declarados e recebidos não foram entregues ao estado.
Mas posto que os valores globais assentam em somas de valores individuais, imprescindível seria que esses valores individuais estivessem cabalmente descritos para que pudessem sem objecto de prova. É importante saber-se quem pagou o quê às arguidas a titulo de IVA, para se poder alegar o recebimento e a falta de entrega. Nos termos em que a acusação está feita, tanto se pode sustentar que o cliente “MFV” (um dos indicados a fls. 400) entregou à arguida € 5000 a título de IVA, como que o mesmo cliente entregou à mesma arguida € 1. Qualquer uma das considerações é possível, pelo texto da acusação não se sabe, e não se pode condenar assim ninguém.
Aliás, a defesa das arguidas centra-se, em segunda linha, precisamente na falta de recebimento de alguns valores (cfr. fls. 426, artigo 18), mas a verdade é que nem se sabe, de acordo com a acusação (que define a matriz pela qual será aplicada aos arguidos uma pena ou medida de segurança), concretamente que valores, respeitantes a quais facturas, foram efectivamente recebidos, por a acusação não no-lo indicar. Fica assim arredada a possibilidade de correlacionar qualquer possível defesa das arguidas com a materialidade que lhes é imputada, precisamente, porque se desconhece, em concreto, essa materialidade.
Não é possível a ninguém defender-se de imputações como as que são feitas às arguidas na acusação, a não ser da forma também genérica com que o fazem as mesmas a fls. 426, artigo 18. Mas se a imputação factual não é clara, não há como conhecer do fundamento sua defesa.
Estamos assim perante uma acusação manifestamente infundada, na acepção que nos é dada pelos artigos 287º, número 3, al. b), e 311º, números 2º, al. a) e 3, als. b) e d), do Código de Processo Penal. Se em sede de julgamento estivéssemos, a acusação teria que ser rejeitada (artigo 311º), em fase de instrução, tem a nulidade, a existir, que ser conhecida, já que a pronúncia, a existir, tem que assentar sobre factos concretos (sendo esses factos o objecto da discussão na instrução) e não em conclusões inespecificadas, cujo alcance é dúbio (de acordo com a descrição feita na acusação, tanto nela cabe o efectivo recebimento do montante constante da factura “x”, como da factura “y”, sempre se podendo sustentar que não foi recebido um montante constante de uma hipotética factura “z”), não podendo, em todo o caso, o tribunal acrescentar numa eventual pronúncia factualidade diferente da descrita na acusação, sob pena de violação do princípio do acusatório.
Resulta pois, da imputação factual genérica e inespecificada que se faz às arguidas na acusação destes autos, uma violação irreparável da garantia do contraditório do processo penal, porquanto a forma como essa imputação está efectuada não permite o seu contraditório eficaz. As arguidas não podem refutar concretamente factos que não conhecem, e o tribunal não pode, em consequência, formar uma convicção concreta sobre o objecto do processo.
E poderia, em tese, essa concretização ser feita pelo tribunal de julgamento (e já agora porque não, em sede de instrução)?
Não se concorda.
Significaria transferir o poder investigatório, de forma totalmente injustificada, para o tribunal. Com grave violação do princípio do acusatório (artigo 32º, número 5, da Constituição da República Portuguesa).
Segundo esta interpretação, e tirando o exemplo do caso concreto, poderá o Ministério Público acusar por algo mais ou menos indeterminado, que depois o tribunal de julgamento ou o juiz de instrução investigarão. E acrescentarão factos ao objecto do processo, desde que tal acrescento não ultrapasse os limites impostos pelos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. Perguntar-se-á, se assim é, porque o não fez o Ministério Público tal investigação em sede de inquérito, que era onde tal deveria ter sido feito? (artigo 262º, número 1, do Código de Processo Penal).
Até porque, se o Ministério Público em sede de inquérito não conseguiu concretizar tais factos, pese embora o esforço investigatório de cuja existência se não duvida, dificilmente haveriam de o conseguir levar a cabo o tribunal de julgamento ou o juiz de instrução.
