Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
137/15.1T8SSB.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O regime processual civil não permite decisões-surpresa;
2 - A enunciação dos temas da prova constitui um instrumento processual que permite orientar os sujeitos processuais no desenvolvimento da fase de produção de prova, com vista a que se alcance o fim desta: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio;
3 - Detectando-se que elementos factuais relevantes a submeter a instrução extravasam os temas da prova que foram previamente enunciados, ou colocam em causa circunstâncias de facto anunciadas como assentes, o princípio do contraditório impõe sejam as partes disso expressamente advertidas, concedendo-lhes possibilidade de produzir prova que entendam relevante.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 137/15.1T8SSB.E1


ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Réus: (…) – Comércio de Acessórios de Moda, Lda.
(…)
(…)

Recorrida / Autora: (…)

Trata-se de uma acção declarativa de condenação através da qual a A pretende obter a condenação dos RR a pagar-lhe quantia equivalente a rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora, atenta a cessação do contrato de arrendamento, com entrega do locado no decorrer do mês de Outubro de 2013.

O que os RR contestam, invocando a entrega do locado no final do mês de Abril de 2013, o pagamento das rendas devidas até então, que sempre não seriam devidas por a A não ter proporcionado o gozo do locado nos moldes contratados. Deduzem pedido reconvencional, invocam a compensação de créditos e o abuso de direito.

II – O Objecto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, realizada a audiência final, foi proferida sentença decidindo o tribunal a quo:
«A. Julgar a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e, em consequência, condenar os Réus, em regime de solidariedade, no pagamento à Autora da quantia de € 14.195,40;
B. Julgar a reconvenção parcialmente procedente porque provada e, consequentemente, condenar a Autora no pagamento à 1.ª Ré da quantia de € 3.560,00;
C. Operar a compensação dos créditos referidos em A. e B. e, consequentemente, condenar os Réus no pagamento à Autora da quantia de € 10.630,54, acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal civil, nos seguintes termos:
- desde 08.03.2013 sobre a quantia de € 698,62, até efectivo e integral pagamento;
- desde os dias 8 de cada um dos meses de Abril a Setembro de 2013, sobre a quantia de € 1419,54, até efectivo e integral pagamento.»

Inconformados, os RR apresentaram-se a recorrer, pugnando pela reformulação da sentença recorrida, absolvendo-se os Recorrentes do pedido.

