Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
155/18.8GCBNV-A.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
MEDIDAS DE COACÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - As restrições aos direitos, liberdades e garantias devem restringir-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, além do mais, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, para que seja garantido o equilíbrio possível entre a medida dessas restrições e o pendor marcadamente humanista de que se nutre o Estado de Direito e, em especial, que caracteriza o Processo Penal Português.

II - Apesar da gravidade dos crimes fortemente indiciados, a verificação dos perigos de fuga, perturbação do inquérito e de continuação criminosa, com a relevância que ficou explicitada, não se apresenta como forçosamente conducente à preconizada aplicação de medida privativa da liberdade, no sentido de que, só através desta, se conseguirão assegurar as finalidades cautelares em presença.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de inquérito com o número em epígrafe, correndo termos no Departamento de Investigação e Acção Penal da Comarca de Santarém, o arguido MM, na sequência da sua detenção, foi sujeito a interrogatório judicial, vindo a ser-lhe determinadas, por despacho judicial proferido no Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Santarém, as medidas de coacção, além do termo de identidade e residência, de obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, procedendo à entrega do seu passaporte no prazo de três dias e obrigação de não contactar, por qualquer meio, com as vítimas GS e VS.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1.ª
A medida de coacção aplicada em b) de fls. 111 deste traslado, de obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, procedendo à entrega do seu passaporte no prazo de três dias, não teve em conta a dupla nacionalidade portuguesa e brasileira de que o arguido é titular, uma vez que este facto é omisso no elenco da matéria de facto fortemente indiciada contra ele.
2.ª
Esta omissão tem várias consequências processuais, entre as quais pontifica a possibilidade de, sendo de nacionalidade portuguesa e, apesar de ter entregue ambos os passaportes que possui, português e brasileiro, tal facto não o impede de, querendo violar tal medida de coacção, se ausentar livremente pelo chamado espaço Shengen ao abrigo de tratados internacionais em que Portugal é parte signatária e em pleno vigor no nosso ordenamento jurídico.
3.ª
Mantém-se, pois, o perigo de fuga que é actual e efectivo, o que permitiria que o arguido se eximisse à justiça pelos factos que praticou, ainda que neste momento estejam apenas fortemente indiciados.
4.ª
Na verdade, com tais pressupostos, o arguido poderá perfeitamente sair do país a qualquer momento, ainda que violando a mencionada medida de coacção e obter novo passaporte português, bastando invocar o extravio do seu passaporte original e adquirir novo documento similar e autêntico junto de um Consulado português no aludido espaço Shengen.
5.ª
Por outro lado, o despacho ora impugnado não deu cumprimento ao disposto no artigo 31.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro, com a redacção da Lei n.º 129/2015 de 3 de Setembro, com vista à aplicação de, pelo menos, as medidas de coacção referidas nas suas alíneas b) e c), sendo irrelevante a alteração de domicílio das vítimas e, também a alteração posterior da morada por parte do arguido, em face do disposto no n.º 2 do mesmo artigo e diploma legal.
6.ª
Tal omissão constitui violação de lei e repercute-se negativamente nos legítimos interesses das vítimas dos crimes de violência doméstica, quanto às duas pessoas que foram sujeitos passivos dos mesmos.
7.ª
Também o salário mensal que o arguido afirmou receber e que foi acolhido pelo Tribunal “a quo” no montante de € 1.300,00 (mil e trezentos euros) foi mal decidido porque, do documento de fls. 53 deste traslado resulta que o salário mensal do arguido é de € 766,00 (setecentos e sessenta e seis euros), acrescido de € 7,90 (sete euros e noventa cêntimos) de subsídio de refeição por cada dia de trabalho.
8.ª
Daqui resulta que existe ausência de fundamentação, no despacho recorrido, quanto à opção do Tribunal “a quo” pela quantia superior em detrimento da quantia inferior resultante dos autos, situação que configura vício de contradição entre a fundamentação omissa e a decisão, a qual não teve em consideração o supra mencionado documento.
9.ª
Embora possa não parecer essencial, a verdade é que tal facto inquinou o raciocínio do Tribunal quanto à totalidade da extensão do domínio económico quase absoluto do arguido face ao seu agregado familiar, já que o despacho em crise admitiu o arguido como o único sustentáculo da economia familiar, sendo esta uma das razões, (quiçá a principal), que suporta a aplicação de medida de medida de coacção que permitiu o regresso do arguido à casa de morada da família em detrimento, mais uma vez, dos legítimos interesses e direitos das vítimas dos crimes de violência doméstica, até porque não estão especificados nos autos, quer outras eventuais fontes de rendimento da mãe, por exemplo, quer porque se ignoram as despesas normais que o agregado suporta em cada mês.
10.ª
Tendo em conta a argumentação e a jurisprudência apontada em B) deste recurso, para onde se remete por questão de economia processual e que se considera como fazendo parte integrante das presentes conclusões, dando-se aqui por integramente reproduzidas para todos os legais efeitos, é notório que a decisão ora posta em causa violou frontalmente o artigo 193.º n.º 1 do CPP.
11.ª
Na verdade, foram postergados os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coacção aplicadas ao arguido, tanto mais que, após a prolação de tal despacho o arguido mudou de residência sem indicar o seu local de trabalho, o que torna incontroláveis os seus movimentos neste momento em termos processuais.
12.ª
Daqui resulta que não foram aplicadas as medidas de coacção necessárias, adequadas e proporcionais que o caso reclama, o que significa que as finalidades do instituto não se mostram alcançadas.
13.ª
É que, variando a medida abstracta da pena de prisão aplicável entre cinco anos e quatro meses no mínimo e dezoito anos no máximo, com tudo o que ficou exposto supra, é real e actual o perigo de fuga que está à disposição de arguido, para já não se falar dos perigos para a aquisição, conservação e veracidade da prova, pelo menos.
14.ª
Pelo exposto, impõe-se a anulação do despacho recorrido e a prolação de outro que acautele suficientemente, quer os direitos das vítimas dos crimes de violência doméstica, quer o perigo de fuga do arguido face às sanções que enfrenta pelos factos por si praticados e à possibilidade que tem de se eximir à acção da justiça caso continuem em vigor as medidas de coacção que lhe foram impostas, para além dos perigos evidentes para a aquisição, conservação e veracidade da prova, face ao ascendente de violência que o arguido demonstrou perante as vítimas dos crimes de violência doméstica, por poderem inibir-se de testemunhar ou, não se inibindo, poderem não relatar a verdade em toda a sua extensão.
15.ª
Deve, assim, ser decretada a medida de coacção prisão preventiva ou, no mínimo, a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, desde que preenchidos os legais pressupostos da sua aplicação pois, apenas a medida privativa da liberdade poderá afastar, com eficácia os mencionados perigos, especialmente o perigo de fuga.