Enfim, não se pode concordar com tal visão do processo penal português. O princípio do acusatório é também uma garantia de defesa do arguido na medida em que lhe garante a imparcialidade do julgador. Os mecanismos previstos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal (e já agora, também, no artigo 303º do mesmo diploma) são “válvulas de escape”, destinando-se a permitir a inclusão no objecto do processo de matéria factual que de forma inusitada se descobriu no decurso do processado. Não está na sua previsão a sua utilização premeditada, como forma de colmatar insuficiências ou impossibilidades de apuramento de factos em sede de inquérito.
Em suma, a acusação terá efectivamente, que ser considerada nula, por violação do disposto nos artigos 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal e 32º, números 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa[1].
E a nulidade tem que ser conhecida se invocada (como o foi) ou mesmo oficiosamente em fase de instrução, pois, que tendo esta fase existido, não há lugar à aplicação do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal (número 2, proémio), onde obrigatoriamente teria que ser conhecida.
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A nulidade verificada na acusação, não sendo insanável (artigo 119º do Código de Processo Penal, a contrario), apenas pode ser sanada em sede de inquérito.
Importa pois, que os autos retornem a essa fase, afim de o Ministério Público determinar o que tiver por conveniente, como é seu múnus.
A declaração de nulidade torna inválido o acto em que se verifica, (no caso a acusação), bem como os que dele dependerem e resultem afectados pela nulidade (artigo 122º do Código de Processo Penal).
No caso concreto entende-se que nenhum dos actos praticados posteriormente à acusação ora declarada nula ficam afectados pela nulidade de que a mesma padece (isto é, sofram de qualquer vício decorrente das causas de nulidade da acusação que ora se notaram).
Todavia, e porque é de se declarar inválido o despacho final do inquérito na parte em que se reporta à actuação das arguidas MV, LDª, e MFV, devem os autos retornar a essa fase, para os efeitos que o titular da acção penal tiver por convenientes.
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IV. Decisão final.
Por conseguinte, e tendo presentes todas as supra aludidas considerações e normas jurídicas invocadas, declaro verificada a nulidade a que se alude no artigo 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal, relativamente à acusação proferida nos autos contra MV, LDª, e MFV, e consequentemente:
a) Declaro inválida tal acusação;
b) Determino a remessa dos autos ao Ministério Público, após trânsito em julgado da presente decisão, para efeitos que tiver por convenientes.
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Inconformados com o assim decidido, o M.º P.º e a arguida MFV interpuseram recurso, apresentando o do M.º P.º as seguintes conclusões:
1) Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação imputando a cada uma das arguidas ““MV, LDª” e MFV, a prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, n.º 4, als. a) e b) e n.º 7 do RGIT;
2) A arguida MFV requereu a abertura da fase da instrução, impetrando, em suma, que a acusação padece de nulidade por falta de descrição circunstanciada dos factos que integram o elemento objectivo dos crimes que lhe são assacados, designadamente, por não identificar quais as facturas que nos períodos a que se alude na acusação, foram efectivamente emitidas pela arguida, não identificando ainda qual o imposto cobrado por cada factura nesses períodos, não identificando ainda o montante efectivamente recebido pela arguida por conta de cada factura ou sequer por cada cliente relativamente aos períodos em causa;
3) Realizado debate instrutório, proferiu o Mmo. JIC um despacho em que declarou verificada a nulidade a que se alude no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP da acusação proferida nos autos determinou a remessa dos autos ao Ministério Público «para os efeitos que tiver por convenientes»;
4) É deste despacho que se recorre, assentando as razões de discordância com o mesmo em fundamentos de natureza formal e material, e que, em resumo, consubstanciam a violação de diversas disposições constitucionais e processuais penais, a saber, os artigos 32.º, n.ºs 1 e 5 e 219.º, n.ºs 1 e 2 da CRP e os artigos 118.º, n.º 1, 283.º, n.º 3, al. b), 307.º, n.º 1, 308.º, n.º 1 do CPP e artigo 105.º, n.ºs 1 e 7 do RGIT;
5) A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 307.º, n.º 1 e 308.º do CPP pois caberia ao Mmo. JIC, após o debate instrutório, proferir despacho de pronúncia ou não-pronúncia, podendo – e devendo – pronunciar-se previamente sobre nulidades ou outras questões prévias;
