Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
72/23.0T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACÇÃO CÍVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CASO JULGADO PENAL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
I - O que está em causa nos arts. 623º e 624º do CPC não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado.
II - Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido.
III - Quando a sentença penal absolve o arguido pela prova positiva, e não por falta de provas, ou seja, com base no princípio in dubio pro reo, de que não praticou os factos que lhe eram imputados, tem-se por adquirido que ele atuou corretamente, de modo diligente.
IV – Porque a presunção não é da inexistência dum facto, mas da sua existência, então o facto provado, na sentença penal, de que o arguido agiu diligentemente faz recair sobre o autor, na ação cível, o ónus probatório de que assim não aconteceu e de que essa atuação foi culposa.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
…… – Companhia de Seguros, S.A. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 75.975,..., acrescida de juros de mora vencidos, bem como os vincendos até integral e efetivo pagamento.
Alega, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice com o nº ...01, por via do qual a ré transferiu para a autora a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-VN, sucedendo que no dia ....02.2018, na Avenida ..., Bairro ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo seguro na ré e o peão BB, imputando a autora a culpa na produção do acidente à ré por conduzir o .. de forma negligente, desatenta, e em claro desrespeito das normas estradais e de segurança, sendo que ao tempo do acidente a ré apresentou uma TAS de 1,10g/l, tendo o álcool influenciado o comportamento da ré, diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão.
Mais alega que a ré foi pronunciada pelo crime de homicídio por negligência em concurso aparente com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, tendo a autora nesse processo crime sido demandada civilmente, e chegado a acordo com os demandantes, legais sucessores do inditoso peão, antes da realização do julgamento naquele processo, liquidando àqueles sucessores o montante de € 75.000,00 e despendeu ainda a quantia de € 975,... em despesas de peritagem e averiguação e despesas hospitalares com o dito peão, quantias das quais se quer ver ressarcida, concluindo que estão preenchidos todos os requisitos da alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL 291/2007 de 21 de agosto, que facultam à autora o direito de regresso invocado.
A ré contestou, invocando a exceção de caso julgado, em face da decisão absolutória proferida no âmbito do processo comum singular que correu os seus termos sob o n.º 561/18...., do Juízo de Competência Genérica ....
No mais, impugnou a factualidade alegada, designadamente a referente ao acidente, imputando a responsabilidade na sua eclosão ao malogrado peão, dizendo que o mesmo iniciou de forma súbita a travessia da faixa de rodagem, tendo sido embatido pelo veículo da ré que nada pôde fazer para evitar o embate.
A autora respondeu, concluindo pela improcedência da exceção do caso julgado.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a sobredita exceção, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, por provada, e condenou a ré a pagar à autora da quantia de € 75.975,..., acrescida de juros de mora vencidos, bem como, os juros vincendos, até integral e efetivo pagamento.
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A R. foi arguida no processo com o nº 561/18.... que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., tendo sido absolvida, por sentença de 31.03.2022, transitada em julgado, que se encontra nos autos e que o tribunal “a quo” conhecia ao prolatar a decisão em crise.
2. Na sentença em apreço, confirmada pelo Tribunal da Relação, deu o tribunal como provados, para além de outros, os factos seguintes:
“12- Subitamente, o referido BB iniciou, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, a travessia da faixa de rodagem.
13- Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela arguida.
14- O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo.”
Mais se provou que:
“1 - Nesta cidade situa-se a Avenida ..., comportando duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte / Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul / Norte.
2- Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura.
3- Em ... de Fevereiro de 2018 o local estava dotado de iluminação pública, porém, fraca.
4 - E no referido separador havia, em toda a sua extensão e largura, arbustos e arvoredo, alto e denso.”
Não se provou que:
“24- BB estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem pela passagem de peões assinalada no solo quanto foi embatido.”
3. O tribunal “a quo” conhecia a antedita realidade e entendeu não ser de aplicar o disposto no artigo 624º do CPC., por “entender (que) aquela decisão, apesar de definitiva, não constitui uma decisão absolutória que tenha apreciado se a aí arguida (ora ré) houvera praticado ou não os factos suscetíveis de integrar os crimes de que havia sido pronunciada, não tem aplicação o referido normativo (…).”
4. É falso que a sentença absolutória da arguida (ora R.) (integralmente confirmada por decisão colegial) não tenha sido fundada na prova positiva de que os factos que lhe eram imputados “não foram realmente praticados”, e tenha tido “por base o princípio da presunção de inocência do arguido”.
5. Os factos pelos quais era pronunciada a arguida não foram julgados (por quatro juízes) não provados pela aplicação do princípio “in dubio pro reo”, mas sim pela circunstância de se terem provado factos diversos, incompatíveis ou inconciliáveis com os que lhe eram imputados
6. No caso, ficou provado que o acidente em causa ocorreu, nas circunstâncias que constam da sentença penal absolutória, “a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo.”
7. A decisão penal absolutória (conhecida do julgador recorrido) tem que ter eficácia “erga omnes” em obediência ao princípio “non bis in idem”, assegurado entre nós pelos artigos 14.7, do pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996, 4º do protocolo nº 7 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datado de 22 de novembro de 1984, 50º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
8. Como também, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático (vd. art. 2º do C.R.P.).
9. E assim sendo devem julgar-se como provados todos os factos que constam da decisão penal absolutória (tais como aqueles que se deixaram transcritos supra), julgando-se não provados os factos vertidos na sentença em crise que os contradigam.
10. Deve dar-se como provado que:
1. Nesta cidade situa-se a Avenida ..., comportando duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte / Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul / Norte.
2. Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura.
3. Em ... de Fevereiro de 2018 o local estava dotado de iluminação pública, porém, fraca.
4. E no referido separador havia, em toda a sua extensão e largura, arbustos e arvoredo, alto e denso.
5 - Inexistia, no atravessamento de tal separador, qualquer ponto próprio ou específico, antes existindo vários pontos que se foram formando ao longo do tempo pelo uso reiterado das pessoas e através do forçamento e calcar de tais arbustos.
6 - Sensivelmente a meio da Avenida, em ambos os sentidos de marcha, havia uma passagem para peões assinalada na via de circulação.
7 - E cerca de 10 metros antes de tal passagem, havia, considerando o sentido Sul / Norte, uma lomba no pavimento.
