Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
382/18.8GESLV.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Não deve ser rejeitada a acusação que, na sua globalidade, consente a perspectiva da adequação da ameaça e de que o arguido a não desprezou.

II - A questão da consciência do carácter intimidatório da postura do arguido perante a ofendida tem de ser vista por referência ao acontecimento da vida ali narrado, não prescindindo da proporcionalidade que lhe é inerente, mormente, a compreensão que o mesmo permita, em razão das regras de normalidade.

III – Ao alegar-se que o arguido atuou livre e agiu consciente, reportado à vertente objetiva que se desenhou, está-se a dizer que teve consciência do carácter intimidatório da sua postura perante a ofendida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido MM, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, do Código Penal (CP) e, remetidos para julgamento, proferiu-se despacho, no Juízo de Competência Genérica de Silves do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que, ao abrigo do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), por referência ao art. 1.º, alínea a), ambos do Código de Processo Penal (CPP), rejeitou a acusação e determinou o arquivamento.

Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:


Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto despacho pelo qual foi decidido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Publico por esta se mostrar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto pelo art. 311º, nº2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P.;


Ora, “manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais”. (Ac. da Relação de Lisboa de 16.05.2006, disponível in www.dgsi.pt);


O M.mo Juiz recorrido considerou a acusação manifestamente infundada, por dela não constarem factos que preencham o elemento subjectivo do crime;


Discorda-se desse douto despacho porque, conforme resulta dos pontos 5º, 6º e 7º da acusação, dela constam os seguintes factos:

a) O arguido quis intimidar a ofendida, o que conseguiu, tendo esta ficado coarctada na sua liberdade de acção;

b) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;

c) Bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei;


Não extrair estes factos da acusação é uma conclusão absurda, abusiva, não correspondente com a realidade dos factos, fazendo-se, por essa via, tábua rasa do que ali vem descrito;


A acusação não só não é completamente desprovida de factos, de forma clara e evidente, como também se verifica que da mesma constam factos que preenchem, de forma suficiente e bastante, o elemento subjectivo;


Destes factos, que constam da acusação, resulta que o arguido representou os factos, e resolveu praticá-los, não restando dúvidas que se encontram alegadas na acusação a vontade e a intenção do arguido de cometer o crime que lhe vem imputado;


Por último, temos para nós que cabe ao juiz de julgamento apurar a verdade material dos factos, e não cingir-se a uma visão formal do objecto da acusação;


O que o Juiz não pode é antecipar-se ao julgamento, como fez o M.mo Juiz a quo – “o mérito da acusação só em julgamento pode e deve ser apreciado (Acs. da Rel. Coimbra de 27.04.1994 e de 15.02.1995, in BMJ 436 e 444, págs. 455 e 721, respectivamente);

10º
Termos em que, decidindo como decidiu, o M.mo Juiz recorrido violou o disposto pelo art. 311º, nº 2, al. a), e nº 3, al. d), do C.P.P.

Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a remessa dos autos para julgamento, com a designação de data para realização da audiência de julgamento.

O recurso foi admitido.

O arguido não apresentou resposta.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando com a argumentação do recurso e no sentido que o despacho recorrido seja alterado conforme proposto.

Foi observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP.

Assim, reside em apreciar da alegada violação do art. 311.º do CPP, ao ter sido, pelo despacho recorrido, rejeitada a acusação.
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No que ora releva, consta do despacho recorrido:

O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido MM imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça simples, previsto e punido pelo art. 153.º, n.º 1, do Código Penal.

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 153.º do Código Penal, comete o crime de ameaça simples, quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Trata-se de um tipo de crime que visa proteger a liberdade individual de cada pessoa, punindo comportamentos que possam afectar a liberdade de decisão e de acção individual nas suas mais variadas dimensões, devido à sensação de medo, insegurança e perturbação provocadas na vítima com a dedução das ameaças.

O tipo objectivo do crime consiste, assim, em ameaçar outra pessoa, ou seja, comunicar, por qualquer meio, a resolução de causar um mal futuro, dependente da vontade do autor, que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

Exigindo-se, ainda, que tal ameaça seja adequada a provocar no sujeito passivo medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

No entanto, resulta do disposto no art. 13.º do Código Penal que só é punível o facto praticado com dolo; dolo esse que se traduz, grosso modo, na consciência e vontade da realização dos elementos objectivos do tipo de crime de ameaça em causa (cfr. art. 14.º do Código Penal).

Assim, o tipo subjectivo do crime de ameaça de que o arguido está acusado nos autos pressupõe uma conduta dolosa, traduzida na consciência e vontade da emissão de uma ameaça com a prática de crime do catálogo legal, bem como na consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, sendo irrelevante se o agente tinha ou não a efectiva intenção de concretizar a ameaça.