6) Nos presentes autos, não proferiu o Mmo. JIC despacho de pronúncia ou de não-pronúncia, como estava estritamente vinculado a fazer, mas optou por uma solução processual atípica, anómala, ilegal e até de uma determinada perspectiva inconstitucional;
7) Com efeito, a solução de devolver os autos ao Ministério Público para o mesmo refundar a sua acusação, completando-a com os elementos que, no douto entendimento do Mmo. JIC, estariam da mesma ausentes e, também nesse entendimento, dela deveriam constar, não possui qualquer cabimento na lei processual penal portuguesa, inexistindo qualquer norma de onde a mesma se possa extrair;
8) Para além de violar o disposto nos artigos 307.º e 308.º do CPP, a decisão proferida pelo Mmo. JIC afigura –se até anacrónica face ao moderno processo penal português e inconstitucional em duas vertentes;
9) Em primeiro lugar, por violação da estrutura acusatória do processo penal português, consagrada no artigo 32.º, n.º 5 da CRP e da autonomia do Ministério Público, plasmada no artigo 219.º do mesmo diploma, consubstanciando, ao fim e ao cabo, a devolução do processo ao Ministério Público para este acusar, em conformidade com os reparos feitos pelo Mmo. JIC, em vez de apreciar jurisdicionalmente a acusação deduzida e retirar as devidas consequências de uma tal apreciação, proferindo uma decisão em conformidade;
10) Em segundo lugar, consubstancia uma lesão dificilmente reparável das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1 da CRP), permitindo ao acusador depurar uma acusação, em tese, nula, ficando o arguido à mercê de uma nova peça acusatória em que a alegada nulidade já não se verifique;
11) Por outro lado, no crime de abuso de confiança fiscal, não são as “facturas” ou outro documento equivalente (que pode nem existir) que consubstanciam o crime, mas sim a realização, por parte do agente, de operações sujeitas a imposto e de que emerge a obrigação de o liquidar e a não entrega do mesmo nos cofres do Estado nos prazos e nas condições referidas na Lei, sendo as facturas PROVA - indiciária – dessa realização e da emergência da obrigação de liquidar imposto, no caso, IVA e de o entregar ao Estado;
12) Pelo que, considerando o despacho recorrido que a acusação deduzida nos presentes autos enferma da nulidade prevista no artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP, por não especificar, no libelo acusatório, as facturas emitidas pela arguida onde a mesma liquidou IVA não entregue ao Estado, conclui-se que no mesmo se parece confundir o facto ilícito-típico com a respectiva prova;
13) Com efeito, não é obrigatória (sendo até uma prática processual de bondade mais do que discutível a referência e enumeração, no libelo acusatório, de meios de prova….) a menção das facturas na acusação, devendo as mesmas figurar, isso sim, na relação da PROVA existente nos autos e que suporta a acusação;
14) Analisada a estrutura típica do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º do RGIT e o teor factual narrado na acusação, é mister considerar que na mesma se encontra a alegação de todos os pressupostos objectivos e subjectivos do crime abstractamente em causa, o que, a par da completa e especificada enumeração de todos os elementos de prova que a suportam, permite – como permitiu! – às arguidas o exercício do seu direito de defesa;
15) Acresce que, no artigo 105.º, n.º 7 do RGIT, justamente se refere que, para efeitos do crime de abuso de confiança fiscal, «os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração fiscal», não sendo aí referido, contrariamente ao que parece resultar da decisão em crise, o que quer que seja quanto aos valores constantes de facturas ou outros documentos;
16) Não enfermando a acusação deduzida da nulidade referida no despacho recorrido, violou este, por seu turno, o disposto nos artigos 118.º, n.º 1 e 283.º, n.º 3, al. b) do CPP e, bem assim, o disposto no artigo 105.º, nºs 1 e 7 do RGIT;
Pelo exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que considere suficientemente indiciados todos os factos vertidos na acusação, e, consequentemente, pronuncie as arguidas pelos crimes que lhes são imputados (…)
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A arguida MFV respondeu ao recurso do M.º P.º, apresentando as seguintes conclusões:
1 – No que respeita ao segmento da decisão recorrida que ordena a remessa da decisão que declara a nulidade a acusação, secunda-se a posição do ministério público, já defendida, nestes autos, em recurso autónomo apresentado perante esta Relação relativamente a essa parte da decisão.