Concluem a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A. A douta sentença proferida nos autos vem condenar os RR. no pagamento de € 10.630,54, acrescido de juros de mora, calculados desde 8 de Março de 2013 sobre a quantia de € 698,62 e desde os dias 8 de cada um dos meses de Abril a Setembro de 2013, sobre a quantia de € 1.419,54, até integral pagamento. A mesma faz operar a compensação da quantia de € 3.560,00, pedida a título de reconvenção pelos RR.
B. Por despacho de 13 de Janeiro de 2016, findos os articulados, foi identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Quanto aos temas assentes foi dado como decidido e definitivo que (entre outros pontos), “G. Da entrega do locado no final do mês de Abril de 2013.”. Por sua vez, nos Temas da Prova consubstanciou-se o apuramento “a) Da falta de pagamento das rendas por parte dos Réus referentes aos meses de Janeiro a Abril de 2013.” A prova a produzir foi circunscrita à realização dos pagamentos das rendas devidas entre Janeiro e Abril de 2013, dando como assente que o locado foi entregue à A. em Abril de 2013 e, naturalmente, que não será controvertida a falta de pagamento das rendas após essa data. Resulta que, nesta fase preliminar e de condensação, não é admitido o alegado no artigo 9.º da Petição Inicial, em que a A. alega que “…aceitando a resolução contratual operada pela A. no decorrer do mês de Outubro de 2013, a 1ª Ré entregou-lhe o locado.”
Pelo menos tal não é controvertido para efeitos de prova a produzir em sede de audiência de julgamento.
C. Consolidou-se e estabilizou-se o que seria discutido em sede de audiência de discussão e julgamento, não tendo o referido despacho sido impugnado ou objeto de qualquer reclamação, ao abrigo do nº 3 do artigo 594.º ou do nº 2 do artigo 596.º, todos do Código de Processo Civil. Na audiência de discussão e julgamento, a 25 de Fevereiro de 2016, foram ouvidas as testemunhas (…), arrolada pela A. e (…), arrolado pelos RR., e ainda a A., em sede de declarações de parte.
D. Atendendo à prova produzida e à limitação dos temas de prova e da prova dada como assente no Saneador, a sentença deveria ter um conteúdo distinto no que toca aos factos ali dados como provados. Nomeadamente, quanto aos factos provados foi considerado que “D. Em finais de Setembro de 2013 a primeira Ré não tinha pago à Autora as rendas relativas aos meses de Janeiro a Outubro desse ano, no montante de € 14.195,40.” e ainda que “G. no decorre do mês de Outubro de 2013, a 1ª Ré entregou à Autora o locado.”
Não tendo sido emitido qualquer despacho no sentido da ampliação dos temas da prova ou da alteração dos temas dados como assentes, antes do início da audiência, pelo que não houve lugar a contraditório sobre este facto. Neste sentido, deve ser reapreciada a prova gravada, com especial incidência quanto aos factos já indicados.
E. Do depoimento da testemunha arrolada pela A. (…) – reportando-nos para as concretas transcrições supra – resulta que esta estava a fazer obras no locado em causa, que iria ocupar como arrendatária, enquanto a primeira Ré ainda não o tinha desocupado. Quando se procurou consubstanciar no tempo esta situação, foi a Mma. Juiz que interrompeu o interrogatório, afirmando que “Sr. Dr. Essa matéria está toda assente, a única coisa que está incontrovertida é o tema da prova, da falta de pagamento da rendas por parte dos RR. e a inexistência de recibos de quitação, quais os motivos.” – v. minuto 4.36 da prova gravada. Tratava-se de matéria assente no ponto G. do despacho que antecedeu o julgamento.
F. Do depoimento da testemunha (…) resulta um conjunto de factos coerentes com a contestação apresentada pelos RR., na medida em que o seu conhecimento das circunstâncias, como explicado pelo próprio, se deveu ao facto de ser gerente da primeira Ré à data dos acontecimentos – minuto 2.20 e ss. da prova gravada.
Quando directamente inquirido pelo tribunal, afirmou que foi a sua sócia que entregou os envelopes com dinheiro à A., para pagamento das rendas de Fevereiro, Março e Abril de 2013, mas que esse valor era, com o seu conhecimento, retirado da caixa e contabilizado para ser entregue à senhoria. Justificou, inclusive, que os referidos pagamentos, entre Janeiro e Abril de 2013 correspondem à data em que estavam a sair do locado.
Incompreensivelmente, a sentença proferida, na parte em crise, desconsidera em pleno o depoimento desta testemunha, sem motivação bastante. Foi o único a reiterar que o locado foi entregue em Abril de 2013, que estavam num processo de mudança para outro estabelecimento comercial. Foi o único, sem interesse direto na causa, que explicou o pagamento da renda de Janeiro de 2012, através de depósito em conta bancária indicada pela senhoria e que os demais aconteceram em numerário. Remete-se, neste ponto para as transcrições supra.
G. Do depoimento de parte da A. (…), retira-se apenas um discurso ensaiado, motivado e, naturalmente, interessado. Mas, precisamente por isto, ferido de algumas incongruências e contradições que, ao arrepio do senso comum e da concreta tarefa de aferir da motivação das partes, que cabe ao julgador, não foram devidamente equacionadas. Remete-se para a referência espontânea a que “Relativamente aos recibos, sempre fui à loja entregar o recibo em mão e vinha sempre de volta com ele porque nunca havia dinheiro e fazia-me sempre transferência.” – v. minuto 3.05 da prova gravada.
