Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
460/16.8T8OLH-K.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
NULIDADE
Data do Acordão: 06/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sendo o pedido formulado no sentido da restituição da fração cuja propriedade é invocada e da condenação dos RR ao pagamento de indemnização para ressarcimento dos danos decorrentes da ocupação ilícita da fração pelos RR até efetiva restituição dela, ou da restituição da quantia correspondente àquilo com que injustamente e sem causa justificativa se locupletaram à custa da A, enferma de nulidade, por condenação em objeto diverso do pedido, a sentença que condena os RR a pagar rendas mensais vencidas e vincendas enquanto se mantiver em vigor o contrato de arrendamento.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Réus: (…) e (…)
Recorrida / Autora: Massa Insolvente de (…) – Sociedade de Construções, Lda.

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A peticionou a condenação dos RR a entregar imediatamente a indicada Fração “S” (moradia C5), livre e devoluta de pessoas e bens e em bom estado de conservação, à Autora, a pagar-lhe a quantia € 72.000,00 (setenta e dois mil euros), acrescida de um montante de € 800,00 por cada mês ou fração que decorra posteriormente a 31/08/2018 até entrega da fração à A.
Alegou, para tanto, que a fração pertence à massa insolvente, está ocupada pelos RR, que não têm qualquer título que legitime essa ocupação; assiste-lhe o direito a indemnização pelo uso indevido do imóvel pelos RR, em contrapartida pela privação de uso causada à Autora; acresce que os RR estão a enriquecer sem qualquer justificação à custa do património da A, sendo que no mercado de arrendamento a fração em causa é suscetível de gerar um rendimento mensal de € 800,00; o aludido montante de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) constitui o valor do enriquecimento dos Réus pela ocupação ilícita da fração no período de 90 meses posterior à ocupação e até ao final do mês de agosto de 2018, uma vez que equivale às rendas que deveriam pagar pelo uso do bem, e que não pagaram; quer se opte pela indemnização pela privação de uso fixada com recurso à equidade, quer pelo regime do enriquecimento sem causa, alcança-se a forma adequada de compensar a Autora pela restrição sofrida no seu direito de propriedade.[1]
Os RR contestaram invocando que ocupam a fração em causa ao abrigo de contrato de arrendamento celebrado com a (…) – Sociedade de Construções, Lda., que sempre têm pago a renda estabelecida, de acordo com a indicações dadas pelo gerente da referida sociedade.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, decidindo-se:
«1. Absolver os réus quanto ao pedido de restituição da fração;
2. Condenar os réus a pagar à autora o montante correspondente a € 700,00 (setecentos euros) mensais desde julho de 2016 e enquanto se mantiver em vigor o contrato de arrendamento celebrado com a insolvente (…) – Sociedade de Construções, Lda.
Custas pela autora e pelos réus na proporção de ½ para cada parte.»

Inconformados, os RR apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença, a substituir por decisão que julgue a ação totalmente improcedente; caso assim se não entenda, deverá a autora ser condenada na totalidade ou em pelo menos 90,45% das custas. Concluem a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. Uma vez que a autora intentou uma ação de reivindicação com pedido de indemnização pela ocupação do prédio e que os réus provaram um contrato de arrendamento válido, deveria a ação ter sido julgada totalmente improcedente.
2. Uma vez que a autora não modificou o pedido ou a causa de pedir, não podia a MM. Juíza a quo ter apreciado o carácter liberatório ou não dos pagamentos de rendas provados pelos réus, até porque não era esse o objeto da ação.
3. A condenação dos réus no pagamento dessas rendas viola o seu direito de defesa uma vez que não puderam eles, para além do mais, chamar aos autos quem as recebeu para obter a condenação deste na sua entrega à massa insolvente.
4. Uma vez que o administrador da insolvência nunca indicou aos réus o modo de pagamento das rendas, apesar da insistência destes, encontra-se a massa insolvente em mora e não se encontra vencida qualquer renda, pelo que não tinham os réus de ser condenados no seu pagamento.
5. Mesmo que assim se não entenda, e tendo em conta a mora do credor e o facto de não ser objeto do processo o pagamento das rendas, deverá entender-se que a autora deu causa à ação e deve ser integralmente responsabilizada pelas custas.
6. E mesmo que assim se não entenda, considerando o valor económico do pedido (€ 337.065,38) e o decaimento dos réus (€ 32.200,00) não poderiam estes ser condenados em mais do que 9,55% das custas.
7. É nula na parte recorrida a douta decisão, conforme art.º 615.º, 1, d) e e), do Código de Processo Civil, violando ainda o art.º 535.º, 1 e 2, b), do mesmo diploma legal e o art.º 813.º, parte final, do Código Civil.»
Em sede de contra-alegações, a Recorrida sustenta que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmar-se a sentença recorrida, que não violou qualquer norma jurídica e, pelo contrário, é merecedora dos maiores encómios.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da nulidade da sentença;
- da condenação em custas.

