Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
156/15.8GAENT.E1
Relator: CARLOS DE CAMPOS LOBO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Deve ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pelo assistente e remetida para a fase de julgamento, que não indique provas que a fundamentem.

II – Tal omissão não é passível de ser suprida por intervenção corretiva do Ministério Público que, ao aderir à acusação do assistente, indica meios de prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório

1. O processo de inquérito com o nº 156/15.8GAENT, que correu termos na Comarca de Santarém, no Ministério Público – DIAP – Secção Única, teve origem na denúncia apresentada por C, contra P, destinando-se a investigar factos eventualmente cometidos por este que seriam suscetíveis de integrar a prática do crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, nº1 do CPenal.

2. Findo o inquérito, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho notificando o Assistente para deduzir acusação particular, considerando indiciada a prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, nº1 do CPenal - cf. fls. 89 a 91.

3. O Assistente veio deduzir acusação particular, considerando consubstanciada a prática, por P, de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, nº1 do CPenal, a qual foi acompanhada pelo Digno Mº.P.º - cf. fls. 104.

4. Por despacho proferido em 5 de abril de 2016, a Mma Juiz do Tribunal a quo decidiu rejeitar aquela acusação, nos seguintes termos: (transcrição)
(…)
A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, não indicar as provas que a fundamentam (…)

Ora, in casu, a acusação particular deduzida contra o arguido é manifestamente infundada na medida em que é totalmente omissa quanto às provas que a fundamentam.

Na verdade, limita-se a indicar como prova “a da acusação”, sem que exista qualquer acusação anterior, o que equivale à falta de indicação de qualquer prove testemunhal ou documental.

Não tendo o assistente indicado na acusação o rol de testemunhas e outras provas a produzir ou a requerer, impõe-se a rejeição da acusação por manifestamente infundada, pois não é legalmente admissível o convite para suprir aquela falta, sob pena de violação do princípio do acusatório (…).

Por outro lado, também não é legalmente admissível o suprimento daquela omissão através da intervenção correctiva do Ministério Público por via acusatória, com indicação da respectiva prova testemunhal e documental (dr. fls. 104/105), pois, (…) a omissão que se verifica na acusação particular acarreta a sua forçosa nulidade (dr. art. 283º, nº3 alíneas d) a f), do CPP, ex vi do art. 285º, nºs 1 e 3, do mesmo código), o que, nostermos previstos no art. 122ºdo c.P.P tem como consequência a invalidade do acto em que se verificou, que não se mostra passível de sanação, por a lei não prever.

É que (…) o nº4 do art. 285º do CPP apenas prevê e permite que o Ministério Público acuse, ele próprio, autonomamente, pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros factos que não importem uma alteração substancial daqueles, mas em parte alguma consigna que poderá proceder a um aperfeiçoamento e sanação de uma omissão, que acarreta forçosa nulidade.

Neste caso específico, a lei determina que a consequência jurídica de a acusação não indicar as provas que a fundamentam, é de a mesma se ter de entender como manifestamente infundada (dr. art. 311º, nº3 alínea c) do CPP).

Ora, uma acusação manifestamente infundada deve ser rejeitada, como impõe a alínea a) do nº2 daquele preceito legal.

Uma vez que estamos face a um crime de natureza particular, carece o Ministério Público de legitimidade para acusar o arguido, desacompanhado do assistente.

Por todo o exposto (…) decide-se rejeitar a acusação particular deduzida contra o arguido, por se considerar a mesma manifestamente infundada.

5. Após este despacho veio o Assistente juntar nova acusação, esta apresentando e elencando prova (cf. fls. 124 a 133) e, bem assim juntar requerimento onde invoca que, a falta de indicação de prova e a simples menção “A da acusação” na primeira acusação particular deduzida, se deveu a um erro de escrita que permite ser retificado, nos termos do plasmado no artigo 249.º do CCivil.

6. Por despacho proferido em 5 de maio de 2016, o Tribunal a quo considerou não estar em causa um mero lapso de escrita, mas uma total omissão de indicação dos meios de prova, indeferindo a pretendida retificação.

