Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
31274/18.0YIPRT.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COMERCIANTE
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo a mercadoria sido entregue na exploração do Recorrido e sido afecta à actividade nesta desenvolvida, recai sobre ele, na qualidade de titular da exploração onde eram entregues os produtos, a obrigação de pagar o respectivo preço, não podendo escudar-se num qualquer acordo com terceiros para figurar, apenas no papel, como titular dessa exploração.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerente: (…) Portugal, Lda.
Recorrido / Requerido: (…)

Os presentes autos consistem em ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias através da qual a Requerente peticionou a condenação do Requerido a pagar-lhe a quantia de € 6.485,39 a título de capital, acrescida de € 320,89 a título de juros de mora vencidos, bem como dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, e ainda na taxa de justiça paga no valor de € 102,00. Invoca, para tanto, um contrato de fornecimento de alimentos para animais, no âmbito do qual vendeu e entregou ao Requerido, desde 19/05/2017 até 28/06/2017, para o exercício da atividade deste, os bens enunciados nas faturas descritas no requerimento de injunção.
O Requerido deduziu oposição. Impugnou os factos contra si invocados, que não conhece a Autora, não estabeleceu com a mesma qualquer relação comercial, designadamente não encomendou nem comprou os produtores referidos nas faturas.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente.
Inconformada, a Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida a fim de que o Tribunal a quo proceda à elaboração de outra decisão em que, por provada a existência de contrato, condene o Requerido a pagar integralmente o preço. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«a) O TRIBUNAL A QUO ANDOU MAL AO VALORAR O DEPOIMENTO DA PARTE (…), NA PARTE EM QUE CONSIDEROU VEROSÍMIL QUE O USO DO SEU NOME HAJA SIDO FEITO “DE FORMA ABUSIVA” POR TERCEIROS;
b) NÃO HOUVE QUALQUER “ABUSO” NO USO DO NOME DO RÉU;
c) O USO DO NOME DO RÉU FOI POR ESTE CONSENTIDO, FOI CONSCIENTE, VOLUNTÁRIO, E ESTAVA O RÉU CIENTE DAS CONSEQUÊNCIAS DESSE USO;
d) AO ACEITAR EM BLOCO A VEROSIMILHANÇA DA “EXPLICAÇÃO” DO RÉU, O TRIBUNAL A QUO ERROU NA APRECIAÇÃO DA PROVA, PORQUE ACEITA DOIS ELEMENTOS INCOMPATÍVEIS DESSA EXPLICAÇÃO: O DE QUE O RÉU ACEDEU A SER O TITULAR DA EXPLORAÇÃO, MAS QUE NÃO ACEDEU A QUE FIGURASSE O SEU NOME NAS ENCOMENDAS DOS AUTOS;
e) NÃO PODE O RÉU SIMULTANEAMENTE CONFESSAR TER ACEITE SER O TITULAR DA EXPLORAÇÃO E PREVALECER-SE DE ATOS QUE REPUTA DE ABUSIVOS, MAS QUE NÃO DECORREM SENÃO DESSA TITULARIDADE;
f) DEVIA O TRIBUNAL A QUO TER EXTRAÍDO DA CONFISSÃO DO RÉU, QUE ESTE, AO CONFESSAR O PRIMEIRO ELEMENTO DA “EXPLICAÇÃO”, DECLARARA VERDADEIRAMENTE TAMBÉM – E POR INERÊNCIA – A VONTADE DE HOMOLOGAR A SUA CONDIÇÃO DE SUJEITO ATIVO EM RELAÇÕES COMERCIAIS, RECETOR DE MERCADORIAS, JUNTO DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA, DA DIREÇÃO GERAL DE ALIMENTAÇÃO E VETERINÁRIA, E TAMBÉM – OBVIAMENTE – DA AUTORA.