8 - No local existia, também, sinalização vertical a assinalar a existência da passagem para peões, e, ainda, de proibição de circular a mais de 40 km/h.
9 - Pelas 19 horas do dia ... de Fevereiro de 2018, ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo ..., ..., de matrícula ..-..-VN, a arguida seguia na referida Avenida, no sentido Sul – Norte, com uma TAS de 1, 01 g./l., imprimindo ao veículo velocidade de cerca de 33Km/h.
10- Não chovia, o piso estava seco e já não havia luz natural.
...- BB usando roupa escura e proveniente da zona do Lidl, atravessou, no sentido Oeste / Este, a passagem para peões existente na Avenida e considerando o sentido de marcha Norte / Sul.
12- Subitamente, o referido BB iniciou, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões, considerando o sentido de marcha do veículo conduzido pela arguida, a travessia da faixa de rodagem.
13- Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela arguida.
14- O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo.
15- A arguida imobilizou o seu veículo cerca de 5 metros após a passagem para peões e o BB foi projectado, ficando imobilizado no solo cerca de 5 metros à frente do veículo.”
11. E deve dar-se como não provado, revogando-se assim a decisão recorrida, o aí vertido nos factos provados 5, 6, 7, 10, 13, 14, 18, 23, 24 e 31 (na medida em que apenas transcreve um trecho do acórdão, descontextualizado e, por isso, de aparente significado contrário ao verdadeiro teor da decisão).
12. Deve declarar-se inconstitucional o artigo 624º do C.P.C. no entendimento, caso venha a ser acolhido, de que a decisão penal absolutória, transitada em julgado, em que foram provados outros factos, não imputados ao arguido, de onde decorre a sua desresponsabilização penal, isto é, factos distintos e incompatíveis com os imputados aos arguido, não tem eficácia “erga onmes”, admitindo-se assim que em sede de processo civil se possam provar outros e distintos factos antagónicos, incompatíveis ou inconciliáveis com os provados em tal sentença absolutória (transitada em julgado), construindo-se assim duas versões distintas e opostas sobre a mesma realidade ou “acontecimento histórico”, igualmente estabilizadas no ordenamento jurídico, por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
13. Mesmo que assim não seja – o que apenas seria de admitir caso se aceitasse que o juiz em processo penal não tem a mesma competência e legitimidade do juiz em processo cível para a apreciação e decisão dos mesmos factos em discussão – carece, em absoluto, de fundamento factual e legal a afirmação vertida na sentença em crise, de que não é aplicável no caso vertente o disposto no artigo 624º do C.P.C. (no seu entendimento mais mitigado ou parcimonioso).
14. Ao contrário do que se deixou dito na sentença em crise, os factos que se deram como provados e não provados na sentença penal absolutória (confirmada por três juízes do tribunal de recurso que, sublinhe-se, ouviram na íntegra a gravação de todos os depoimentos) resultaram de prova positiva feita pela arguida (aqui ré) e não da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.
15. Ao invés do que afirma o juiz “a quo”, a sua absolvição em tal sentença penal não decorreu da aplicação do princípio “in dubio pro reo”, isto é, da circunstância de não ter sido feita prova suficiente sobre os factos constantes do libelo acusatório.
16. Assim sendo, sempre se verificaria no caso vertente a “presunção legal da inexistência” dos factos imputados pela a autora à ré na acção cível (iguais aos do processo penal), prevalecendo a mesma sobre “qualquer presunção de culpa estabelecida na lei civil”.
17. Deve, pois, revogar-se a sentença recorrida, julgando-se aplicável “in casu” o artigo 624º do C.P.C.
18. Mesmo que se desconsidere tudo o que antes se deixou dito, o que só por dever de patrocínio se admite, atenta a prova produzida, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, cuja integral transcrição se junta, e aqueles que concretamente se indicam, sempre se terá de concluir que houve manifesto erro no julgamento da matéria de facto, revogando-se a sentença em conformidade com o adiante referido.
19. Assim, tendo em consideração a prova mencionada na motivação da sentença, nomeadamente o testemunho (todo ele) de CC e o teor do auto de notícia, deve julgar-se não provada a matéria vertida nos pontos 13, 14, 15, 23, e 24, dos factos provados.
20. Mais deve julgar-se não provado o ponto 18 de tais factos, uma vez que a referida projecção do corpo “a cerca 8 metros para a frente” (não se sabe bem de quê), nenhuma correspondência tem com as medidas referidas no auto de notícia e, a aceitar-se o embate no meio da passadeira (como se faz na sentença) sempre teria de se considerar a projecção do corpo a cerca de 13 m do local do embate, atentas as medidas que constam do auto de notícia e o comprimento do veículo conduzido R (3,66m).
21. Deve igualmente julgar-se não provado o que consta do ponto 19, consignando-se, em lugar do que aí se diz, as medidas que constam do auto de notícia (não impugnado) dando-se como provado que:
O veículo automóvel conduzido pela R. ficou imobilizado depois da passadeira, com a sua traseira a 3,90 m do limite norte da mesma e o corpo da vítima ficou imobilizado no solo a 4,90m da frente do veículo automóvel conduzido pela R.
22. Deve igualmente julgar-se como não provado o ponto 15., que tange à parte do veículo da R. que embateu no sinistrado, uma vez que das fotografias referidas pelo juiz “a quo” e do auto de notícia resulta que os danos na viatura se situam no lado esquerdo frontal do pára-choques, capot e vidro pára-brisas.
23. Deve para além disso e atenta a prova produzida, nomeadamente o depoimento da testemunha da DD, agente da PSP que se deslocou ao local logo após o sinistro e que elaborou o auto de notícia, deve julgar-se provados o ponto c) dos factos não provados:
24. Atenta a eficácia erga omnes da decisão penal absolutória da ora R., e aos factos aí provados, deve revogar-se a decisão da matéria de facto (contrária a tais factos) e, em consequência, por estar demonstrada a sua não responsabilidade na produção do acidente, absolvê-la do pedido.
24. Mesmo que assim não se entenda, uma vez revogada a decisão da matéria de facto, nos anteditos termos, resulta não provada a responsabilidade da R. no acidente que deu causa à indemnização peticionada em direito de regresso, pelo que inexiste fundamento legal para a sua condenação, devendo revogar-se a sentença e em seu lugar proferir-se decisão que a absolva (mais uma vez).
