Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2325/21.2T8FAR-C.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: PROCESSOS TUTELARES
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O requerimento que responde às alegações da requerida, no exercício do contraditório, em relação aos documentos juntos aos autos pela Requerida com tais alegações e ao pedido de junção de mais documentos e realização de nova prova, não deve ser desentranhado apenas com o argumento de que na tramitação daquele processo apenas se encontra prevista a possibilidade de apresentação de dois articulados (a petição inicial e as alegações do requerido), devendo ser admitido, designadamente por razões de economia e celeridade processuais e tendo em atenção a natureza de jurisdição voluntária do processo, podendo o requerente exercer o contraditório relativamente às aludidas questões, antes daquela fase.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Nos autos em epígrafe referenciados, (…), progenitor das crianças (…) e (…), gémeos nascidos a 28.04.2015, e (…), nascida a 16-06-2021, instaurou em 24 de Agosto de 2021, contra (…), progenitora das crianças, ação de alteração das responsabilidades parentais requerendo, em síntese, que fosse fixado um regime provisório face à vontade da progenitora em alterar a sua residência para fora do Algarve.
Por falta de acordo na Conferência foi ordenada a notificação das partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos, nos termos do artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC (refª. 47369840).
O requerente apresentou requerimento na sequência das alegações apresentadas pela requerida em 01-06-2022.
A requerida veio requerer o desentranhamento do requerimento desse, alegando, em síntese, que este não poderia responder às alegações daquela por não prever o RGPTC a dedução de tal articulado.
Foi proferido pelo Mmo. Juiz em 06-07-2022 o seguinte despacho ora recorrido:
(…)
Finalmente, veio a progenitora requerer o desentranhamento do requerimento do progenitor apresentado no passado dia 15/6/2022, alegando, em síntese, que este não poderia responder às alegações daquela por não prever o RGPTC a dedução de tal articulado.
Assiste-lhe razão.
O artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC apenas prevê a dedução pelos litigantes de alegações, não prevendo a existência de quaisquer outros articulados.
Por outro lado, o referido novo articulado deduzido pelo progenitor não se funda no exercício do princípio do contraditório, pois que inexiste qualquer efeito cominatório decorrente para o mesmo da não pronúncia relativamente aos factos alegados pela progenitora. E também não se funda apenas na impugnação dos documentos juntos pela mãe das crianças nas suas alegações, pois que o que o progenitor faz, de facto, em tal requerimento é, a pretexto de tais documentos, comentar tais alegações e tentar refutá-las.
Nestes termos, na medida em que legalmente inadmissível, determino o desentranhamento e devolução do requerimento do progenitor datado de 15/6/2022.
Notifique os pais.
Adverte-se os pais que o Tribunal passará a tributar como incidente futuros requerimentos que os mesmos apresentem e que não se insiram na tramitação prevista nos artigos 35.º e seguintes do RGPTC.
Decorrido o prazo de 10 dias contado da notificação do presente despacho e na hipótese de não ser deduzido incidente de levantamento do sigilo bancário, abra conclusão para ser agendado o julgamento.»
Inconformado com a decisão, pelo requerente foi interposto recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«1) O recurso vem interposto do despacho do Douto Tribunal de dia 06-07-2022 (notificado às Partes via Citius no dia 07-07-2022), que determinou o desentranhamento e devolução ao Requerente do requerimento datado de dia 15-06-2022.
2) Tal decisão viola o direito ao contraditório ínsito no artigo 3.º do CPC, que sempre daria ao Requerente a liberdade se pronunciar sobre os documentos em questão de uma forma ampla.
3) No contraditório aos documentos juntos pela Requerida, o Requerente cingiu-se unicamente a esses mesmos documentos, bem como às observações e conclusões que a progenitora fez por remissão directa e expressa para os mesmos.
4) O Requerente não se pronunciou sobre outras questões que não resultassem expressamente dos documentos ou que a Requerida não tivesse feito com remissão expressa para esses mesmos documentos.
5) Ao contrário do que entende o Tribunal a quo, o Requerente não faz uso ilegítimo do seu direito ao contraditório, aproveitando, alegadamente, para comentar as Alegações da Requerida.
6) Mas, ao abrigo do princípio do contraditório, é direito do Requerente pronunciar-se sobre os documentos juntos e, inclusive, refutar alegações que a Requerida faz com remissão directa e expressa para as referidas provas.
7) As Alegações a que se reporta o artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, não constituem qualquer articulado onde um dos progenitores propõe ou expõe as suas razões e o outro progenitor responde, logo, juntando um dos progenitores determinada prova documental, sempre assiste ao outro a possibilidade de se pronunciar quanto a essa prova documental.
Termos em que, e nos mais de Direito aplicável, deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a decisão proferida pela Tribunal a quo revogada e substituída por outra que ordene a manutenção nos autos do requerimento apresentado pelo Requerente no dia 15-06-2022.