O recurso foi admitido.

Não foi apresentada resposta.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, manifestando adesão aos fundamentos de facto e de direito da motivação e no sentido da procedência do recurso.

Observou-se o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP).

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP.

Assim, consubstancia-se em apreciar se as medidas de coacção determinadas devem ser substituídas por medida privativa da liberdade, ou seja, por prisão preventiva ou, pelo menos, por obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.

No que ora releva, consta do despacho recorrido:
I.
A detenção do arguido ocorreu no dia de ontem, 17 de abril de 2018, pelas 20h45m. - cfr. folhas 82 a 85.

É legal e tempestiva, pelo que a julgo válida (arts. 27.º, n.º 3, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e art. 257.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), com referência aos arts. 193.º, 202.º, n.º 1, alínea b), 204.º, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal).

O detido foi apresentado em juízo tempestivamente, isto é, dentro do prazo de quarenta e oito horas (art. 254.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

II.
Julgo fortemente indiciados (além do mais, tendo em consideração as declarações confessórias do arguido) os seguintes factos:

1) O arguido mantém há cerca de dez anos uma relação análoga à dos cônjuges com CS, fruto da qual têm um filho em comum, TS, de 6 anos de idade, residindo estes, desde há cerca de três anos na rua…, em Samora Correia.

2) Do referido agregado familiar passaram ainda, pelo menos desde há oito anos, a fazer parte GS, nascida em 16/07/2000 e, VS, nascido em 07/12/1998, sendo ambos filhos da companheira do arguido CS e fruto de um anterior relacionamento da mesma.

3) Ao longo do referido período de tempo o arguido sempre se mostrou muito exigente, austero e agressivo para com GS e VS, impondo-lhes constantes regras e, sempre que os mesmos lhe desobedeciam ou não atuavam como ele desejava, zangava-se, gritando com aqueles e impunha-lhes castigos, ameaçando-os de que lhes batia e chegava mesmo a bater-lhes, o que fazia ora com as mãos, ora com um cinto ou um chinelo.

4) Assim, era frequente o arguido zangar-se apenas porque VS não tinha despejado o lixo, sendo que por vezes nem lhe havia pedido que o fizesse.