Assim se fazendo JUSTIÇA

A autora contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- valor extraprocessual da prova produzida em processo crime;
- impugnação da matéria de facto que, a ser atendida, poderá influir na sorte (procedência) que mereceu a ação, reconhecendo-se, nesse caso, que não estão preenchidos os pressupostos do direito de regresso da autora.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na sentença foram considerados provados, por ordem lógica e cronológica, os seguintes factos:
1. No exercício da sua atividade a autora celebrou com a ré um acordo reduzido a escrito, titulado pela apólice com o nº ...01, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-VN.
2. No dia ... de fevereiro de 2018, pelas 19:00 horas, na Avenida ..., Bairro ..., concelho ..., ocorreu um sinistro, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-VN, seguro na autora, de que, à data do sinistro, a ré era proprietária e conduzido por esta e o peão BB.
3. A Avenida ..., onde ocorreu o sinistro, comporta duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte/Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul/Norte.
4. Entre as aludidas faixas de rodagem (e sentidos de marcha) existe um separador central com cerca de 1 metro de largura.
5. Sensivelmente a meio da Avenida, em ambos os sentidos de marcha, havia uma passagem para peões assinalada na via de circulação.
6. Existe um ponto específico do separador para quem circulando a pé, pretenda atravessar de uma passadeira para a outra.
7. Em ... de Fevereiro de 2018 o local estava dotado de iluminação pública.
8. A ré conduzia o veículo seguro, na faixa da esquerda, no sentido Sul/Norte da Av. ....
9. Ao tempo do sinistro, tendo em conta o sentido de marcha da ré, antes da passadeira, existia sinalização vertical e, no solo, a assinalá-la.
10. Bem como, sinalização vertical de proibição de circular a mais de 40km/h.
11. Na altura o tempo estava bom e o piso seco.
12. Antes da eclosão do sinistro transitava, pelo menos, um veículo, em sentido contrário ao veículo da ré, que, parou na passadeira e deixou passar o peão BB na passadeira, no sentido esquerda/direita (Supermercado Lidl - Bairro ...).
13. Ao chegar junto da passadeira situada perto do Bairro ...,
14. A ré não abrandou a marcha do veículo seguro, na aproximação da dita passadeira,
15. E veio a colher, com a parte central do veículo seguro, o peão EE, que efetuava a travessia de tal passadeira, no sentido esquerda/direita (Supermercado Lidl - Bairro ...).
16. O peão usava roupa de cor ... ou ....
17. De acordo com a participação de acidente o peão possuía residência no r/c, do n.º ..., do referido Bairro ....
18. Em sequência, o peão BB foi projetado a cerca de 8 metros para a frente.
19. A ré imobilizou o seu veículo cerca de 5 metros após a passagem para peões e o BB ficou imobilizado no solo cerca de 5 metros à frente do veículo.
20. As lesões provocadas pelo atropelamento levaram à morte do peão BB, pelas 23H38, do mesmo dia.
21. Ao tempo do sinistro a ré apresentou uma TAS de 1,10g/l.
22. O álcool influenciou o comportamento da ré diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão.
23. Em virtude do estado em que se encontrava a ré não conseguiu atender que estava um peão a atravessar a passadeira.
24. O sinistro ficou a dever-se ao facto da ré conduzir o veículo seguro, de forma negligente, desatenta, e em claro desrespeito das normas estradais e de segurança, bem como aos deveres de cuidado que recaíam sobre si.
25. Ressalvando o espaço específico para atravessamento pela passadeira a que se refere no ponto 6., ao longo do separador existente entre os dois sentidos de trânsito, existiam vários pontos que se foram formando ao longo do tempo pelo uso reiterado das pessoas e através do forçamento e calcar dos arbustos aí existentes, os quais se encontram assinalados a 0,90 m, 5,17m e 8,48m da passadeira.
26. Através de procedimento simplificado de habilitação de herdeiros datado de 20 de fevereiro de 2018, FF, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por BB, declarou serem herdeiros daqueles, além dele próprio, a viúva GG e os seus outros filhos, HH, II, JJ, KK e LL.
27. Em virtude do sinistro, por despacho datado de 19 de novembro de 2020, a ré foi acusada pela prática, em autoria material de um crime de condução perigosa de veículo automóvel, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, al. a) e b) e n.º 4, com referência ao artigo 81.º, nºs 1 e 2, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, al. a) e 27.º, n.º 1, do Código da Estrada, em concurso real com um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, do Código Penal e também pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
28. Requerida a abertura de instrução pela ré, em 19 de janeiro de 2021, veio a ser proferido despacho de pronuncia pelos referidos crimes, mas em concurso aparente.
29. Nesse processo, GG, na qualidade de viúva do peão e FF, HH, KK, LL, JJ e II, todos na qualidade de seus filhos, deduziram pedido de indemnização cível contra a autora, pedindo a respetiva condenação no pagamento da quantia de € 95 000,00 (noventa e cinco mil euros).
30. Através de sentença proferida no âmbito dos referidos autos, a ré veio a ser absolvida da prática do crime pelo qual estava pronunciado, decisão que veio a ser confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado em 31 de janeiro de 2023.
31. No referido acórdão pode ler-se:
“(…)
Concluindo, vista a argumentação desenvolvida na decisão recorrida [nomeadamente o último do excertos citados, nenhum reparo merece a opção seguida pelo tribunal recorrido de, primeiramente, divergir das conclusões do relatório efectuado na instrução e, depois, de se socorrer do princípio in dubio pro reo quanto à matéria de facto não provada e consequentemente da responsabilização pelo ilícito que era imputado à arguida na pronuncia, sendo, por isso, de confirmar a decisão absolutória proferida, limitando-nos, nos termos do disposto no art.º 425.º, n.º 5, do CPP, a remeter para a respectiva fundamentação.
(…)”
32. A autora foi demandada civil naquele processo e chegou a acordo com os herdeiros do peão BB, tendo pago àqueles o montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) a título de indemnização pelo dano morte, dano moral dos sucessores legais do peão BB, dano não patrimonial da vitima antes de falecer e dano patrimonial futuro.