2 – Quanto ao mais, não tem razão o ilustre representante do ministério quando critica a decisão por alegadamente confundir “prova” com elementos integradores do tipo incriminador; no nosso entender, nada no teor da decisão parece indicá-lo.
3 - A decisão proferida interpreta e bem o artigo 105º nº1 e 7 do RGIT na sua conjugação com o artigo 283º nº3 alínea b) do CPP no sentido que não se viram cumpridas na acusação as exigências narrativas que se impunham ver escritas na mesma para efeitos da incriminação da arguida,
4 – pois, efectivamente, conforme referido supra e (aí) melhor explicitado, nomeadamente, a não individualização das operações consideradas pelo ministério público na acusação, ou a não individualização dos montantes efectivamente recebidos considerados, constituem uma omissão de factos relevantes que deveriam constar da acusação tendo em conta o tipo de crime e a remissão que norma incriminadora faz para o Código do IVA, maxime, o artigo 41º do referido código do IVA.
5 – Essa omissão não é suprida, sob pena de violação do princípio do acusatório e do contraditório, por qualquer remissão directa, muito menos, implícita da acusação simplesmente para os elementos de prova designados na acusação.
6 – Não encontra apoio na letra da lei a posição do ministério público de que para efeitos de interpretação do artigo 105º nº7 deve ser considerado o IVA liquidado na declaração periódica, sendo, bem pelo contrário, a interpretação feita pelo tribunal a quo a propósito das exigências narrativas dos factos essenciais a incriminação da arguida a que melhor se coaduna com a letra da lei (na sua interpretação conjugada com a legislação fiscal aplicável) bem como o bem jurídico tutelado pela própria norma incriminadora.
Em suma,
7 – Não merece quanto a nós qualquer censura a decisão do tribunal a quo, no que respeita à declaração de nulidade da acusação, que assim deve ser mantida pelo menos na parte na parte em que declara a respectiva nulidade da acusação, decidindo-se no mais, conforme já peticionado em recurso autónomo apresentado pela arguida, declarando em face da referida nulidade a respectiva improcedência da acusação e respectivo arquivamento dos autos.
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Por sua vez, o recurso da arguida MFV apresenta as seguintes conclusões:
1- Concluindo pela nulidade da acusação, deveria o tribunal a quo ter procedido ao arquivamento dos autos, e não pugnado pela remessa dos autos ao ministério público para os efeitos que tiver por convenientes.

2- Este segmento da decisão não é compatível com a razão de ser desta fase instrutória, violando o artigo 308º do CPP,

3- Sendo que a ser admissível a prolação de decisão instrutória que ordene a remessa dos autos para o Ministério Público para os fins que tiver convenientes (seja para reformular a acusação ou arquivar os autos) em caso de verificação das nulidades vertidas nas alíneas do artigo 283º é manifestamente inconstitucional por violação do disposto no artigo 18º nº 2 e 3 e 32º nº5 da CRP.

4- Devendo, por isso, a decisão, neste segmento, ser alterada, determinando-se em face da nulidade da acusação, o respectivo arquivamento dos autos.


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O M.º P.º respondeu ao recurso interposto pela arguida MFV, apresentando as seguintes conclusões:
1.
Concluindo pela nulidade da acusação, não é legalmente admissível a prolação de decisão instrutória que determine a remessa dos autos ao Ministério Público para reformulação daquela, já que tal decisão configura manifesta violação da estrutura acusatória do nosso sistema processual penal e da autonomia do Ministério Público, para além de consubstanciar violação das garantias de defesa do arguido.
2.
O entendimento plasmado no Acórdão nº 7/2005, de 12/05/2005, do Supremo Tribunal de Justiça de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, deve entender-se como aplicável ao Ministério Público, em igualdade de circunstâncias,
3.
existindo uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação, pelo que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
4.
