Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
557/22.5T8ENT-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: TÍTULO DE CRÉDITO
PORTADOR MEDIATO
MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Quando entre dois intervenientes num título cambiário existe uma relação subjacente diz-se que a relação é imediata; quando não estão ligadas por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata.
2 – No domínio das relações mediatas, é consensual que, por o título já ter entrado em circulação, há interesses de terceiros a merecerem protecção, não sendo o portador da letra sujeito da relação extracartular, prevalecem os princípios da autonomia, da literalidade e da abstracção que caracterizam as obrigações cambiárias.
3 – Para operacionalizar a oponibilidade da excepção prevista no artigo 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças não basta a simples má-fé, antes é exigido que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 557/22.5T8ENT-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Execução do Entroncamento – J1
*
Recurso com efeito e regime de subida adequados.
*
Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
*
I – Relatório:
Na presente oposição à execução mediante embargos, apensa à acção executiva proposta por (…) contra (…), o embargante não se conformou com a sentença que julgou improcedente a pretensão deduzida.
*
Na oposição o embargante invocou a prescrição do título de crédito oferecido como título executivo, a inexequibilidade do mesmo enquanto mero quirógrafo por falta de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente, a falta de apresentação a pagamento, a inexigibilidade de qualquer quantia a título de juros e o prévio pagamento parcial da letra e a reforma sucessiva do título, estando a referida quantia englobada na transacção realizada no âmbito da acção registada sob o n.º 2117/19.9T8ENT.
O embargante pediu ainda a condenação da parte contrária como litigante de má-fé.
*
A oposição à execução liminarmente admitida.
*
A exequente apresentou contestação, impugnando a matéria alegada nos embargos. Neste particular, adiantou que não se verificava a prescrição da obrigação cambiária, a letra foi apresentada a pagamento e que a demais matéria se encontrava no domínio das relações mediatas, não podendo assim ser oposta qualquer excepção fundada nas relações pessoais com o sacador sem se provar que aquele, ao adquirir a letra, procedeu conscientemente em seu detrimento.
*
Após a realização de audiência prévia, em sede de despacho saneador procedeu-se à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova. No saneamento foi julgada improcedente a questão da prescrição da letra exequenda e a matéria da inexequibilidade da mesma enquanto mero quirógrafo por falta de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente.
*
Realizada a audiência final, o Tribunal a quo decidiu:
A) julgar improcedente a presente oposição à execução mediante embargos de executado deduzida por (…).
B) julgar improcedente o pedido de condenação do exequente / embargado (…) como litigante de má-fé.
*
Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«a) Conforme foi explicado pela testemunha … (filho do recorrente), a letra n.º (…), no montante de € 15.186,00, em causa nos presentes autos, foi entregue por ele próprio (filho do recorrente) a (…) para reforma da primitiva letra n.º (…), que funda os autos executivos com o n.º 2117/19.9T8ENT, deste mesmo juízo de Execução – Juiz 1, emitida em 26 de setembro de 2018, vencida em 26 de Outubro de 2018, no valor de € 25.310,00 (vinte e cinco mil e trezentos e dez euros).
b) O recorrente, entregou a letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 dos presentes autos para reformar a letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 a que se referem aqueles autos executivos com o n.º 2117/19.9T8ENT.
c) A terceira e quarta reformas da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00, a testemunha (…) testemunhou em sede de julgamento e reconheceu que o pai não pagou o montante dessas duas reformas. Quantia essa que foi adiantada e suportada pelo Sr. (…).
d) O valor das reformas das letras eram 10%, conforme se alcança dos docs. 2 e 3 juntos com a petição de embargos e do depoimento da testemunha … (minuto 00:03:36).
e) Partindo do valor inicial da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 e se retirarmos as 4 reformas da letra no montante de 10% cada uma, encontra-se exactamente o montante da letra do presente processo executivo – € 25.310,00 - € 2.531,00 - € 2.531,00 - € 2.531,00 - € 2.531,00 = € 15.186,00.
f) Exactamente o valor da letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 usada como título executivo dos presentes autos.
g) A letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 dos presentes autos serviu para reforma da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00. Não é uma obrigação nova, era apenas a reforma da única letra que existiu de € 25.310,00. Nada mais do que isso (depoimento de …, minuto 00:26:48).
h) O recorrente já se encontra a pagar a quantia que deve no âmbito do processo n.º 2117/19.9T8ENT, conforme Doc. 4 junto com a petição de embargos.
i) O montante desse processo foi apurado do seguinte modo: Os € 25.310,00 iniciais menos as duas reformas de € 2.531,00, encontramos o valor de € 20.248,00 o que a somar a juros e custas, as partes chegaram a um acordo no valor de € 21.006,66.
