Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
432/11.9GFSTB.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: CRIME DE BURLA
PREJUÍZO PATRIMONIAL
ENRIQUECIMENTO ILEGÍTIMO
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Legislação Nacional: ART. 217.º CP
Jurisprudência Nacional: ACORDÃO RELAÇÃO DE ÉVORA DE 25.05.2010, NO PROC. N.º 28/05.4GHSTC.E1
Sumário: I - Exigindo-se, para a consumação do crime de burla, o efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro, o mesmo não acontece com o enriquecimento ilegítimo, que se basta com a intenção do agente em o obter, como, aliás, decorre da redação do art. 217.º do Código Penal.
II – Ao nível objectivo, basta, pois, que se observe o empobrecimento (dano) da vítima, dado se configurar como um crime de resultado parcial ou cortado, pela descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipos (subjectivo e objectivo).
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 432/11.9GFSTB.E1
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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de S, realizado julgamento, o arguido AJBAfoi condenado:
- pela prática, na forma tentada, de um crime de burla, p. e p. pelos arts. 22.º e 217.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (CP), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante de €720;
- como demandado, a pagar ao demandante JBM a quantia de €600 (seiscentos euros), acrescida de juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:
a) A sentença recorrida condenou o arguido pela prática de um crime de burla na forma tentada, porque a sua conduta não teve como consequência a obtenção efectiva de um benefício ilegítimo na sua esfera jurídica;
b) No entanto, a verificação efectiva do benefício ilegítimo não consta no Artº 217º como elemento objectivo do crime de burla, bastando-se o referido tipo penal com a intenção de obtenção desse mesmo benefício;
c) A burla é um crime que visa proteger o património, e o benefício efectivo do agente não é elemento do tipo penal em análise;
d) Para além do mais, é elemento objectivo do crime de burla, a verificação de prejuízo patrimonial efectivo na esfera jurídica do burlado ou de terceiro;
e) No caso dos autos, e embora o arguido não tenha recebido o preço correspondente aos pinheiros efectivamente abatidos, o assistente sofreu efectivamente o respectivo prejuízo uma vez que cerca de metade dos 57 pinheiros foi efectivamente cortada e levada do imóvel sem que o preço lhe tenha sido pago;
f) Deste modo o arguido cometeu um crime de burla na forma consumada e não tentada.
Nestes termos deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de burla na forma consumada.

O recurso foi admitido.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

Foi observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP).

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, em sintonia com o art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades de sentença (art 379.º do CPP) e outras que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.º 3, do CPP) e os vícios da decisão (art. 410.º, n.º 2, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. Série I-A de 28.12.1995; acórdãos do STJ: de 13.05.98, em BMJ n.º 477, pág. 263; de 25.06.98, em BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.99, em BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt; Simas Santos/Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320 e seg..
Embora constitua princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito nos termos do art. 428.º do CPP, o recorrente limitou o objecto do recurso a matéria de direito, consubstanciada na apreciação da qualificação jurídica dos factos provados efectuada na sentença, sustentando, na sua perspectiva, a verificação de crime de burla, mas na forma consumada.
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No que ora releva, consta da sentença recorrida, designadamente ao nível da matéria de facto:
Factos provados:
1. Em Janeiro de 2011, em data não concretamente apurada, o arguido contactou CAVG, oferecendo-lhe a venda de pinheiros sitos no imóvel sito na Rua do Alto do C, PN, área desta comarca, propriedade de JBM, pelo valor unitário de €1000.
2. Na sequência deste contacto, o arguido informou CAVG que havia comprado aqueles pinheiros ao legítimo dono, que era o assistente, pelo que podia dos mesmos dispor, tendo este aceitado comprar os pinheiros pelo valor de €1000.
3. CAVG entregou ao arguido o cheque n.º 7602905195, da conta n.º 40048331007, do banco Caixa de Crédito Agrícola, balcão de P, no valor de €3750, correspondendo respectivamente €1000 à compra dos pinheiros sitos na propriedade supra descrita e o remanescente correspondendo a outros negócios.
4. Em execução do acordado, no dia 19.01.2011, cerca das 11h00, pelo menos três trabalhadores de CAVG, seguindo as suas ordens e instruções, dirigiram-se à supra descrita propriedade e procederam ao corte de um número não concretamente determinado, mas cerca de metade dos 57 pinheiros existentes no terreno.
5. No decorrer dos trabalhos, por intervenção de militares da GNR, o corte dos pinheiros foi interrompido.
6. Nesta sequência, CAVG cancelou o cheque passado ao arguido pela compra dos pinheiros.
7. O arguido, mediante plano previamente delineado, quis fazer crer a CAVG que com ele celebrava contrato legítimo de compra de pinheiros, convencendo-o que previamente os havia adquirido ao legítimo proprietário. Todavia o arguido ciente que não havia adquirido os referidos pinheiros ao legítimo proprietário, pretendeu apoderar-se da quantia de €1000 solicitados a CAVG pela compra dos referidos pinheiros.
8. O arguido quis igualmente criar prejuízos patrimoniais ao assistente, ao levar a que CAVG procedesse ao corte de pinheiros de sua propriedade, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam, obtendo desta forma para si e para CAVG um benefício ilegítimo.
9. O arguido agiu sempre de forma livre e consciente de ser proibido o seu comportamento.
10. O arguido não tem antecedentes criminais.
11. Aufere um rendimento líquido mensal entre €500 a €600. Paga renda de casa no valor mensal de €100. Tem dois filhos, um com 13, outro com 18 anos. Tem o 9.º ano de escolaridade.
12. Os pinheiros cortados, referidos no ponto 4, têm o valor de €600.
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Atenta a motivação da decisão de facto, que aqui se dispensa reproduzir, é manifesto que os factos considerados como provados se têm por assentes, dado não se detectar qualquer vício que inquine tal matéria.
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Apreciando:

Como decorre da motivação do recurso:
Os factos são qualificados pela sentença recorrida como uma burla tentada exactamente porque o cheque para pagamento dos pinheiros foi cancelado e nessa sequência, não se concretizou na esfera jurídica do arguido o benefício ilegítimo a que este se propunha. Esta realidade foi consequência da conduta de Carlos Gabriel, totalmente independente da vontade do arguido, e por isso entendeu a sentença recorrida que a burla não se consumou.
E é com este entendimento que o Ministério Público não concorda.
E, mais adiante:
Como se diz na sentença trata-se de uma burla triangular em que o prejuízo não se verifica na esfera jurídica do burlado, mas sim na de um terceiro: o burlado será então CGe o assistente é o terceiro em cuja esfera jurídica se verifica o prejuízo.
(…)
Porém, e porque não pôde abater todas as árvores, CG– que aqui figura como burlado – acabou por não ter pago o preço (sequer em parte) e levou consigo pelo menos metade dos pinheiros. Deste modo, e ainda que o arguido não tenha obtido qualquer benefício, obteve-o o burlado em medida proporcional ao prejuízo do assistente.
E aqui é que está o erro da sentença: o crime de burla praticado não o foi na forma tentada mas sim consumada, uma vez que o prejuízo do terceiro se verificou muito embora o mesmo não se possa dizer quanto ao benefício do arguido.
Tal como se encontra configurado o crime de burla, são seus elementos objectivos a intenção de benefício ilegítimo e o prejuízo de terceiro e ambos se verificaram.
O dissídio reside, pois, em saber se, tendo por assente que o arguido não obteve para si enriquecimento ilegítimo, esta circunstância deve implicar, ou não, que o crime de burla, cujos elementos típicos se verificaram, se quede pela tentativa, definida nos termos do art. 22.º do CP.
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Quanto ao enquadramento jurídico dos factos, a sentença fundamentou designadamente:
A conduta do arguido é um perfeito exemplo da burla triangular clássica, isto é, vende o que não é seu, enriquecendo-se com o preço pago pelo vendedor incauto, que induziu em erro através da proposta de negócio aliciante, fazendo-o representar que está a comprar ao legítimo proprietário, enquanto este fica empobrecido no seu património, já que perde a coisa vendida, aqui sem qualquer conotação com o contrato do Direito Civil, mas na acepção popular do termo. A conduta descrita subsume-se assim ao tipo objectivo de burla, previsto no artigo 217.º, n.º 1, CP.
O ilícito criminal em apreço é punível a título de dolo – artigo 13.º CP. Ficou provado que o arguido representou e agiu com o propósito de praticar os respectivos factos, pelo que, de acordo com esta vontade, o seu dolo deve ser graduado como directo, preenchendo assim o elemento subjectivo do tipo – artigo 14.º, n.º 1, CP.
A conduta do arguido manifestou-se em actos que preenchem os elementos
constitutivos do tipo de crime, designadamente o erro em que induziu o comprador através do seu esquema ardiloso, bem como os mesmos foram idóneos a provocar o resultado típico empobrecimento do titular do património. Porém, este resultado contempla na sua outra vertente o enriquecimento do agente. O cheque é uma dação pro solvendo, que apenas após boa cobrança permite o referido enriquecimento.
Constando dos factos provados que o cheque foi cancelado antes disso e não constando que o arguido obteve qualquer outra forma de pagamento em substituição, o resultado típico não chegou a consumar-se na vertente do enriquecimento, pese por motivos alheios à vontade deste, designadamente a interrupção dos trabalhos pela intervenção da GNR. Deste modo e porque o tipo de ilícito prevê a punição da tentativa, o arguido praticou actos de execução de um crime de burla, havendo assim uma tentativa punível – artigos 22.º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 1, e 217.º, n.º 2, CP.
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Ao nível da conduta típica, o crime de burla - cujos elementos se reconduzem (i) à intenção de obter um enriquecimento indevido para o agente ou para terceiro, (ii) ao emprego de astúcia pelo agente, (iii) ao erro ou engano da vítima decorrente dessa actuação, (iv) à prática de actos pela vítima em consequência desse erro ou engano em que é induzida e (v) à verificação de prejuízo patrimonial da vítima ou terceiro - comporta um duplo nexo de imputação objectiva: por um lado, entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio); e, por outro, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