33. A autora despendeu a quantia de € 975,11 (novecentos e setenta e cinco euros e onze cêntimos) a título de despesas de peritagem e averiguação e despesas hospitalares com o peão BB.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) A velocidade que, no momento do embate, a ré imprimia ao seu veículo;
b) Que a iluminação pública existente no local é fraca;
c) (Sem prejuízo do referido nos pontos 6. e 25. dos factos provados) que, havia arbustos e arvoredo, alto e denso, em toda a extensão e largura do separador;
d) Que o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem pela qual circulava a ré, cerca de 2 a 3 metros após a passagem para peões;
e) Assim que iniciou tal travessia o BB foi embatido pelo veículo conduzido pela ré; e,
f) O embate deu-se a cerca de 1,30 metros do referido separador e com a parte da frente do lado esquerdo do veículo da ré.

Do valor extraprocessual da prova no processo crime instaurada conta a aqui ré.
Nas conclusões 1 a 17 defende a recorrente a aplicabilidade in casu do art. 624º do Código de Processo Civil [CPC].
Entre o mais que alega, diz a recorrente que ficou provado que o acidente em causa ocorreu nas circunstâncias que constam da sentença penal absolutória, a qual tem que ter eficácia erga omnes, em obediência ao princípio non bis in idem, assegurado, entre outros, pelo art. 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, assim como «em respeito aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático (vd. art. 2º do C.R.P.)», devendo, por conseguinte, «julgar-se como provados todos os factos que constam da decisão penal absolutória (tais como aqueles que se deixaram transcritos supra), julgando-se não provados os factos vertidos na sentença em crise que os contradigam.»
No que respeita à eficácia das decisões proferidas no âmbito de processos criminais, estabelece o art. 623º do CPC[1] que «a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração».
Por sua vez, dispõe o art. 624º do mesmo diploma[2] que «a decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário» (nº 1) e que tal «presunção prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil» (nº 2).
Tal significa que, uma vez transitada em julgado, a decisão penal absolutória fundada em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados constitui presunção iuris tantum de inexistência desses factos.
E dispensa aquele que tem a seu favor tal presunção de provar o facto a que ela conduz [art. 350º, nº 1, do CC], funcionando, assim, como uma forma de inversão do ónus probatório, na medida em que faz recair sobre a parte contrária a prova capaz de afastar o facto legalmente presumido (nº 2 da mesma norma).
Foi essa, aliás, a intenção do legislador aquando da Reforma do Código de Processo Civil de 1995 (Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) quando fez constar do respetivo preâmbulo que «no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções conexas civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria».[3]
Assim, «a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado é actualmente feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido», pelo que, «quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos, nomeadamente, os integrantes de contravenção causal, que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou por forma culposa».[4]
Por isso se vem fazendo notar que «o que está em causa nos arts. 674º-A e 674º-B), do C.Proc.Civil não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado. Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido, invocável em relação a terceiros - isto é, em relação aos sujeitos no processo civil que não tenham intervindo no processo penal - em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção».[5]
Escreveu-se a propósito no acórdão do STJ de 11.07.2019[6]:
«Daqui decorre que, a lei não prevê que a decisão penal absolutória possa ter a força de autoridade de caso julgado, nos termos em que a legislação processual cível o admite para as sentenças cíveis.
O que ela prevê é tão só que a decisão penal pode constituir uma simples presunção da inexistência de factos que eram imputados ao arguido no processo-crime, mas apenas em relação a factos em relação aos quais se tivesse provado que não tinham sido praticados pelo arguido.
Quanto aos outros – ou seja, quanto aos que não foram considerados por falta de prova – a presunção não funciona.
Ou seja e como bem se referem Lebre de Freitas e Outros “in” Código de Processo Civil Anotado, em anotação ao artigo 674º-B do Código de Processo Civil de 2007, a que corresponde o atual artigo 624º, “não se trata (…) de presunção de inexistência de um facto (…) mas da presunção da ocorrência do seu contrário”.
Dito doutro modo: quando num processo-crime se dá como provado que o arguido não praticou determinados factos, numa ação cível o autor tem o ónus de provar o contrário, isto é, que ele praticou esses factos.»
Na sentença recorrida considerou-se que a decisão proferida no processo crime em que foi arguida a aqui ré, confirmada pelo Acórdão do Tribunal desta Relação de 15.12.2022 [Doc. 2 junto com a contestação], «apesar de definitiva, não constitui uma decisão absolutória que tenha apreciado se a aí arguida (ora ré) houvera praticado ou não os factos suscetíveis de integrar os crimes de que havia sido pronunciada, não tem aplicação o referido normativo [art. 624º do CPC]»
Entendemos que, neste aspeto concreto, a sentença recorrida não fez uma análise correta da decisão proferida no processo crime.
É certo que no mencionado Acórdão desta Relação, depois de se transcrever parte da fundamentação da sentença penal, se concluiu do seguinte modo:
«(…), vista a argumentação desenvolvida na decisão recorrida [nomeadamente o último do excertos citados], nenhum reparo merece a opção seguida pelo tribunal recorrido de, primeiramente, divergir das conclusões do relatório efectuado na instrução e, depois, de se socorrer do princípio in dubio pro reo quanto à matéria de facto não provada e consequentemente da responsabilização pelo ilícito que era imputado à arguida na pronuncia, sendo, por isso, de confirmar a decisão absolutória proferida, limitando-nos, nos termos do disposto no art.º 425.º, n.º 5, do CPP, a remeter para a respectiva fundamentação»[7].
Porém, escreveu-se na sentença penal:
«(…) este é um caso no qual o peão, a infeliz vitima, não observou os deveres de cuidado e atenção que sobre si impediam na situação concreta, designadamente quando, de forma súbita, iniciou a travessia da faixa de rodagem fora do local próprio e, além do mais, já com o veículo da arguida praticamente em cima de si, coarctando a esta qualquer possibilidade de reacção. A arguida em nada contribuiu para a produção do resultado. Não se vislumbra como e em que medida é que esta poderia ter evitado o resultado.
Assim sendo, não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal, pelo que se impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio negligente previsto no artº 137º, nº 1, do Código Penal.
