Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2542/22.8GBABF.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CONDIÇÕES PESSOAIS DO ARGUIDO
ERRO DE PROCEDIMENTO
VÍCIO DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O conhecimento das condições pessoais do arguido, a par dos seus antecedentes criminais, é extremamente relevante para a realização da justiça, nomeadamente para a ponderação acerca da espécie, medida e dimensão das penalizações cogitáveis.

II. Ocorrendo erro de procedimento por banda dos serviços de reinserção social, culminando na não realização do relatório social solicitado pelo Tribunal, esse erro não pode correr em desfavor do arguido.

III. Proferindo-se sentença sem, por tal razão, serem conhecidas as condições pessoais do arguido, padecerá a mesma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, § 2.º, al. a) CPP), na medida em que os factos apurados e constantes da decisão recorrida serão insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que o caso poderia vir a ter (absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, ou de circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc.).

Decisão Texto Integral: I – Relatório
a. No ….º Juízo (1) Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo abreviado de AA, natural da Republica Federativa …, nascido a …1987, com os demais sinais dos autos, a quem foi imputada a autoria, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292.º, § 1.º do Código Penal, com referência ao artigo 69.º, § 1.º al. a) do mesmo código.

Teve lugar a audiência e a final o tribunal proferiu sentença, na qual condenou o arguido como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto nos artigos 292.º, § 1.º e 69.º, § 1.º al. a) CP, na pena de 9 meses de prisão e na proibição de conduzir veículos motorizados também por 9 meses.

b. Inconformado com a medida das penas e sobretudo pelo facto de a execução da pena principal não ter sido determinada em regime de permanência na habitação, o arguido apresenta-se a recorrer, alegando também a nulidade da sentença por vulneração das garantias essenciais de defesa, nomeadamente por não ter sido realizado relatório social, finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões (2):

«3. Entende o recorrente que a Douta Sentença ora recorrida é demasiado gravosa, especialmente porque o relatório social do arguido não foi elaborado e apreciado antes do julgamento, violando o direito de defesa do mesmo e com isso cometeu uma nulidade.

6. O Tribunal “a quo” entendeu que a ausência de ciência relativamente as condições socioeconómicas, motivadas em particular face à ausência de colaboração do arguido e seu alheamento do processo, revela uma conduta propensa ao desrespeito das normas sociais.

7. O tribunal “a quo” ignora as condições socioeconómicas, em particular as habitacionais do arguido, face à frustração da realização do relatório social e inexistência de outras informações atuais nas demais bases de dados disponíveis.

14. Nulidade da sentença que desde já se invoca nos termos no artº 379 do CPP.

17. Entende-se que deve ser dado ao recorrente que está inserido familiar, social e profissionalmente uma última e derradeira oportunidade de se corrigir.

19. Temos que entende o arguido que deveriam ter sido valoradas todas as circunstâncias que foram objeto de conhecimento do Tribunal “a quo”, que depuseram a favor deste designadamente:

- Integração sociofamiliar e profissional;

- Hiato temporal decorrido desde a última condenação.

- O facto ainda de não terem ocorrido quaisquer consequências, para terceiros, da prática da sua conduta.

20 - Não tendo o Douto Tribunal “a quo” considerado todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do arguido, na aplicação da medida concreta da pena aplicada ao arguido, foram violadas as disposições dos artigos 2.º, 40.º, 47.º, n.º 2, e 71.º do C. Penal.

33 (…) se revogue a douta sentença ora recorrida e seja substituída por outra que aplique uma pena suspensa.

43. Pelo que nada obsta a que a pena de prisão seja cumprida em regime de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância com autorização para o exercício da atividade profissional.

Nestes termos, e nos demais de direito que serão objeto de suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e nulidades nele invocadas e, em consequência, ser a Douta Sentença ora recorrida revogada e substituída por outra que pondere na pena a aplicar ao arguido AA e que a mesma seja convertida em pena suspensa ou de prisão menos gravosa, que terá execução em regime de permanência na habitação com recurso a videovigilância com autorização de ausência da habitação para o exercício da atividade profissional., atentas as circunstâncias do caso sub judice, e com o que se fará a costumada e devida JUSTIÇA.»

c. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu considerando, entre o mais, verificar-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do § 2.º do artigo 410.º CPP, concluindo que deverão os autos baixar à primeira instância para serem apurados os factos relativos às condições pessoais do arguido, sintetizando-se deste modo esta posição:

- Só após a prolação da sentença se veio a conhecer o paradeiro do arguido e um indício da sua possível diligência em se apresentar na DGRSP a fim de possibilitar a realização de relatório social.

