Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6462/18.2T8STB.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
CULPA
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Estando em causa o incumprimento pelos devedores da obrigação de imediata entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, são dois os requisitos exigidos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, a saber: i) que a violação de tal obrigação ocorra dolosamente ou com grave negligência; ii) que esse facto prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
II - Tendo os devedores auferido rendimentos mensais que excedem o montante indisponível fixado, a falta de entrega de qualquer valor nos dois anos subsequentes à fixação daquele montante, encontrando-se em falta a quantia de € 1.430,78, viola gravemente os valores e interesses que se pretendem acautelar com o comportamento devido;
III - É de qualificar como gravemente negligente a atuação dos devedores, ao omitirem durante todo o período indicado a obrigação de imediata entrega ao fiduciário da parte dos rendimentos objeto de cessão, pretendendo ficar liberados das respetivas dívidas após o decurso do período de cinco anos, sem efetuar qualquer esforço que permita o pagamento aos credores;
IV - A falta de entrega pelos devedores ao fiduciário da parte dos rendimentos objeto de cessão impede o pagamento, ainda que parcial, dos créditos sobre a insolvência, assim prejudicando necessariamente a satisfação desses créditos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6462/18.2T8STB.E1
Juízo de Comércio de Setúbal
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Declarada a insolvência de (…) e de (…), casados um com o outro, melhor identificados nos autos, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos formulado, tendo-se determinado a entrega ao fiduciário nomeado do rendimento disponível que os devedores venham a auferir, no prazo de cinco anos a contar do encerramento do processo de insolvência, com exclusão da quantia mensal equivalente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida, conforme despacho de 29-01-2019, tendo na mesma data sido proferida decisão de encerramento do processo.
O fiduciário nomeado apresentou, a 26-03-2020, relatório no qual informa que ambos os devedores se encontram a trabalhar e não procederam à entrega dos valores auferidos, na parte em que excedem o rendimento indisponível fixado, encontrando-se em dívida o montante de € 1.430,78.
A 11-03-2021, o fiduciário nomeado apresentou novo relatório, no qual informa que, apesar de ambos os devedores se encontrarem a trabalhar, os rendimentos auferidos no segundo ano não excedem o rendimento indisponível fixado, pelo que inexistem valores a entregar; acrescenta que os devedores não procederam à entrega do valor de € 1.430,78, referente ao primeiro ano da cessão, não obstante notificados para o efeito.
A credora (…) – Sucursal da Sociedade Anónima (…) requereu a notificação dos devedores para esclarecerem o não cumprimento da cessão do rendimento disponível e procederem à entrega da quantia em dívida.
Notificados para o efeito, os devedores não se pronunciaram, nem procederam à entrega do montante em dívida.
A credora (…) – Sucursal da Sociedade Anónima (…) requereu se determine a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, pelos motivos que expõe.
Foi cumprido o disposto no artigo 243.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Os devedores não se pronunciaram.
Por decisão de 07-07-2021, foi declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos seguintes:
Atento o exposto, ao abrigo dos artigos 243.º, n.º 1, alínea a), 3, 239.º, n.º 4, alíneas a) e c), do CIRE, declaro a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante que foi deferido liminarmente aos insolventes (…) e (…).
Custas pelos insolventes.
Notifique e publicite-se (artigo 247.º do CIRE).

Inconformados, os devedores interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada, terminando as alegações com as conclusões que se transcrevem:
«1. A gravidade das consequências para os Apelantes, da revogação da exoneração, com a consequente obrigatoriedade de satisfação integral de todos os créditos, impõe, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante para os seus credores,
2. Ora não só se essa conduta dolosa ou de negligência grave pelo acima exposto, não existiu como, e salvo melhor opinião, não foi tal facto minimamente provado;
3. Com a exoneração do passivo restante, permite-se ao devedor insolvente um recomeço, uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, a cessação antecipada só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante e grave que também não foi provado.
4. Assim somos de opinião que o prejuízo relevante causado pela conduta dos Insolventes não se pode considerar preenchido este requisito legal, pelo que deverá ser revogada a decisão.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes e inexistindo questões de conhecimento oficioso a apreciar, cumpre decidir da verificação dos pressupostos da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Relevam para a apreciação da questão suscitada na apelação, além dos elementos elencados no relatório supra, ainda os seguintes elementos constantes dos autos:
a) por despacho datado de 29-01-2019:
i) foram considerados apurados os factos seguintes:
- os insolventes são casados entre si, sendo o seu agregado familiar constituído pelos mesmos e por dois filhos menores;
- os insolventes trabalham como assistentes pastorais;
- o insolvente aufere cerca de € 586,27 mensais e a insolvente aufere cerca de € 514,96 mensais;
- pagam de renda € 400,00 mensais;
- a filha dos insolventes padece de doença de nascença, despendendo os insolventes € 100,00 mensais em fisioterapia;
- auferem da Segurança Social € 200,00 mensais, como subsídio de assistência a 3.ª pessoa;
ii) foi determinado, além do mais, o seguinte:
(…) determino que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida, doze meses por ano, valor que vai ao encontro das despesas elencadas em sede de petição inicial e no relatório do Sr. AI.