Pelo que a douta decisão proferida pelo Mmº Juiz de Instrução no sentido de determinar a devolução dos autos ao Ministério Público, após concluir pela nulidade da acusação, não encontra qualquer apoio legal, mostrando-se violadora do disposto nos artigos 307º, nº 1 e 308º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e ainda nos artigos 32º, nºs 1 e 5 e 219º, da Constituição da República Portuguesa.
Face ao exposto, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, revogar-se a douta decisão proferida no que ao segmento em causa tange (…)
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Nesta Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso do M.º P.º não merece provimento, por a acusação ser uma imputação factual genérica e inespecificada, e o recurso da arguida MFV deve ser julgado procedente, revogando-se o segmento decisório que determinou a devolução do processo ao M.º P.º para os efeitos tidos por convenientes, mais alvitrando que restará ao Ministério Público, (…) com vista ao exercício da ação penal contra as arguidas, instaurar novo processo, com base em certidão a extrair do processo onde foi declarada a nulidade da acusação (mas que não cuidou de apurar da existência ou não de indícios) e, por essa via, colhidos e precisados os indispensáveis elementos factuais, formular, disso sendo caso, nova acusação, expurgada de qualquer vício formal que a inquine.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais citados sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
Postas pelo recurso do M.º P.º:
– Se a acusação rejeitada pelo despacho recorrido satisfaz ou não os requisitos formais do art.º 283.º, n.º 3, maxime da al.ª b), do n.º 3;
Postas pelo recurso da arguida MFV:
– Que ao ter anulado a acusação, por ofensa ao disposto no art.º 283.º, n.º 3 al.ª b), o JIC devia ter mandado arquivar os autos e não remetê-los ao M.º P.º para os efeitos que tiver por convenientes.
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Vejamos:
No tocante à questão posta pelo recurso do M.º P.º:
A mesma resume-se, pois, em dar resposta à seguinte pergunta:
Se a acusação, por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º do RGIT, é nula nos termos do art.º 283.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, por não especificar quais as facturas emitidas – para usar a expressão utilizada na acusação – pelo agente, onde o mesmo cobrou e recebeu dos seus clientes IVA cujo valor, apesar de fazer constar da declaração periódica enviada às Finanças, não entregou ao Estado, mesmo depois de decorridos 90 dias após o prazo legalmente estabelecido para tal entrega ou depois de notificada para tal.
Estabelece aquele art.º 283.º, n.º 3 al.ª b) que a acusação contém, sob pena de nulidade (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio do acusatório consagrado no n.º 5 do art.º 32.º da Constituição, tem como implicação directa que ninguém pode ser julgado por um crime sem precedência de acusação por esse crime, deduzida por órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.
As garantias de defesa, a que se refere o art.º 32.º n.º 1, da Lei Fundamental, inculcam, assim, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.
E isto implica, nomeadamente, que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação lhe não tivesse posto «diante dos olhos».
Alega o M.º P.º em seu recurso que considerou, em suma, o julgador que as facturas indicadas como prova das vendas efectuadas pelas arguidas nos períodos de tributação referidos na acusação - operações geradoras de rendimentos sujeitos a imposto – deveriam encontrar-se individualizadas, não no local destinado à enumeração da prova – documental – que suporta a acusação, mas no próprio libelo acusatório e que tal não especificação necessariamente violaria a supra aludida disposição e as garantias de defesa dos arguidos, decorrentes do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Mais adiante, acrescenta o Digno recorrente que no despacho recorrido se parece confundir o facto ilícito-típico com a respectiva prova.
Ao que intercalaremos nós agora que, realmente, se com a notificação do despacho acusatório os arguidos têm integral acesso aos autos, designadamente aos documentos mencionados quer no corpo da acusação, quer no rol da prova indicada e a produzir em julgamento e na qual a acusação se baseia para imputar os factos ao arguido, documentos que estão incorporados no processo, então tudo permite ao arguido, exercer plenamente o seu direito de defesa (no mesmo sentido: acórdão do STJ de 6-12-2002, CJ, ano X, III-238).
