Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
34/14.8TBTVR-I.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: REMIÇÃO
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
VENDA
NULIDADE
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O titular do direito de remição não tem de ser previamente notificado pessoalmente para exercer o respectivo direito, pois o legislador parte do princípio de que o executado/insolvente lhe deu a respectiva informação necessária sobre a venda e ser suficiente esse meio de conhecimento.
2 – A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é susceptível de influir na decisão da causa.
3 – O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real.
4 – O encerramento da fase de liquidação apenas ocorre após o termo da venda dos bens integrados na massa insolvente e a leitura do despacho recorrido encerra um sentido concludente, claro, inequívoco e indubitável quanto à prévia realização de um acto de venda, iniciando-se a partir desta data o prazo para arguir a respectiva nulidade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 34/14.8TBTVR-I.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Olhão – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente insolvência de (…), o insolvente veio invocar a nulidade da venda.
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Elementos de facto do presente apenso:
Em 26/07/2023, na qualidade de Administrador Judicial, nomeado nos autos de insolvência de (…), aceitou a proposta de venda da fracção autónoma, designada pela letra G, correspondente ao 3.º andar direito, destinado a habitação, pertencente ao prédio urbano sito na Avenida (…), n.º 9, da União das freguesias de Tavira (Santa Maria e Santiago) formulado pela sociedade “(…), Arquitectura, Lda.”, no valor de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros).
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O adjudicatário procedeu ao pagamento do preço da venda mediante cheque bancário e liquidou o Imposto Municipal de Transacções sobre Imóveis e o correspondente Imposto de Selo.
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O prédio foi registado a favor da adquirente conforme certidão da Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Tavira.
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O administrador de insolvência comunicou a realização do leilão electrónico à mandatária do insolvente (requerimento de 10/07/2020 e documentação anexa).
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Em 04/09/2023, na sequência da junção de elementos relativos à venda, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:
«Tomei conhecimento.
Declaro extinto o presente incidente de liquidação.
No prazo de 10 dias, o Senhor Administrador de Insolvência deverá prestar contas e constituir o apenso de prestação de contas.
Notifique e arquive».
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A notificação do insolvente e demais interessados foi expedida em 05/09/2023.
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Em 13/10/2023 o (…) veio arguir a nulidade da venda, sustentando a sua posição na circunstância do administrador de insolvência se encontrar suspenso preventivamente de funções. Além disso, o insolvente invoca que não foi notificado do leilão electrónico nem da venda. Por último, assinala que a ex-mulher não foi notificada para exercer o direito de preferência na aquisição da meação e que aos filhos comuns do casal não se mostra comunicada a venda para exercício do direito de remição.
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À data da realização da venda e desde 30/06/2023, o administrador de insolvência encontrava-se suspenso de funções.
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Em 19/10/2023 foi proferido despacho de nomeação de novo administrador de insolvência.
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Em 18/12/2023, o actual administrador de insolvência foi notificado para declarar se ratificava a venda realizada nos autos pelo seu antecessor.
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Em 08/01/2024, o actual administrador de insolvência comunicou aos autos que ratificava a venda em discussão.
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Em 16/01/2024, foi proferida a decisão recorrida, a qual tinha o seguinte conteúdo: «vem o Insolvente requerer a nulidade da venda da fracção autónoma G do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o n.º (…), invocando que o administrador de insolvência em funções à data da alienação – o Senhor Dr. (…) – encontrava-se já suspenso de funções pela CAAJ quando subscreveu o acto translativo, pelo que já não representava validamente a massa insolvente.
A pretensão do Insolvente improcede totalmente por extemporaneidade.
Como o próprio Insolvente reconhece no seu requerimento, o Insolvente tomou conhecimento da venda na sequência da notificação do despacho que declarou encerrada a liquidação.
Tal despacho foi proferido a 04.09.2023 e notificado ao Insolvente no dia 05.09.2023.
O Insolvente apenas vem suscitar a invalidade da venda, pelo requerimento em epígrafe, a 13.10.2023, já depois de decorrido o prazo de 10 dias a que alude o disposto no artigo 199.º do Código de Processo Civil.
Assim sendo, o requerimento é extemporâneo.
Pelo exposto, indefere-se o requerido pelo Insolvente.
Notifique».
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Elementos de facto retirados do processo principal e dos apensos C, G e H:
Por sentença datada de 22/01/2014, foi declarada a insolvência de (…), nascido a 06/01/1969, residente na Avenida Dr. (…), n.º 9, 3º-Direito, 8800 Tavira.