Ora, a esse título (da imputação subjectiva da conduta), em sede de acusação, apenas se alegou que o arguido, com a sua conduta (i.e., realização de vários gestos com um taco de basebol na direcção da ofendida Maria Aleluia, dando a entender a esta que o arguido a iria agredir com tal taco), quis intimidar a ofendida (o que teria conseguido, tendo a ofendida ficado coarctada na sua liberdade de acção), e que o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente.

No entanto, não resulta dos factos alegados na acusação pública deduzida nos autos que o arguido tenha tido consciência, e soubesse, que a sua conduta com o taco de basebol era adequada a provocar medo ou inquietação na ofendida Maria, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Pelo que, em suma, se conclui que a factualidade imputada ao arguido na acusação pública deduzida nos autos não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de ameaça simples de que o mesmo está acusado nos autos, não abrangendo o dolo do arguido alegado na acusação a totalidade dos elementos objectivos de tal tipo de crime de ameaça (faltando o elemento cognitivo do dolo, na parte referente à consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade na ofendida ameaçada).

Vide, neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 3/6/2014, relator Sérgio Corvacho, processo n.º 11/12.3GFALR.E1, e de 26/6/2018, relator António João Latas, processo n.º 145/17.8GESLV.E1; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/9/2018, relator Artur Vargues, processo n.º 1453/15.8S5LSB.L1-5; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/12/2001, relator Barreto do Carmo, processo n.º 2880/2001; e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/3/2009, relator Estelita Mendonça, processo n.º 2736/08- 2, todos in www.dgsi.pt.

Donde resulta que, mesmo que viessem a ser dados como provados, em sede de julgamento, todos os factos imputados ao arguido na acusação pública, nunca se poderia concluir que o mesmo praticou o crime de ameaça simples de que vem acusado nos autos, previsto e punido pelo art. 153.º, n.º 1, do Código Penal.

Deste modo, e não constituindo os factos relatados na acusação pública um crime, essa circunstância torna a acusação deduzida nos autos manifestamente infundada, o que conduz necessariamente à rejeição da acusação (cfr. art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), por referência ao art. 1.º, al. a), ambos do Código de Processo Penal).
O que se decidirá.
*
Nos termos expostos, rejeito a acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público contra o arguido MM, com o consequente e oportuno arquivamento dos autos.

*
Apreciando:

A rejeição da acusação, por manifestamente infundada, assentou, em concreto, na circunstância de os factos dela constantes não constituírem crime, sendo que, conforme ao despacho recorrido, “a factualidade imputada ao arguido na acusação pública deduzida nos autos não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de ameaça simples de que o mesmo está acusado nos autos, não abrangendo o dolo do arguido alegado na acusação a totalidade dos elementos objectivos de tal tipo de crime de ameaça (faltando o elemento cognitivo do dolo, na parte referente à consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade na ofendida ameaçada)”.

O Ministério Público, através do recurso, defende que A acusação não só não é completamente desprovida de factos, de forma clara e evidente, como também se verifica que da mesma constam factos que preenchem, de forma suficiente e bastante, o elemento subjectivo.

Vejamos.
No que ora releva, o art. 311.º do CPP prevê:
“2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

d) Se os factos não constituírem crime”.

Tal redação foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25.08, em sintonia com o reforço do princípio do acusatório, restringindo-se ao mínimo indispensável a possibilidade do juiz de julgamento e, sobretudo, em situações em que não se realiza instrução, se pronunciar valorativamente quanto aos termos da acusação, em cumprimento estrito da distinção constitucional de funções que às diferentes autoridades judiciárias incumbem e das suas diversas atribuições no âmbito processual penal.

Também as exigências previstas para a acusação (art. 283.º do CPP) são emanação clara do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, impondo que só se pode ser julgado pela prática de crime precedendo acusação formulada por órgão distinto do julgador.

A concepção típica de um processo acusatório implica a estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, em sede de determinação do objecto do processo, bem como na vertente de ponderação dos poderes de cognição e dos limites da decisão, só assim ficando asseguradas as garantias de defesa, por só desse modo o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 65).

Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 daquele art. 32.º, consagrando-se como cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pág. 516).

Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117, O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.

Toda esta temática se revela, também, como decorrência do direito a um processo equitativo, de harmonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

A importância da acusação é, pois, indiscutível e, por isso, se reconheça que ninguém pode ser punido sem culpa e que os requisitos exigidos para aquela, reflexo daquele princípio acusatório, são essenciais à delimitação do objecto do processo e, como tal, do julgamento a realizar.