Acontece que… se o Digno Acusador não especificou na acusação quais as facturas emitidas pelo agente, onde o mesmo cobrou e recebeu dos seus clientes IVA cujo valor depois, apesar de fazer constar da declaração periódica enviada às Finanças, não entregou ao Estado, não foi por comodismo ou facilitismo procedimental; foi porque… não as tem! – pelo menos, não as tem a todas, só uma parte. E nem é possível descortiná-las através de elementos contabilísticos, que também não existem nos autos.
Antes de mais, consultando a cópia das facturas e dos cheques discriminados como prova documental oferecida na acusação – e é tudo, com o devido respeito, não só uma inextrincável confusão, como logo se nota que as facturas e os cheques aí referidos não chegam para cobrir toda a verba mencionada na acusação a título de IVA. (Daí que a outra das questões postas pela recorrente MFV no requerimento de abertura de instrução tivesse sido a falta de indícios suficientes para o proferimento da acusação, assunto a que o Senhor Juiz de Instrução se furtou de abordar com o resultado a que chegou ao resolver a alegação primeira do RAI, a da nulidade da acusação.)
Na verdade, o que se passa em relação às facturas é o que a fls. 388 e ss. constata o parecer emitido pela AT nos termos do art.º 42.º, n.º 3, do RGIT:
(........)

Quanto ás restante facturas, não se poderá simplesmente dizer que não foram pagas, pois segundo informação prestada pelo último TOC foram entregues todos os documentos e pastas relativas ao ano 2010 a pedido da arguida: (vide fls. 322)
Perante os factos apurados, é certo que este OPC não consegui reunir prova de que o IVA efectivamente recebido foi superior a 7.500,00€ previstos na lei, mas também não se reuniu prova de que não foi recebido. No entanto, esta impossibilidade deveu-se exclusivamente ao facto de ninguém ter na sua posse a contabilidade, como as testemunhas referiram a contabilidade foi entregue à gerente, dificultando assim a obtenção da prova por parte deste OPC.
(…)
No presente processo os indícios foram recolhidos e foi feita a demonstração indiciária, com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito, e o primeiro desses indícios é, desde logo, o facto de ter sido entregue a declaração periódica de IVA respeitantes aos períodos de 2010.04 e 2010.06, desacompanhado do respectivo meio de pagamento.
O segundo desses indícios resulta da prova recolhidas junto dos clientes da sociedade arguida, que fizeram prova do pagamento de algumas facturas emitidas pela sociedade.
Por outro lado, também contribui para a convicção deste OPC o historial das sociedades em que a aqui arguida é gerente, como já foi referido é prática corrente da Arguida MFV o não pagamento do imposto efectivamente recebido.
Além disso, acresce o facto de a contabilidade ter "desaparecido" sem que haja qualquer justificação nesse sentido.
Essa ausência de contabilidade não permitiu demonstrar o recebimento efectivo do IVA.
(…)
As declarações periódicas de IVA apresentadas sem meio de pagamento, a demonstração do pagamento do IVA por parte de alguns clientes da sociedade arguida (aqueles que foram possíveis identificar, mesmo perante ausência de contabilidade), e o desaparecimento da contabilidade, constituem os tais indícios, os factos-base que permitem a este opc, inferir, de acordo com as regras de vida e experiência comum, que o crime de abuso de confiança fiscal foi praticado.
Aliás, deve-se sublinhar que não foram recolhidos indícios que o crime não tivesse sido praticado, os indícios recolhidos geram convicção de que o crime foi praticado; e não o contrário.
Pois.
Está visto porque é que o M.º P.º não quer discriminar as facturas…
Certo que o n.º 7 do art.º 105.º do RGIT estabelece que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. E que as declarações tributárias referidas na acusação e constantes de fls. 35 e 40 e oferecidas como meio de prova, mencionam efectivamente os valores descritos na acusação.
Alega o Digno Magistrado do M.º P.º recorrente que, a exigir-se a discriminação detalhada na acusação das facturas emitidas pelo agente, onde o mesmo cobrou e recebeu dos seus clientes IVA cujo valor global fez constar das duas declarações periódicas enviadas às Finanças, nenhum sentido útil faria o disposto no artigo 105.º, n.º 7 do RGIT, onde se refere que, para efeitos do crime de abuso de confiança fiscal, «os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração fiscal», não sendo aí referido, contrariamente ao que parece resultar da decisão em crise, o que quer que seja quanto aos valores constantes de facturas ou outros documentos.