j) O valor da transacção foi de e 20.248,00 quanto ao capital, ou seja, € 25.310,00 menos apenas duas reformas (€ 2.531,00 x 2) porque as outras duas foram suportadas pelo Sr. (…), como referido pela testemunha (…).
k) Todos os números falam por si e a matemática demonstra a verdade dos factos, os quais foram desprezados pelo tribunal a quo.
l) Existe um ardil e um esquema que consiste no facto de terem usado a letra que serviu para reformar a letra primitiva, e ao não terem devolvido e/ou destruído a letra, usam-na para cobrar de novo. Quando sabem que já estão a receber no âmbito da transacção que foi celebrada.
m) Ao agir deste modo, o embargado / recorrido agiu conscientemente e em detrimento do devedor / embargante / recorrente, estando assim preenchidos os requisitos do artigo 17.º da LULL, “a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
n) A testemunha (…) é filho do ora recorrente e embargante dos presentes autos. Testemunha essa que mereceu o crédito do tribunal, conforme se pode ler no ponto V.3. da motivação da sentença que ora se recorre.
o) O tribunal de primeira instância considerou as declarações satisfatórias e objectivas, porém só as achou para considerar alguns factos, ignorando outros.
p) A testemunha (…) afirmou peremptoriamente que a letra em causa trata-se tão somente da letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 que serviu para reformar a letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 e que as letras reformadas nunca lhes foram devolvidas. E foi precisamente com a letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 que ficou na posse no recorrido que este a preencheu abusivamente e intentou a presente acção executiva. E é assim que tenta receber duas vezes a mesma quantia.
q) Este facto também deverá ler levado aos factos provados.
r) Durante o julgamento, quando a testemunha (…) foi confrontada com a letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 em causa nos presentes autos, afirmou claramente que a letra em questão nos presentes autos se trata da reforma da letra anterior, mais em concreto trata-se da 4ª reforma.
s) Do mesmo modo que o Mm.º Juiz deu como provados vários factos com base no depoimento da testemunha (…), deveria ter dado como provado os factos das alíneas a), b) e c) da matéria dada com não provada.
t) Em alternativa, requer-se que seja acrescentado o ponto 9 aos factos provados com o seguinte teor: 9. A letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 dos presentes autos é a letra que constituiu a quarta reforma da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 do processo n.º 2117/19.9T8ENT que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Execução do Entroncamento – J1.
u) Em consequência, deveriam os embargos ter sido julgados procedentes.
v) Foi violado o disposto no artigo 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças e o artigo 762.º, n.º 1, do Código Civil».
*
A parte contrária apresentou resposta, dizendo que não existem motivos para alterar a matéria de facto e que a decisão tomada é a correcta.
*
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro na:
a) avaliação dos factos.
b) apreciação do direito. *
III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Com relevo para a decisão a proferir, mostram-se provados os seguintes factos:
1. Por requerimento datado de 15/02/2022, (…) instaurou contra (…) acção executiva para pagamento da quantia global de € 17.017,18 (dezassete mil e dezassete euros e dezoito cêntimos).
2. Ofereceu, para valer como título executivo, uma letra de câmbio que lhe fora endossada e cujo teor se tem por integralmente reproduzido, com datas de emissão de 31/01/2019 e de vencimento de 26/02/2019, no valor de € 15.186,00 (quinze mil, cento e oitenta e seis euros) e em cujo verso consta, manuscrita, a expressão «Sem Despesas» e, através de carimbo e manualmente rasuradas as expressões «Pague-se à ordem da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), valor recebido» e «Pague-se à ordem da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Valor à Cobrança Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…)».
3. Em tal letra surgem como sacador (…) e como sacado / aceitante o aqui exequente / embargado (…).
4. No requerimento executivo, mais propriamente no segmento destinado à enunciação dos factos, foi alegado, além do mais, o seguinte:
«1 – O exequente (…) é dono e legítimo portador de uma letra de câmbio (…), por a mesma lhe ter sido regularmente endossada.
2 – A referida letra no montante de € 15.186,00 (quinze mil, cento e oitenta e seis euros) foi sacada por (…) e aceite pelo executado (…).
3 – Tendo sido aposta como data de vencimento na referida letra o dia 26/02/2026 (…).
4 – A referida letra foi emitida na sequência de transacções realizadas, entre (…) o executado e o sacador.
5 – Na data do seu vencimento, apresentada a pagamento o executado/aceitante não procedeu ao pagamento total ou parcial da referida letra de câmbio.