H. Posto isto, deve a prova gravada ser reapreciada e considerando-se o quanto resulta da discussão da causa, na factualidade dada como provada, deve-se atribuir distinta formulação. Nomeadamente: “D. Em finais de Setembro de 2013, a primeira Ré não tinha pago à Autora as rendas relativas aos meses de Maio a Outubro desse ano, no valor de € 8.517,24, por as mesmas não serem devidas.”
I. Deve ainda, na douta sentença, acrescer neste ponto o seguinte: “D1. O contrato de arrendamento cessou definitivamente com a entrega do locado pela 1ª R. à senhoria em finais de Abril de 2013, pelo que desde esse mês não se venceram mais rendas./D2. A cessação do contrato foi acordada e aceite nos referidos termos entre as partes, atendendo à oposição da A. em realizar obras necessárias de ligação das instalações sanitárias à rede de esgotos municipal, nomeadamente por expressa indicação desta.”
J. Ainda à luz da prova produzida, o facto dado como provado na sentença, em E., está incompleto e deveria ser aditado nos seguintes termos: “E 1. Não obstante a carta dirigida pela A. à primeira Ré, na data indicada, tal não afasta a convicção de que o contrato efetivamente cessou os seus efeitos em finais de Abril de 2013, por acordo das partes, em especial porque tal facto não foi impugnado pela A.”
K. Deve, em coerência, o facto K., dado como provado na sentença, ser suprimido porque incoerente com toda a produção de prova e com as fases processuais que precederam.
L. Quanto aos factos X e Z, o seu alcance é distinto do supra exposto, mas assenta na mesma factualidade e na valoração da prova carreada para os autos, devendo ser revistos.
Atendendo ao documento 5 junto com a Contestação, que nunca foi impugnado, bem como aos depoimentos produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, impõe-se a seguinte redacção dos referidos factos: “X. Perante o agravamento do problema (…) foi solicitado, logo no início de 2013, um orçamento para a reparação das instalações sanitárias.” e “Z. No início de 2013, o orçamento completo (…) ascendeu a € 17.336,85.”
M. Devendo estar em apreciação, pelo quanto já se invocou, a falta de pagamento das rendas entre Janeiro e Abril de 2013 – as únicas devidas até à cessação do contrato de arrendamento, como vimos – estaria em causa a quantia de € 5.678,16, por 4 meses de rendas. Resulta da prova produzida o quanto alegam os RR. em sede de contestação, nomeadamente que a renda relativa ao mês de Janeiro foi paga por depósito bancário em conta indicada pela A., que esta confirmou em sede de audiência que seria a conta conjunta que tem com o seu marido, e as demais em numerário entregue directamente pela R. pessoa singular (…), que seria quem passava mais tempo na loja. As únicas pessoas que alegam ter conhecimento do facto são, por um lado, a testemunha arrolada pelos RR. (…) e, por outro, a própria A., em sede de declarações de parte. O depoimento desta última, naturalmente motivado e interessado, não afasta a falta de impugnação fundamentada ou a falta de produção de prova em sentido contrário do alegado na contestação, artigos 1.º a 81.º. Acontece que, em momento algum, se coloca em crise a prova testemunhal e documental carreadas para os autos, em como os RR. procederam ao pagamento das rendas entre Janeiro e Abril de 2013. Nomeadamente através dos documentos 6 e 7 juntos com a contestação que, inexplicavelmente o julgador a quo, desconsiderou, e ainda através do depoimento da testemunha arrolada, que não pode ser, tout court, desvalorizado. Deve, neste sentido, a prova gravada, mormente o depoimento da testemunha (…), ser reapreciada, de modo a valorizar-se o quanto é dito, como prova do alegado na contestação – v. minutos 2.40 e ss. da prova gravada, com especial incidência para os minutos 13.25 e ss.
N. Esta tarefa deve ser completada com o confronto das declarações de parte prestadas pela A. – v. minutos 1.15 e ss. e 3.05 e ss. da prova gravada. Existem contradições relevantes e evidentes de alguém que é parte nos autos, sendo a A. quem declara que ia à loja com os recibos, e que voltava com eles “porque nunca havia dinheiro”. Se ia à loja na expectativa de receber a renda, tal seria realizado em dinheiro. Palavras da própria A. Não é por acaso que a A., nas suas declarações, de imediato corrige o que diz. “…e fazia-me sempre transferência.”. Requer-se, pelo menos, que se questione esta contradição à luz dos factos em discussão, na medida em que não é verosímil que se dirigisse à loja para receber pagamentos por transferência bancária e, caso não recebesse 10 meses de renda, nunca tenha interpelado a primeira R. para abandonar o locado – sabendo que tinha alguém interessado para assumir o arrendamento – e, porventura, liquidar os valores em falta. É, de todo, contraditório e confuso. O que impõe formar a convicção do julgador em sentido manifestamente diverso.