Resta apenas dizer que a circunstância da arguida conduzir sob a influência de álcool, em regime contraordenacional, não constitui causa de qualquer ilícito criminal, designadamente de condução perigosa (cfr. artº. 291º do CP). Não se verificam, também, os elementos constitutivos deste tipo de ilícito na medida em que, como deflui da matéria de facto supra, a arguida não causou qualquer perigo, antes sendo causal do acidente a conduta do peão.» (sublinhado nosso).
Como resulta do trecho acabado de transcrever, não há dúvida que a absolvição da ora ré teve lugar com fundamento em prova de que a mesma não praticou os factos de que estava acusada, a chamada absolvição pela prova positiva.
Ora, quando a sentença penal absolve o arguido pela prova positiva, e não por falta de provas, ou seja, com base no princípio in dubio pro reo, de que não praticou os factos que lhe eram imputados, tem-se por adquirido que ele atuou corretamente, de modo diligente. Porque verdadeiramente - como se viu supra - a presunção não é da inexistência dum facto, mas da sua existência, então o facto provado, na sentença penal, de que o arguido agiu diligentemente faz recair sobre o autor, na ação cível, o ónus probatório de que assim não aconteceu e de que essa atuação foi culposa.
Assente, no processo penal, que a atuação do arguido não foi culposa, tendo antes atuado com a diligência devida, não se pode depois, em ação cível, e na falta de prova em contrário, imputar-se-lhe a culpa na ocorrência do acidente[8].
Do que se acaba de expor logo se vê a falta de razão da recorrente quando pretende que sejam dados como provados os factos referentes à dinâmica do acidente dados como provados no processo crime[9]. Só assim não seria se, na presente ação, a autora não fizesse prova da atuação culposa da ré na produção do acidente sub judice. E será que a autora logrou fazer tal prova? É o que veremos de seguida.

Da impugnação da matéria de facto.
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, prova pericial e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das conclusões da recorrente, que esta discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo relativamente aos pontos 5, 6, 7, 10, 13, 14, 15, 18, 19, 23 e 24 dos factos provados, cuja facticidade entende que deve ser considerada não provada, tendo em consideração a prova mencionada na motivação da sentença, nomeadamente o testemunho de CC e o teor do auto de notícia.
Entende ainda a recorrente que deve julgar-se provada a factualidade vertida na alínea c) dos factos não provados.
Na sentença recorrida motivou-se a decisão de facto quanto aos pontos em causa do seguinte modo:
«Cumpre agora salientar o valor probatório do auto de noticia de fls. 10 e ss. (cujo teor não foi impugnado pela parte contrária) que, conjugado com os depoimentos prestados pelo agente autuante DD e MM (agente da Policia de Segurança Pública que, à data do sinistro, desempenhava funções de investigação na esquadra de trânsito do Comando Distrital ...), bem como, com o já referido depoimento prestado por CC e ainda, as fotos que constituem fls. 158 a 159 v.º, serviu para prova da factualidade vertida nos pontos 3.º a 6.º (condições da via, existência do separador central e passadeira) e 13.º a 15.º e 17.º a 19.º (dinâmica e responsabilidade pelo acidente, espaço de projeção do corpo e local de imobilização do corpo do peão e da viatura da ré).
Escalpelizando.
A factualidade vertida nos pontos 3.º a 5.º dos factos provados corresponde a factos que, na contestação apresentada pela ré, foram por esta alegados. Trata-se de matéria congruente com algumas das indicações que constam no auto de notícia e que são facilmente percecionáveis através da mera observação das fotos colhidas, em audiência, através do Google maps que constituem fls. 158 e 159 v.º, pelo que, deste modo, se consideram provados.
O facto que veio a ser vertido no ponto 6.º corresponde à versão (pela positiva) da alegação que a ré (pela negativa) fez constar na sua contestação, de acordo com a qual, inexistia, no separador central, entre as duas faixas de rodagem da Av. ..., em ..., qualquer ponto específico que permitisse atravessar, a pé, da passadeira existente num lado da faixa de rodagem para a passadeira que, alinhada com aquela, se situa na faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário.
De facto, contrariando aquela alegação, a mera observação da foto que constitui fls. 159 v.º permite constatar a existência de um ponto específico para tal atravessamento e que se trata de um troço onde não existe qualquer vegetação. E, nem se argumente que, à data do sinistro, aquele ponto especifico não existia, pois que o mesmo também é visível na reportagem fotográfica que o agente investigador da esquadra de trânsito do Comando Distrital ..., da P.S.P., MM levou a cabo – vide, em particular, fotos nº 6 e 8, a fls. 144 v.º e fls. 145, respetivamente.
Se atentarmos nas aludidas fotos e no facto do auto de notícia, mormente, o croqui de fls. 11, verificamos que aí se assinala a existência de um poste de iluminação pública e que o mesmo se encontra localizado, precisamente, do lado de que provinha o peão (da esquerda para a direita, considerando o sentido de marcha da ré – sul/norte), pelo que, não podemos deixar de considerar como provada a factualidade vertida no ponto 7.º dos factos provados.
E será conjugando toda a prova produzida nos moldes que se deixaram expostos, com particular relevo no depoimento prestado por CC e menções que constam no auto de notícia que se considera provada a dinâmica do acidente, tal como alegada pela autora e que veio a ser vertida nos pontos 13.º a 15.º e 18.º a 24.º dos factos provados.
Melhor explicando.
Conforme já se deixou escrito, a testemunha CC referiu circular na faixa de rodagem no sentido norte/sul da Avenida ... e ter imobilizado a sua viatura, antes da passadeira aí existente (defronte do LIDL), para deixar passar o peão que por ela circulava, após o que, concluída aquela travessia e numa fração de segundos, ouviu um estrondo. Logo, em seguida, a testemunha disse ter efetuado inversão de marcha na rotunda, imobilizando a sua viatura em local onde lhe foi possível visualizar a ré a sair da viatura, que esta estava imobilizada ligeiramente à frente da passadeira aí existente e o peão que, ele próprio, instantes antes, havia deixado passar pela passadeira, agora caído no chão, mais à frente da viatura da ré.
O depoimento prestado pela referida testemunha revelou-se inteiramente credível, sendo, por isso, valorado, tanto que se revelou congruente com as indicações que constam no auto de notícia e medições efetuadas pelo agente autuante DD. De facto, também este assinalou que o veículo ficara imobilizado alguns metros a seguir à passadeira e, mais adiante, o local em que o corpo do peão permaneceu prostrado na via, donde se considera como provada a factualidade vertida nos pontos 18.º e 19.º dos factos provados.