g) O TRIBUNAL, ALIÁS, EM AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO, COM RECURSO À NOÇÃO DE “HÁ CONSEQUÊNCIAS”, REVELOU QUE O SEU ITER COGNITIVO NO DECURSO DA PRODUÇÃO DE PROVA APONTAVA JÁ NO SENTIDO DE QUE AS DECLARAÇÕES NEGOCIAIS QUE O RÉU CONFESSAVA ERAM INCINDÍVEIS DAS DECLARAÇÕES NEGOCIAIS DE QUE O RÉU SE PRETENDIA ALHEAR, E QUE APELIDAVA DE ABUSIVAS.
h) O TRIBUNAL A QUO ERROU NA APRECIAÇÃO DA PROVA PORQUE, A FINAL, EM DECISÃO SURPRESA, SUFRAGOU A TESE DO RÉU, E CONSIGNOU QUE OS ATOS DESTE NÃO TÊM, AFINAL, QUAISQUER CONSEQUÊNCIAS.
i) O RÉU NÃO SABIA APENAS DA EXISTÊNCIA DE UMA ATIVIDADE POR SI TITULADA, MAS TAMBÉM DA EXISTÊNCIA DE FATURAÇÃO;
j) NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE A DECLARAÇÃO DE INÍCIO DE ATIVIDADE E O RESPETIVO ENCERRAMENTO, HOUVE FATURAÇÃO PELA EXPLORAÇÃO DE QUE ERA TITULAR, QUE NÃO SÓ ERA DO CONHECIMENTO DO RÉU, COMO ESTE ACEITARA SER O RESPETIVO SUJEITO JURÍDICO;
k) O RÉU REVELOU TER CONHECIMENTO DE QUE, NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE FINAIS DE 2016 E O ANO DE 2018, A EXPLORAÇÃO LABORAVA COM NEGÓCIOS QUE TINHAM A MONTANTE UM FORNECEDOR E A JUSANTE UM CLIENTE, E QUE ESSES NEGÓCIOS ERAM FEITOS EM SEU NOME.
l) A PREOCUPAÇÃO REVELADA PELO RÉU EM QUE O SEU NOME NÃO FOSSE “MANCHADO” É TÍPICA DE QUEM SABE SER O SUJEITO DEVEDOR EM NEGÓCIOS,
m) PELO CONTRÁRIO, ESSA PREOCUPAÇÃO NÃO É TÍPICA DE QUEM DESCONHECE OBJETIVA E SUBJETIVAMENTE A POSIÇÃO OCUPADA NO NEGÓCIO JURÍDICO, OU CONSIDERA QUE É OUTRÉM O SUJEITO DESSES NEGÓCIOS.
n) O USO DO NOME DO RÉU NÃO FOI ABUSIVO, PORQUE ESTE CONHECIA O USO E CONFORMOU-SE COM ESSE USO.
o) A TESTEMUNHA (…) TAMBÉM REVELOU QUE O MOTIVO DA SURPRESA AQUANDO DA RECEÇÃO DE CARTAS NÃO FORA PROPRIAMENTE A EXISTÊNCIA DE UMA ATIVIDADE MERCANTIL, MAS O INCUMPRIMENTO DO DEVER DE APRESENTAR DECLARAÇÕES DE IVA PONTUALMENTE.
p) A TESTEMUNHA, AO AFIRMAR QUE NÃO SE ENTREGAVAM DECLARAÇÕES “COMO SE NÃO HOUVESSE NEGÓCIO”, ESTÁ A AFIRMAR SABER QUE HAVIA.
q) PELO QUE HAVIA, TAMBÉM NESTA VERTENTE, CONSCIÊNCIA PLENA DO RÉU DE QUE HAVIA NEGÓCIOS, QUE ALIÁS É CONFIRMADA PELA AFIRMAÇÃO “SEI, PORQUE O FÁBIO DEPOIS DIZIA QUE TINHA;
r) O RÉU, ADEMAIS, MANIFESTAMENTE TINHA CONHECIMENTO DO GIRO DO NEGÓCIO, NÃO DESCONHECENDO QUE OS COELHOS SE DESTINAVAM A UM MATADOR ESPANHOL.