O. Atendendo à factualidade dada como provada na sentença, nomeadamente o vertido em E., deveria ter tido uma formulação diferente, à luz da prova produzida e apreciando, conveniente e coerentemente a prova gravada. Deveria ter sido dado como provado: “E. Sem prejuízo de já ter operado a cessação do contrato de arrendamento no final de Abril de 2013, tendo inclusive a A. negociado novo arrendamento com (…), apenas a 27 de Setembro de 2013, através do seu mandatário, a Autoria dirigiu aos Réus comunicação, com o seguinte teor: (…).”. Devendo acrescentar-se a esta factualidade o seguinte: “E 1. Sem prejuízo da interpelação contida na missiva remetida aos Réus, o contrato havia sido resolvido em Abril de 2013”.
P. Quanto à matéria de Direito directamente desconsiderada ou não observada na douta sentença, em cumprimento do vertido no artigo 639.º do CPC, temos que o erro substancial que limita, in fine, o exercício do contraditório, gerado pela circunscrição da matéria, mormente na indicação do objeto do litígio e na determinação dos Temas Provados e dos Temas da Prova, é uma nulidade processual incontornável. Não pode nem deve ser admitida a “ampliação dos temas da prova” apenas em sede de sentença, quando não se permitiu tal ampliação no momento da produção da prova. Assim entendeu a Relação de Guimarães, por Acórdão de 29 de Janeiro de 2015, afirmando que, “Constituindo os temas da prova, (…) um suporte de trabalho para o julgamento (…) no início do julgamento em 1ª instância, se o juiz considerar que não foram indicados todos os temas da prova, poderá ainda fazê-lo, concedendo às partes um prazo para, se assim o entenderem, indicarem novas testemunhas.
A expectativa das partes tem sempre que ser acautelada, de modo a permitir o amplo exercício do contraditório e de defesa.” (sublinhado e negrito nossos). Por conseguinte, a enunciação dos temas de prova delimita o âmbito da instrução, para que esta se realize dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, assegurando uma livre investigação e consideração de toda a matéria com relevo para a decisão da causa. Pelo que, não formando um condicionalismo imutável da produção de prova, que o julgador sempre poderá ampliar ou restringir, até àquele momento, é o indicador para as partes do que é controvertido e do que lhes cabe provar. Concomitantemente, os temas da prova podem ser alterados pelo juiz do julgamento e pelo juiz do tribunal de recurso.
Contudo, a expectativa das partes tem sempre que ser acautelada, de modo a permitir o amplo exercício do contraditório e de defesa6, podendo os temas da prova ser alterados mediante reclamação das partes, ao abrigo do disposto no número 2 do artigo 596.º do CPC. Nenhuma destas possibilidades se verificou no caso em apreço. Apenas na prolação da sentença vem a Mma. Juiz a quo determinar a ampliação dos Temas da Prova e a alteração dos Temas Provados. Inclusive, na audiência, foi cerceada a produção de prova, invocando a Mma. Juiz que determinados factos estavam assentes e que não constituíam os temas de prova em discussão, interrompeu esta fase, não sendo sequer discutida em audiência a existência de rendas devidas para lá de Abril de 2013 – v. depoimento da testemunha (…), minuto 4.00 e ss. Assim, estamos perante um vício processual que importou uma produção de prova limitada, incoerente com a decisão proferida que, in limine, deve ser revogada, tendo sido o direito ao contraditório dos RR. injustificadamente limitado, não se podendo pronunciar sobre um facto que, até à prolação de sentença, estava liminarmente assente. Se “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”, como prevê o artigo 341.º do Código Civil, ou, a nível processual, se “os factos necessitados de prova”, como adjectiva o artigo 410.º, in fine, do CPC, em momento algum existe um documento que negue a cessação do contrato em Abril de 2013. Prova que, a existirem dúvidas, devia ter sido feita em sede de audiência e julgamento e não em sede de motivação de sentença, por tardia e irregular ampliação dos temas da prova.
Q. Ainda a nível da matéria de Direito aplicada, nomeadamente da sua fundamentação, não se compreende como, ao abrigo do artigo 607.º do CPC foi integralmente desvalorizada a prova produzida, e concedida valoração às declarações de parte em confronto com o depoimento da testemunha arrolada pelos RR., cujo depoimento foi totalmente eclipsada da decisão promulgada. Não se entende, nem encontra eco no número 5 do artigo 607.º do CPC a motivação apresentada. É verdade que a primeira Ré manteve retenções na fonte para lá de Abril de 2013. Retenções que, até àquela data eram de um montante, in casu, de € 234,22. Após Abril de 2013, passaram a ser de € 162,50 e, posteriormente, de € 175,00. Como justificou a testemunha (…), por dizerem respeito à renda devida pela nova loja que a primeira Ré tomou de arrendamento, após a entrega do locado objeto dos autos. Se esta diferença, evidente no documento 6 junto com a contestação, documento 10 na indicação da prova, foi desconsiderada nos termos descritos na sentença e de nada serviu para a motivação da decisão proferida, então existe uma incongruência gritante e que deve ser reapreciada, ao abrigo do citado artigo do CPC.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Assim, são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do conhecimento de questões anteriores:
- do vício processual que importou na limitação da produção de prova;
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