6 – Na letra foi expressamente aposta a cláusula "sem despesas", razão porque o exequente não lavrou o protesto por falta de pagamento, por a mesma dele estar dispensada, ao abrigo do disposto no artigo 46.º da LULL.
7 – Para além do referido capital de € 15.186,00, são devidos juros moratórios à taxa legal de 4% desde a data do respectivo vencimento até efectivo e integral pagamento, liquidando-se os juros até à presente data (15/02/2022) em € 1.805,68.
8 – Bem como é, ainda, devido ao exequente a quantia de € 25,50, referente à taxa de justiça paga para o presente requerimento executivo.
9 – O exequente pretende assim haver do executado o pagamento da quantia de € 15.186,00, bem como os juros de mora que, contados à taxa legal, sobre essa mesma importância, desde a data do respectivo vencimento até à presente data ascendem a € 1.805,68, bem como os que se vencerem até integral pagamento e ainda a taxa de justiça paga na presente execução no montante de € 25,50, no total de € 17.017,18.
(…)».
5. A susodita letra exequenda nos presentes autos foi entregue, em branco e sem qualquer acordo quanto aos termos de preenchimento, por (…), filho do aqui executado / embargante, a (…) para reforma parcial da letra exequenda no âmbito do Processo n.º 2117/19.9T8ENT, deste mesmo Juízo de Execução – Juiz 1, emitida em 26/09/2018, vencida em 26/10/2018 e com o valor aposto de € 25.310,00 (vinte e cinco mil e trezentos e dez euros), processo no qual figura como exequente (…) e como executado (…).
6. Aquando dessa entrega ainda não constava, do verso da letra, a expressão «Sem Despesas».
7. No âmbito do mencionado Processo n.º 2117/19.9T8ENT, em 08-10-2019, os ali exequente e executado firmaram transacção do seguinte teor:
«1. O exequente reduz o pedido para € 21.006,66 (vinte e um mil e seis euros e sessenta e seis cêntimos), sendo o capital no montante de € 20.248,00 e os juros e despesas no montante de € 758,66.
2. A referida quantia será paga em 42 prestações mensais e sucessivas, sendo 41 prestações no montante de € 500,00 (quinhentos euros) cada uma, e a 42ª e última prestação no montante de € 506,66 (quinhentos e seis euros e sessenta e seis cêntimos).
3. A primeira prestação será paga entre o dia 1 e 8 de Outubro de 2019 e as restantes no mesmo período temporal dos meses subsequentes.
4. Ao montante de capital em dívida de € 20.248,00 acrescem juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, os quais serão calculados à taxa de 4% até à data do pagamento da última prestação.
5. O executado (…) compromete-se a liquidar o montante dos juros de mora vincendos até final, constituindo tal montante uma 43ª prestação mensal, sucessiva às anteriores.
6. As prestações referidas nos n.os 2, 3, 4 e 5 serão pagas através de transferência ou depósito bancário na conta Advogado / Cliente com o IBAN: (…) – Banco (…), balcão de (…), cujo comprovativo deverá ser enviado para o escritório do mandatário do exequente, na data em que for realizada a operação, para o email: (…).
(…)».
8. Em decorrência da transcrita transação o também aqui executado foi fazendo diversos pagamentos no total de € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros), alguns deles com atrasos.
*
3.2 – Factos não provados:
Não ficou demonstrada a seguinte factualidade:
a) …, juntamente com o aqui exequente / embargado e com (…), montaram uma forma de tentar que o primeiro obtivesse do aqui executado/embargante o recebimento em duplicado da mesma quantia, bem sabendo que tal quantia já estava a ser paga no âmbito do susodito Processo n.º 2117/19.9T8ENT.
b) No âmbito dessa estratégia, o aqui exequente / embargado aceitou a letra exequenda apenas com o fito de obstar a que o executado / embargante pudesse opor ao identificado (…) factos atinentes aos negócios imobiliários que ambos mantiveram entre si.
c) O exequente / embargado omitiu deliberadamente nos presentes autos a factualidade vertida no facto provado em 5 e nas antecedentes líneas a) e b) tentando desse modo obter um pagamento que não lhe é devido.
*
IV – Fundamentação:
4.1 – Do erro de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
*
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto «não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)»[1].
A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference –, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.
O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão e as provas produzidas, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[2].
A jurisprudência mais avalizada firma o entendimento que a «prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, há-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido»[3].
Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[4].
Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações de parte, a prova testemunhal e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia[5].
*
O recorrente pretende a reversão dos factos não provados[6] [7] [8], os quais devem passar a integrar o elenco da matéria assente e, bem assim, em alternativa, o aditamento de um novo facto[9].