5) Ou porque VS e GS saíssem e se atrasassem na hora de regresso a casa, a qual o arguido estabelecia previamente.

6) E, nessas ocasiões, o arguido batia em VS e GS, o que fazia com recurso a um cinto de pele que guardava no quarto ou com recurso a um chinelo, batendo-lhes com os mesmos nas pernas e ordenando previamente aos jovens que baixassem as calças, para assim lhes bater diretamente na pele.

7) VS frequentou, por imposição do arguido, um curso de eletrónica, o qual teve a duração de três anos, sendo que no decurso do segundo ano teve um período de estágio de dois meses num local que distava cerca de três quilómetros de casa e, apesar de poder ir e regressar para aquele local com um colega de curso e que tinha carro, o arguido nunca lho permitiu e impunha que VS fizesse o percurso de bicicleta, independentemente das condições climatéricas que se fizessem sentir.

8) De igual modo, e em data não concretamente apurada entre os anos de 2015 e 2016, o arguido estabeleceu que em casa apenas teriam acesso à internet ele e a sua companheira, sendo que VS conseguiu aceder à internet sem o arguido o autorizar e este último, após descobrir, começou a gritar e a ralhar com VS, assim como lhe bateu com a mão fechada nos braços, por mais de uma vez, sendo que num desses momentos aquele se desviou e o arguido bateu com a mão na parede, tendo sofrido uma fratura nos ossos da mão.

9) No que respeita a GS as discussões e agressões físicas eram maioritariamente despoletadas pelas regras de convivência estabelecidas pelo arguido, como sejam o facto de aquele não gostar que a mesma saísse de casa para estar com as amigas ou não regressar à hora marcada pelo arguido.

10) As referidas regras e discussões tomaram proporções tais que, quando GS tinha ainda 15 anos de idade, decidiu "fugir" de casa e, durante algum tempo, residiu em casa da sua tia Caroline, também residente em Samora Correia, sendo que após regressar a casa o arguido não voltou a agredir fisicamente GS, mantendo no entanto a postura austera e intransigente para com a mesma.

11) Em face de tudo quanto se disse, os jovens VS e GS e, em particular esta última, sempre tiveram muito medo do arguido e evitavam todas e quaisquer condutas que pudessem deixar aquele zangado, dado o constante temor de que o mesmo lhes pudesse bater.

12) No dia 31 de março de 2018 a companheira do arguido ausentou-se para o Brasil para tratar de assuntos pessoais, sendo que os jovens GS, VS e o pequeno TS ficaram em Portugal e entregues aos cuidados exclusivos do arguido.

13) Na passada sexta feira, dia 13 de abril de 2018, GS e o irmão VS saíram de casa após o jantar para conviver com amigos, tendo o arguido estabelecido que GS deveria estar em casa impreterivelmente até às 02.00h.

14) No entanto, GS apenas regressaria a casa, o que fez na companhia do irmão VS, sendo que este voltaria a sair logo de seguida, quando eram 02.10h.

15) Enquanto se dirigiam para casa, e tendo dado conta do ligeiro atraso, GS e VS comentaram se o arguido estaria acordado e como ira reagir para com GS.

16) Ao chegar a casa, GS verificou que o arguido se encontrava acordado, sentado na cama do quarto de casal, no entanto seguiu para o seu quarto, tendo o arguido ido atrás de si e comentou sobre o atraso no regresso a casa e que se fosse antes lhe batia mas que agora estava muito mudado e, não ia fazer nada.

17) Naquela sequência o arguido perguntou a GS se queria ir ver a série "Casa de Papel" na Netflix, sendo que tal apenas é possível de visionar na televisão existente no quarto do casal, e, como há muito que queria ver aquela série e já havia mesmo pedido à mãe para falar com o arguido sobre esse seu desejo, ficou a pensar sobre aquele convite;

18) Ao que o arguido lhe disse que fosse vestir o pijama e viesse ter com ele ao quarto, pelo que acabou por aceitar o convite do arguido e agiu conforme aquele lhe disse.

19) Ao chegar ao quarto do arguido, aquele pediu-lhe que colocasse o irmão TS, que ali estava a dormir, numa das pontas da cama e que se deitasse no meio, o que fez, sendo que o seu irmão dormia profundamente.

20) De seguida, começaram a ver televisão, e o arguido e a jovem chegaram a fazer comentários sobre o estavam a ver, tendo visionado os três primeiros episódios.