s) OS DOCUMENTOS DE FLS. 29, 30, 50 E 51 COMPROVAM QUE O RÉU ASSINOU A RECEÇÃO DE 3 (TRÊS) TONELADAS DE MERCADORIA EM 26/11/2016;
t) O RÉU RECONHECEU SEREM ESSAS ASSINATURAS DA SUA LAVRA E ESSA CONFISSÃO É ESSENCIAL, JÁ QUE DEMONSTRA QUE O RÉU DEU À AUTORA, ORA APELANTE, EM MOMENTO CONTEMPORÂNEO DO INÍCIO DA RELAÇÃO MERCANTIL, UMA EXPRESSA INDICAÇÃO DE QUE NESSA FASE DE CONTRATUALIZAÇÃO, A MERCADORIA QUE ERA DESTINADA ÀQUELA EXPLORAÇÃO TITULADA POR (…), ERA ACEITE PELO MESMO (…).
u) FACTO QUE LEGITIMOU TODAS AS ENTREGAS ULTERIORES FEITAS PELA A., ORA APELANTE, AO RÉU, ORA APELADO, E QUE ESTE NUNCA OBJETOU OU CONTRADITOU.
v) MESMO AQUELAS ENTREGAS DE MERCADORIA QUE VIRIAM DEPOIS A SER ACEITES POR TERCEIROS, QUE A A. ASSUMIU LEGITIMAMENTE SEREM FUNCIONÁRIOS DO RÉU.
w) A CORRETA PONDERAÇÃO DESTES ELEMENTOS DE PROVA DOCUMENTAL TERIA DE OBVIAR À ACEITAÇÃO DA “EXPLICAÇÃO” DO RÉU CONSIDERADA VEROSÍMIL PELO TRIBUNAL, DE QUE DESCONHECIA OS NEGÓCIOS, E QUE FORA SIMPLESMENTE VÍTIMA DE TERCEIROS, QUE USARAM O SEU NOME DE FORMA ABUSIVA.
x) A DOCUMENTAÇÃO DOS AUTOS DEMONSTRA A ENTREGA GLOBAL DE APROXIMADAMENTE 52 (CINQUENTA E DUAS) TONELADAS DE MERCADORIA DA A. NA EXPLORAÇÃO TITULADA PELO RÉU, NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE NOVEMBRO DE 2016 E ABRIL DE 2017, TENDO O RÉU ASSINADO PESSOALMENTE AS GUIAS DE REMESSA REFERENTES ÀS PRIMEIRAS 3 (TRÊS) TONELADAS.
y) AO CONFESSAR TER APOSTO A SUA ASSINATURA NAS GUIAS DE REMESSA DAS PRIMEIRAS 3 (TRÊS) TONELADAS FORNECIDAS, EM NOVEMBRO DE 2016, ESSA CONFISSÃO IMPORTOU À EFICÁCIA DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL À A., EM TERMOS QUE SE FOI O PRÓPRIO RÉU QUEM TORNOU IRREFUTÁVEL QUE A RELAÇÃO COMERCIAL POR SI TITULADA ERA LEGITIMA, DE QUE O PRÓPRIO RÉU QUEM ACEITAVA SER O LEGÍTIMO DESTINATÁRIO DAS MERCADORIAS, E POR ISSO DEVEDOR DO SEU PREÇO. ACRESCE QUE O DEVEDOR DA MERCADORIA NUNCA SOLICITOU A SUA DEVOLUÇÃO.