Relacionado com o critério do bem jurídico que tutela (o património), assume-se como um crime de resultado e de execução vinculada, que, como sublinhou A. M. Almeida Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, Tomo II, pág. 293, se traduz na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. e não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
Por seu lado, exigindo-se para o seu preenchimento e, assim, a sua consumação, efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro, o mesmo, contrariamente ao entendido pelo tribunal recorrido, não acontece com o enriquecimento ilegítimo, que se basta com a intenção do agente em o obter, como, aliás, decorre da própria redação do art. 217.º do CP.
Neste sentido, conforme também A. M. Almeida Costa, ob. cit., pág. 277, representa um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo. Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (dano) da vítima.
Identicamente, tal como citado no parecer da Digna Procuradora-Geral Adjunta, lê-se no sumário do acórdão desta Relação de 25.05.2010, no proc. n.º 28/05.4GHSTC.E1 (rel. João Amaro), in www.dgsi.pt, O crime de burla constitui um delito de intenção em que o agente procura obter um «enriquecimento ilegítimo» à custa de uma transferência de natureza e de efeitos patrimoniais. Todavia, não obstante se exija que o agente actue com essa intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorre o prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.
No plano dos factos, a conduta do arguido, no que aqui se discute, plenamente consente, desde logo à luz do facto provado em 8., sem prejuízo da sua conjugação com os anteriormente vertidos nessa matéria, que agiu com a intenção de obter benefício ilegítimo, apesar de não ter logrado apoderar-se do valor do cheque que lhe fora entregue por Carlos Gabriel, sendo certo que o património do real proprietário dos pinheiros (José Maia) veio a sofrer prejuízo, atento o corte de metade desses pinheiros, na decorrência directa do acordado entre o arguido e CG(facto provado em 6).
Não obstante benefício tivesse acabado por ter revertido para Carlos Gabriel, ainda assim tal se verificou em resultado da conduta do arguido, uma vez que, não fora o comportamento deste, o abate dos pinheiros não teria ocorrido.
Sem que dúvida se suscite na vertente do conjunto dos factos, tanto basta para que outras considerações não se imponham para reconhecer razão ao recorrente.
Como tal, o arguido deve ser condenado pelo crime de burla, na forma consumada.
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Atento o disposto no art. 403.º, n.º 3, do CPP, impõe-se extrair a consequência de que, sendo o crime consumado, a medida abstracta da pena aplicável é diversa da referida na sentença e, por isso, com reflexo na pena concreta a aplicar.
Aceite a opção feita pela pena de multa, em sintonia com o art. 70.º do CP, as considerações vertidas na sentença quanto à ponderação dos factores a que alude o art. 71.º do CP não merecem reparo.
Assim, como aí fundamentado:
- O grau de ilicitude do facto é elevado porque envolveu na sua execução mais do que uma pessoa, na condição de ofendidos. Por outro lado as suas consequências não foram especialmente graves, tendo em consideração o valor apurado para as árvores cortadas.
- O dolo é directo.
- No que concerne às finalidades especiais da pena, o arguido não tem antecedentes criminais, nem há notícia que tenha voltado a delinquir. Encontra-se profissional e socialmente integrado. Quanto às finalidades gerais, as burlas têm vindo a atingir proporções que causam alarme junto da população e transmite uma sensação de insegurança.
E, ainda, analisando a situação económica do arguido, a mesma é modesta, mas não se situa no limiar da subsistência.
Utilizando, pois, porque justificados, idênticos parâmetros, em função da moldura penal ora aplicável - de 10 a 360 dias de multa (art. 47.º, n.º 1, do CP) - e dos limites legais para o quantitativo diário (art. 47.º, n.º 2, do CP), aplica-se ao arguido a pena de 180 dias de multa, à razão diária de €6.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência,
- revogar a sentença recorrida na parte atinente à subsunção legal dos factos provados e, assim, condenar o arguido pela prática de um crime de burla, na forma consumada, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1, do CP, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de €6 (seis euros).

Sem custas.
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Processado e revisto pelo relator.
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(Carlos Jorge Berguete)

(João Gomes de Sousa)