Em apoio desta pretensão, foram convocados o testemunho do filho do embargante (…) e critérios de ordem matemática.
*
A este propósito, o Meritíssimo Juiz de Direito assinalou que «nenhuma dessa factualidade encontrou eco nas declarações da já mencionada testemunha (…) que, ao invés, até referiu perentoriamente que não conhece o aqui exequente/embargado, nem mesmo (…), exequente no supra citado Processo n.º 2117/19.9T8ENT».
E, complementarmente, sublinhou que a matéria em causa foi desmentida pelo exequente em sede de depoimento de parte, o qual foi prestado «em moldes que não nos ofereceram desconfiança quanto à respectiva credibilidade».
Para além de ter desconstruído a prova indirecta afirmada pelo embargante, no domínio da normalidade social e das regras da experiência, caso tivesse existido pagamento, a sentença recorrida questionou a razão de o título cambiário não ter sido inutilizado ou devolvido ao embargante, concluindo que, se assim fosse, «a letra em causa não teria sido endossada ao aqui exequente/embargado».
*
O Tribunal ad quem procedeu à audição de toda a prova gravação e a análise da documentada incorporada nos autos.
Vejamos:
a) Critérios matemáticos:
Quanto aos critérios matemáticos convocados apenas se poderá dizer que, não se conhecendo todo o tipo de relação comercial existente com o titular imediato da relação controvertida, não é possível concluir que exista um erro no juízo prudencial do Tribunal, que esteja estribado nesse fundamento.
*
b) Da prova produzida:
A testemunha (…) apresentou uma explicação pouco convincente e credível quanto ao pagamento parcial e à reforma da letra e não aduziu qualquer elemento sólido sobre a má-fé do adquirente. No pólo oposto, o executado (…) manteve uma prestação consistente e coerente, descrevendo as relações comerciais mantidas com o (…) e a razão de estar na posse da letra sub judice. Para tanto, afirmou que «eu nem sequer pus em causa se a letra era do sr. (…) ou de quem era» e «tenho de ser ressarcido do dinheiro».
Da análise global da prova, existe uma total concordância do Tribunal de Recurso com aquilo que ficou vertido na justificação e na fixação dos factos na sentença recorrida e o conteúdo da prova produzida, não existindo qualquer elemento probatório com a susceptibilidade de alterar aquela decisão, designadamente relativamente ao preenchimento da fattispecie da última parte do artigo 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.
Mais, de harmonia com os sobreditos critérios da experiência e da normalidade social, não é crível que, no mundo dos negócios, onde existe aconselhamento financeiro, contabilístico e jurídico, em caso de reforma de letras, as mesmas não sejam reclamadas e devolvidas a quem procedeu ao pagamento da obrigação cambiária.
Sopesados todos os argumentos esgrimidos pelas partes e a interpretação da audição de todo o suporte magnetofónico gravado, o Meritíssimo Juiz de Direito estava legitimado a decidir nos termos em que o fez.
O aqui relator vem pugnando que a alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova[10]. E esse lapso não existe, face à dinâmica da prova e ao confronto valorativo entre as diversas fontes probatórias.
Em síntese, de harmonia com os melhores contributos doutrinais e jurisprudenciais a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição da prova gravada e à análise da restante prova, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os contributos probatórios impunham decisão diversa.
Deste modo, por força das regras atinentes à distribuição do ónus da prova, face ao accionamento da disciplina inscrita nos artigos 342.º[11] do Código Civil e 414.º[12] do Código de Processo Civil, a referida demonstração não foi perfectibilizada.
Por conseguinte, julga-se improcedente a impugnação promovida pela parte recorrente e é com base na factualidade inscrita na decisão recorrida que será realizada a operação de subsunção dos factos ao direito.
*
4.2 – Da errada interpretação do direito:
Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva[13].
A letra de câmbio é um título de crédito, que consiste numa ordem de pagamento, designada por saque, dada em documento por uma determinada pessoa (o sacador), a outra (o sacado), a favor de alguém (o tomador, que tanto pode ser o sacador como um terceiro), ordem de pagamento essa de uma quantia determinada.
Os títulos cambiários (cheque, letras e livranças), enquanto títulos de crédito, fazem prova da obrigação cartular por eles titulado, dados os princípios de literalidade e autonomia que subjazem aos títulos cambiários, mas não das relações fundamentais ou subjacentes que se tenham estabelecido entre os credores e devedores e estejam na base da constituição da relação creditícia ou com ela conexas.