III – Fundamentos

A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. A sociedade comercial (…) – Sociedade de Construções, Lda. foi declarada insolvente por sentença de 7 de junho de 2016;
2. Com data de 25 de julho de 2016, o Administrador de Insolvência apreendeu para a massa Insolvente a fração autónoma designada pela letra “S”, correspondente à moradia C5, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Urbanização (…), Sítio das (…), freguesia de Alvor, concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), da referida freguesia, e inscrito na matriz urbana sob o artigo (…);
3. A propriedade dessa fração está registada na Conservatória do Registo Predial em nome de (…) – Sociedade de Construções, Lda.;
4. Por contrato assinado a 1 de março de 2011, (…) – Sociedade de Construções, Lda. deu de arrendamento à ré (…) a fração referida em 2, para sua habitação;
5. Esse contrato foi celebrado por 60 meses, com início no dia 1 de março de 2011 e termo a 29 de fevereiro de 2016;
6. Ficou acordada a renda mensal de € 800,00, que deveria ser paga nas instalações da (…) – Sociedade de Construções, Lda. ou por transferência bancária para a conta da sociedade com o NIB (…);
7. Com base nesse contrato de arrendamento, os réus contrataram o fornecimento de água, gás e eletricidade;
8. Os réus pagaram a renda acordada por transferência bancária para a conta indicada no contrato até setembro de 2012;
9. Em outubro de 2012, o sócio-gerente da insolvente, (…), solicitou aos réus que a renda passasse a ser depositada na conta bancária com o NIB (…), titulada por (…);
10. A renda foi paga por transferência para essa conta nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2012;
11. Em 1 de março de 2012, a insolvente e a ré celebraram novo contrato de arrendamento, tendo acordado na redução da renda para a quantia de € 700,00 mensais, e alterado o prazo do contrato para 108 meses, com termo em 29 de fevereiro de 2020 e com renovação automática por cinco anos após o seu termo;
12. A renda deveria ser paga até ao dia 21 de cada mês nas instalações da (…) – Sociedade de Construções, Lda. ou por transferência bancária;
13. A renda continuou a ser paga por transferência bancária para a conta referida em 9 supra;
14. Em junho de 2014, (…) pediu para o pagamento da renda ser feito por transferência para a conta de (…), com o NIB (…);
15. A renda acordada foi paga por transferência para a conta referida em 14 até 13 até outubro de 2017;
16. A 23 de outubro de 2017, os réus contactaram, por intermédio do seu mandatário, o Administrador de Insolvência pedindo-lhe a indicação de uma conta bancária para onde pudesse ser transferida a renda;
17. E insistiram, em 19 de novembro de 2017 e 18 de janeiro de 2018, pela indicação da conta bancária onde deveria ser feito o pagamento;
18. Por carta de 24 de abril de 2018, o Administrador da Insolvência solicitou aos réus a entrega da fração;
19. Em 25 de maio de 2018, em resposta à carta que lhes foi remetida pelo mandatário da autora, os réus remeteram ao advogado da autora cópia do contrato de arrendamento referido em 11 supra;
20. O Administrador da insolvência tinha em seu poder um contrato datado de 4 de setembro de 2012, pelo qual a insolvente dava de arrendamento a mesma fração S, referida em 2, supra, à sociedade (…), S.L., pela renda de € 800,00, pelo prazo de dois anos, com data de início a 2 de setembro de 2012 e termo a 10 de setembro de 2014, sem possibilidade de renovação – documento n.º 1, junto com o requerimento de 15/07/2019;
21. Da contabilidade da insolvente não constavam quaisquer créditos decorrentes das rendas pagas pelos réus;
22. O valor locativo da fração ocupada pelos réus é de € 800,00 por mês.

B – O Direito
Da nulidade da sentença
Nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, do CPC, é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
São as nulidades típicas da sentença, que se reconduzem a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.[2]
Na ótica dos Recorrentes, a sentença enferma de nulidade a coberto do disposto nas als. d) e e) da citada disposição legal por ter incorrido em excesso de pronúncia e por a condenação no pagamento das rendas divergir do pedido formulado, que foi o de pagamento de indemnização pela ocupação ilícita.
Ora vejamos.
Nos termos do disposto no art. 3.º/ 1 do CPC, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada a deduzir oposição. Em consonância com tal regime, o art. 608.º/2 do CPC estatui que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Está em causa o princípio dispositivo.
No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo réu. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão jurídica que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.[3]