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Foram realizados actos de disposição de bens praticados pelo insolvente (repúdio da herança) que conduziram à resolução em benefício da massa insolvente.
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Foi proferida sentença de qualificação da insolvência como culposa, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/11/2018, transitado em julgado em 27/11/2018 (apenso C).
Nesta decisão o insolvente foi declarado pessoa afectada pela qualificação, determinada a inibição para o exercício do comércio e a ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos e decretada a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou massa insolvente detidos por (…).
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O montante total das dívidas que se verificaram entre 15/08/200 e a data da apresentação à insolvência cifrou-se em € 675.834,86 e os créditos reclamados perfazem o total de € 904.759,71.
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O administrador da insolvência contactou várias vezes a advogada da ex-mulher do Insolvente e não obteve resposta (requerimentos de 17/11/2020 e 16/04/2021 e documentos anexos no apenso de liquidação).
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A 16/12/2019 foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre (…) e (…).
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Não obstante o divórcio, o extinto casal não concretizou a partilha dos bens comuns.
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A dívida garantida pelo bem vendido era comum do extinto casal.
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(…) deduziu acção de restituição e separação de bens contra (…), massa insolvente de (…) e credores de … (apenso H).
A referida acção foi julgada improcedente e não reconheceu o direito da requerente à separação do bem comum apreendido, decisão essa confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/03/2023.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1. Por requerimento datado de 13-10-2023 veio o Insolvente ora Recorrente aos autos arguir a nulidade da venda do direito de superfície sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “G” correspondente ao 3.º andar, Dto., T3, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida Dr. (…), n.º 9, em Tavira por o administrador de insolvência em funções à data da alienação – o Sr. Dr. (…) – encontrar-se suspenso de funções pela CAAJ quando subscreveu o acto translativo, pelo que já não representava validamente a massa insolvente.
2. Por despacho datado de 16-01-2024, o tribunal a quo considerou que o requerimento apresentado é extemporâneo e indeferiu o requerido pelo Insolvente.
3. O Insolvente ora Recorrente não se conforma com o despacho de que ora se recorre e que julgou o requerimento extemporâneo.
4. Isto porque o insolvente ora Recorrente apenas teve conhecimento porquanto a sociedade adquirente – (…) Arquitetura, Lda. interpelou toda a sua família que reside no imóvel e os vizinhos, o que foi expressamente referido no artigo 8 do requerimento datado de 13-10-2023.
5. E nessa senda é que o insolvente ora Recorrente foi consultar os autos e verificou que por requerimento datado de 28-07-2023 apresentado no apenso G da liquidação do ativo o Administrador da Insolvência informou os autos que ultimou as operações de liquidação.
6. E juntou sob Doc. 1 o título de transmissão do direito de superfície sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “G” correspondente ao 3.º andar, Dto., T3, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida Dr. (…), n.º 9, em Tavira, datado de 26-07-2023.
7. Tendo inclusive verificado que segundo a informação do CAAJ o Administrador de Insolvência – Dr. (…) – encontra-se suspenso.
8. Motivo pelo qual estaria o Administrador de Insolvência impedido em virtude da suspensão preventiva de realizar qualquer operação de liquidação e bem assim de vender o direito de superfície sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “G” correspondente ao 3.º andar, Dto., T3, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida Dr. (…), n.º 9, em Tavira.
9. Ao arrepio do vertido no despacho recorrido quando o insolvente ora Recorrente foi notificado do despacho que declarou encerrada a liquidação apenas tomou conhecimento da extinção do incidente de liquidação.
10. Desconhecendo em absoluto a venda em apreço.
11. Não tendo o insolvente ora Recorrente sido notificado da existência de leilão eletrónico, assim como não foi notificado da venda.
12. Ao que acresce que o imóvel em apreço integra o património comum do aqui Insolvente e da sua ex-mulher (…), não tendo sido salvaguardado o direito à meação da ex-mulher do aqui Insolvente no património comum do dissolvido casal.
13. Assim como não foi notificada a sua ex-mulher para exercer o direito de preferência e, bem assim, os filhos comuns do casal para exercer o direito de remição.