III – Fundamentos

A – Os factos provados em sede de sentença
A - A Autora, na qualidade de senhoria, celebrou em 01 de Junho de 2004 com a primeira Ré o contrato de arrendamento comercial que tinha como objecto a loja com entrada pelo n.º 23 da Rua da (…), freguesia de Santiago, concelho de Sesimbra, inscrita na matriz sob o artigo (…)– Fracção A, tendo o contrato as seguintes cláusulas:
“(…)
1 – O prazo será de cinco anos, começando a 01 de Julho de 2004, renovando-se sucessivamente de três em três anos, nos termos da lei.
2 – A renda mensal será de 1250 Euros, vencível no primeiro dia útil do mês anterior àquele que disser respeito.
3 – Fica a cargo dos locatários o pagamento de taxas de lixo e esgotos, licenças, assim como todas as despesas inerentes ao funcionamento da mesma.
4 – A actualização da renda será anual conforme o coeficiente estipulado na lei.
5 – O local arrendado destina-se ao comércio de Acessórios de moda.
6 – Todas as benfeitorias e alterações feitas no local arrendado, terão que ser solicitadas antecipadamente por escrito aos primeiros outorgantes e ficarão pertença do imóvel sem que os locatários, findo o arrendamento, possam pedir por elas qualquer indemnização.
8 – Na rescisão do contrato por parte dos locatários, deverão estes dar um prazo de cento e vinte dias, para a resolução do mesmo.
9 – Não podendo a loja ser trespassada. (…)