Encontram-se no âmbito das relações imediatas aqueles que de forma directa se encontram ligados através da relação subjacente. Pedro Pais de Vasconcelos faz a distinção entre relações imediatas e mediatas nos seguintes termos: “quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente diz-se que a relação é imediata; quando não estão ligadas por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas no título, designadamente a letra, são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que suscitem entre obrigados cambiários que se não encontrem ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva. Nas relações mediatas não existe, pois qualquer relação subjacente ou convenção executiva”[14].
No domínio das relações mediatas, é consensual que, por o título já ter entrado em circulação, há interesses de terceiros a merecerem protecção, não sendo o portador da letra sujeito da relação extracartular e, como tal, prevalecem os princípios da autonomia, da literalidade e da abstracção que caracterizam as obrigações cambiárias.
Pretendia o recorrente que o Tribunal ad quem decidisse que a letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 correspondia ao título cambiário que constituía a quarta reforma da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 do processo n.º 2117/19.9T8ENT que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Execução do Entroncamento – J1. E que, ao adquirir a letra, o portador do título procedeu conscientemente em detrimento do devedor, sendo assim violado o n.º 1 do artigo 762.º[15] do Código Civil.
A presente oposição estava centrada no pagamento da letra oferecida e na não devolução da mesma ao sacador, aliado à questão fundamental do portador ter procedido conscientemente em detrimento do devedor aquando da obtenção do título cambiário.
Neste capítulo vale o disposto no artigo 17.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, que adianta que «as pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor».
A doutrina e a jurisprudência mantêm um entendimento consolidado no sentido que para operacionalizar a oponibilidade da excepção não basta a simples má-fé, antes é exigido que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor, mesmo que actue sem intenção de causar esse prejuízo.
Perscrutada a matéria de facto assente não se vislumbra a existência de qualquer facto de suporte relativamente à posição avançada pelo embargante ao nível da prova do pagamento, da reforma parcial e, em especial, daquilo que é assaz pertinente neste caso, da má-fé do portador do título cambiário. Como já se afirmou, esta prova não foi perfectibilizada, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova precipitadas no n.º 2 do artigo 342.° do Código Civil.
Se o executado pagou ou reformou a letra e não diligenciou junto do sacador pela respectiva inutilização ou devolução, a responsabilidade por tal conduta negligente ou omissiva só ao mesmo pode ser assacada. E, se for esse o caso, o sacado deve solicitar o pagamento indevido em causa a outrem que o tomador da letra, pois não se encontra dispensado de fazer o pagamento ao portador mediato da letra.
Não existe qualquer outro argumento recursivo com a virtualidade de infirmar o veredicto da sentença recorrida, a qual fez a correcta aplicação da matéria de facto apurada e realizou uma adequada interpretação e aplicação do quadro legal aplicável. Nesta ordem de ideias, mantém-se, por isso, a decisão impugnada por via recursal.
*
V – Sumário: (…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 21/03/2024

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho


__________________________________________________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 191.
[2] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 435-436.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 21/06/2016, in www.dgsi.pt.
[4] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».
[5] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal. Noções de Psicologia do Testemunho, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 413.
[6] (a) …, juntamente com o aqui exequente / embargado e com (…), montaram uma forma de tentar que o primeiro obtivesse do aqui executado / embargante o recebimento em duplicado da mesma quantia, bem sabendo que tal quantia já estava a ser paga no âmbito do susodito Processo n.º 2117/19.9T8ENT.
[7] (b) No âmbito dessa estratégia, o aqui exequente/embargado aceitou a letra exequenda apenas com o fito de obstar a que o executado / embargante pudesse opor ao identificado (…) factos atinentes aos negócios imobiliários que ambos mantiveram entre si.
[8] (c) O exequente/embargado omitiu deliberadamente nos presentes autos a factualidade vertida no facto provado em 5 e nas antecedentes líneas a) e b) tentando desse modo obter um pagamento que não lhe é devido.
[9] (9) A letra de reforma n.º (…), de € 15.186,00 dos presentes autos é a letra que constituiu a quarta reforma da letra primitiva n.º (…), de € 25.310,00 do processo n.º 2117/19.9T8ENT que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Execução do Entroncamento – J1.
[10] Por todos podem ser consultados os acórdãos de 30/01/2020, 13/02/2020, 04/06/2020, 08/10/2020, 03/12/2020, 13/05/2021, 30/06/2021, 28/10/2021 e 11/01/2024, entre muitos outros disponíveis na plataforma www.dgsi.pt.
[11] Artigo 342.º (Ónus da prova):
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
[12] Artigo 414.º (Princípio a observar em casos de dúvida):
A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
[13] Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 143.
[14] Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, Reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1997, pág. 55.
[15] Artigo 762.º (Princípio geral):
1. O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
2. No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.