Nesses requisitos, se inclui, desde logo, a narração de factos, ainda que sintética, a que o referido art. 283.º, no seu n.º 3, alínea b), se reporta, como sendo aqueles “que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
E também, designadamente, comporta a exigência de que os factos narrados na acusação constituam crime, na medida em que o ponto de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo penal os comportamentos humanos que por lei são declarados passíveis de penas ou medidas de segurança criminais (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 268).

Se isso é bem patente na exigência da indicação das disposições legais aplicáveis (referido art. 283.º, n.º 3, alínea c)), na medida em que qualquer alteração do ponto de vista jurídico pode vir a reflectir-se na relevância atribuída à prova e à defesa de determinados elementos de facto, não deixará, inevitavelmente, de o ser se os factos narrados nem sequer constituem crime, com o que, além do mais, se evita que o arguido venha a ter de ser sujeito, sem justificação, a julgamento.

Aliás, aquele princípio acusatório não dispensa esse controlo judicial, no sentido de obviar a acusações gratuitas.

A viabilidade de rejeição da acusação nesse caso assenta, no fim de contas, em que a acusação, mesmo que procedesse na parte atinente aos factos narrados, seria inconsequente e, por isso, o julgamento seria acto inútil.

Não obstante, pois, todo o cuidado posto no respeito dessas exigências, a expressão “manifestamente infundada” não deixa de ter, como subjacente, a ausência clara de fundamento, seja por não conter a identificação do arguido, seja por ausência de factos que suportem a acusação, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, seja, ainda, porque foi omitida aquela indicação das disposições legais e, como tal, definindo-se como aquela que, pelos seus próprios termos, é, desde logo, evidente que não pode vir a ser julgada procedente.

O que se pretende com as legais exigências é, afinal, que, em qualquer circunstância, o exercício do contraditório e as garantias de defesa não sejam esquecidos, de molde a que essa narração de factos (para a consequente subsunção criminal) seja claramente entendível, lógica e esclarecedora para que o arguido possa deles conhecer e dos mesmos defender-se, além de que, naturalmente, esses factos não sejam desprovidos de relevância criminal.

De qualquer modo, é pacífico que os poderes do juiz, no momento do saneamento do processo para os efeitos do mencionado art. 311.º, estão limitados ao conhecimento dos vícios estruturais da acusação, pois, acompanhando Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 790, O conhecimento dos pressupostos processuais tem lugar em face dos factos da acusação, não sendo lícito ao juiz aferi-los em face dos elementos de inquérito, na medida em que, a não ser assim, isso implicaria análise indiciária, violadora do princípio acusatório.

Identicamente, daí decorre que o juiz só deva usar da prerrogativa de rejeição da acusação quando seja, de todo, inviável a condenação do arguido.

E no tocante à questão suscitada no recurso, não sofre dúvida que o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 791).

Assentes os parâmetros a atender, tendo em conta o imputado crime de ameaça, cujo tipo é definido no art. 153.º do CP, resulta que se exige, para a sua prática, que a actuação seja dolosa e, tal como referido no despacho sob censura, “dolo esse que se traduz, grosso modo, na consciência e vontade da realização dos elementos objectivos do tipo de crime de ameaça”, onde se inclui, como refere, a “consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade na ofendida ameaçada”.

Na verdade, ainda que o dolo comporte os factores psíquicos do agente, a representação e fixação dos fins do crime, a selecção dos meios e a aceitação dos resultados da acção, cuja prova assenta, normalmente, em inferências extraídas de factos materiais, analisados à luz das regras da experiência comum, suportando, pois, tradução sucinta e, até, conclusiva, não pode prescindir-se da sua alegação concreta, sob pena de se assumir como um dolus in re ipsa e, assim, de não ser susceptível de integrar factos conducentes à aplicação de uma pena ou uma medida de segurança.

Como sublinhou Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2.ª edição, pág. 379, também estes elementos (atinentes ao dolo) cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.

Sem que se descure a jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 1/2015, de 20.11.2014, in D.R. 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015, de que “A falta de descrição na acusação dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”, ali se descortinando, na fundamentação, que Entre os elementos relevantes que dão sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos. Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.

Ora, revertendo ao concreto e por referência à acusação, no despacho recorrido consignou-se, no que interessa, que “apenas se alegou que o arguido, com a sua conduta (i.e., realização de vários gestos com um taco de basebol na direcção da ofendida Maria, dando a entender a esta que o arguido a iria agredir com tal taco), quis intimidar a ofendida (o que teria conseguido, tendo a ofendida ficado coarctada na sua liberdade de acção), e que o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente e, por isso, que “não resulta dos factos alegados na acusação pública deduzida nos autos que o arguido tenha tido consciência, e soubesse, que a sua conduta com o taco de basebol era adequada a provocar medo ou inquietação na ofendida Maria, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.