B - A renda convencionada foi a de € 1.250,00.
C - No ano de 2013 a renda mensal em vigor era de € 1.419,54.
D - Em finais de Setembro de 2013 a primeira Ré não tinha pago à Autora as rendas relativas aos meses de Janeiro a Outubro desse ano, no montante de € 14.195,40.
E - Em 27 de Setembro de 2013, através do seu mandatário, a Autora dirigiu aos Réus comunicação com o seguinte teor:
“Resolução do contrato de arrendamento
(…)
Na qualidade de advogado da Sr.ª D. (…) e marido, venho comunicar-lhe a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 01 de Junho de 2004, que tem por objecto a fracção “A” do prédio com entrada pelo n.º 21 da Rua da (…), freguesia de Santiago, concelho de Sesimbra, inscrito na matriz sob o artigo (…). Uma vez que até ao presente não foram pagas as rendas relativas aos meses de Janeiro; Fevereiro; Março; Abril; Maio; Junho; Julho; Agosto; Setembro e Outubro, todos do ano de 2013, no montante total de € 14.195,40 (…).
Assim, atento o disposto nos artigos 1083.º, 1084.º e 1087.º do Código Civil, os meus Clientes exigem de V. Exa. para além das rendas vencidas e vincendas, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, bem como a desocupação do locado nos trinta dias seguintes à recepção da presente.
F - Destas cartas só a da primeira Ré foi recebida, tendo sido devolvidas as que foram enviadas aos 2.º e 3.º Réus.
G - No decorrer do mês de Outubro de 2013 a 1.ª Ré entregou à Autora o locado.
H - No imóvel, uma loja aberta ao público, não existiam instalações sanitárias em condições de ser utilizadas.
I - Quando se realizou a primeira visita o espaço destinado às instalações sanitárias estava a servir de arrecadação, com lixo e muito material usado amontoado, impedindo uma correcta percepção do estado da divisão.
J - Contudo, eram visíveis torneiras de canalização, as loiças sanitárias estavam instaladas, indicando que era apenas necessária uma intervenção de substituição de loiças e reparação de chão e paredes.
K - Pelo que, confiando nas indicações dadas pela Autora em que a loja estaria pronta para ser utilizada, firmou-se o contrato de arrendamento, dando-se início a obras de remodelação do espaço que duraram sensivelmente um mês.
L - Os encargos com tais obras ascenderam a € 50.000,00.
M - Trabalho levado a cabo pelos Réus pessoas singulares e o pai destes, comprando o material e executando as tarefas de construção civil.
N - Quando se começou a retirar lixo das instalações sanitárias verificou-se que as loiças estavam inutilizáveis.
O - A água do autoclismo não descia correctamente.
P - As paredes, chão e tecto apresentavam sinais de degradação e o chão estava intransitável.
Q - Alertando a senhoria para o facto e tendo um prazo muito curto para recuperar o espaço, a arrendatária estendeu as obras à zona das instalações sanitárias, onde substituiu as loiças e reparou o chão, tecto e paredes.
R - No decurso desta intervenção os técnicos no local perceberam que o principal problema daquele espaço era a canalização.
S - Com uma descarga do autoclismo a água subia e não descia.
T - Começou a fazer-se sentir um cheiro nauseabundo vindo da casa de banho.
U - A Autora não tratou de resolver o problema, não obstante frequentar a loja,
V - Conhecia o cheiro que por vezes se sentia no interior da loja,
W - Sabia que as instalações sanitárias não tinham ligação à rede de esgotos, mantendo torneiras e loiças sanitárias como fachada para dar a aparência de que existia uma casa-de-banho funcional naquele espaço.
X - Perante o agravamento do problema, em especial porque os cheiros incomodavam os clientes e quem entrasse na loja, prejudicando o negócio, foi solicitado, em meados de 2012, um orçamento para a reparação das instalações sanitárias.
Y - Foi aquando do levantamento do estado do local que os técnicos que ali se deslocaram perceberam que a canalização e a ligação à rede de esgotos não existiam.
Z - Em meados de 2012, o orçamento completo para reparação das instalações sanitárias, incluindo as canalizações das redes de esgoto, ascendeu a € 17.336,85.
AA - Confrontada com as intervenções concretamente necessárias no local, a Autora comunicou não proceder ao pagamento ou aceitar qualquer intervenção estrutural no espaço, pelo que se a Ré quisesse que saísse do imóvel.
BB - Para além das obras iniciais, a arrendatária, em 2008, despendeu com reparações no locado a quantia global de € 3.560,00, que têm na génese danos provocados na entrada da loja para furto perpetrado por pessoas que nunca foram identificadas e que levaram quantias de material e dinheiro pertencente à arrendatária e que se encontravam no interior do locado.
CC - A Autora, não obstante comunicações efectuadas, não procedeu a qualquer reparação, tendo a 1.ª Ré suportado os encargos sem que fossem ressarcidos pela Autora.
DD - O orçamento referido em Z. foi novamente apresentado à senhoria, acompanhado de um novo pedido para a sua intervenção, por carta remetida a 6 de Fevereiro de 2013, nada tendo a Autora feito.
EE - A Ré comunicou à senhoria que iria, a suas expensas, avançar com as obras, sem prejuízo da posterior compensação do crédito gerado.
FF - A Autora não deu autorização para as referidas obras, negando-se a compensar qualquer crédito dali emergente e convidando a Ré a abandonar o locado.