z) A RELAÇÃO COMERCIAL DO R. COM A A. CESSOU NO MOMENTO (FIM DE MAIO DE 2017) EM QUE O R. ABANDONOU O LOCAL DA EXPLORAÇÃO, BRAGANÇA, E FIXOU RESIDÊNCIA NO ALGARVE, EM MONTE GORDO, PELO QUE TAMBÉM AQUI O TRIBUNAL NÃO SOUBE APRECIAR CORRETAMENTE A PROVA, E A COINCIDÊNCIA CRONOLÓGICA DO ABANDONO DA EXPLORAÇÃO COM O TERMO DA RELAÇÃO COMERCIAL, E DANDO POR ASSENTE QUE O RÉU ERA ALHEIO A ESTA RELAÇÃO MERCANTIL, QUE MANIFESTAMENTE NÃO ERA O CASO.
aa) POR TODOS ESTES MOTIVOS ACIMA DESCRITOS SE CONCLUI QUE HOUVE ERRO DE JULGAMENTO DA PROVA, E QUE A PROVA PRODUZIDA NÃO FOI DEVIDAMENTE VALORADA, IMPONDO-SE DECISÃO DIVERSA SOBRE OS PONTOS DA MATÉRIA DE FACTO.
bb) TIVESSE O TRIBUNAL A QUO JULGADO CORRETAMENTE A PROVA, TERIA DADO COMO PROVADO, COMO SE IMPUNHA, QUE O USO DO NOME DO RÉU NÃO FORA ABUSIVO, QUE ESTE CONSENTIRA NESSE USO E ESTAVA CIENTE DAS CONSEQUÊNCIAS, QUE APENAS NÃO QUIS QUE O SEU NOME FOSSE “MANCHADO”, E QUE POR ISSO ERA CONHECEDOR DA POSIÇÃO DE DEVEDOR EM QUE SE INVESTIA, QUE O RÉU DERA UMA EXPRESSA INDICAÇÃO À A. DE QUE, NA FASE DE CONTRATUALIZAÇÃO DO PRIMEIRO FORNECIMENTO, A MERCADORIA QUE ERA DESTINADA ÀQUELA EXPLORAÇÃO TITULADA POR (…), ERA ACEITE PELO MESMO (…), FACTO QUE LEGITIMOU TODAS AS ENTREGAS ULTERIORES FEITAS PELA A., ORA APELANTE, AO RÉU, ORA APELADO, E QUE ESTE NUNCA OBJETOU OU CONTRADITOU, E QUE AS RELAÇÕES COMERCIAIS TERMINARAM QUANDO O RÉU ABANDONOU BRAGANÇA.
cc) EM FUNÇÃO DO EXPOSTO, IMPUNHA-SE EVIDENTEMENTE QUE O TRIBUNAL A QUO DESSE COMO PROVADO “QUE A A., NO EXERCÍCIO DA SUA ACTIVIDADE COMERCIAL, FORNECEU AO REQUERIDO, E TAMBÉM PARA O EXERCÍCIO DA SUA ACTIVIDADE, PRODUTOS (ALIMENTOS PARA ANIMAIS) NA QUANTIDADE, QUALIDADE E PREÇO QUE CONSTAM DAS FACTURAS [DOS AUTOS.]”
dd) E QUE: “O REQUERIDO RECEBEU A MERCADORIA SEM QUALQUER RESERVA QUANTO À SUA QUANTIDADE, QUALIDADE E PREÇOS, TENDO-A EXAMINADO E CONFERIDO POSTERIORMENTE SEM QUE TAL TENHA MOTIVADO QUALQUER RESERVA OU RECLAMAÇÃO;”
ee) O TRIBUNAL A QUO VIOLOU O DISPOSTO NO ART.º 244.º, N.º 1 E N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL QUANDO, APESAR DE ACEITAR A VERSÃO DO RÉU NO SENTIDO DE QUE AS SUAS DECLARAÇÕES ERAM CONTRÁRIAS À SUA VONTADE REAL, PORQUE NÃO ERA O EFETIVO TITULAR DA EXPLORAÇÃO, CONFORME DECLARAVA SER, AINDA ASSIM NÃO ESTEVE ATENTO AO COMANDO DO N.º 2 DA NORMA, QUE MANDA SALVAR A VALIDADE DA DECLARAÇÃO FEITA COM RESERVA MENTAL.
ff) SE A DECLARAÇÃO FEITA COM RESERVA MENTAL NÃO SE ENCONTRA PREJUDICADA, PRODUZ OS SEUS EFEITOS NORMAIS, DEVENDO O RÉU SER CONDENADO NO PAGAMENTO DO PREÇO DAS MERCADORIAS.