Em sentido contrário, o recorrente faz notar que Consta claramente do art. 5º da acusação que “quis o arguido, por essa forma, intimidar a ofendida, o que conseguiu, tendo esta ficado coarctada na sua liberdade de acção e Consta igualmente da acusação que o arguido “agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei”.

E detendo-se no significado das expressões utilizadas, sublinha:
- Agir de forma livre é agir por determinação da sua consciência, da sua vontade, das suas escolhas, das suas decisões, dos seus motivos. Ao contrário do animal, o homem tem o poder de escolher, de decidir, de agir;

- Uma atitude deliberada significa que foi feita de propósito, com determinada intenção, de forma decidida, resoluta;

- Agir conscientemente é saber o que se faz;

- Proibido é algo que não é permitido, cuja prática não é permitida por lei;

- Uma conduta punida por lei é uma conduta repreendida, castigada, penalizada.

Esse atribuído significado afigura-se correcto, seja na acepção da linguagem corrente, seja no âmbito do conhecimento e da vontade da decisão, em que o dolo se traduz.

Não, contudo, para afirmar que a consciência do arguido quanto à susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade na ofendida não deva assumir-se como elemento que integra o dolo da ameaça, uma vez que releva como critério do efeito, implicitamente havendo de chegar, a ameaça, ao conhecimento da destinatária (cfr. Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo I, pág. 351).

Mas se assim é, também não se descortina razão válida para que essa consciência não resulte como implícita dessa alegada actuação livre e consciente do arguido, quando conjugada com o ter-se invocado que “empunhou o referido taco na direcção da ofendida, e com ele efectuou vários gestos, dando a entender à ofendida que a iria agredir com o mesmo” e “Quis o arguido, por essa forma, intimidar a ofendida, o que conseguiu, tendo esta ficado coarctada na sua liberdade de acção”.

A acusação, na sua globalidade, consente a perspectiva da adequação da ameaça e de que o arguido a não desprezou, sendo certo que a suscitada questão da respectiva consciência tem de ser vista por referência ao acontecimento da vida ali narrado, não prescindindo da proporcionalidade que lhe é inerente, mormente, a compreensão que o mesmo permita, em razão das regras de normalidade.

Resta perguntar se, ao alegar-se que o arguido actuou livre e agiu consciente, reportado à vertente objectiva que se desenhou, não se está a dizer que teve consciência do carácter intimidatório da sua postura perante a ofendida. E a resposta deve ser afirmativa.

Aliás, a situação não se equipara àquela que versou o citado, no despacho recorrido, acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 26.06.2018, no proc. n.º 145/17.8GESLV.E1, in www.dgsi.pt, em que o aqui relator interveio como adjunto, uma vez que, se bem que, como aí se afirmou, o dolo essencial à perpetração do crime de ameaça, que tem de abranger todos os elementos do tipo objetivo, depende do conhecimento e vontade por parte do arguido que as palavras ameaçadoras proferidas cheguem ao conhecimento do visado com essas mesmas palavras (sob qualquer das formas previstas no art. 14º do C.Penal), o qual não tem que coincidir com a pessoa a quem as dirige, a omissão apontada quanto a esse conhecimento resultou da ausência de saber se a ameaça, por palavras e através de telemóvel, teria chegado ao destinatário/ofendido.

Assim, não serve, contrariamente ao que ficou fundamentado no despacho, para suportar a ausência dessa consciência do arguido no caso em análise, tratando-se, sim, de diversas realidades.

A decidida rejeição da acusação, ao abrigo daquele art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), não se afigura correcta, dentro das considerações que ficaram explicitadas e dada a circunstância de que deve apenas o julgador usar dessa prerrogativa quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento.

In casu, resultando dos princípios de lógica racional que o apontado elemento subjectivo surja inerente à prática dos factos, no conjunto, imputados, seria cominação demasiadamente pesada em vista dos interesses que se impõe proteger, o mesmo é dizer, corresponderia a fazer prevalecer formalidade, contendendo com a desejável realização material da Justiça.

Tanto mais que a alegação desse aspecto, ainda que admitindo a tese do despacho, sempre acabaria por traduzir-se como tendencialmente conclusiva, nada acrescentando ao dito acontecimento que a acusação deixou reflectido.

Como tal, a interpretação acolhida no despacho, por se reconduzir a radical consequência da rejeição da acusação sem motivo bastante, não merece ser sufragada.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência,

- revogar o despacho recorrido, determinando que seja substituído por outro que designe data para audiência de julgamento.

Sem custas.

Processado e revisto pelo relator.

18.Fevereiro.2020

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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)