Na verdade, o pedido e a causa de pedir plasmados na petição inicial por via da qual se exerce o ónus de impulso processual é que conformam o objeto do processo. As questões suscitadas pelas partes só ficam devidamente individualizadas quando se souber qual é o objeto dela (o pedido) senão também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir).[4]
E o objeto da sentença há de ser idêntico ao objeto do processo, assim se afirmando a identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar.[5] Donde, a sentença não pode versar senão as questões suscitadas pelas partes, salvo as de conhecimento oficioso (art. 608.º/2/2.ª parte do CPC) e não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art. 609.º/1 do CPC), sob pena de nulidade (art. 615.º/1/als. d) e e), respetivamente, do CPC).
Analisada a petição inicial que instrui o presente processo, alcança-se que a A conformou a ação como uma ação de reivindicação a que cumulou o pedido de indemnização do dano da privação do uso com fundamento na ocupação ilícita que os RR vêm fazendo da fração ou a título de restituição daquilo que injustamente se vêm locupletando à sua custa. Na verdade, arrogou-se proprietária da fração cuja restituição peticionou, o que se enquadra no regime previsto no art. 1311.º do CC. E porque ao proprietário assiste o direito de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição das coisas que lhe pertencem (cfr. art. 1305.º do CC), a A, invocando a ocupação ilícita por parte dos RR, acionou o direito a obter indemnização do dano sofrido com a privação do uso da fração, a ressarcir mediante o pagamento de quantia mensal devida até efetiva restituição da fração reivindicanda (arts. 483.º e ss do CC) ou o direito à restituição daquilo que injustamente se vêm locupletando à sua custa (arts. 473.º e ss do CC). Em todo o caso, sempre o montante pecuniário seria a acrescer ao decretamento da imediata desocupação e entrega da fração à A.[6]
Decorre do exposto que, atenta a configuração dada à ação pela A, a condenação dos RR a pagar-lhe a peticionada quantia pecuniária só podia ter lugar desde que resultasse assente ser a A proprietária da fração e ser a ocupação por parte dos RR ilícita, e desde que procedesse o pedido de restituição da fração reivindicanda.
A sentença, acolhendo a alegação dos RR no sentido de serem titulares de contrato de arrendamento que lhes concede o direito de gozo da fração, e absolvendo-os, por via disso, do pedido de restituição da fração, condenou-os, porém, no pagamento de rendas vencidas e vincendas enquanto se mantiver em vigor o mencionado contrato de arrendamento.[7] O que, manifestamente, não encontra acolhimento no pedido formulado nem nos respetivos fundamentos, revelando que a causa de julgar é diversa da causa de pedir e, bem assim, que o sentenciado é diverso do pedido formulado.
Resulta, pois, afirmada a nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido – art. 615.º/1/e) do CPC.
O que implica na revogação do segmento condenatório inserto no n.º 2 da «Decisão».[8]

Da condenação em custas
Uma vez que o comando sentenciado em 1.ª Instância passa a contemplar apenas a absolvição dos RR do pedido de restituição da fração[9], é manifesto que as custas recaem integralmente sobre a A, a parte vencida – art. 527.º/1 e 2 do CPC.

Termos em que procedem as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrida – art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga:
- o segmento n.º 2 da decisão recorrida;
- a condenação quanto a custas, condenando-se nelas a A, parte integralmente vencida.
Custas pela Recorrida.
Évora, 25 de junho de 2020
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. arts. 32.º e ss da p.i.
[2] Acórdão do STJ de 23/03/2017 (Tomé Gomes).
[3] Acórdãos do STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[4] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 54.
[5] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 56.
[6] Cfr. art. 40.º da p.i.
[7] A sentença, embora enunciando as seguintes questões a decidir:
1. Se assiste à autora o direito à restituição da fração objeto dos autos;
2. Se os réus têm titulo que legitime a ocupação;
3. Se a autora tem direito à quantia de € 800,00 mensais desde 31.8.2018 até entrega efetiva do imóvel;
4. Se a autora litiga de má fé – cfr. fls. 2,
Veio a conhecer, em sede de fundamentação de direito, das seguintes questões:
1. Restituição da fração à Massa Insolvente;
2. Direito da Massa Insolvente ao valor das rendas pelo uso da fração;
3. Da litigância de má fé – cfr. fls. 7, 8 e 9.
[8] Condenação dos réus a pagar à autora o montante correspondente a € 700,00 (setecentos euros) mensais desde Julho de 2016 e enquanto se mantiver em vigor o contrato de arrendamento celebrado com a insolvente (…) – Sociedade de Construções, Lda.
[9] É certo que a sentença não emitiu pronúncia acerca do pedido de indemnização dos danos decorrentes da ocupação ilícita da fração pelos RR ou do dever destes de restituírem aquilo com que injustamente se locupletaram à custa da A. Porém, por se tratar de nulidade que não é de conhecimento oficioso (cfr. art. 615.º/1/al. d) do CPC, Ac. STJ de 12/11/1996, Ac. TRC de 25/05/2010), não cabe aqui tomar dela conhecimento nem aplicar o regime inserto no art. 665.º/1 do CPC.