21) Entretanto o menor TS mexeu-se, aparentando estar a sonhar, e o arguido passou os braços por cima do corpo de GS até alcançar o filho TS e levou-o para junto dele, sendo que aquele continuava a dormir, ocasião em que o arguido começou a fazer festas nas pernas de GS.

22) De seguida, o arguido voltou a colocar o filho TS na outra ponta da cama, mantendo-se GS no meio de ambos, ocasião em que voltou a tocar no corpo daquela, nas pernas e na vagina, o que deixou GS muito assustada e sem capacidade de reacção face ao medo que sentia do arguido, tendo a sua reacção sido a de se virar de lado para junto do irmão, ficando com as costas voltadas para o arguido, abraçou o irmão e simulou estar a adormecer.

23) O arguido voltou a tocar nas pernas de GS, após o que fez introduzir as mãos pelas calças do pijama, na zona da cintura, e começou a acariciar-lhe as coxas e a vagina por cima das cuecas, após, e porque GS continuasse a fingir estar a dormir, o arguido desceu as calças do pijama da vítima, quase até aos joelhos, passou-­lhe a mão por entre as pernas, afastando-lhe as cuecas, e introduziu os dedos na vagina da vítima dando inicio a movimentos masturbatórios.

24) Instantes depois o arguido aplicou um líquido, tipo "gel" frio na vagina de GS, após o que, e mantendo-se a ofendida de costas para o arguido, aquele fez introduzir o seu pénis, que se mostrava ereto, na vagina daquela, dando início a movimentos de vai e vem típicos de cópula, os quais prolongou por algum tempo mas sem que tivesse ejaculado.

25) Enquanto decorria o supra referido, a ofendida simulando sempre estar a dormir, ia tentando mexer-se ligeiramente de modo a impossibilitar o arguido de prosseguir com os seus actos, assim como ia beliscando o irmão TS para o acordar e assim fazer com que o arguido parasse, sendo que apenas conseguiu que aquele cessasse quando ficou deitada de barriga para baixo.

26) Ao acariciar a vagina de GS, introduzir os dedos e o seu pénis naquela, e realizar vários movimentos de vaivém, o arguido bem sabia que atuava sempre contra a vontade de GS, o que o arguido quis e conseguiu, bem sabendo também que apenas conseguia praticar tais atos dado o seu ascendente sobre aquela, fundado nas condutas agressivas pretéritas do arguido para com a jovem.

27) O arguido agiu sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, estando ciente de que com a sua conduta causava um mau estar físico e psicológico a GS, tal como que perturbava o seu direito à liberdade sexual, como efetivamente causou e perturbou.

28) De igual modo, e ao atuar sobre os jovens GS e VS, ambos filhos da sua companheira de facto e com eles residentes, nos moldes vertidos nos pontos 3 a 11, o arguido representou e quis infligir sofrimento físico e psicológico àqueles, o que conseguiu, assim como bem sabia que praticava tais atos no interior da casa de morada de família e estava ainda ciente de que aqueles, em razão da sua idade e, por dependerem economicamente de si, não eram capazes de lhe oferecer resistência.

29) Assim como bem sabia o arguido que atuar sobre os jovens GS e VS, seus enteados, nos moldes supra expostos lhes criava sentimentos de instabilidade, tristeza, humilhação e vergonha, rebaixando-os como seres humanos e atentando contra a sua dignidade, conforme aconteceu.

30) O arguido sabia que todas as suas condutas eram criminalmente proibidas e punidas por lei penal, o que não o demoveu de atuar como atuou, tendo capacidade de se auto­determinar de acordo com esse conhecimento.

Resulta, igualmente, provado que:
a)O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.

b) O arguido trabalha há cerca de dez anos no Grupo "V", como eletricista, recebendo salário mensal, no valor de 1.300,00 euros, pagando a casa.

c) As vítimas GS e VS, assim como o filho do arguido, encontram-se a residir, desde o fim-de-­semana, com a tia Caroline.

O Tribunal teve em consideração, como não poderia deixar de ser, as declarações confessórias prestadas pelo arguido, em conjugação com os depoimentos prestados pelas testemunhas Caroline (cfr. folhas 28 a 34), GS (cfr. folhas 35 a 41); VS (cfr. fls. 49 a 52); bem como a análise do relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal de fls. 53 a 57, auto de Busca e Apreensão e reportagem fotográfica de fls. 67 a 77; e, por último, pesquisa junto da base de dados civil relativa aos ofendidos de fls. 93 e 94.