Com base no depoimento da testemunha DD considera-se também provada a factualidade vertida no ponto 16.º dos factos provados. Todavia, em nosso entender, considerando, por um lado, a existência de iluminação pública e, por outro, o facto da vítima se encontrar a efetuar a travessia num local determinado para esse efeito sempre seria de desvalorizar o peso que a circunstância da mesma trajar roupa de cor escura poderia implicar na análise à conduta perpetrada pela ré.
No que concerne aos danos verificados na viatura segurada valorou-se ainda a reportagem fotográfica de fls. 122, designadamente, as fotos de fls. 125 v.º a 127, donde resulta que o embate no corpo do peão se deu com a parte frontal do veículo, sendo legítimo concluir que, o embate dá-se no momento em que o peão já se encontra a atravessar a passadeira aí existente.
A factualidade vertida nos pontos 22.º e 23.º dos factos provados teve em linha de conta o teor do depoimento prestado pela testemunha NN (médica que exerce funções de perita médico-legal) que asseverou a influência que o álcool exerce no organismo humano, afetando a capacidade de reação e de perceção das várias circunstâncias do meio que o rodeia. No entanto, como se dirá em sede própria, a prova desta factualidade é inócua, em face da desnecessidade da alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia em que o condutor da viatura segurada exerce a condução e a eclosão do acidente.»
Depois de ouvirmos integralmente os depoimentos de todas as pessoas que foram inquiridas na audiência de julgamento, ficámos plenamente convencidos que a Sr.ª Juíza a quo os apreciou corretamente, que foi uma Juíza ativa durante a produção dessa prova, colocando àquelas pertinentes e fundadas questões, tendo apreciado convenientemente toda essa prova e feito a sua conjugação (complementando-a) com a demais (prova documental) que já estava plasmada nos autos.
Assim, quanto ao ponto 6, ao invés do que defende a recorrente, existia à data do acidente (....02.2018) ponto específico para o atravessamento dos peões, o que se pode confirmar através das fotografias de fls. 159 vº, juntas na sessão da audiência de julgamento do dia 04.05.2023 onde foi determinado pela Sr.ª Juíza que fosse feita pesquisa de imagem, através da aplicação google maps, com referência às datas próximas da data do sinistro, o que também é visível nas fotografias tiradas pelo investigador da PSP ..., MM.
Ademais, como bem aduz a autora na resposta ao recurso, «[n]ão fazia qualquer sentido, a vítima desviar o seu percurso quando residia no nº ..., .... do Bairro ..., ..., facto provado 17, que fica localizado do [lado] direito no sentido em que seguia a vítima».
No que concerne à matéria de facto relativa à dinâmica do acidente constante dos pontos 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24, a mesma mostra-se corretamente julgada, estando devidamente suportada pelo depoimento claro e objetivo da testemunha CC, única testemunha presencial do acidente, que segundos depois de ter deixado passar a vítima na passadeira, ouviu uma ligeira travagem seguida de um embate.
Ora, o facto de ter havido uma ligeira travagem indicia que a ré/recorrente não atentou devidamente à infeliz vítima que atravessava a passadeira, e que não abrandou ao aproximar-se da passadeira que se encontrava devidamente sinalizada, não merecendo por isso qualquer censura o facto dado como provado no ponto 14.
A mesma testemunha esclareceu que o veículo conduzido pela recorrente, após o embate, ficou parado ligeiramente à frente da passadeira, o que coincide, aliás, com as medições feitas pela testemunha DD - Agente da PSP que elaborou o auto de participação de acidente -, que indica ter o veículo ... ficado imobilizado 3,90 metros à frente da passadeira e que a vítima foi projetada a 4,90 metros do veículo, o que suporta firmemente a factualidade dada como provada nos pontos 18 e 19.
Por outro lado, através das fotografias do veículo constantes do “Relatório de Averiguação” junto com a petição inicial (Doc. 4), vê-se que o veículo da autora colheu com a parte central a infeliz vítima[10], pelo que bem andou a Sr.ª Juíza em dar como provada a facticidade do ponto 15.
Provou-se, outrossim, que a recorrente conduzia o veículo seguro com uma TAS de 1,10g/l [ponto 21], o que não pode ter deixado de influenciar o seu comportamento, diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão, facto que, porém, foi desvalorizado na sentença penal.
Referiu ainda a testemunha DD, no depoimento que prestou na sessão de julgamento do dia 31.05.2023, que havia líquido na via onde ocorreu o embate, que este começava na passadeira, isto independente de se tratar de ser água de um suposto garrafão de água que a vítima transportaria ou do radiador do veículo atropelante. O que interessa é que o rastro de líquido começava na passadeira.
Por último, não faria qualquer sentido que tendo a infeliz vítima iniciado a travessia na passadeira de peões viesse a meio do percurso a utilizar o trilho de vegetação a que se alude na reportagem fotográfica da PSP ..., junta aos autos em 12.05.2023.
Quanto à alínea c) dos factos não provados, relativa à inexistência de arbustos e arvoredos altos e densos. Ora, além de se ter considerado provado que existia um local próprio para a passagem dos peões no separador central, pode ler-se da informação da Câmara Municipal ..., em resposta ao Tribunal no processo-crime e junta a estes autos em 12.05.2023 [ref. Citius ...26], que o local do acidente foi intervencionado com poda de roseiras e hibiscos em 17 de janeiro de 2018, isto é, menos de um mês antes do acidente, e que depois foi intervencionado apenas em 20 de junho de 2018.
Ademais, as quatro primeiras fotografias do “Relatório de Averiguação” a que se aludiu supra, são bem elucidativas de que os arbustos e arvoredo existente não era alto e denso, sendo que, atenta a data do referido relatório (04.04.2018), e dado que o local do acidente foi intervencionado com poda de roseiras e hibiscos em 17.01.2018, só pode concluir-se que na data do acidente (....02.2018), os arbustos seriam ainda de menor densidade do que o documentado em tais fotografias, o que não é de todo infirmado pela mencionada reportagem fotográfica da PSP, constituída por fotocópias a preto e branco.