Mas, com o devido respeito, o Ex.mo recorrente está a fazer uma leitura apressada daquele normativo. O que nele se prescreve é que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração, não é que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, constam de cada declaração. E, assim, os valores a considerar que devam constar de cada declaração são os discriminados em facturas que é preciso especificar, para conferir se devem ou não constar da declaração, se são todos os que devem constar da declaração ou se há valores que ali não devem constar e/ou outros que lhe foram sonegados.
E isso, só com a discriminação das facturas é que se vê.
Se os factos genéricos e conclusivos não podem sustentar uma acusação, muito menos factos dos quais não se tem sequer a ideia do que sejam, como o são os contidos em facturas que não se sabe se existem. A ser a acusação aceite e submetida a julgamento, a vinculação temática de que fala Figueiredo Dias, em «Direito Processual Penal», Coimbra Editora, pág. 145, e que consiste em os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objecto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal – seria uma vinculação temática a um universo cheio de nada.
A acusação (e a pronúncia) deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos actos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infracção e quais os factos que o arguido realizou, sem imprecisões ou referências vagas – não bastando pois, no caso concreto dos presentes autos, uma referência genérica ao montante constante das duas declarações periódicas de IVA, sabido que é que o acusador não tem todas as facturas que preenchem aqueles montante e, mais do que isso, as que tem nem sequer chegam para atingir o limiar dos 7.500 € a partir do qual o facto passa a constituir crime (o que igualmente consubstancia uma falta de recolha, durante o inquérito, de indícios suficientes de se ter verificado crime: art.º 277.º, n.º 2 e 283.º, n.º 1).
Improcede, assim, o recurso do M.º P.º, porque a acusação é realmente nula, nos termos do art.º 283.º, n.º 3 al.ª b).
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No tocante à questão posta pelo recurso da arguida MFV, a de que ao ter anulado a acusação, por ofensa ao disposto no art.º 283.º, n.º 3 al.ª b), o JIC devia ter mandado arquivar os autos e não remetê-los ao M.º P.º para os efeitos que tiver por convenientes:
Sendo que, em geral, o mais previsível destes efeitos que tiver por convenientes só se entende como culminando numa reformulação da acusação, a questão é, agora, a de saber se uma vez declarada a nulidade da acusação pública, deve seguir-se o regime da invalidade previsto no artigo 122.º ou se, pelo contrário, se impõe o arquivamento dos autos.
O assunto foi tratado no acórdão do TRL de 30-1-2007, proc. n.º 10221/2006-5, acessível em www.dgsi.pt, do qual se extractam as seguintes passagens:
Que consequências retirar da declaração de nulidade da acusação pública, por falta de factos essenciais ao preenchimento do tipo legal imputado, ou seja, essenciais à condenação?
É certo que a declaração de invalidade de um acto determina, em princípio, a sua repetição, sempre que esta seja necessária e ainda seja possível. O que pode determinar o retrocesso dos autos para uma fase distinta e anterior daquela em que se encontram.
Mas essa não é, seguramente, na nossa opinião, a situação dos autos.
Cremos ser inquestionável que, caso o processo tivesse sido remetido directamente para julgamento … o respectivo juiz, ao proferir despacho ao abrigo do art.º 311º, do CPP e constatando a escassez de factos para preenchimento do tipo legal de crime imputado, deveria rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do mencionado normativo legal.
Igualmente, caso tal falha não tivesse sido detectada nestas fases processuais e o processo chegasse a julgamento, ao lavrar a sentença o juiz julgador, perante a insuficiência dos factos, só tinha uma solução: absolver o arguido.
Isto porque, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (artº 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal - leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido (…) O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública (…), o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP (…) para que seja completada a acusação.