SE ASSIM NÃO SE ENTENDER,
gg) A DECLARAÇÃO NEGOCIAL É TÁCITA QUANDO SE DEDUZ DE FACTOS QUE, COM TODA A PROBABILIDADE A REVELAM, CONFORME DISPÕE O ART.º DO CÓDIGO CIVIL, CUJA APLICAÇÃO SE IMPUNHA AO TRIBUNAL A QUO, TAMBÉM ERROU.
hh) ORA, TODO O ACERVO DE PROVA PRODUZIDA EM JUÍZO, TANTO A PROVA POR CONFISSÃO (V.G. NAS PASSAGENS CITADAS EM QUE O RÉU, ORA APELADO, REVELA TER ASSENTIDO NA TITULAÇÃO DA EXPLORAÇÃO, COMO TAMBÉM NAS PASSAGENS EM QUE REVELA TER DECLARADO ABERTURA DE ATIVIDADE NA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E NA DIREÇÃO GERAL DE ALIMENTAÇÃO E VETERINÁRIA) COMO A JÁ CITADA PROVA DOCUMENTAL (V.G. NAS GUIAS DE REMESSA ASSINADAS PELO RÉU, ACIMA CITADAS) REVELA, NO SEU CONJUNTO, QUE O RÉU PRODUZIU DECLARAÇÕES NEGOCIAIS VÁRIAS, COERENTES TODAS ELAS COM A POSIÇÃO JURÍDICA DE DEVEDOR DO PREÇO DE MERCADORIAS FORNECIDAS PELA A., MAS MESMO QUE ASSIM NÃO FOSSE, TODO ESSE ACERVO DE PROVA DEMONSTRA A EXISTÊNCIA DE FACTOS QUE, COM TODA A PROBABILIDADE, REVELAM O SENTIDO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL.
ii) TANTO MAIS QUE A A., COMO A PROVA REVELOU, NÃO CONHECIA QUALQUER OUTRA VONTADE DO DECLARANTE – ORA APELADO – QUE NÃO FOSSE A DE COMPORTAR-SE COMO TITULAR DA EXPLORAÇÃO E RECEBER MERCADORIA, CUJO PREÇO A A. ALIÁS SEMPRE RECEBEU, COMPORTAMENTO QUE O R. SEMPRE MANTEVE ATÉ À PRESENTE DEMANDA, QUANDO SE FURTOU AO PAGAMENTO DAS DUAS FATURAS EM CRISE NOS AUTOS!
jj) NÃO PODENDO, SALVO O DEVIDO RESPEITO, O TRIBUNAL A QUO, NA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS, VALORAR – COMO APARENTEMENTE FEZ – A ALEGAÇÃO DO RÉU DE QUE “DESCONHECIA O GIRO COMERCIAL DO NEGÓCIO”, OU DE QUE NÃO (SIC) “TEVE NOÇÃO” DAS SUAS DECLARAÇÕES!
kk) COM EFEITO, A DOUTA SENTENÇA VIOLOU, POIS, OS ARTS.º 217.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL, CONCLUINDO – COMO NÃO PODIA CONCLUIR – PELA INEXISTÊNCIA DE UM CONTRATO DE FORNECIMENTO, QUANDO O SENTIDO DAS DECLARAÇÕES NEGOCIAIS DO RÉU ERA CLARAMENTE O DE CONFIRMAR ESSE CONTRATO E CONFORMAR-SE COM OS TERMOS DO MESMO!