Por último, comportando a Avenida ..., onde ocorreu o sinistro, duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Norte/Sul e outras duas faixas de rodagem com o sentido de marcha obrigatório de Sul/Norte [ponto 3 dos factos provados], se o veículo ... circulava pela faixa mais à direita, como devia, [art. 13º, nº 1, do Código da Estrada], não deixaria a ré de ter ainda maior visibilidade sobre a travessia que a infeliz vítima efetuava na passadira.
Não se vislumbra, pois, uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito, e se concluiu pela verificação dos pressupostos legais do direito de regresso da autora.
Escreveu-se com total acerto na sentença recorrida:
«No caso dos autos inexistem quaisquer dúvidas de que a ré deu causa ao atropelamento em causa, tendo-se apurado que, através da sua conduta, violou as normas do Código da Estrada respeitantes à circulação rodoviária, conduzindo de modo desatento, negligenciando os deveres que sobre si impendiam, não respeitando a existência de uma passadeira e não imobilizando a sua viatura no espaço livre e visível à sua frente, apresentando uma taxa de álcool superior à legalmente admitida. Com efeito, dispõe o artigo 103.º, do Código da Estrada: “1 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. 2 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. 3 - Ao mudar de direção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar. 4 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.” (realçado nosso)
Atenta a factualidade dada como provada considera-se que o sinistro foi imputável, em exclusivo, à condutora do veículo segurado na autora, a qual cometeu um facto ilícito e culposo, sendo-lhe exigível que circulasse atenta ao trânsito e adequasse a sua condução às condições da via, parando a sua viatura para que o peão pudesse concluir, em segurança, a travessia da passadeira que já havia iniciado. Por outro lado, não se provou que o peão contribuísse de alguma forma para o sinistro, donde a culpa da condutora do veículo segurado na autora é, como se referiu, exclusiva.
Resultando ainda da factualidade dada como provada que a ré, na qualidade de condutora do veículo causador do acidente acusou uma taxa de álcool superior à legalmente permitida, a presente ação não poderá deixar de ser julgada procedente, reconhecendo-se o direito de regresso da autora/seguradora relativamente às quantias reclamadas através da presente ação e, por conseguinte, condenando-se a ré no respetivo reembolso, contando-se os juros que sobre aquelas quantias se venceram, a partir da sua citação para os termos da presente ação, acrescidos dos juros que se vencerem até integral pagamento (artigo 805.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).»
Porque a questão do direito de regresso se encontra bem analisada no acórdão desta Relação de 14.07.2021[11], transcrevemos aqui o respetivo sumário:
«I. Em face do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 292/2007, de 21 de Agosto, exercendo a seguradora o direito de regresso, compete-lhe apenas alegar e provar que satisfez a indemnização, que o condutor deu culposamente causa ao acidente e que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
II. À luz do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, já não é exigível e necessário que a seguradora alegue e prove factos que integrem o nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente para que haja direito de regresso.
III. A alteração legislativa corporizada na art.º 27.º, nº1, alínea c) do DL 291/2007, substituindo expressão “agido sob influência do álcool” constante da al c) do n.º 1 do art.º 19.º do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida” teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia.
IV. Actualmente é irrelevante apurar a factualidade tendente a demonstrar a relação de causa e efeito entre a influência do álcool na condução e o acidente, se este ocorreu já na vigência do Dec.-Lei n.º 291/2007, nexo de causalidade esse que era determinante para a procedência do direito de regresso, na vigência do Dec.-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação do AUJ n.º 6/2002.
V. Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ n.º 6/2002 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente.»
Assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o art. 27º, nº 1, al. c), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, atribui à seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sendo inquestionável a verificação do pressuposto da responsabilidade, subjetivamente imputada à ré/recorrente, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, o que se verifica na espécie, e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Tendo sido este o entendimento da sentença recorrida, só resta confirmá-lo.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 11 de janeiro de 2024
Manuel Bargado
José António Moita
Ana Isabel Pessoa (votei vencida, conforme declaração de voto que junto).

Declaração de voto
Não obstante a profundidade e robustez dos argumentos que fundam a posição que fez vencimento, não perfilho a tese do Acórdão, por entender que ocorrem outros sólidos fundamentos para que se alterasse a matéria de facto dada como provada na primeira instância, que determinariam que se concedesse provimento ao recurso interposto, concluindo-se pela exclusão de responsabilidade da Ré na produção do acidente e, consequentemente, pela respetiva absolvição.
São as seguintes as razões em que se funda tal entendimento.
Como se refere na decisão, a absolvição da ora Ré no processo penal ali mencionado constitui, nos termos do disposto no artigo 624º do Código de Processo Civil, presunção ilidível da inexistência dos factos imputados à ali arguida, invocável em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infração – a decisão penal constitui uma presunção da inexistência de factos que eram imputados à arguida no processo-crime.
Dispõe tal preceito legal que:
“1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”.
Como várias vezes tem explicitado o Supremo Tribunal de Justiça , quando não fundada a absolvição em processo penal no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados - nomeadamente, os integrantes de uma infração estradal causal - fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido atuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que aquele atuou por forma culposa.
Por funcionamento da regra probatória assente na presunção prevista no artigo 624º do Código de Processo Civil, impendia sobre a Seguradora Autora, ora recorrida, o ónus de demonstrar que (ao contrário do que se considerou provado no processo penal) o infeliz peão não surgiu inopinadamente, saído do meio da vegetação, no escuro, para, atravessar a faixa de rodagem em que circulava a Ré, fazendo-o fora da passadeira de peões.
Impunha-se que a Seguradora Autora ilidisse a presunção, fazendo prova de circunstâncias que fundassem o juízo de culpa da Ré condutora na produção do acidente.
O ónus que impendia sobre a Seguradora Autora, a nosso ver, não se deveria considerar satisfeito, uma vez que não foi lograda base para assentar convicção segura sobre as circunstâncias em que o embate do veículo no peão ocorreu, diversa da que foi firmada no processo penal, devendo, por isso, valer plenamente o determinado no artigo 624º do CPC.
Como refere Lebre de Freitas (e outros), in "CPC Anotado", 2º Vol, p. 693, "a prova, no processo penal, de que o arguido actuou com a diligência devida onera o autor com a prova de que assim não foi e a actuação foi culposa".