No citado aresto é ainda estabelecido paralelo com o que se passa com o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, na sequência do despacho de arquivamento por parte do M.º P.º, quando o mesmo é omisso na narração dos factos imputados ao arguido relativamente quer aos elementos objectivos, quer ao elemento subjectivo da infracção, situações que têm vindo a motivar, com a aprovação dos tribunais superiores, a rejeição do respectivo requerimento, sem prévio convite ao aperfeiçoamento, convite, esse, aliás, arredado no acórdão do STJ n.º 7/2005 (DR 212 SÉRIE I-A, de 2005-11-04), que fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Com efeito, através do despacho recorrido, em que, em geral, o mais previsível dos efeitos que tiver por convenientes por que se devolvem os autos ao M.º P.º só se entende como culminando numa reformulação da acusação, estar-se-ia a conferir uma prerrogativa ao M.º P.º que não tem paralelo quanto aos demais sujeitos processuais, aos quais, em posição similar, não é concedida a faculdade de deduzir «nova acusação». É, manifestamente, o que se passa na situação atrás reportada com o assistente, quando, em caso de crime de natureza pública ou semi-pública, na sequência do despacho de arquivamento por parte do M.º P.º, vê o requerimento de abertura da instrução por si apresentado indeferido, sem que haja lugar a prévio convite ao aperfeiçoamento, designadamente por falta de narração dos factos integrantes do crime imputado ao arguido.
Assim, concordamos com o acórdão da Relação de Coimbra de 23-5-2012, processo 126/09.5IDCBR-B.C1, quando sintetiza que, se a nulidade da acusação prevista no art.º 283.º, n.º 3, for arguida perante o titular do inquérito e por este declarada, ficará sujeita à disciplina do art.º 122.º; se for declarada no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo (art.º 308.º, n.º 3), determinará a não pronúncia; se for reconhecida por ocasião do despacho a que alude o art.º 311.º, será objecto de rejeição por manifestamente infundada; sendo-o em sede de julgamento – posto de que alteração substancial se trata, pois de contrário não se compreenderia a declaração de nulidade da acusação por ausência de narração dos factos (uma coisa é a nulidade da acusação outra, diferente, a deficiência da mesma) –, tratando-se de factos novos, não autonomizáveis, e não havendo acordo das «partes», não podendo aqueles ser considerados no âmbito do processo, a consequência será a absolvição do acusado.
Assim, a consequência da declaração de nulidade da acusação por violação do disposto no art.º 283.º, n.º 3, é, não a remessa dos autos ao M.º P.º para os efeitos que tiver por convenientes – como decidiu o despacho recorrido –, mas antes o arquivamento dos autos.
O que o M.º P.º faça na sequência do arquivamento ora decidido (instaurar – como sugere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto – novo processo, com base em certidão a extrair do processo onde foi declarada a nulidade da acusação (mas que não cuidou de apurar da existência ou não de indícios) e, por essa via, colhidos e precisados os indispensáveis elementos factuais, formular, disso sendo caso, nova acusação, expurgada de qualquer vício formal que a inquine) é matéria que extravasa o âmbito do presente recurso e sobre a qual não temos nem nos devemos pronunciar.
IV
Termos em que se decide:
1.º
Negar provimento ao recurso do M.º P.º e, em consequência, manter a decisão recorrida na parte em que não pronunciou as arguidas.
2.º
Conceder provimento ao recurso da arguida MFV e em consequência revogar a decisão recorrida na parte em que ordenou a remessa dos autos ao M.º P.º (…) para efeitos que tiver por convenientes, a qual se substitui pela de, em face da nulidade da acusação, ordenar o arquivamento dos presentes autos.
3.º
Não é devida tributação nem pela arguida (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), nem pelo M.º P.º (art.º 522.º do Código de Processo Penal).

Évora, 07-04-2015
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)


João Martinho de Sousa Cardoso


Ana Maria Barata de Brito


[1] Em sentido que se considera essencialmente concordante com esta posição se decidiu nos recentes acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 17/9/2013 e 5/11/2013, processos número 97/11.8PFSTB.E1 e 18/08.5GDODM.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; no primeiro dos arestos é efectuada uma pertinente resenha jurisprudencial sobre a questão da admissibilidade das “imputações genéricas”.