Assim se fazendo JUSTIÇA!»
Nas contra-alegações, o M.º P.º concluiu que:
« 1.º Dispõe o artigo 39.º, nºs 4, 5, 6 e 7, do RGPTC:
“4 - Se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
5 - Findo o prazo das alegações previsto no número anterior e sempre que o entenda necessário, o juiz ordena as diligências de instrução, de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 21.º.
6 - De seguida, caso não haja alegações nem sejam indicadas provas, ouvido o Ministério Público, é proferida sentença.
7 - Se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias.”;
2.º Daqui se retirando o seguinte que: Não havendo acordo os progenitores são notificados para apresentarem alegações, arrolarem testemunhas e juntarem documentos, findo tal prazo, pode o juiz determinar a realização de diligências de instrução e se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias;
3.º Se é certo que a observância do princípio do contraditório deve estar subjacente a qualquer decisão judicial, não é menos certo que, em casos excecionais, tal princípio pode ser afastado (artigo 3.º, n.º 2, do CPC), nomeadamente tendo em vista a satisfação do superior interesse da criança (artigos 37.º, n.º 5, 39.º, n.º 7 e 40.º, n.º 1, do RGPTC, 1906.º, n.ºs 2 e 7, do Código Civil e o artigo 3.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança);
4.º Atento preceituado legal (artigo 39.º do RGPTC) inexiste fundamento legal de responder às alegações da contraparte, ficando tais alegações dependentes da produção de prova a prestar em audiência de discussão e julgamento, e será aí que cumprirá ao Apelante produzir prova, e/ou rebater prova que infirme o alegado pela progenitora, ao abrigo do invocado princípio do contraditório;
5.º Sob pena de existir a possibilidade de arrastar o processo indefinidamente, e, consequentemente, não ser respeitado o superior interesse da criança que reclama, necessariamente, uma decisão o mais célere possível de acordo, claro, com a verificação e tramitação do previsto no RGPTC;
6º. O Tribunal a quo ao proferir tal decisão nos termos em que o fez, não violou o disposto nos artigos nos artigos 3.º do Código de Processo Civil e 39.º, n.º 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, ou quaisquer outras disposições legais.
Termos em que, se nos afigura, deverá a decisão recorrida ser mantida na íntegra, assim se negando provimento ao recurso.
V/Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA»
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto recursório, cumpre apreciar e decidir.
Os factos relevantes para a decisão constam deste relatório.


2 – Objecto do recurso.

Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso: Saber se o requerimento apresentado pelo aqui recorrente (depois das alegações da requerida) é de rejeitar e desentranhar dos autos, face ao que dispõe o artigo 42.º do RGPTC.


3 - Análise do recurso.

Estamos perante um processo tutelar cível que tem a natureza de jurisdição voluntária, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3.º, alínea c) e 12.º do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8/9.
Como explicam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 69 e 70, “Os processos de jurisdição voluntária contrapõem-se aos processos de natureza contenciosa, sendo assinalado pela doutrina clássica que nos primeiros se discute um interesse juridicamente tutelado cuja regulação o juiz efectuará nos termos mais convenientes. A função do juiz em tais situações não é tanto a de aplicar soluções legais estritas, mas antes gerir da melhor forma a satisfação dos interesses tutelados pela lei. Ao contrário da jurisdição contenciosa, em que impera o princípio do dispositivo (artigo 5.º do NCPC), na regulação do exercício das responsabilidades parentais e no processo de alteração dessa regulação, o juiz investiga autonomamente os factos, no que não está circunscrito ao que as partes alegaram em qualquer peça do processo”.
Há, pois, uma maior flexibilidade processual.
Como já referimos, na alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, de acordo com o disposto no artigo 42.º, n.º 3, do RGPTC, depois de apresentada em juízo pelo requerente a petição inicial, o requerido é citado para, no prazo de 10 dias, alegar o que tiver por conveniente.
E nos termos do n.º 5 do artigo 42.º do RGPTC, se o juiz não considerar o pedido infundado ou desnecessária a alteração, este “ordena o prosseguimento dos autos, observando-se, na parte aplicável, o disposto nos artigos 35.º a 40.º”, o que significa que os pais são notificados para a realização da conferência prevista no artigo 35.º, n.º 1, “ex vi” do artigo 42.º, n.º 5, do RGPTC.
No decorrer dessa conferência, “se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos, suspende a conferência e remete as partes para:
a) Mediação, nos termos e com os pressupostos previstos no artigo 24.º, por um período máximo de três meses; ou
b) Audição técnica especializada, nos termos previstos no artigo 23.º, por um período máximo de dois meses” (artigo 38.º do RGPTC).