No âmbito da prolação do despacho a que alude o art.º 596.º do CPC, o tribunal a quo exarou o seguinte, o que não foi objecto de reclamação ou de alteração oficiosa:
«Temas Assentes:
A. Da celebração de um contrato de arrendamento: partes, data, cláusulas e objecto mediato.
B. Do montante da renda no ano de 2013;
C. Da comunicação emitida pela Autora aos Réus datada de 27.09.2013: recepção;
D. Das instalações sanitárias no locado:
D. i. Estado em que se encontravam: canalização, paredes, chão e tecto;
D. ii. Obras realizadas pelos Réus: substituição das loiças e reparação do chão, tecto e paredes;
D. iii. Do conhecimento da Autora das situações referidas em D. i. e D. ii. e da recusa na sua reparação;
D. iv. Da falta de comunicação da Autora aos Réus de um problema relativo à canalização e rede de esgotos no locado.
D. v. Orçamento para reparação incluindo as canalizações e rede de esgotos;
E. Da realização de obras de remodelação do locado pelos Réus: data, duração e encargos;
F. Das reparações pelos Réus dos danos originados por furto no locado: data, montantes, comunicação dos Réus e posição da Autora.
G. Da entrega do locado no final do mês de Abril de 2013.

Temas da Prova:
a) Da falta de pagamento das rendas por parte dos Réus referentes aos meses de Janeiro a Abril de 2013;
b) Da inexistência de recibos de quitação: motivos.»

B – O Direito

Do vício processual que importou na limitação da produção de prova

Os Recorrentes invocam que a instrução da causa, em sede de audiência final, foi levada a cabo estando considerado assente, por competente despacho, que a entrega do locado ocorreu no final do mês de Abril de 2013. Logo, a produção de prova não versou a questão da data da entrega do locado. No entanto, na sentença, veio a fixar-se como provado que no decorrer do mês de Outubro de 2013 a 1.ª R entregou à A o locado. O que viola o princípio do contraditório, já que, atento o versado facto assente, nem sequer se discutiu, na audiência, a data da entrega do locado nem a falta de pagamento de rendas de Abril em diante.

Assiste-lhes inteira razão.

Assente que estava, no rol dos “Temas Assentes”, a entrega do locado no final do mês de Abril de 2013[1], contemplando os “Temas da Prova” apenas as questões atinentes à falta de pagamento das rendas referentes aos meses de Janeiro a Abril de 2013 e a inexistência de recibos de quitação e respectivos motivos[2], a produção de prova não se debruçou sobre a questão de saber se a entrega do locado tinha ocorrido em Outubro de 2013, como alegado pela A na p.i.[3], resultando ainda afastada a questão da falta de pagamento das rendas após Abril de 2013.