Divergimos da decisão que fez vencimento, por entendermos que no caso se verifica falta de prova em contrário e, por isso, com base na regra probatória prevista no artigo 624º do CPC, a prova produzida impunha, ressalvado o muito e devido respeito pelo entendimento que fez vencimento, a emissão de um juízo probatório diverso daquele que foi plasmado na decisão recorrida.
Resulta, sem lugar a qualquer dúvida, que, para além da ora Ré, interveniente no sinistro, nenhuma das testemunhas inquiridas observou o embate do veículo no peão.
Mesmo a testemunha CC, condutor que circulava na via em questão, no sentido contrário, referiu não ter observado o acidente. Assim terá efetivamente acontecido, já que após dar passagem à infeliz vítima no atravessamento da via, na faixa de rodagem contrária à utilizada pela Ré, por onde a testemunha circulava ao volante do seu veículo, retomou a marcha, fixando o olhar na via à sua frente, apenas se apercebendo que algo sucedera na direção da sua traseira, por ter sido alertado pelo ruído do embate.
Confirmou a testemunha CC, porém, a existência de densa vegetação no separador central que dividia as faixas de rodagem no local do sinistro.
Os depoimentos das testemunhas DD e OO, agentes da PSP que estiveram no local permitem, a nosso ver, a confirmação das seguintes circunstâncias:
i. A existência no separador central, no local do sinistro e no dia em que o mesmo ocorreu, de vegetação densa e alta, que impedia ou dificultava a visibilidade do que ocorria na faixa de sentido contrário àquela em que circulava a ora Ré;
ii. Tal vegetação foi cortada no dia seguinte ao do acidente, antes da realização da reportagem fotográfica que, nesse dia seguinte, as testemunhas realizaram no local;
iii. A existência de marcas de um trilho na vegetação, marcado no separador central por efeito da passagem repetida dos peões, que documenta que era habitual fazer-se a passagem do separador central a pé por esse trilho, designadamente pelas pessoas que se deslocavam ao supermercado “Lidl” sito nas imediações do local, que fica a 0,90m da passadeira.
Estas circunstâncias tornam viável e plausível, a versão de que o peão poderá ter atravessado nesse local, após a passadeira, mais à frente atento o sentido de marcha da Ré.
Esse juízo é consentâneo com os vestígios existentes no local, designadamente com a posição em que ficaram o veículo e o peão, a metros da passadeira, como resulta do auto de ocorrência.
Sublinhamos que esse trilho é visível na reportagem fotográfica feita pela testemunha OO, documentação junta aos autos em 12.05.2023 (importada do processo crime).
Como resultou, na nossa perspetiva, da prova produzida, era escuro e o peão estava vestido de roupa escura. Embateu do lado frente esquerdo do veículo conduzido pela Ré, como demonstra a marca que ficou no para brisas do mesmo veículo.
Por tudo isso, e por entender que prova produzida impunha decisão diversa, julgaria ao menos parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto no que respeita ao ponto c) dos factos não provados e aos pontos 15, 23 e 24 dos factos provados.
A prova produzida nestes autos é, no nosso entender, consentânea com o que se demonstrou no processo crime, não tendo sido produzida prova do contrário.
Se o peão surgiu inopinadamente, a seguir à passadeira, provindo do meio da vegetação, no escuro (juízo probatório plenamente suportado pela prova produzida), não tendo a Autora/Seguradora feito prova do contrário (i. e., de circunstâncias diversas das que se provaram no processo penal e capazes de fundar um juízo de culpa da Ré condutora do veículo), as regras da prova impunham, em nosso entender, que se decidisse em sentido oposto ao do Acórdão.
Por todas estas razões, sempre salvaguardado o respeito pelo entendimento oposto, divergimos da decisão que fez vencimento.
Ana Pessoa
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Sucedâneo do art. 674º-A do CPC pré-vigente.
[2] Sucedâneo do art. 674º-B do CPC pré-vigente.
[3] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 5ª edição, Coimbra, 1982, p. 239. Na verdade, a ação penal e a ação civil são reconhecida e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objetiva, pelo simples risco (cfr. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp. 186, 195 e 196) – cfr. citação do acórdão do STJ de 13.11.2003, proc. 03B2998, disponível, como os demais adiantes citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do STJ de 13.11.2003, citado na nota anterior. No mesmo sentido, acórdão do STJ de 25.03.2004, proc. 03B4193.
[5] Citado acórdão do STJ de 13.11.2003.
[6] Proc. 7318/17.1T8CBR.C1.S1.
[7] A matéria de facto não provada é a seguinte:
24- BB estivesse a efectuar a travessia da faixa de rodagem pela passagem de peões assinalada no solo quanto foi embatido.
25- Que a arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente, sem adoptar as precauções exigíveis a qualquer pessoa que se encontrasse nas mesmas circunstâncias, designadamente, não conduzir depois de ter consumido bebidas alcoólicas, bem como não reduzir a velocidade que imprimia ao veículo atenta a aproximação da passadeira para peões, e não parar ao verificar que a mesma estava a ser utilizada pela vítima, bem sabendo que a sua conduta punha em perigo a integridade física e a vida dos demais utentes da via, mas acreditando, levianamente, que tal não se iria concretizar em ferimentos ou na morte de quem
quer que fosse.
26- Que sabia, perfeitamente, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
[8] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 21.10.2010, proc. 95/04.8TBCDR.P1.S1.
[9] A mesma falta de razão tem a recorrente quando sustenta a inconstitucionalidade do art. 624º do CPC, interpretado no sentido acabado de expor, por dessa forma se construírem «duas versões distintas e opostas sobre a mesma realidade ou “acontecimento histórico”, igualmente estabilizadas no ordenamento jurídico, por violação do disposto nos artigos 2º e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa». Ora, a interpretação do art. 624º do CPC no sentido exposto, não só tem em conta a diversidade de ações e os direitos de terceiros, como não deixa de estabelecer uma presunção em favor do réu na ação cível, que apenas pode ser ilidida mediante a prova do contrário, o que não consubstancia qualquer violação dos preceitos constitucionais invocados.
[10] Sendo irrelevante que o embate se tenha dado um pouco mais da frente do lado esquerdo, pois não pode haver a menor dúvida de que se trata de um embate com a parte central do ...
[11] Proc. 24/18.1T8ODM.E1.