14. Motivos pelos quais veio o Insolvente ora Recorrente arguir a nulidade da venda.
15. Tal nulidade foi arguida nos termos do disposto no artigo 286.º do Código Civil, o tribunal a quo ao indeferir a requerida nulidade por extemporânea viola o disposto no artigo 286.º do Código Civil.
16. Termos em que e por violação do supra mencionado preceito legal deverá o despacho recorrido ser revogado e consequentemente deverá ser declarada a nulidade da venda do direito de superfície sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “G” correspondente ao 3.º andar, Dto., T3, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Avenida Dr. (…), n.º 9, em Tavira.
Nestes termos e nos melhores de direito deverá V. Exa. dar provimento ao presente recurso, e em consequência revogar o despacho de que ora se recorre por violação do disposto no artigo 286.º do Código Civil e, consequentemente, deverá ser declarada a nulidade da venda do direito de superfície sobre a Fracção Autónoma designada pela letra “G” correspondente ao 3.º andar, Dto., T3, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Av. Dr. (…), n.º 9, em Tavira, assim como todos os respectivos actos subsequentes».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de existência de vício na realização da venda com susceptibilidade de a anular.
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III – Da factualidade com interesse com interesse para a justa resolução do recurso:
A factualidade com interesse com interesse para a justa resolução do recurso consta do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar, tal como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 158.º[1] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
As modalidades de venda estão provisionadas no artigo 164.º[2] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
O presente recurso convoca um problema de ordem substantiva relacionado com a situação de suspensão da actividade do administrador judicial e outro de matriz processual referente à omissão de notificação da decisão de venda e outros actos processuais considerados relevantes pelo insolvente.
Vejamos.
À data da realização do negócio de compra e venda do imóvel sub judice, o administrador de insolvência estava suspenso preventivamente das suas funções e, assim, não dispunha de poderes para representar a massa insolvente nos termos em que o fez.
Em caso de abuso de representação ou falta de poderes da falta de poderes de representação, para a outorga da escritura de compra e venda, a invalidade do negócio só pode ser invocada, dependendo das situações, pelo representado ou pelos compradores, mas nunca por qualquer outro terceiro, estranho ao negócio.
No caso de representação sem poderes, a lei protege a posição do representado, em detrimento da parte com quem o representante celebrou o negócio, ao considerar este ineficaz em relação a ele, salvo ratificação[3].
A especial representação do administrador da insolvência resulta directamente da lei e não de um acto singular a isso dirigido, como é o caso da procuração. E, por isso, em determinada medida, estando este investido de poderes públicos, na qualidade de auxiliar da Justiça, como não tinha poderes de representação da massa insolvente, a situação corresponde a um vício de representação.
É certo que, a título principal, a lei substantiva e a prática dos Tribunais tem subjacente uma intenção de protecção de terceiros de boa fé crentes na existência de poderes de representação, que ficou sanada com a ratificação ocorrida.
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Dito isto, no plano processual, teremos de desdobrar a restante análise da situação judicanda em três elementos: o do direito próprio ao conhecimento dos actos processuais, o da omissão da notificação da ex-cônjuge do insolvente e o da eventual preterição do direito de preferência e o do exercício do direito de remição.
É indiscutível que a falta de notificação ao insolvente da decisão de venda configura uma nulidade, por violação do princípio do contraditório[4]. Efectivamente, neste domínio, tal como afirma Abrantes Geraldes, subjaz a ideia que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados[5].
Este princípio garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de plena igualdade[6], poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da acusa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão[7].
No entanto, ao contrário daquilo que invoca, não ocorreu qualquer falta de notificação do insolvente relativamente à decisão de venda, tal como resulta do acima aludido requerimento de 10/07/2020 e da documentação anexa.
Não existe, assim, neste particular, qualquer violação do equilíbrio global do processo, que se traduzisse na privação de uso de meios de defesa e no exercício de faculdades.
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No que concerne à falta de notificação do ex-cônjuge importa salientar que, no plano substantivo, a dissolução do casamento não altera a natureza do património comum do ex-casal, que se mantém até à partilha com as características da unidade do direito de propriedade e da indivisão do todo sobre o qual incide.
Através das vias processuais legalmente previstas para, na insolvência, o cônjuge ou ex-cônjuge meeiro pode obter o reconhecimento do direito à separação da meação (artigos 141.º, n.º 1, alínea b), 144.º e 146.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), mas apenas consegue lograr o reconhecimento da natureza comum do bem apreendido para a massa e a consequente declaração do direito a proceder à separação da meação.