A ausência de antecedentes criminais resulta da análise do certificado de registo criminal do arguido.

A situação pessoal do arguido resulta, por outro lado, das declarações prestadas pelo próprio, uma vez que pronta e espontaneamente respondeu inexistindo razões para que se duvide da sua veracidade.

Discordo da qualificação jurídica dos factos, propugnada pelo Ministério Público, quanto ao indicado crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Considerando que GS tinha (e tem) 17 anos e encontrava-se a residir com o seu padrasto, ora arguido, inexistindo relação de casamento entre o arguido e a mãe daquela, o arguido incorre na prática de:

- um crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto e punido pelo art. 172.º, n.º l, do Código Penal, agravado nos termos do art. 177.º, n.º 1 , alínea b), do Código Penal (cfr. art. 1584.º do Código Civil, a contrario); e

- dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo art. 152.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, agravados pelo n.º 2 do mesmo normativo legal.

V.
As medidas de coação em processo penal constituem, todas elas, em maior ou menor grau, restrições de direitos, liberdades e garantias, mas emergem como condição indispensável, embora num quadro de excecionalidade, à realização da justiça, e de modo a acautelar os perigos referidos no art. 204.º do Código de Processo Penal.

Assim, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 191.º do Código de Processo Penal, bem como do n.º 1 do art. 193.º do mesmo diploma legal, a aplicação de uma medida de coação deve ter em linha de conta a gravidade do crime e a sanção aplicável, não devendo prejudicar o exercício de direitos fundamentais, exceto aqueles que forem incompatíveis com as exigências cautelares decorrentes do caso concreto.

No caso concreto, não temos dúvidas de que os factos em causa são muito graves, não só tendo em consideração as penas abstratamente aplicáveis - apenas de prisão - como também os contornos do caso concreto, nomeadamente a relação entre o arguido e as vítimas.

Contudo, o arguido não tem antecedentes criminais e está profissionalmente inserido. Apesar das suas ligações ao estrangeiro, nomeadamente ao Brasil, tem profissão estável no nosso país.

O perigo de fuga, previsto pela al. a) do art. 204.º do Código de Processo Penal surge, por isso, atenuado por essas circunstâncias.

Acresce que, quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação do inquérito (cfr. art. 204.º, als. b) e c) do Código de Processo Penai), poder-se-­iam colocar no plano concreto, mas de forma diminuída, já que as vítimas GS e VS, assim como o filho do arguido, encontram-se a residir, neste momento e desde o fim-de-semana, com a tia Caroline, aguardando a chegada da mãe, estando, por isso, acautelada a sua necessária proteção.

Afigura-se, por todo o exposto, que medidas de coação não privativas da liberdade como as requeridas pelo ilustre defensor do arguido serão ainda suficientes, necessárias e adequadas, a acautelar os perigos enumerados. De facto, as medidas de coação não podem (nem devem) ser confundidas com penas a aplicar.

Decisão:
Pelo exposto, nos termos dos citados normativos legais e ainda dos artºs. 191.º, 193.º, 200.º, n.º 1, alíneas b) e d), 202.º, n.º 1, alínea b) e 204.º, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, decido aplicar ao arguido MM, cumulativamente, as seguintes medidas de coação:

a) Termo de identidade e residência, já prestado a folhas 61;

b)Obrigação de não se ausentar para o estrangeiro, procedendo à entrega do seu passaporte no prazo de 3 (três) dias, o qual ficará à ordem destes autos;

c)Obrigação de não contactar, por qualquer meio, com as vítimas GS e VS.

Apreciando:
A aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do termo de identidade e residência, pressupõe em concreto a verificação de algum dos requisitos a que alude o art. 204.º do CPP, ou seja:

a) - Fuga ou perigo de fuga;
b) - Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) - Perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Por sua vez, as medidas de coação estão sujeitas ao princípio da legalidade, significando que a limitação dos direitos do arguido só pode efectivar-se em função das exigências processuais de natureza cautelar admitidas por lei, conforme art. 191.º, n.º 1, do CPP.

Subjacente à sua aplicação estará sempre a apreciação de critérios de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, segundo o disposto no art. 193.º do CPP e, mormente, no que a medidas privativas da liberdade concerne, ou seja, quanto à prisão preventiva e à obrigação de permanência na habitação, só serão aplicadas se outras menos gravosas não forem adequadas ou suficientes (arts. 201.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1, do CPP), em obediência ao seu carácter eminentemente subsidiário - arts. 27.º e 28.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Implicando restrição do direito fundamental à liberdade, deve ser a sua aplicação limitada ao estritamente “necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, nos termos do art. 18.º, n.º 2, da CRP, o que genericamente se pode designar como contendo o pressuposto material do princípio da proporcionalidade (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pág. 392).