ll) POR OUTRO LADO, EM SEDE DE INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO, A NORMA ÍNSITA NO ART.º 236.º DO CÓDIGO CIVIL DISPÕE QUE A DECLARAÇÃO NEGOCIAL VALE COM O SENTIDO QUE UM DECLARATÁRIO NORMAL, COLOCADO NA POSIÇÃO DO REAL DECLARATÁRIO, POSSA DEDUZIR DO COMPORTAMENTO DO DECLARANTE, SALVO SE ESTE NÃO PUDER RAZOAVELMENTE CONTAR COM ELE. ORA, TAMBÉM AQUI O TRIBUNAL A QUO, SALVO O DEVIDO RESPEITO, VIOLOU A NORMA JURÍDICA QUE DEVIA NORTEAR A SUA DECISÃO.
mm) A A., COLOCADA NA POSIÇÃO DE REAL DECLARATÁRIA DAS DECLARAÇÕES DO RÉU, ORA APELADO, NÃO INTERPRETOU ESSAS SUAS DECLARAÇÕES (DECLARAÇÃO DE INÍCIO DE ATIVIDADE, LICENCIAMENTO NA DIREÇÃO DE ALIMENTAÇÃO E VETERINÁRIA, E ACEITAÇÃO DE MERCADORIA REMETIDA PELA A. A 25/11/2016), NUM SENTIDO DIVERSO DAQUELE QUE UM OUTRO DECLARATÁRIO NORMAL PUDESSE DEDUZIR DO COMPORTAMENTO DO DECLARANTE!!
nn) PELO CONTRÁRIO, O COMPORTAMENTO DO DECLARANTE, ORA APELADO, FOI ATÉ CONFIRMADOR DO SENTIDO COM QUE A A. INTERPRETOU AS SUAS DECLARAÇÕES, E MANTEVE A REGULARIDADE DOS FORNECIMENTOS!
oo) JÁ QUE O RÉU SE LICENCIOU PARA A ATIVIDADE, ACEITOU COM A SUA ASSINATURA A MERCADORIA, DELA BENEFICIOU, NÃO A DEVOLVEU, E PAGOU EM OCASIÕES O SEU PREÇO, EM MOMENTO ALGUM CONTRARIANDO ESTE COMPORTAMENTO!
pp) POR ESSE MOTIVO, O SENTIDO COM QUE O TRIBUNAL A QUO DEVIA TER INTERPRETADO A NORMA EM CRISE, NÃO PODIA TER SIDO OUTRO QUE NÃO O DE CONSIDERAR QUE AS DECLARAÇÕES DO RÉU PRODUZIRAM EFEITOS RELEVANTES PARA A CONFORMAÇÃO DE UM CONTRATO DE FORNECIMENTO, SENDO O SINALAGMA DESSE CONTRATO DEVIDO.»

Em sede de contra-alegações, o Recorrido pugna pela manutenção da decisão proferida em 1.ª Instância. Invoca que a Recorrente não logrou fazer prova de lhe ter feito os fornecimentos, tendo antes resultado assente que não conhece a A., não estabeleceu com ela qualquer relação comercial, designadamente não encomendou nem comprou os produtos referidos nas faturas identificadas no requerimento injuntivo.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- do crédito da Recorrente contra o Recorrido.

III – Fundamentos

A – Os Factos
Em 1.ª Instância, considerou-se inexistirem factos provados com relevo para a decisão da causa.
