Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/22.3GBLGS-A.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
DESTRUIÇÃO DE ESTUPEFACIENTES
AMOSTRA-COFRE
COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De harmonia com as disposições conjugadas do artigo 62.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e do artigo 268.º, n.º 1, al. e), do CPP, é sempre do juiz a competência para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, independentemente, de a decisão definitiva do processo, ter sido proferida, pelo Ministério Público, na fase de inquérito, o que acontecerá, nomeadamente, em caso de arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de inquérito n.º 12/22...., a correr termos na ... Secção do DIAP ..., tendo sido proferido despacho de arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do CPP, por morte do arguido e, consequente, extinção do procedimento criminal, a Digna Magistrada do Ministério Público, requereu ao Mmº Juiz de Instrução, que determinasse a perda a favor do Estado do produto estupefaciente apreendido e ordenasse a respetiva destruição, inclusive da amostra-cofre.
1.2. Nessa sequência, o Mmº Juiz de Instrução, proferiu despacho, em 30/01/2023, decidindo, relativamente à destruição, «quer no concernente à amostra-cofre (n.º 6.º do art. 62.º do D.L. n.º 15/93, de 22/1) quer no respeitante ao remanescente do estupefaciente (n.º 4 do art. 62.º do D.L. n.º 15/93, de 2271), não é da competência deste Juízo de Instrução Criminal ordenar a destruição, motivo pelo qual nada há a determinar.»
1.3. Inconformado com esta decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação de recurso as seguintes conclusões:
«I - O Mmo Juiz de Instrução, por despacho proferido em 30 de Janeiro de 2023, indeferiu o requerimento do Ministério Público na pretensão de determinar a destruição da droga constante da amostra cofre.
II - Entendeu o Mmº Juiz de Instrução que, após a declaração de perda da droga apreendida e constante da amostra cofre, não lhe compete diligenciar/determinar a efectiva destruição da droga.
III - O Ministério Público discorda de tal decisão pugnando pela sua revogação e substituição por a considerar ilegal.
IV - Nos termos dos art.ºs 1.º e 51.º, n.º 2, da Lei 15/93 de 22 de Janeiro, são as normas constantes deste diploma que estabelecem o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, só se aplicando subsidiariamente as normas do Código de Processo Penal e legislação complementar na falta de disposição específica daquele diploma.
V - Ora, nos termos do art. 62.º, n.º 6, da Lei 15/93 de 22 de Janeiro «Proferida decisão definitiva, o tribunal (sublinhado nosso) ordena a destruição da amostra guardada em cofre …».
VI - É que, no respeitante a estupefaciente, existe norma especial: a do art. 62.º, n.º 6, do DL n.º 15/93.
VII - De acordo com este preceito legal, a destruição da amostra guardada em cofre é proferida após a decisão definitiva e é ordenada pelo “tribunal”, sendo que a Lei não usa essa expressão quando pretende referir-se ao magistrado do Ministério Público.
VIII - Compreende-se o sentido normativo pretendido: Esta é uma amostra que está vocacionada a ser guardada até ao trânsito em julgado para prevenir qualquer eventualidade de confronto ou de reexame, pelo que, em função da situação normalmente pressuposta para a ocorrência de tal hipótese, só o tribunal a poder assumir.
IX - A droga é sempre perdida a favor do Estado, sendo o destino a conferir-lhe invariável, ou seja, a destruição da substância ou preparado “com observância do disposto no número anterior (n.º 5), sendo remetida cópia do auto respectivo.”
X - O Mmº Juiz, ao recusar destruir a amostra-cofre, invocando não ter competência para tal, sem, contudo, explicitar o porquê de tal entendimento, nem tão pouco referir quem é a autoridade competente para o efeito, violou o disposto nos artigos 97.º, n.ºs 1, al. b), e 5, e 268.º, n.º 1, al. f), ambos do C. P. Penal e, bem assim, o disposto nos art.s 51.º, n.º 2, e 62.º, n.º 6, da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, padecendo o despacho de que se recorre do vício de falta de fundamentação.
Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e o despacho recorrido ser revogado em conformidade com o exposto.
Contudo V. Ex.as decidirão conforme for de JUSTIÇA!.»
1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. Nesta Relação, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado procedente.
1.5. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cf. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cf. artigos 410º, n.º 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões do recurso, a única questão suscitada é a de saber, na situação em que, na fase de inquérito, foi determinado, pelo Ministério Público, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do CPP, qual a entidade competente, se o Ministério Público, se o Juiz de Instrução Criminal, para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, dando cumprimento ao disposto no artigo 62º, n.º 6, do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de janeiro.