Segundo estes Autores, ob. cit., págs. 392 e seg., O princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas, desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos.

Sendo a prisão preventiva a medida mais gravosa, constitui, deste modo, extrema ratio (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 219).

Embora não contendendo com a presunção da inocência, consagrada no art. 32.º, n.º 2, da CRP (identicamente, no art. 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), atendendo a que os pressupostos em que as duas realidades assentam são diferentes - a prisão preventiva, em exigências processuais de natureza cautelar, enquanto essa presunção funciona até que se prove a efectiva culpabilidade do arguido e está intimamente associada ao princípio nulla poena sine culpa -, a sua aplicação não pode servir como uma forma de antecipação da responsabilização e da punição penal e só se justifica, tal como as demais medidas coactivas, como meio de tutela de necessidades de natureza cautelar, ínsitas às finalidades últimas do processo penal, ou seja, a realização da Justiça através da descoberta da verdade material, de um modo processualmente válido, e o restabelecimento da paz jurídica (Figueiredo Dias, com a colaboração de Maria João Antunes, in “Direito Processual Penal”, FDUC, 1988/89, págs. 20 e segs.), além de que a limitação ou privação da liberdade do arguido está vinculada à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente (Figueiredo Dias, “Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal”, em Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, pág. 27).

Há-de ser a estrita necessidade das medidas de coacção que legitimará em cada caso a vulneração do princípio da presunção da inocência, como assinala Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 206.

E não se deve descurar que a necessidade de forte indiciação, subjacente à permissão da aplicação da prisão preventiva (art. 202.º do CPP), inculca a ideia de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura e que essa suspeita assente em factos de relevo, que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, o que não invalida o entendimento de que a expressão utilizada pelo legislador, porventura, não constituirá mais do que uma injunção psicológica ao juiz, no sentido de uma maior exigência na ponderação dos dados probatórios recolhidos acerca do crime assacado ao arguido (Simas Santos/Leal-Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, Rei dos Livros, 2.ª edição, 1999, págs. 996 e seg.).

Ou, como afirma Germano Marques da Silva, ob. cit., págs. 209 e seg., acerca da exigência de “fumus comissi delicti”(…) É sempre necessário que seja possível formular um juízo de indiciação da prática de certo crime (…) Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior (…).

A decisão sob censura fundamentou a sujeição do arguido a medidas não privativas da liberdade (obrigações de não se ausentar para o estrangeiro e de não contactar com as vítimas) na existência, por um lado, de fortes indícios da prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes e de dois crimes de violência doméstica, previstos nos termos que ficaram referidos (puníveis com penas de prisão de certa gravidade, o primeiro, com máximo de 10 anos e 8 meses e, os restantes, com máximo de 5 anos) e, por outro, dos perigos a que alude aquele art. 204.º, ainda que, segundo transparece, relativamente atenuados pelas circunstâncias que mencionou.

Atentando, pois, nos referidos fundamentos, atinentes à indiciação e à verificação dos requisitos, a aplicação de medida de coacção privativa da liberdade, como o recorrente pretende, não é, em princípio, afastada, cabendo, sim, aquilatar da sua conveniência, designadamente, em razão do disposto naquele art. 193.º.

Relativamente ao que se consignou como factualmente indiciado, o recorrente manifesta a sua discordância em dois aspectos.

Trata-se, porém, de matéria que, como o recorrente parece reconhecer, não altera o núcleo de factos que, objectiva e subjectivamente, serviu para a extraída conclusão quanto aos crimes indiciariamente praticados.

Assim, no tocante à alegada omissão de que o arguido tem dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, se bem que seja verdade que o despacho não o refere expressamente, não se colhe especial relevância de que devesse ter ficado consignado, uma vez que não se reconduz a elemento que interesse à indiciação conducente à culpabilidade.

Sem embargo de que tal aspecto ainda pudesse, todavia, constar da factualidade indiciada, tratar-se-ia não mais do que constatação da nacionalidade do arguido, sendo que, ao nível da sua identificação, constante do auto de interrogatório, se reflectiu ser natural do Brasil e de nacionalidade portuguesa, o que se revela como plenamente consentâneo com o que era exigido e sem descurar o referido pelo recorrente.