Relativamente a este segmento, além de não existir o reclamado direito de preferência assinalado no recurso interposto – estamos perante uma situação de comunhão e não de compropriedade –, não ocorre um cenário de representação dos interesses do ex-cônjuge por parte do insolvente e esta, caso fosse directa e efectivamente prejudicada pela decisão, deveria recorrer da decisão ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 631.º[8] do Código de Processo Civil, carecendo o recorrente de legitimidade para agir em protecção de interesses alheios.
Mas, mais do que isso, a ex-cônjuge (…) deduziu acção de restituição e separação de bens contra (…), massa insolvente de (…) e credores de … (apenso H), transitada em julgada, em que foi recusada a pretensão de separação do bem comum.
E, com isto, mostra-se assim cumprido o objecto da sua protecção, sendo que, tal como resulta do apenso de liquidação, a referida interessada foi contactada por diversas vezes para assuntos relacionados com a venda do imóvel e não respondeu às solicitações do administrador de insolvência.
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Assim sendo, resta agora realizar a apreciação da falta de notificação para o exercício do direito de remição[9].
Na realidade, com as necessárias adaptações à situação de insolvência, tal como já escrevemos noutras decisões deste Tribunal da Relação de Évora: «o titular do direito de remição não tem de ser previamente notificado pessoalmente para exercer o respectivo direito, pois o legislador parte do princípio de que o executado lhe deu a respectiva informação necessária sobre a venda e ser suficiente esse meio de conhecimento.
A fim de viabilizar o exercício do direito de remição, o agente de execução deve comunicar ao executado o despacho de adjudicação, bem como as circunstâncias de modo, tempo e lugar onde será concretizada a venda por negociação particular do imóvel em discussão.
Ao não ter sido dado conhecimento desses elementos aos executados, o eventual remidor ficou privado de perfectibilizar a preferência qualificada na compra do imóvel, verificando-se assim a omissão de formalidade que tem influência na decisão da causa».
É indiscutível que a privação do exercício do direito de remir pelo catálogo de interessados mencionados na lei configura uma nulidade processual.
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Como acima se referiu, a não notificação do insolvente e a privação do exercício do direito de remir por parte dos interessados mencionados na lei configura uma nulidade processual.
No entanto, a verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é susceptível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação)[10].
Na situação vertente, mesmo que se considerasse que o insolvente demonstrou em termos razoáveis que, caso tivesse sido informado do acto de venda, a referida comunicação permitiria o exercício do direito de remição, não se demonstraria o requisito da tempestividade da arguição.
O Tribunal a quo considerou sanada a nulidade por via do decurso do prazo contido no artigo 199.º[11] do Código de Processo Civil. E, na verdade, o encerramento da fase de liquidação apenas ocorre após o termo da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente e, casuisticamente, entendemos que o despacho proferido em 04/09/2023 é concludente no sentido que, naquele momento, já tinha sido concretizada a venda do imóvel em discussão, caso o insolvente não tivesse conhecimento dessa realidade.
Daqui decorria que o recorrente dispunha do prazo de 10 dias para reagir à referida nulidade e o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto, na associação existente entre o n.º 3 do artigo 139.º[12] e o artigo 199.º do Código de Processo Civil.
É indiscutível que as decisões, como os contratos, como as leis, devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas[13]. Num caso deste tipo temos de perscrutar as "circunstâncias atendíveis para a interpretação", conforme decorre do disposto no artigo 236.º[14] do Código Civil, no contexto da teoria da impressão do destinatário.
A interpretação da declaração deve ser, assim, assumida como uma operação concreta, integrada em diversas coordenadas. No enquadramento de Carlos Ferreira de Almeida, «o sentido relevante é aquele que se considere corresponder à compreensão do comportamento do declarante, segundo um padrão de normal diligência, atenção e racionalidade, tendo em conta a projecção tipológica da personalidade do declarante real e as circunstâncias concretas que envolveram a declaração negocial. (…) A impressão do declaratário tem o alcance de uma compreensão presumida com base em factores contextuais escolhidos pelo intérprete, observador da concreta interacção comunicativa, pessoa exterior ou acto para quem o acto já é passado»[15].
Por outras palavras, o padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real[16].