Ora, declarando a sentença que “No decorrer do mês de Outubro de 2013 a 1.ª Ré entregou à Autora o locado”[4], e que “Em finais de Setembro de 2013 a 1.ª Ré não tinha pago à Autora as rendas relativas aos meses de Janeiro a Outubro desse ano, no montante de € 14.195,40”[5], é manifesto que o Tribunal a quo incorreu na violação do princípio do contraditório consagrado no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.

Nos termos de tal preceito legal, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»

Como bem salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[6], o regime processual civil vigente não permite decisões-surpresa. «O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no n.º 4 do art.º 20.º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objecto da causa.»

Ora, a instrução do processo «tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, aos factos necessitados de prova» – art.º 410.º do CPC. Em consonância, estabelece o art.º 596.º, n.º 1, do CPC que, «Proferido o despacho saneador, quando a acção houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.

A enunciação dos temas da prova constitui um instrumento ou ferramenta processual que permite orientar os sujeitos processuais no desenvolvimento da fase de produção de prova, com vista a que se alcance o verdadeiro fim desta: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, conforme plasmado no art.º 411.º do CPC. Tal instrumento, no entanto, assume-se como orientador do rumo da instrução, das questões factuais que importa demonstrar, sem prejuízo de, por respeito à realidade histórica, em face de elementos e dados entretanto adquiridos, ou por via de uma mais criteriosa análise das posições e alegações das partes plasmadas nos articulados apresentados no processo, tal instrumento admitir alterações e adaptações em conformidade à perspectiva então alcançada. Consiste, assim, numa ferramenta ao serviço do apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não revestindo um cariz estanque e castrador dos factos a submeter a instrução.

Nesses casos, porém, em que se detecta que elementos factuais relevantes a submeter a instrução extravasam os temas da prova que forma previamente enunciados, ou colocam em causa circunstâncias de facto anunciadas como assentes, o princípio do contraditório impõe sejam as partes disso expressamente advertidas, concedendo-lhes a possibilidade de, conforme previsto no art.º 598.º do CPC, aplicado a coberto do regime inserto no art.º 547.º do CPC, requerer eventuais meios de prova a produzir sobre os mesmos.

Revertendo ao caso em apreço, importa conceder às partes o direito intervirem de forma activa na instrução da causa no que tange à questão de saber se o locado foi entregue pela 1.ª R à A no final do mês de Abril de 2013 ou no decorrer do mês de Outubro de 2013 e, bem assim, no que respeita à falta de pagamento das rendas relativas aos meses de Maio a Outubro de 2013.

O que implica na anulação da decisão proferida na 1.ª instância, à luz do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, com vista à ampliação da matéria de facto a submeter a instrução, nos moldes expostos e sem prejuízo do disposto no art.º 662.º, n.º 3, al. c), do CPC, concedendo-se previamente às partes o direito a alterarem os requerimentos probatórios apresentados, seguindo-se a definição do regime jurídico aplicável.

Uma vez que a data da entrega do locado e da cessação da relação arrendatícia condiciona as demais questões suscitadas, determinando as quantias que sejam devidas a título de pagamento de rendas, relega-se para momento posterior o conhecimento delas, se for caso disso.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela anulação da decisão recorrida, determinando-se a instrução sobre a referida matéria de facto, seguindo-se a prolação de decisão que contemple o conhecimento das pertinentes questões.

Custas pela parte vencida a final.
Registe e notifique.

Évora, 06 de Abril de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
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[1] Cfr. al. G dos Temas Assentes, a fls. 94 vs.
[2] Cfr. als. a) e b) dos Temas da Prova, a fls. 94 vs.
[3] Cfr. art.º 9.º da p.i.
[4] Cfr. al. G) dos factos provados.
[5] Cfr. al. D) dos factos provados.
[6] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I vol., 2013, p. 27.