Para além disso, tem última remuneração registada na Segurança Social no ano de 2013; tem antecedentes criminais; pode ser encontrado em Portugal (apesar de não ser português); importando conhecer: dados sobre a sua vida familiar, social e económica.

- A não realização de relatório social não redunda na prática de qualquer nulidade ou irregularidade.

- Na sentença não se deram como provados quaisquer factos respeitantes à situação profissional do arguido, sua situação financeira e pessoal, para além do que se refere às condenações já sofridas registadas no certificado de registo criminal.

A escolha e determinação da pena concreta baseou-se, sobretudo, nos antecedentes criminais, cinco anteriores pelo mesmo crime, ponderando-se também o hiato temporal decorrido desde a prática do último crime.

O apuramento das condições pessoais do arguido recorrente e sua situação económica, nos termos do previsto no artigo 71.º, n.º 2 alínea d) do Código Penal afigura-se necessária para fundamentar a escolha e/ou a mitigação da pena de prisão pretendida pela defesa ou mesmo a opção por uma substituição da pena de prisão aplicada.

Perante as referidas circunstâncias (previsível disponibilidade do arguido para se apresentar na DGRSP e esclarecer as condições da sua vida) é de toda a relevância apurar sobre as suas condições socioeconómicas e familiares.

A falta de elementos probatórios bastantes, mormente de relatório social, para fundamentar a escolha e medida da pena constitui no presente caso o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu parecer, considerando ser nula a sentença por não ter sido considerado o relatório social.

e. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (3). Em conformidade com esta orientação normativa, a motivação do recurso deverá especificar os fundamentos e enunciar as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Neste contexto constatamos suscitar-se, a título prévio, a seguinte questão:

i) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

B. Apreciando

B.1 Da insuficiência para a matéria de facto provada

Alega o recorrente que a sentença recorrida está ferida de nulidade por nela se não terem apurado os factos relativos às suas condições económicas e sociais. Mas não tem razão, por essa circunstância não vir desse modo cominada na lei, certo sendo que no direito processual penal português vigora o princípio da tipicidade ou da legalidade e da taxatividade das nulidades, a que alude o artigo 118.º CPP, norma que dispõe que:

«1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.

2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular.»

E do cotejo dos artigos 119.º e 120.º CPP - ou qualquer outro no mesmo código -, verificamos que a invalidade que o recorrente alega, neles não encontra previsão! Ainda que ocorresse desconformidade formal – e deveras inexiste -, ela constituiria mera irregularidade, submetida ao regime do artigo 123.º CPP.

Certo é que as circunstâncias conhecidas à data da realização da audiência de julgamento sustentavam a ideia de que o arguido se tinha deliberadamente esquivado não só a comparecer na audiência, como também nos serviços de reinserção social (na DGRSP), desse modo inviabilizando o conhecimento das suas condições económicas e sociais. Mas como os autos também claramente demonstram (o que apenas veio a suceder em momento posterior à prolação da sentença), o arguido compareceu pelo menos duas vezes na DGRSP e, por erro dos serviços de reinserção social, o relatório respetivo não foi elaborado! Tendo em conta a extrema relevância que o conhecimento das condições pessoais do arguido, a par dos seus antecedentes criminais (sendo neste caso conhecidos apenas estes), é extremamente relevante para a justiça do caso, considerando a espécie, medida e dimensão das penalizações cogitáveis face ao passado criminal do arguido, conhecer as suas condições pessoais. A mais da assinalada relevância prática do conhecimento de tais factos (condições pessoais do arguido) para o bom julgamento da causa, certo é também que o documentado erro dos serviços não pode correr contra o arguido. E conforme o Supremo Tribunal de Justiça (4) vem uniformemente entendendo, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada, significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem (absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc.). O que sucede quando o Tribunal não investigou e apurou factos relevantes para a boa decisão da causa. Com efeito, este vício, previsto no artigo 410.º, § 2.º, al. a) do CPP, verifica-se quando a conclusão a que se chega não é suportada pelas respetivas premissas, isto é, quando a matéria de facto apurada não é a suficiente para fundamentar a solução correta exigida pelo direito. Tal poderá sucede quando os factos dados como provados não permitem concluir se o arguido praticou ou não um crime; ou não constam os dados necessários para a graduação da pena ou para a verificação de causa exclusiva da ilicitude, da culpa ou da imputabilidade do arguido. Nomeadamente, quando o tribunal, podendo fazê-lo, não esgotou todos os seus poderes funcionais de indagação da matéria de facto essencial - de que podia conhecer - para a decisão da causa. Daí que por insuficiência de substrato factual não seja possível a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal. (5)

O Supremo Tribunal de Justiça delimita os contornos de tal conceito, afirmando que ele se circunscreve aos casos em que «o tribunal recorrido não esgotou como devia o objeto do processo, assim deixando a matéria de facto exposta ao vício de insuficiência a que alude o artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal». (6)

A dimensão assinalada ao vício torna insuscetível o seu suprimento em recurso, por ser manifesta a impossibilidade de a segunda instância se substituir, por inteiro (designadamente sem oralidade e imediação e garantia de segundo grau de jurisdição), ao Tribunal recorrido. Conhecem-se, claro, todos os ónus que tal acarreta. Mas não há alternativa. Deverão os autos, por consequência, baixar à primeira instância, para novo julgamento, nos termos previstos no artigo 426.º CPP, concretamente para nele se apurarem as condições pessoais, económicas, laborais e sociais do arguido, para que depois, em nova sentença, possam ser consideradas (na medida do que se vier a apurar) no novo sancionamento a realizar. Adicionalmente, tendo em consideração a data da prática dos factos ora sob julgamento e a data da extinção das penas aplicadas no proc. 216/16.8… (último dos antecedentes criminais do arguido), deverá ponderar-se a eventual caducidade dos seus antecedentes criminais (nos termos previstos no artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio).

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Por a sentença recorrida padecer do vício insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a), do § 2.º, do artigo 410.º CPP, determinar o reenvio do processo para apuramento em julgamento das condições pessoais, económicas, laborais e sociais do arguido (artigo 426.º CPP), que deverão ser consideradas na nova sentença a elaborar, em sede de escolha e medida da pena.

2. Sem tributação (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).

Évora, 19 de março de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Nuno Garcia

Maria Margarida Bacelar

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 E só as «conclusões» conexas com a motivação apresentada (artigo 412.º, § 1.º CPP). As «conclusões» não são, nem podem consistir numa «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador. Porque elas deverão ser uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23. Neste mesmo sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Desemb. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Desemb. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Desemb. Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9/3/2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, Desemb. João Abrunhosa! Ensina a doutrina, no mesmo sentido, que elas são: «um resumo das questões discutidas na motivação» (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 1136, nota 14). «Devem ser concisas, precisas e claras (…)» (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335). Não podem constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas sim constituírem uma síntese essencial dos fundamentos do recurso» (Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp. 23. Neste mesmo sentido cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 1set2021, proc. 430/20.1GBSSB.E1, Desemb. Gomes de Sousa; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11jul2019, proc. 314/17.0GAPTL.G1, Desemb. Mário Silva; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5abr2019, proc. 349/17.3JDLSB.L1-9, Desemb. Filipa Costa Lourenço; e do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 9/3/2023, proc. 135/18.3SMLSB.L2-9, Desemb. João Abrunhosa! Enfim, exatamente o contrário do que faz o recorrente - que grosso modo se limitou a repetir as alegações!

3 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

4 Cf. acórdão STJ, de 3jul2002, proc. 1748/02-5.ª, referido no Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Vinício A. P. Ribeiro, 3.ª ed., 2020, Quid Juris, p. 979.

5 Neste sentido decidiram entre muitos outros os seguintes arestos: Ac. TRLisboa, de 29/1/2020, proc. 5824/18.0T9LSB-3; Ac. TRPorto, de 9/1/2020, proc. 1204/19.8T8OAZ.P1; Ac. TRÉvora, de 7/5/2019, proc. 112/14.3TAVNO.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt .

6 Acórdão STJ, de 15mar2007, Proc. 07P648, Cons. Pereira Madeira. No mesmo sentido cf. acórdão do STJ de 11nov1998 Proc. 98P1093 – Cons. Leonardo Dias.