Consideraram-se não provados os seguintes factos:
1. A Autora, no exercício da sua atividade comercial, forneceu ao Requerido, a pedido expresso deste e também para o exercício da sua atividade, produtos (alimentos para animais) na quantidade, qualidade e preço que constam das seguintes faturas:
- fatura n.º …/2017 emitida a 19/05/2017 e vencida em 18/06/2017, no valor de € 2.855,47;
- fatura n.º …/2017 emitida a 29/05/2017 e vencida em 28/06/2017, no valor de € 3.629,92;
2. O Requerido recebeu a mercadoria referida em 1), sem qualquer reserva quanto à sua quantidade, qualidade e preços, tendo-a examinado e conferido posteriormente sem que tal tenha motivado qualquer reserva ou reclamação;
3. O requerido foi interpelado ele próprio e por intermédio dos seus mandatários para o pagamento de tais faturas.

B – O Direito
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Importa salientar que a reapreciação do julgamento realizado em 1.ª Instância, no que respeita à matéria de facto, visa apurar se os factos concretos submetidos à instrução, factos esses objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso, foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. arts. 640.º, n.º 1, als. a) e b) e 662.º, n.º 1, do CPC.
A decisão proferida, aqui em reapreciação, considerou não provado que os fornecimentos tivessem sido efetuados ao Recorrido. Levando em linha de conta a prova documental junta aos autos (as faturas, guias de remessa titulando fornecimentos continuados no tempo, algumas delas assinadas pelo Recorrido), o depoimento testemunhal da diretora financeira da Recorrente e o do médico veterinário que exerceu funções para a Recorrente, a 1.ª Instância entendeu que o depoimento prestado pelo Recorrido inviabilizou a pretensão probatória da Recorrente.
Tal depoimento, nas palavras exaradas na sentença, consistiu no seguinte:
«(…) o seu pai, (…) pediu-lhe, para usar o seu nome no exercício de uma atividade comercial ligada à criação de animais (coelhos), argumentando ter problemas com dívidas, o que acedeu por ser seu filho e por estar na sua dependência económica uma vez que, à data dos factos, era estudante no Ensino Superior em (…).
Para esse efeito, inscreveu-se no Serviço de Finanças e assinou documentos com vista ao licenciamento da atividade de criação de coelhos junto da Direção Geral de Veterinária. Declarou que conhecia essa exploração de coelhos, chegando a tratar dos coelhos, limpando, por exemplo, os respetivos ninhos, e que assinou os documentos juntos aos autos a fls. 29, 30, 50, 51, admitindo que eram suas as assinaturas aí apostas, desconhecendo, todavia, e apesar disso, o giro comercial dessa cunicultura, designadamente, as encomendas feitas, as entregas de produtos, os preços acordados, os ganhos obtidos, os clientes e fornecedores (apenas sabia existir um cliente/fornecedor espanhol), sendo tudo tratado e orientado pelo seu pai, (…), numa parceria com a companheira deste último, (…), e o irmão de (…), (…), cujos termos desconhece.
Em sustento desta tese, verifica-se que, efetivamente, constam dos autos documentos contabilísticos respeitantes a encomendas/fornecimento/entrega de produtos alimentares para animais cujas assinaturas foram reconhecidas pelo Réu como sendo a do seu pai, … (a fls. 15 v.º ,16, 31, 33, 34, 39, 40, 41, 42, 43 e 44) e de um indivíduo de seu nome … (a fls. 14 v.º e 15), identificado pelo Réu como sendo irmão da companheira do pai.
Diz o Réu que só percebeu da existência de dívidas oriundas dessa atividade quando começou a receber notificações que lhe eram dirigidas pelo Serviços de Finanças com vista ao pagamento de multas por falta de apresentação de documentação, o que foi confirmado pela testemunha (…), sua mãe, porquanto tais notificações eram rececionadas na sua morada.»