2.2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«De harmonia com o disposto no art. 35.º, n.º 1 e n.º 2 do D.L. n.º 15/93, de 22/1 declaro o produto estupefaciente apreendido perdido a favor do Estado.
No concernente à sua destruição, quer no concernente à amostra-cofre (n.º 6.º do art. 62.º do D.L. n.º 15/93, de 22/1) quer no respeitante ao remanescente do estupefaciente (n.º 4 do art. 62.º do D.L. n.º 15/93, de 22/1) não é competência deste Juízo de Instrução Criminal ordenar a sua destruição, motivo pelo qual nada há a determinar.
Notifique.»

2.3. Do conhecimento do mérito do recurso
O Sr. Juiz de Instrução Criminal, na sequência do arquivamento dos autos, ao abrigo do estatuído no artigo 277º, n.º 1, do CPP, determinado pelo Ministério Público, entendeu não ser da sua competência ordenar a destruição do remanescente do estupefaciente e da respetiva amostra guardada em cofre, atento o disposto no artigo 62º, respetivamente, n.ºs 4 e 6, do Decreto-Lei n.º 15/03, de 22 de janeiro.
A questão objeto do recurso em apreciação centra-se na competência para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, após realização de exame laboratorial, pelo LPC.
Uma nota prévia se impõe, para referir que, pese embora no despacho recorrido, o Sr. Juiz a quo, não refira quem tem competência para ordenar a destruição da amostra cofre do estupefaciente – invocando o recorrente, nesse conspecto, a falta de fundamentação do despacho recorrido –, ao decidir não ser do Juíz(o) de Instrução Criminal, indicando o n.º 6 do artigo 62º do Decreto-Lei n.º 15/03, de 22 de janeiro, infere-se ser seu entendimento que tal competência cabe ao Ministério Público.
Apreciando:

Sob a epígrafe “Exame e destruição das substâncias” dispõe o artigo 62º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro:
«1 - As plantas, substâncias e preparações apreendidas são examinadas, por ordem da autoridade judiciária competente, no mais curto prazo de tempo possível.
2 - Após o exame laboratorial, o perito procede à recolha, identificação, pesagem, bruta e líquida, acondicionamento e selagem de uma amostra, no caso de a quantidade de droga o permitir, e do remanescente, se o houver.
3 - A amostra fica guardada em cofre do serviço que procede à investigação, até decisão final.
4 - No prazo de cinco dias após a junção do relatório do exame laboratorial, a autoridade judiciária competente ordena a destruição da droga remanescente, despacho que é cumprido em período não superior a 30 dias, ficando a droga, até à destruição, guardada em cofre-forte.
5 - A destruição da droga faz-se por inceneração, na presença de um magistrado, de um funcionário designado para o efeito, de um técnico de laboratório, lavrando-se o auto respectivo; numa mesma operação de incineração podem realizar-se destruições de droga apreendida em vários processos.
6 - Proferida decisão definitiva, o tribunal ordena a destruição da amostra guardada em cofre, o que se fará com observância do disposto no número anterior, sendo remetida cópia do auto respectivo.
(…)
Relativamente à destruição da droga remanescente, após a realização do exame laboratorial, a orientação defendida pela jurisprudência maioritária, atento o disposto no n.º 4 do citado artigo 62º que alude «à autoridade judiciária competente» e a definição estabelecida na alínea b) do artigo 1º do Código de Processo Penal – considerando-se como tal «o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente a actos processuais que cabem na sua competência» – é no sentido de que a competência para ordenar tal destruição cabe, na fase de inquérito, ao Ministério Público e nas fases da instrução e do julgamento, ao Juiz que preside a cada uma dessas fases do processo[1].
Em relação à competência para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, a questão é controvertida. Enquanto certo sector da jurisprudência defende que de harmonia com o disposto no n.º 6 do artigo 62º do Decreto-Lei nº. 15/93, essa competência é sempre do juiz, integrando a previsão do artigo 268º, al. f), do CPP, tendo em conta a expressão «tribunal» empregue naquela norma e é determinada uma vez proferida decisão definitiva[2]; outra corrente jurisprudencial, considera que a expressão «tribunal», empregue no enunciado n.º 6 do artigo 62º, deve merecer uma interpretação mais ampla, abrangendo o Ministério Público, cabendo-lhe a competência, para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, quando a decisão final proferida no processo, for sua, o que acontecerá na fase de inquérito, nomeadamente, se determinou o arquivamento definitivo dos autos[3].
Quid juris?
Salvo o devido respeito pela posição contrária, entendemos assistir razão, ao recorrente, perfilhando-se a orientação pelo mesmo defendida, no sentido de que a competência para ordenar a destruição da amostra guardada em cofre, é sempre do juiz, independentemente da fase processual em que tiver sido proferida a decisão final, nos autos.
Explicitando:
Resulta do disposto no artigo 62º n.º 3, do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de janeiro, que até decisão final do processo, fica sempre guardada a amostra-cofre da droga apreendida e submetida a exame laboratorial.
A preservação da amostra do estupefaciente, guardada em cofre, até à decisão definitiva do processo, destina-se a prevenir qualquer eventualidade de necessidade de confronto ou de reexame, pelo que, em função da situação normalmente pressuposta para a ocorrência de tal hipótese, estando-se perante um elemento com relevância probatória, justifica-se que a competência para ordenar a destruição dessa amostra seja um ato jurisdicional, competindo ao juiz, independentemente, da fase processual, em que seja proferida a decisão definitiva.
Por outro lado, tal como salientam os defensores da orientação que acolhemos e é também frisado pelo recorrente, não poderá ser inócua a diferença de terminologia utilizada pelo legislador, no n.º 4 e no n.º 6 do citado artigo 62º, para se referir a quem ordena a destruição, respetivamente, da droga remanescente, após a realização do exame laboratorial e da amostra guardada em cofre. No n.º 4º o legislador refere-se à “autoridade judiciária competente” e no n.º 6 reporta-se ao “tribunal”.
Ora, não se compreenderia, a razão pela qual o legislador utilizaria diferente terminologia, num e noutro dos números do mesmo preceito legal, se quisesse consagrar solução idêntica em ambos os casos, não podendo, neste âmbito, deixar de se ter presente que, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 9º do Código Civil, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Neste quadro, encontrando-se o conceito de “autoridade judiciária competente”, como supra referimos, definido no artigo 1º, al. b), do CPP, abrangendo «o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência», entendemos que ao utilizar a expressão “tribunal”, no n.º 6 do artigo 62º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, referindo-se a «decisão definitiva» (com o sentido de que a decisão já não pode ser objeto de impugnação, pelo menos, por via ordinária), o legislador, pretende referir-se ao juiz.
Concluímos, assim, que, nos termos das disposições conjugadas do artigo 62º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e do artigo 268º, n.º 1, al. e), do CPP, é sempre do juiz a competência para ordenar a destruição da amostra de estupefaciente guardada em cofre, independentemente, de a decisão definitiva do processo, ter sido proferida, pelo Ministério Público, na fase de inquérito, o que acontecerá, nomeadamente, em caso de arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277º, n.º 1, do CPP.
Nesta conformidade, deve merecer provimento o recurso interposto pelo Ministério Público.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação ... em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a destruição da amostra guardada em cofre, do estupefaciente apreendido, nos termos do disposto no artigo 62º, n.º 6, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

Sem custas, por não serem devidas.


Évora, 28 de março de 2023
Fátima Bernardes (Relatora)

Fernando Pina

Beatriz Marques Borges


_____________________________

[1] Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RE de 03/12/2015, proc. 500/13.2GBSLV-A.E1 e Ac. da RL de 22/11/2011, proc. 792/10.9PGALM-AL1-5, in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, vide, entre outros, os já citados Acórdãos da RE, de 03/12/2015 e da RL de 22/11/2011 e, ainda, Ac. da RG de 24/04/2017, proc. 523/15.7GCVCT-A.G1, in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, cf. Ac. desta RE de 23/02/2021, proc. 660/17.3GDSTB-A.E1, in www.dgsi.pt.