Nos termos e para os efeitos do n.º 3 do mesmo artigo 239.º, consigna-se que integram o rendimento disponível dos insolventes todos os rendimentos que lhes advenham a qualquer título, com exclusão daqueles enumerados nas alíneas a) e b) do mesmo normativo legal.
Durante o período da cessão, e de acordo com o n.º 4 do artigo 239.º, ficam ainda, os insolventes obrigados a:
-não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, devendo informar este Tribunal e o fiduciário, ora nomeado, sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que tais informações lhe sejam requisitadas;
-exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo;
-entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
-informar este Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado, sobre as diligências com vista à obtenção de emprego;
-não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar especial vantagem para algum deles.
Ficam, ainda, os insolventes advertidos de que poderá ocorrer cessação antecipada do procedimento de exoneração se ocorrer alguma das circunstâncias a que alude o artigo 243.º do CIRE. (…)

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Declarada a insolvência de (…) e de (…), casados um com o outro, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos formulado, tendo-se determinado a entrega ao fiduciário nomeado do rendimento que os devedores venham a auferir, no prazo de cinco anos a contar do encerramento do processo de insolvência, com exclusão da quantia mensal equivalente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida.
Na sequência de relatório apresentado a 11-03-2021 pelo fiduciário nomeado, no qual informa que ambos os devedores se encontram a trabalhar e não procederam à entrega dos valores auferidos, na parte em que excedem o rendimento indisponível fixado, encontrando-se em dívida a este título o montante de € 1.430,78 referente ao primeiro ano da cessão, foram os devedores notificados, a requerimento da credora (…) – Sucursal da Sociedade Anónima (…), para esclarecerem o não cumprimento da cessão do rendimento disponível e procederem à entrega da quantia em dívida, não tendo os mesmos emitido pronúncia ou procedido à entrega de qualquer montante, após o que requereu a aludida credora a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Por despacho de 07-07-2021 foi declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, decisão cuja revogação vem peticionada na presente apelação.
Extrai-se da decisão recorrida, além do mais, o seguinte:
Nos termos do disposto no artigo 243.º, nº 1, alínea a), do CIRE, antes de terminado o período da cessão, deve o Juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor, do administrador de insolvência se estiver ainda em funções ou do fiduciário, caso tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o mesmo tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Nos termos do artigo 239.º, n.º 4, alíneas a) e d), do CIRE, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias, após a respectiva ocorrência, bem como quando solicitado, e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego.
Mais, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 4 do referido preceito, o devedor fica ainda obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Ora, tendo em consideração o que se supra se expôs, verifica-se que os insolventes, durante o período de cessão em curso, não procederam à entrega dos montantes de cessão em dívida, nem justificaram essa não entrega.
Assim, tendo em consideração o que se supra se expôs, facilmente se vislumbra que os mesmos agiram com negligência grave relativamente à referida omissão a qual prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência, pois não permitem ao Sr. Fiduciário proceder aos pagamentos devidos aos credores e distribuir os valores em dívida por esses mesmos credores.
Discordando deste entendimento, sustentam os apelantes, em síntese, que só uma conduta dolosa do devedor, que seja causa de um dano relevante para os seus credores, pode fundamentar a revogação da exoneração; acrescentam que não se encontra provado que tenham adotado uma conduta dolosa ou gravemente negligente, nem que a violação das obrigações a que se encontravam vinculados tenha causado aos credores um dano grave, pelo que concluem não se encontrarem preenchidos os pressupostos da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Vejamos se lhes assiste razão.
No âmbito da insolvência de pessoas singulares, o CIRE estabeleceu a possibilidade de ser concedida ao devedor a exoneração dos créditos que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, de forma a permitir a sua reabilitação económica.
Com este regime da exoneração do passivo restante, o CIRE acolheu, conforme decorre do preâmbulo do diploma que o aprovou (DL n.º 53/2004, de 18-03), o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência. No entanto, esta possibilidade de verificados determinados requisitos e decorrido o período temporal fixado, os devedores insolventes se libertarem de algumas das suas dívidas, de forma a reiniciarem a sua vida económica, é conjugada com o princípio fundamental do ressarcimento dos credores, o qual impõe que o devedor permaneça, durante o período da cessão, adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Assim, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo, o devedor insolvente deve ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário designado pelo tribunal, o qual afetará o montante recebido ao pagamento aos credores, bem como ao pagamento das custas e ao reembolso das despesas do processo.