Por seu lado, na vertente das condições pessoais do arguido, o recorrente entende que o valor do salário mensal, indicado como sendo de “1.300,00 euros”, contraria o que resulta do documento junto aos autos, segundo o qual o vencimento base (ilíquido) do arguido é de € 766,00 mensais, acrescidos de € 7,90 diários a título de subsídio de refeição.

Esse documento, emitido pela entidade para quem trabalha (Grupo “V”), menciona esses valores, mas a indiciação nesse âmbito, como decorre do despacho, resultou das declarações do arguido, sem que existissem “razões para que se duvide da sua veracidade”.

Admite-se, pois, alguma discrepância, mas, de qualquer modo, a referência ao “salário mensal” pode ter sido perspectivada, e declarada pelo arguido, como incluindo todos os valores que este recebe, o que, se assim for, já não se defronta com diferença tão relevante.

Dentro deste circunstancialismo, apesar de se admitir que esse aspecto possa vir a ser melhor esclarecido, se necessário, não se impõe, por ora, que o facto indiciado deva ser alterado.

E não se descortina, contrariamente ao recorrente, que o despacho recorrido, ao nível da indiciação que mencionou, padeça de ausência de fundamentação ou de contradição nessa fundamentação.

Estabelecida, assim, a indiciação, analisam-se, então, as razões que o recorrente apresenta para sustentar a aplicação de medidas privativas da liberdade.

Invoca, então, que o facto de o arguido ter a referida dupla nacionalidade foi postergado, na medida em que, na fixação da obrigação de entrega do passaporte, não se esclareceu a que passaporte se refere, se o emitido sob responsabilidade de Portugal ou do Brasil.

Considera que esse aspecto suportou a atenuação do perigo de fuga por que o despacho recorrido enveredou e que, mesmo que o arguido já tenha procedido à entrega do passaporte de origem brasileira, a verdade é que, como cidadão português, incluído no espaço Shengen nos termos da União Europeia, nem sequer necessita de passaporte português para, livremente, poder circular, quando lhe apetecer, pela Europa abrangida por aquele Tratado Internacional.

Conclui, então, que resulta que o perigo de fuga não se mostra atenuado, mas contrariamente, mostra-se bastante intenso e actual.

Ora, o despacho recorrido não descurou a circunstância do arguido, como se consignou, ter “ligações ao estrangeiro, nomeadamente ao Brasil” e a alusão à obrigação de “entrega do seu passaporte”não excluiu que tivesse mais do que um, como na verdade se veio a verificar, através da entrega dos dois passaportes, como resulta dos autos.

Quanto à alegada circunstância de que o arguido poderá circular livremente pela Europa, é situação comum à de qualquer português, mesmo que, como no caso acontece, tenha dupla nacionalidade, não se devendo esquecer que a proibição de deslocação ao estrangeiro sempre implica a não concessão ou não renovação de passaporte e o controlo das fronteiras, nos termos do n.º 3 do art. 200.º do CPP, ainda que isso não invalide, é certo, aquela livre circulação.

Nestas condições, reconhece-se que, existindo dupla nacionalidade, redobrada cautela se deve perspectivar com vista a que o arguido não se sinta tentado pela fuga facilitada por essa livre circulação.

Não basta, todavia, que esse perigo de fuga, para assumir relevo suficiente para aplicação de medida privativa da liberdade, seja visto de forma meramente abstracta, mesmo que perante a gravidade das sanções em que previsivelmente o arguido incorrerá se revele como provável, isto é, sem minimamente se suportar no que, em concreto, decorra indiciado e, sobretudo, na vertente dos contornos da prática dos imputados crimes, da personalidade e das condições do arguido, sopesadas em função das regras da experiência.

E assim sendo, decorre, do despacho, que, pese embora se tenha considerado que “os factos em causa são muito graves”, dado que o arguido “não tem antecedentes criminais”, está profissionalmente inserido” e “tem profissão estável no nosso país”, esse perigo de fuga estivesse atenuado, o que se compadece, efectivamente, com o que foi possível descortinar ao nível daqueles aspectos, sendo certo, ainda, que não se descura que o arguido assumiu a sua conduta, sintoma de interiorização do desvalor da mesma.

A propósito de que, recentemente, o arguido tivesse alterado a sua morada, o que se desconhece através dos elementos de que se dispõe para apreciação do recurso, consubstancia matéria sobre a qual o despacho não se poderia ter pronunciado e, também, pois, não serve para tornar, agora, o perigo de fuga mais forte, uma vez que, segundo o recorrente, teria sido o arguido a indicar essa nova morada.