Efetivamente, no decurso do depoimento prestado, o Recorrido insistentemente referiu que o seu nome foi abusivamente utilizado, que faturavam em seu nome, que trabalhavam em seu nome, tinha uma atividade em seu nome de forma abusiva. Porém, afirmou também ter acedido ao pedido de seu pai, autorizando-o a explorar aquela atividade em seu nome, regularizando junto dos serviços das finanças essa sua anuência. Declarou saber qual era a concreta atividade que estava a ser exercida em seu nome, nela tendo colaborado ocasionalmente, sabendo também que era em seu nome, na qualidade de titular da exploração, que eram feitas as encomendas da alimentação dos animais. Logo, a utilização do seu nome nos moldes assinalados não assume, perante si, natureza abusiva: o Recorrido consentiu que, em seu nome, fosse desenvolvida a referida atividade, assumindo-a como sua; tendo o Recorrido anuído em apresentar-se como dono e titular da mencionada exploração e, bem assim, que fosse o seu pai a praticar todos os atos necessários à prossecução dessa atividade, resulta afirmado o seu assentimento ao desenvolvimento da mesma em seu nome.
Por outro lado, a testemunha que prestou serviços de medicina veterinária à Recorrente, prestando serviços de natureza técnica na exploração sita em (…) para fornecimento de alimento composto para animais, referiu que nunca encontrou o Recorrido na exploração, sendo que (…) se apresentava como seu pai.
Compulsada toda a prova produzida, resulta afirmado terem ocorrido, pelo menos desde 2016, fornecimentos continuados de mercadoria destinada a alimentação dos coelhos, fornecimentos esses prestados pela Recorrente à exploração do Recorrido. Entre eles, constam aqueles que são mencionados nas faturas cujo pagamento vem reclamado.
Termos em que cumpre dar como provada a seguinte factualidade (que, em consequência, resulta excluída do rol dos factos provados):
1. A Autora, no exercício da sua atividade comercial, forneceu à exploração do Requerido, para o exercício dessa atividade, produtos (alimentos para animais) na quantidade, qualidade e preço que constam das seguintes faturas:
- fatura n.º …/2017 emitida a 19/05/2017 e vencida em 18/06/2017, no valor de € 2.855,47;
- fatura n.º …/2017 emitida a 29/05/2017 e vencida em 28/06/2017, no valor de € 3.629,92.
2. Mercadoria que foi recebida sem qualquer reserva quanto à sua quantidade, qualidade e preços.

Do crédito da Recorrente contra o Recorrido
Temos assente que a Recorrente, no âmbito da sua atividade comercial, forneceu à exploração do Recorrido alimentos para animais, conforme titulado nas faturas indicadas nos autos. Mercadoria que se destinava à atividade desenvolvida nessa exploração, que para tanto foi recebida.
Nos termos do disposto no art. 874.º do CC, compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. Está em causa um contrato oneroso, bilateral (arts. 428.º e ss), com prestações recíprocas (art. 424.º do CC) e dotado de eficácia real ou translativa.[1]
Tal contrato tem como efeitos essenciais:
a) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) a obrigação de entregar a coisa e
c) a obrigação de pagar o preço (art. 879.º do CC).
Tendo a mercadoria sido entregue na exploração do Recorrido e sido afeta à atividade nesta desenvolvida, recai sobre o Recorrido a obrigação de pagar o respetivo preço. Na verdade, na qualidade de titular da exploração onde eram entregues os produtos (alimentos para os animais), o Recorrido é responsável pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos atos praticados por aqueles que, com o seu consentimento, atuam no desenvolvimento dessa atividade – cfr. art. 800.º do CC.
Cabe-lhe, assim, proceder ao pagamento do preço dos produtos versados nas faturas, acrescido dos juros de mora a contar da data de vencimento de cada uma das faturas.

Termos em que se conclui alcançar o presente recurso integral provimento.

As custas recaem sobre o Recorrido – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, condenando-se o Requerido a pagar à Requerente a quantia de € 6.485,39 (seis mil, quatrocentos e oitenta e cinco euros e trinta e nove cêntimos) a título de capital, acrescida de € 320,89 (trezentos e vinte euros e oitenta e nove cêntimos) a título de juros de mora vencidos, bem como dos juros de mora entretanto vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento
Custas pelo Recorrido.
Évora, 04 de junho de 2020
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

__________________________________________________
[1] CC Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. II, 3.ª edição, p. 167.