Esclarece o artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) o exercício pelo devedor da sua atividade profissional; iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
No caso presente, por despacho de 29-01-2019, tendo em conta a situação pessoal dos devedores e do respetivo agregado familiar, foi excluído do rendimento disponível o montante mensal correspondente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida, decisão que vincula os devedores, não cabendo reapreciar nesta sede os pressupostos que determinaram a quantificação do rendimento indisponível; por outro lado, analisando o aludido despacho, verifica-se que consta do respetivo segmento decisório, além do mais, que os devedores ficam obrigados, durante o período de cessão, a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Assente que os devedores não cumpriram a obrigação prevista do artigo 239.º, n.º 4, alínea c), do CIRE [Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: (…) c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão], não vindo questionada na apelação a falta de entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, cumpre apreciar se se justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Sob a epígrafe Cessação antecipada do procedimento de exoneração, dispõe o artigo 243.º do CIRE, no seu n.º 1, que, antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando, entre outras situações, se verifique o previsto na alínea a): o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Baseando-se o requerimento na alínea a) do n.º 1, dispõe o n.º 3 do citado artigo que o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
Quanto à causa de cessação antecipada do procedimento prevista na alínea a) do n.º 1 do citado artigo, esclarecem Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 867) que se refere “a comportamentos do devedor, ocorridos no período de cessão, que envolvem violação dolosa ou com grave negligência das obrigações que lhe são impostas pelas alíneas do n.º 4 do artigo 239.º, desde que daí resulte prejuízo para a realização dos créditos sobre a insolvência”.
Estando em causa o incumprimento pelo devedor das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º do CIRE, são dois os requisitos exigidos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, a saber: i) que a violação de tais obrigações ocorra dolosamente ou com grave negligência; ii) que esse facto prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Perante o primeiro dos indicados requisitos -- o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º --, cumpre analisar a culpabilidade que integra a atuação dos devedores em sede do incumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário, quando por si recebida, da parte dos seus rendimentos objeto de cessão. Impõe-se, assim, uma apreciação da conduta dos apelantes na sua relação com o comportamento devido, isto é, na perspetiva da violação de um dever jurídico ou da omissão do dever de diligência que lhes é imposto, bem como da intervenção da vontade nessa atuação.[1]
Consagrando o Código Civil, no n.º 2 do artigo 487.º, um critério de apreciação da culpa em abstrato, há que analisar a conduta adotada pelos devedores, a concreta ação ou omissão em causa, por comparação com a conduta exigível nas concretas circunstâncias, verificando se a omissão do comportamento devido ocorreu voluntariamente.
Visando a exoneração do passivo restante conciliar a possibilidade de liberar os devedores do remanescente das respetivas dívidas após o decurso do período de cinco anos, com o direito dos credores obterem o pagamento dos seus créditos através dos rendimentos auferidos pelos devedores durante tal período e não abrangidos pelo montante indisponível fixado, daqui decorre a necessidade da realização de esforço acrescido, e mesmo de um sacrifício constante, por parte dos devedores, no sentido de procederem à imediata entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, quando por si recebida. Como tal, tendo os devedores auferido rendimentos que excedem o montante indisponível fixado, a falta de entrega de qualquer valor, desde a fixação daquele montante por despacho de 29-01-2019 até à elaboração do segundo dos dois relatórios anuais que mencionaram a existência de um montante em dívida, o primeiro apresentado a 26-03-2020 e o segundo a 11-03-2021, viola gravemente os valores e interesses que se pretendem acautelar com o comportamento devido.
Considerando que o procedimento de exoneração do passivo restante foi requerido pelos devedores e que foram regularmente notificados da obrigação de procederem à imediata entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objeto de cessão, quando por si recebida, daqui decorre que o comportamento devido foi omitido voluntariamente, pretendendo os devedores beneficiar da exoneração e, simultaneamente, dispor da totalidade dos seus rendimentos.
A consideração da intervenção da vontade permite distinguir as duas modalidades da culpa em sentido amplo a que se refere o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, ao impor que o agente tenha “agido com dolo ou mera culpa”. No dolo, a imputação do ato ilícito ao agente assume maior gravidade, por ser mais intensa a intervenção da vontade, dado que o agente prevê sempre e aceita o resultado ilícito, o que não sucede na negligência, em que o agente não prevê ou, caso preveja, não aceita tal resultado.[2]
Mostra-se acertada, no caso, a qualificação como gravemente negligente da atuação dos devedores, ao omitirem a obrigação em causa, durante todo o período indicado, pretendendo ficar liberados das respetivas dívidas após o decurso do período de cinco anos, sem efetuar qualquer esforço que permita o pagamento aos credores, antes dispondo da totalidade dos seus rendimentos.
Estando em causa, no caso presente, a falta de entrega pelos devedores ao fiduciário da parte dos rendimentos objeto de cessão, o incumprimento desta obrigação impede o pagamento, ainda que parcial, dos créditos sobre a insolvência, assim prejudicando necessariamente a satisfação desses créditos.
Em conclusão, mostram-se preenchidos os requisitos exigidos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, pelo que cumpre julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Em conclusão:
(…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.


Évora, 23-09-2021
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Cf., sobre a culpa, em direito civil, Ana Prata, “Responsabilidade delitual nos Códigos Civis português de 1966 e brasileiro de 2002”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 94-97 e, sobre a interdependência entre a culpabilidade e a omissão do comportamento devido, Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, 1968, 3.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 1999, p. 316-317.
[2] Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, 2.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, p. 582-583; Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, 341-345.