Relativamente à sua situação económica, a alegação não é clara.

Aparentemente, o recorrente pretenderá afirmar que, tendo-se considerado que o arguido tinha maior salário, se inferiu, sem elementos, que era o único sustentáculo do agregado familiar, com o que se permitiu o regresso à casa de morada da família em detrimento dos legítimos interesses e direitos das vítimas.

A questão entronca, como o recorrente invoca, em que não se deu cumprimento ao disposto no art. 31.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16.09, na redacção actual, com vista à aplicação de, pelo menos, as medidas de coacção referidas nas suas alíneas b) e c).

Com efeito, o despacho não abordou qualquer dessas medidas: b) Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; c) Não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima, sendo que, segundo o n.º 2, daquele art. 31.º, O disposto nas alíneas c) e d) do número anterior mantém a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica e, nos termos do seu n.º 3, As medidas previstas neste artigo são sempre cumuláveis com qualquer outra medida de coação prevista no Código de Processo Penal.

Ora, à luz desse n.º 1 do art. 31.º, Após a constituição de arguido pela prática do crime de violência doméstica, o tribunal pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes (…), o que se justifica, além do mais, pela ressonância ético-valorativa atribuída ao crime de violência doméstica, pela dignidade dos interesses visados com a incriminação, pela devida proteção das vítimas.

No entanto, inexiste obrigatoriedade de aplicar esse tipo de medidas quando não se considerem necessárias, motivo por que, se o despacho as omitiu, implicitamente não as entendeu adequadas.

Afigura-se que a medida de afastamento da residência deveria, pelo menos, ter sido perspectivada, mas, não obstante pudesse ser cumulada com medida privativa da liberdade, a pretensão do recorrente de aplicação de medida desta índole não se vê reforçada, na sua justificação, em razão desse eventual afastamento.

Acresce que, afinal, o recorrente refere que o arguido mudou de morada, pelo que o interesse na aplicação dessa específica medida acaba por ficar ausente, sem prejuízo do que o desenrolar do inquérito venha a oferecer.

Quanto aos restantes perigos a acautelar com a imposição das medidas coactivas - de perturbação do inquérito e de continuação da actividade criminosa-, que, segundo o despacho, se verificam também, “mas de forma diminuída”, o recorrente alega, reportando-se ao perigo de perturbação do inquérito, o ascendente de violência que o arguido demonstrou perante as vítimas dos crimes de violência doméstica.

Compreende-se a alegação, mas, tal como no despacho se sublinhou, as vítimas encontram-se a residir com a tia e, não menos importante, afigura-se que a determinada obrigação do arguido não as contactar, serve, de alguma maneira pelo menos, o desiderato de acautelar que as vítimas sejam influenciadas por atitude que envolva perturbação para a aquisição da prova.

Esses perigos surgem, pois, em dimensão não elevada, sem uma carência protectiva que imponha diferente entendimento do seguido no despacho.

Apesar da gravidade dos fortes indícios, a verificação dos referidos perigos, com a relevância que ficou explicitada, não se apresenta como forçosamente conducente à preconizada aplicação de medida privativa da liberdade, no sentido de que, só através desta, se conseguirão assegurar as finalidades cautelares em presença.

Ponderados os critérios por que se norteia a sujeição às medidas coactivas, afigura-se que ainda consentem, de harmonia com o despacho, que o arguido fique obrigado nos termos que ficaram definidos.

Os argumentos do recorrente não infirmam o entendimento subjacente ao despacho de que esses perigos não se apresentem em grau tão importante que justifiquem medida de coacção privativa da liberdade.

As restrições aos direitos, liberdades e garantias devem restringir-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, além do mais, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP), para que seja garantido o equilíbrio possível entre a medida dessas restrições e o pendor marcadamente humanista de que se nutre o Estado de Direito e, em especial, que caracteriza o Processo Penal Português (Frederico Isasca, in “A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção”, em “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, coordenadas por Maria Fernanda Palma, Almedina, págs. 100/103).

Em sintonia, as medidas aplicadas obedeceram aos legais parâmetros, pelo que inexiste razão bastante para alterar o decidido.

3. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade,

- manter o despacho recorrido, que determinou a sujeição do arguido às medidas de coacção não privativas da liberdade, ali determinadas.

Sem custas, dada a isenção legal de que o recorrente beneficia.

Processado e revisto pelo relator.

22.Novembro.2018
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(Carlos Jorge Berguete)
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(João Gomes de Sousa)