E, neste caso, convém recordar que o insolvente se encontra representado por mandatário que tem capacidade para compreender o sentido e o alcance da decisão que declara o encerramento da liquidação, ficando, por isso, na sequência dessa notificação, ciente que tinha ocorrido a transacção do imóvel, cuja venda tinha sido anunciada por leilão electrónico.
Assim, como já deixamos alinhavado, a leitura do despacho encerra um sentido claro, inequívoco e indubitável quanto à prévia realização de um acto de venda e, nessa ordem de ideias, iniciando-se a partir desta data o prazo para arguir a respectiva nulidade, comungamos da posição expressa no despacho recorrido quanto à intempestividade da possibilidade de arguir a nulidade.
Em função disso, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 19/03/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Francisco Matos
Maria Domingas Simões
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[1] Artigo 158.º (Começo da venda de bens):
1 - Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar.
2 - O administrador da insolvência promove, porém, a venda antecipada dos bens da massa insolvente que não possam ou não se devam conservar por estarem sujeitos a deterioração ou depreciação.
3 - Caso decida promover a venda antecipada de bens nos termos do número anterior, o administrador da insolvência comunica esse facto ao devedor, à comissão de credores, sempre que exista, e ao juiz com a antecedência de, pelo menos, dois dias úteis antes da realização da venda e publica-o no portal Citius.
4 - O juiz, por sua iniciativa ou a requerimento do devedor, da comissão de credores ou de qualquer um dos credores da insolvência ou da massa insolvente, pode impedir a venda antecipada de bens referida no n.º 2, sendo essa decisão de imediato comunicada ao administrador da insolvência, ao devedor, à comissão de credores, bem como ao credor que o tenha requerido e insuscetível de recurso.
5 - No requerimento a que se refere o número anterior o interessado deve, fundamentadamente, indicar as razões que justificam a não realização da venda e deve apresentar, sempre que tal se afigure possível, uma alternativa viável à operação pretendida pelo administrador da insolvência.
[2] Artigo 164.º (Modalidades da alienação):
1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta, aplicando-se com as devidas adaptações o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
5 - Se o bem tiver sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, a alienação pode ter lugar com essa oneração, excepto se tal prejudicar a satisfação de crédito, com garantia prevalecente, já exigível ou relativamente ao qual se verifique aquela responsabilidade pessoal.
6 - À venda de imóvel, ou de fração de imóvel, em que tenha sido feita, ou esteja em curso de edificação, uma construção urbana, é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 833.º do Código de Processo Civil, não só quando tenha lugar por negociação particular como quando assuma a forma de venda direta.
[3] Artigo 268.º (Representação sem poderes):
1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.
[4] Artigo 3.º (Necessidade do pedido e da contradição):
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (parte Geral e Processo de Declaração), 3.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 21.
[6] Artigo 4.º (Igualdade das partes):
O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 7.
[8] Artigo 631.º (Quem pode recorrer):
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2 - As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
3 - O recurso previsto na alínea g) do artigo 696.º pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença, considerando-se como terceiro o incapaz que interveio no processo como parte, mas por intermédio de representante legal.
[9] Veja-se a este respeito, com as necessárias adaptações a uma venda realizada em processo de insolvência, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 18/10/2018 e 19/11/2020, publicados em www.dgsi.pt.
[10] Artigo 195.º (Regras gerais sobre a nulidade dos atos):
1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.
[11] Artigo 199.º (artigo 205.º do CPC de 1961): Regra geral sobre o prazo da arguição:
1 - Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
2 - Arguida ou notada a irregularidade durante a prática de ato a que o juiz presida, deve este tomar as providências necessárias para que a lei seja cumprida.
3 - Se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo referido neste artigo, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.
[12] Artigo 139.º (Modalidades do prazo):
1 - O prazo é dilatório ou perentório.
2 - O prazo dilatório difere para certo momento a possibilidade de realização de um ato ou o início da contagem de um outro prazo.
3 - O decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato.
4 - O ato pode, porém, ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte.
5 - Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:
a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;
b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;
c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40% da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.
6 - Praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário.
7 - Se o ato for praticado diretamente pela parte, em ação que não importe a constituição de mandatário, o pagamento da multa só é devido após notificação efetuada pela secretaria, na qual se prevê um prazo de 10 dias para o referido pagamento.
8 - O juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/06/1994, in www.dgsi.pt.
[14] Artigo 236.º (Sentido normal da declaração):
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
[15] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, vol. IV – Funções. Circunstâncias. Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 262.
[16] Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição (por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 444.