Assim, finda a fase da mediação ou da audição técnica especializada, consoante o Tribunal remeta os pais para um ou outro meio de auxílio de resolução do litígio, se estes continuarem sem alcançar um acordo no que à regulação do exercício das responsabilidades parentais do filho menor diz respeito, o juiz “notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos” (artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC).
No que ao caso dos autos interessa, na sequência do acima referido, o RGPTC prevê, sob o artigo 39.º, n.º 4, “ex vi” do artigo 42.º, n.º 5, que se os pais não chegaram a acordo, são notificados para, no prazo ali estabelecido, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos (Artigo 39.º: Termos posteriores à fase de audição técnica especializada e mediação: 1 - Finda a intervenção da audição técnica especializada, o tribunal é informado do resultado e notifica as partes para a continuação da conferência a realizar nos cinco dias imediatos, com vista à obtenção de acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais. 2 - Quando houver lugar a processo de mediação nos termos previstos no artigo 24.º, o tribunal é informado em conformidade. 3 - Finda a mediação ou decorrido o prazo a que se refere a alínea a) do artigo anterior, o juiz notifica as partes para a continuação da conferência, que se realiza nos cinco dias imediatos com vista à homologação do acordo estabelecido em sede de mediação. 4 - Se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos. 5 - Findo o prazo das alegações previsto no número anterior e sempre que o entenda necessário, o juiz ordena as diligências de instrução, de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 21.º. 6 - De seguida, caso não haja alegações nem sejam indicadas provas, ouvido o Ministério Público, é proferida sentença. 7 - Se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias. 8 - As testemunhas são apresentadas pelas partes no dia do julgamento. 9 - Atendendo à natureza e extensão da prova, pode o juiz, por decisão irrecorrível, admitir a inquirição de testemunhas para além do previsto no n.º 4.)
É certo que, resulta do disposto no artigo 42.º, n.ºs 1, 3 e 5, do RGPTC que, na tramitação do presente processo de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais apenas se encontra prevista a possibilidade de apresentação de dois articulados, ou seja, o requerimento inicial e as alegações do requerido.
É certo que, em regra, é na audiência que será tomada posição e apresentar prova que infirme o alegado nas alegações .
Mas isso não significa que só no momento a que alude o artigo 39.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, é que seja permitido às partes apresentarem ou a exercer o contraditório nos termos do artigo 3.º do NCPC.
Nos termos do artigo 25.º do RGPTC (Contraditório):
1 - As partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias.
2 - O juiz indefere, por despacho irrecorrível, os requerimentos apresentados que se mostrem inúteis, de realização impossível ou com intuito manifestamente dilatório.
3 - É garantido o contraditório relativamente às provas que forem obtidas pelos meios previstos no n.º 1.”
Note-se que a lei não se refere a alegações nem a uma eventual admissibilidade de resposta a alegações, mas à necessidade de as partes conhecerem as provas coligidas para o processo.
Nada impede o exercício do contraditório sempre que haja junção de prova pela parte contrária.
Defendemos que se faça no RGPTC uma leitura menos formalista do processado, do que aquela que resulta do regime processual comum, e independentemente de ambos os progenitores terem sido notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, entendemos que a resposta do é admissível, com base no princípio do aproveitamento dos actos processuais por parte do juiz e até por razões de economia processual.
O recorrente no requerimento em causa, além de exercer o contraditório em relação aos documentos juntos aos autos pela Requerida e às observações que foram feitas pela Requerida especificamente quanto aos mesmos documentos ou aos factos que a progenitora pretendia que fossem dados como provados com base nessas provas e pronuncia-se ainda sobre o pedido de junção de extractos bancários relativos ao ano de 2021, bem como quanto à realização de novos relatórios sociais.
E nem se diga que tal requerimento não se funda no exercício do princípio do contraditório, pois que inexiste qualquer efeito cominatório decorrente para o mesmo da não pronúncia relativamente aos factos alegados pela progenitora, já que esse não é um requisito essencial do contraditório.
Nesta conformidade, entendemos que o requerente, ora recorrente, ao pronunciar-se, dentro do prazo previsto no artigo 149.º do NCPC, sobre os documentos juntos pela requerida, lançou mão do disposto no artigo 415.º, n.º 1, do NCPC, exercendo o seu direito ao contraditório, antes do juiz proferir qualquer decisão sobre a admissibilidade dos mesmos pelo que tal requerimento deve ser admitido na medida em que, no exercício do contraditório (artigo 3.º do NCPC) e dentro do prazo previsto no artigo 149.º do NCPC.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência, revogar o despacho recorrido, na parte em que mandou desentranhar dos autos o requerimento apresentado pelo ora recorrente, admitindo a junção aos autos de tal requerimento. Sem custas.
Évora, 12.01.2023
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita