Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
978/22.3T9BJA.E1
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
FALTA DE OBJETO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - No requerimento de abertura de instrução não é aceitável que a menção dos factos seja feita por remissão para elementos dos autos.
II - Não sendo legalmente admissível a instrução requerida pelo assistente quando este não descrever no requerimento de abertura de instrução a totalidade dos factos que consubstanciam o crime por cuja prática pretende a pronúncia dos arguidos, deve a instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art° 287°, n° 3, do CPP.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

No processo de inquérito n° 978/22.3T9BJA, que correu termos na … Secção Inquéritos da Procuradoria da República da Comarca de …, por despacho de 25-07-2022, o Exmo. Magistrado do Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do art° 277°, nº 1, do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP).

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Notificado daquele despacho de arquivamento, a assistente AA veio requereu a abertura da instrução.

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O requerimento de abertura de instrução foi rejeitado, com fundamento em inadmissibilidade legal, por falta de objecto.

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Inconformada com tal despacho, dele recorreu a assistente, peticionando a substituição do despacho recorrido por outro “que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pela ora recorrente, assim se fazendo justiça!”.

Da motivação do recurso, extraiu as seguintes conclusões:

“1. Por despacho datado de 23-01-2023 o tribunal “a quo” rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, por o mesmo ser legalmente inadmissível ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b) e c) e 287.º, n.º 3 ambos do Código de Processo Penal.

2. O tribunal “ a quo” não apreciou o RAI relativamente ao despacho de arquivamento e rejeitou o RAI apresentado pela Assistente, por o mesmo ser legalmente inadmissível ao abrigo do disposto nos artigos 286.º, n.º 3, alínea b) e c) e 287.º, n.º 3 ambos do Código de Processo Penal.

3. A ora Recorrente não se conforma com o despacho recorrido porquanto andou mal o tribunal “a quo” ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, tendo violado a finalidade e o âmbito da instrução, previsto no artigo 286.º do CPP, pois o aqui recorrente cumpriu o disposto no artigo 286.º e 287.º, n.º 1 e 2 ambos do CPP.

4. Senão vejamos, o requerimento de abertura de instrução foi junto aos autos no prazo estabelecido no nº. 1, do artigo 287° do CPP - 20 dias.

5. O requerimento de abertura de instrução foi apresentado por quem tem legitimidade.

6. Nesse requerimento foram expostas as razões de facto e de direito que motivam a discordância relativamente ao arquivamento e bem assim à acusação.

7. Logo, não poderá a abertura de instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, pois o requerimento de abertura de instrução apresentado é legalmente admissível.

8. Tendo sido apresentado em súmula as razões de facto e de direito pelas quais discorda do despacho de arquivamento, conforme dispõe o artigo 287.º, n.º 2 do CPP, apresentando também a sua versão dos factos.

9. Termos em que deverá o despacho objeto do presente recurso ser revogado, substituindo-o por outro que, receba o requerimento e declare aberta a fase de instrução em cumprimento do disposto nos artigos 286.º e 287.º do Código Processo Penal e da nossa Constituição.

10. O Tribunal “a quo” ao rejeitar liminarmente o Requerimento apresentado pela ora Recorrente para abertura da Instrução com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto no artigo 287.° n.º 3 do CPP.

11. Tal despacho é uma evidente expressão de discricionariedade e uma evidente prevalência da forma em detrimento da verdade material pela qual o Processo Penal, para não dizer toda a Justiça, sempre deverá ser norteado.

12. O despacho de que ora se recorre viola o disposto no artigo 287.º, n.º 3 do CPP, bem como todos os direitos constitucionais e garantias do processo criminal previstos na nossa Constituição, uma vez que in casu não estamos perante nenhuma situação que configure uma situação de inadmissibilidade legal da instrução.

13. Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser revogado o despacho ora recorrido por violação do disposto nos artigos 286.°, n.º 1, e 287.°, n.º 1, al. b) e n.º 3, do CPP e proferido outro que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pela ora Recorrente..”.

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Respondeu a Exma. Magistrada do Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:

“1ª) O despacho datado de 23-01-2023 proferido pelo tribunal recorrido rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente, pelo fundamento de inadmissibilidade, uma vez que aquela peça processual não contém todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a narração da matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado, faltando-lhe quer os elementos objetivos, quer subjetivos do crime imputado ao denunciado, apresenta-se conforme aos requisitos previstos no artigo 287º, nº2 e nº3 do Código de Processo Penal, onde se estabelece no nº2 da referida norma que àquela peça processual é aplicável o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º.

2ª) Faltando os elementos acima indicados - narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido - não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução.

3ª) Perante as insuficiências acima indicadas, não é possível ao tribunal recorrido proceder a qualquer alteração, nem de factos, nem da respetiva qualificação jurídica, uma vez que não existindo qualquer factualidade narrada, não se poderá alterar nem qualificar aquilo que, simplesmente, não existe.

4ª) Conforme tem vindo a ser jurisprudência assente pelo Tribunal Constitucional, “Não é inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n's 2 e 3 do art. 287º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo nº 2 do art. 287° do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no nº 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente” – pelo que, a interpretação feita pelo tribunal recorrido relativamente às indicadas normas, não padece de qualquer inconstitucionalidade.”.

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Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta apresentou parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:

“Recurso da assistente do despacho judicial que lhe rejeitou o pedido de abertura de instrução.

Nada obsta ao conhecimento do recurso.

Ao recurso respondeu o Ministério Público em termos completos e que perfilhamos.

A rejeição do RAI ocorreu com fundamento na inadmissibilidade legal.

A recorrente vem alegar que o tipo de crime constava da queixa crime, foram alegados fatos que não á admissível a rejeição do RAI com os fundamentos alegados, sob pena de inconstitucionalidade.

Ora, parece-nos que neste momento existe unanimidade na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que, não havendo lugar a convite a aperfeiçoamento, o requerimento de instrução deverá conter os elementos necessários à formulação da pronúncia, que por sua vez tal como a acusação irá delimitar o objeto em julgamento.

Termos em que o recurso deverá ser julgado improcedente.”.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.

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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução–, a questão a examinar e decidir prende-se com a (in)verificação dos requisitos de admissibilidade do RAI apresentado pelo assistente.

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III — FUNDAMENTAÇÃO

1. É objecto do presente recurso a decisão do tribunal "a quo", que não admitiu a instrução requerida pela assistente, por o respetivo requerimento não satisfazer os requisitos legais.

Vejamos:

É do seguinte (transcrito) teor o despacho impugnado:

«Inconformado com o despacho de arquivamento proferido a fls.19, a assistente AA veio requerer, a fls. 42 e ss. a abertura da instrução.

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O tribunal é competente.

O requerimento de abertura de instrução foi deduzido em tempo, por quem tem legitimidade, tendo sido paga a taxa de justiça devida (arts. 286.º, 287.º n.º 1 al. b), n.º 2 e n.º 3 a contrario ambos do Código de Processo Penal e art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais).

**

Dispõe o art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o(a) assistente a pode(m) requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, nos termos do art.º 287.º, n.º 1, al. a). do Código de Processo Penal.

Nos termos do n.º 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou arquivamento, sendo-lhe ainda aplicáveis as als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º do mesmo diploma legal.

Como refere Germano Marques da Silva - in Código de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves – in Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541 – refere que “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

Regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado.

Neste âmbito cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do art. 32º da C.R.P., no qual se determina que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Desta forma, é o requerimento de abertura de instrução do assistente que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como resulta do disposto nos artigos 303.º, n.º 3 e 309º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, está ferida de nulidade.

Tal como refere Germano Marques da Silva – cfr. ob cit. pág. 144 - “o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Deste modo, no caso concreto, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido o assistente quem requereu a abertura de instrução, por força do disposto nas normas legais acabadas de enunciar, tinha este que indicar (narrar), ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação deste.

Vejamos.

Da análise do requerimento de abertura de instrução resulta que a assistente imputa à arguida a prática de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p.e.p. pelo art. 360.º e 361.º, ambos do Código Penal.

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O art. 360.º n.º 1 estipula que “quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

Por seu turno consagra-se no art. 361.º n.º 1 do Código Penal que “As penas previstas nos artigos 359.º e 360.º são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se: a) O agente actuar com intenção lucrativa; b) Do facto resultar demissão de lugar, perda de posição profissional ou destruição das relações familiares ou sociais de outra pessoa; ou c) Do facto resultar que, em vez do agente, outra pessoa seja condenada pelo crime que aquele praticou.

O bem jurídico protegido com esta incriminação é o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade, no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão (1).

Os elementos típicos objectivos exigidos para a verificação deste ilícito consistem:

• quanto ao agente, este tem de se encontrar investido de uma especial e precisa função processual;

• a acção típica consiste na “falsidade da declaração”, que, no caso sub judice, se traduz na falsidade de depoimento,

• o depoimento tem de ser prestado perante tribunal ou funcionário competente para o receber como meio de prova,

• depois de o agente ter prestado juramento,

• e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe.

Por seu turno, como elemento típico subjectivo exige-se o conhecimento de todos os elementos objectivos deste ilícito, e a vontade de os realizar, consistindo esta vontade no dolo (dolo genérico) em qualquer uma das modalidades (directo, necessário ou eventual) – cfr. art. 14.º do Código Penal.

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No requerimento aduzido aos autos, pese embora aduza as razões de direito pelas quais discorda do despacho de arquivamento, a assistente não indica o lugar, a data e o modo da prática dos factos alegadamente praticados pela denunciada (sendo certo que a remissão efectuada para os elementos documentais constantes dos autos não suprem tal omissão).

Por outro lado, não faz qualquer referência ao elemento subjectivo que compõe o tipo de ilícito, o que necessariamente teria de ser feito com a indicação de factos que permitam formular o juízo de censura relativamente àquela, nomeadamente a representação do resultado da sua conduta, por este, e a não conformação com o mesmo.

Embora o elemento subjectivo seja apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.

Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição do elemento subjectivo no requerimento de abertura de instrução.

Conforme resulta do artigo 283. ° n° 3, al. b), do Código de Processo Penal, na formulação da "acusação" não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas à "narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...".

Se é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo - o objecto do julgamento - é tão só relativamente a esses factos que se pode obter uma condenação, sob pena de se colocar em causa o direito de defesa da arguida que, no caso concreto, estaria impedida de se defender cabalmente, por ignorar, nomeadamente, a modalidade da culpa (dolo ou negligência).

Ademais, a assistente não identifica cabalmente a arguida, não deixando claro nem a pessoa à qual imputa a prática dos factos (embora se presuma, uma vez que há só uma denunciada nos autos).

Em súmula, in casu, o requerimento de abertura de instrução não contém todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado.

A falta de descrição de factos e normas legais no requerimento de abertura de instrução da assistente constitui ao mesmo tempo a nulidade prevista no art. 283.º, nº 3, als. b). e c)., dada a remissão do art. 287.º, n.º 2, e, em conformidade com o nº 3 deste último preceito, causa de rejeição desse requerimento.

Conclui-se, assim, que o requerimento de abertura de instrução do assistente não preenche os requisitos patentes nos arts. 283.º, n.º 3, als. b). e c). aplicáveis ex vi do disposto no art. 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Acresce que,

Nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

A este respeito, importa atentar no entendimento constante do Ac. T.R.E., no Proc. N.º 2068/10.2TASTB.E1, datado de 15/11/2011, consultável em www.dgsi.pt, do qual se retira que “Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução em que não se indica cabalmente quem deve ser pronunciado, qual o crime ou crimes, as disposições legais aplicáveis e os elementos fácticos referentes ao dolo ou negligência.”

O caso concreto é, assim, uma situação de inadmissibilidade legal, atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º 3 do Código de Processo Penal, a qual é de conhecimento oficioso (cfr., entre outros, Acs. do TRP, datado de 06/07/2011, no Proc. N.º 6790/09.8TDPRT.P1, de 15/09/2010, no Proc. N.º 167/08.0TAETR-C1.P1, no Ac. TRC, datado de 07/01/2009, Proc. N.º 6210/08, todos publicados em www.dgsi.pt ).

Ademais, é unânime o entendimento por parte dos tribunais superiores de que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pela assistente (vide, neste sentido, Ac. AUJ n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in D.R. I Série-A, de 4/11/05), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do TC n.º 27/2001 de 31/01/01, in DR 2ª série de 23/03/01 e Ac. n.º 358/04, de 19/05, in DR 2ª série de 28/06/04).

Na verdade, a realização da instrução constituiria um acto inútil, na medida em que, finda a mesma, e por inexistência de qualquer imputação cabal do ponto de vista subjectivo de um tipo de ilícito penal, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objecto do processo.

Deste modo, com base na factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução apresentado, nunca poderia haver uma condenação com base na prova dos factos alegados pela requerente, nem pode, consequentemente (cfr. artigo. 308°, n.º 1, do Código de Processo Penal) haver lugar a pronúncia por esses factos.

Face ao supra exposto, ao abrigo do disposto nos arts. 283.º, n.º 3 als. b). e c). e 287.º n.º 3 do Código de Processo Penal, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por o mesmo ser inadmissível legalmente (falta de objecto) e insuprível, determinando o arquivamento dos autos.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, nos termos do art.º 8.º, n.º 2 do R.C.P.

Notifique e D.N.

Após trânsito, arquive..”.

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2. A decisão recorrida incidiu sobre requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente na sequência do despacho de arquivamento do Ministério Público, tendo tal RAI o seguinte teor:

“AA, assistente nos autos supra e à margem referenciados e aí melhor identificada, tendo sido notificada do arquivamento do inquérito, vem ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal requerer

ABERTURA DE INSTRUÇÃO

O que faz nos termos e com os fundamentos que se seguem:

1. A ofendida/assistente é operadora de telecomunicações nos Bombeiros Voluntários de ….

2. E a denunciada é Vice-Presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários de ….

3. Em Janeiro de 2022 a ofendida/assistente foi objeto dum procedimento disciplinar, tendo sido arrolada como testemunha a Vice-Presidente, ora denunciada BB, que prestou depoimento conforme Doc. 1 que se juntou com a queixa-crime.

4. Na queixa-crime apresentada pela denunciante foi imputada a prática dum crime previsto e punido pelo art.º 360.º do Código Penal, por no entender da denunciante a denunciada ter faltado à verdade, quando prestou depoimento conforme Doc. 1.

5. O Ministério Público arquivou os autos fundamentando a sua decisão por o depoimento ter sido prestado em processo disciplinar e não no âmbito dum processo judicial, o que em seu entender não configura uma situação que permite imputar a prática do crime previsto no art.º 360.º do Código Penal.

6. A denunciante/assistente foi, em consequência do processo disciplinar, demitida das suas funções, estando em curso as competentes impugnações no Tribunal do Trabalho e perante a entidade competente, ou seja, a Autoridade Nacional de Proteção Civil que tutela os Bombeiros Voluntários.

7. Relativamente ao procedimento disciplinar, a denunciante/assistente impugnou para o Tribunal de Trabalho de … a decisão do seu despedimento, decorrente das declarações prestadas além das testemunhas, do depoimento da denunciada.

8. Os fatos que compõem a queixa-crime, são objetivos, traduzem-se em declarações prestadas perante o instrutor do processo disciplinar, encontram-se escritas e assinadas, pela testemunha ora dennciada e pelo instrutor, depoimento esse que teve como consequência a demissão enquanto bombeira e o despedimento enquanto trabalhadora da Associação Humanitéria dos Bombeiros Voluntários de ….

9. A interpretação pelo Senhor Procurador, não tem consistência jurídica, uma vez que em nossa modesta opinião, o art.º 360.º do Código Penal tem que ser interpretado à luz do artigo seguinte, ou seja, do art.º 361.º do Código Penal.

10. Neste artigo prevê-se a agravação da moldura penal aplicável deixando de ser pena de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias conforme vem expresso no n.º 3 do art.º 360.º, passando a ser só pena de prisão de 1 a 8 anos, referido no n.º 2 do art.º 361.º, quando esteja preenchido o tipo referido no art.º 360.º conjugado com o art.º 361.º n.º 1 alínea b).

11. Diz o n.º 1 alínea b) do art.º 361.º do Código Penal que: “As penas previstas nos artigos 359.º e 360.º são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se: …b) Do facto resultar demissão de lugar, perda de posição profissional ou destruição de relações familiares ou sociais de outra pessoa”.

12. Como é bom de ver, a letra da lei no referido art.º 361.º n.º 1 alínea b) agrava a pena prevista no art.º 360.º quando se trata de procedimento disciplinar. Assim, o art.º 360.º não trata apenas de depoimento prestado perante o tribunal, incluindo o depoimento prestado em processo disciplinar.

13. É que, o código deve ser interpretado segundo a intersistematicidade.

14. Como diz o Acórdão da Relação de Coimbra 424/20.07T9CLD.C1, datado de 18-05-2022, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que ora se transcreve: “estão as falsas declarações prestadas no âmbito de processos judiciais, contraordenacionais e disciplinares em curso, pois para este tipo de falsas declarações a punição encontra guarida nos artigos 359º e 360º, do CP.”, ou seja, contrariamente ao afirmado no douto despacho do Senhor Procurador as falsas declarações em processo disciplinar encontram guarida no Código Penal.

15. A tal ponto que podem levar a pena de prisão de 1 a 8 anos, caso a consequência das falsas declarações conduza ao despedimento ou à demissão da pessoa que foi alvo do procedimento disciplinar.

16. Acresce que, apesar dos nossos esforços, não foi possível encontrar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-12-2011 citado pelo despacho.

17. Termos em que e face ao supra exposto deverá V. Exa. Admitir a abertura da instrução, proferir despacho de pronúncia da denunciada e consequentemente constituição como arguida da mesma, prestação de TIR e prosseguindo os autos para julgamento.

Prova:

(…)

O Ministério Público não constituí arguidos neste processo, não ouviu testemunhas, limitando-se a proceder ao despacho de arquivamento, nos termos constantes no mesmo, pelo que se justifica o requerido supra, decidindo-se a final como de DIREITO.

Nestes termos e nos melhores de direito requer-se a V. Exa. Que seja declarada aberta a instrução, produzida a prova requerida, nomeadamente a audição das testemunhas e a junção aos autos das certidões supra indicadas e, consequentemente pronunciada a denunciada, assim se fazendo Justiça.”

(…)”.

*

Dispõe o artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287º, nº1, al. a, do CPP).

Nos termos do nº 2 do artigo 287º do CPP, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.

No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido a Assistente quem requereu a abertura de instrução, tinha esta, por força do disposto nas als. b) e c) do nº 3 do artigo 283º daquele código, aplicável ex vi nº 2, parte final, do artigo 287º daquele diploma legal, que indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541, segundo o qual, “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (3ª Edição, pág. 205-206) “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206)”.

Assim, e tal como refere Germano Marques da Silva, em obra citada supra, pág. 144, “ o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Assim, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a atividade de investigação do juiz de instrução criminal e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303º, n.º3 e 309º, n.º1 do CPP, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.

No caso dos autos, a Recorrente considera ter dado cumprimento às exigências impostas pela lei, quanto à narração dos factos.

Compulsado o requerimento de abertura de instrução que apresentou, constata-se que nele a Assistente efetivamente não procedeu à narração de circunstâncias de facto nas quais se possam encontrar os elementos típicos do crime imputado.

No requerimento apresentado, a Assistente, ao longo dos artigos em que expõe as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, não enuncia factos que, a provarem-se, permitiriam dar por preenchidos os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p.e.p. pelo art. 360.º e 361.º, ambos do Código Penal imputado à denunciada.

Note-se que do requerimento de abertura de instrução não consta, sequer, o teor do depoimento alegadamente prestado pela denunciada, tal como igualmente não constam as circunstâncias de tempo e lugar da prática dos factos.

Note-se que a lei não consente a descrição dos factos por remissão e, em matéria de processo penal, não se pode concluir que o que não é proibido é permitido - como se referiu no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de janeiro de 2004 (acessível em www.dgsi.pt), onde se poderá ler ainda:

“O princípio da legalidade pressupõe que a aplicação de penas só possa ter lugar em conformidade com as disposições do Código de Processo Penal (art.º 2º CPP) à semelhança do que, embora com alcance não inteiramente coincidente acontece com a lei substantiva (art.º 1º CP).

A lei processual penal previu expressamente a forma de formular o requerimento de abertura de instrução ao defini-lo por semelhança com uma acusação (art.º 287º, n.º2 CPP in fine), pelas razões que se deixaram expostas. Neste preceito, em que estipula a forma de elaborar uma acusação o legislador não permite nem prevê que esta seja feita por remissão para factos constantes do processo; antes exige a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena... incluindo se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (art.º 283º, n.º3 al. b) CPP).

A posição não formalista que temos vindo a adoptar consente que um requerimento de abertura de instrução, mesmo que não seja exemplar, possa ser aceite desde que cumpra a exigência mínima de descrição dos factos essenciais à definição do crime imputável ao agente – mesmo que se imponha um trabalho por parte do juiz de melhor redacção ou definição de certos aspectos circunstanciais e desde que este aperfeiçoamento não afecte o núcleo fundamental de definição do tipo de ilícito e desde que não se ultrapassem os limites da vinculação temática.

Porém, não é aceitável que o requerimento não contenha tal descrição e a pretenda fazer por remissão, o que a lei não consente para o caso concreto, como não o prevê igualmente no que respeita a uma acusação ou a uma sentença, exigindo relativamente à imputação factual que esta seja feita de forma específica e descriminada, dada a sua importância para a definição do objecto do processo.”.

No mesmo sentido se decidiu no Acórdão da Relação de Évora de 12 de abril de 2011 (igualmente acessível em www.dgsi.pt), onde se concluiu não ser aceitável que a menção dos factos seja feita por remissão para elementos dos autos. A isso obsta a exigência de rigor na delimitação do objeto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou) - sendo uma concretização das garantias de defesa, essa exigência não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. Aliás, a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. A pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo. Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efetiva do acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito. Faltando no requerimento de abertura de instrução a delimitação factual sobre a qual há-de incidir a instrução, inexiste uma verdadeira “acusação alternativa”, dotada do mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular).

Postas estas considerações, é manifesto que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não respeita as imposições que decorrem das disposições legais aplicáveis e dos princípios de direito, uma vez que não contém a narração dos factos suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito penal que é imputado à denunciada.

Por isso, bem andou a Senhora Juíza de Instrução Criminal ao rejeitar tal requerimento.

Nos termos do nº 3 do art. 287.º do CPP, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

No caso, é forçoso entender-se que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no artigo 283º, nº 3, do CPP, quer atenta a falta de objeto, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, Ac. do STJ de 27/02/02 e 26/06/02, ambos publicados em www.dgsi.pt).

Na verdade, a realização da instrução constituiria um ato inútil, na medida em que, finda a mesma, e por inexistência de factos integradores de todos os elementos objetivos e subjetivos de um tipo de ilícito, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objeto do processo (neste sentido, cfr. Ac. Trib. da Rel. de Lisboa de 9/02/00, in CJ, T.I, pág.153; Ac. Trib. Rel. do Porto de 5/05/93, in CJ, T. III, pág. 243, e Ac. Trib. da Rel. de Évora de 14/04/95, in CJ, T.I, pág. 280).

Atentando no conteúdo do requerimento de abertura de instrução, e muito embora nele tenha a assistente imputado à denunciada a prática do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p.e.p. pelos arts. 360.º e 361.º, ambos do Código Penal, certo é que não apresentou uma narração de factos suscetíveis de integrar os elementos constitutivos (quer objetivos, quer subjectivos) desse ilícito criminal.

Impõe-se concluir pela manifesta falta de narração de factos consubstanciadores de elementos típicos do crime imputado.

Não se pode deixar de perfilhar o entendimento (seguido por jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores) de que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05 e também Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 31/05/06 e de 1/03/06, publicados em texto integral em www.dgsi.pt), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter perentório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 de 31/01/01, DR 2ª série de 23/03/01 e Acórdão n.º358/04, de 19/05, publicado no DR 2ª série de 28/06/04).

Também o acórdão n.º 35/2012, de 25 de janeiro, do Tribunal Constitucional, em consonância com o acórdão n.º 636/2011, do mesmo Tribunal, veio acolher a solução apontada, considerando que “a incompletude ou narração inadequada dos factos que gerariam responsabilidade criminal dos arguidos não pode ser qualificada como uma mera preterição de um formalismo legalmente exigido”, antes deve ser equiparada ao “incumprimento – ou, pelo menos, ao cumprimento deficiente – de um ónus de natureza material, neste caso, a falta de narração adequada dos factos ilícitos que consubstanciariam a responsabilidade penal dos arguidos”, razão pela qual naquele aresto se decidiu «Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução».

No caso vertente, e como referido, o requerimento da assistente foi indeferido com fundamento na falta de narração de factos que preencham todos os elementos do crime imputado.

Por muito que o recorrente procure convencer do contrário na motivação do recurso interposto, o que é certo é que não verteu no requerimento de abertura de instrução apresentado a narração de factos.

Para assim se concluir, basta revisitar o teor do RAI apresentado:

“(…)

3. Em Janeiro de 2022 a ofendida/assistente foi objeto dum procedimento disciplinar, tendo sido arrolada como testemunha a Vice-Presidente, ora denunciada BB, que prestou depoimento conforme Doc. 1 que se juntou com a queixa-crime.”.

Deparamo-nos apenas com a invocação de factos por remissão para documentos do processo. Nada mais que isso, sendo que esse procedimento não é admissível, em conformidade com o sobredito.

Assim, jamais poderia ser proferido despacho de pronúncia contra a denunciada, concluindo-se pela improcedência do recurso.

Como se refere no Ac. da Relação do Porto de 11-10-2006, Proc. n° 0416501, acessível em www.dgsi.pt, "uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137° do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4° do Código de Processo Penal".

Em conclusão: não sendo legalmente admissível a instrução requerida pelo assistente quando este não descrever no requerimento de abertura de instrução a totalidade dos factos que consubstanciam o crime por cuja prática pretende a pronúncia dos arguidos, deve a instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art° 287°, n° 3, do CPP.

O Recurso improcede.

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IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente AA e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Fixa-se a taxa de justiça devida pela assistente em 4 (quatro) UC.

D.N.

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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 6 de fevereiro de 2024

Jorge Antunes (Relator)

Artur Vargues (1º Adjunto)

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares (2ª Adjunta)

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1 Cfr. A. Medina de Seiça, In “Comentário Conimbricence ao Código Penal”, Tomo III, Coimbra, 2001, p. 460 e ss..