7. Inconformado com a decisão de rejeição da acusação, o Assistente dele recorreu, extraindo da respetiva motivação do recurso as seguintes conclusões: (transcrição)


Não poderia ter sido rejeitada esta acusação invocando a Exm.ª Juiz ser manifestamente infundada, como dita no Douto Despacho: “… não indicar as provas que a fundamentam… é totalmente omissa quanto às provas que a fundamentam… limita-se a indicar como prova “a da acusação”, sem que exista qualquer acusação anterior, o que equivale á falta de indicação de qualquer prova testemunhal ou documental.”


Ora como afirma a Exm.ª juiz no Douto Despacho, “indica como prova…”, significa que o Assistente indica a prova só que por mero lapso de escrita não ficou registada a prova que pretendia apresentar, passando a constar a “a da Acusação”, mas não corresponde á verdade que seja “omissa quanto á prova” indica a prova mas com um lapso de escrita;


É certo que a acusação particular refere “A da acusação”, quando se refere á prova, mas queria o assistente que consta-se na dita acusação, a prova que consta dos autos do processo em causa, mas não ficou gravado o texto que a continha, assumindo o anterior, ficando este ciente que tinha alterado para o testo atual a dita prova;


O Douto Despacho recorrido confirma a existência de lapso de escrita quando afirma que “… limita-se a indicar como prova “a da Acusação”, sem que exista qualquer acusação anterior…”


Do exposto se retira claramente que se está perante um erro de escrita;


Assim não deveria ter sido rejeitada esta acusação por força da falta de prova, sendo que como confirma o Douto Despacho, a prova é indicada mas incorretamente, indicando “a da acusação” que aqui não existe, o que confirma claramente que é um lapso de escrita, como já se demonstrou


A aposição da expressão “a da acusação” no capítulo da prova na acusação não passou de um mero (embora lamentável) erro material, conforme art.º 249.º do C Civil, absolutamente revelado no próprio contexto da declaração e confirmado no Douto Despacho quando se afirma “a da acusação” “sem que exista qualquer acusação anterior…”, apenas dando direito a uma sua retificação e nunca à rejeição de uma acusação.


Conforme decorre do próprio contexto dos autos, a Exm.ª Juiz “a quo” deveria ter entendido que a alusão no capítulo da prova a “a da acusação” não era mais do que um mero lapso de escrita, perfeitamente retificável.


Considerando que a prova estava devidamente esplanada nos autos e até foi indicada pelo MP, que percebeu o dito lapso de escrita, no acompanhamento da Acusação particular feita pelo aqui recorrente, como dito trata-se de manifesto lapso cometido no capitulo da indicação da prova, o qual era naturalmente suscetível de ser suprido por parte do tribunal, face á prova que consta dos autos e que o MP faz questão de enumerar no despacho de acompanhamento da Acusação Particular;

10º
Sendo certo que o recorrente estava ciente que tinha apresentado corretamente os meios de prova na acusação particular, só percebeu o lapso de escrita que tinha lamentavelmente cometido, com a notificação do Douto despacho aqui recorrido;

11º
A decisão de rejeitar a acusação por considerar que não foi apresentada a prova, nos termos do art.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, por não efetuar uma correta interpretação da lei, é ferida de irrazoabilidade.

12º
A existir na acusação em causa uma deficiência formal á sempre possível corrigi-la (art.º 249.º do C. Civil), sem que esse facto viole o Principio da Independência do Juiz em relação às partes.

13º
É completamente diferente da rejeição da acusação por manifestamente infundada, é a simples existência de um erro ou lapso na acusação, relativamente á prova a produzir que consta do Douto despacho de acompanhamento do MP de fls. devidamente enumerada.

14º
Nos termos do art.º 380.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do Código de processo penal, o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, á correção dos atos decisórios previsto no art.º 97.º do mesmo Código, quando contiverem “erros, lapso, obscuridades ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”

15º
Neste aspeto são de considerar válidos os ensinamentos do direito civil, designadamente o disposto no art.º 249.º do Código Civil, apontado pelo recorrente, bem como o processo civil.

16º
É o contexto do escrito que tem que fornecer a demonstração clara do erro material, o que aqui acontece como se afirma no Despacho “indicar como prova “a da acusação”, sem que exista qualquer acusação anterior…”, vê-se que existe manifesto lapso de escrita!

17º
A propósito da retificação de erros materiais de escrita ou de cálculo, nos atos decisórios do Juiz, o Prof. Alberto dos reis, com a sua habitual clareza, acentuou expressamente que “é necessário que do próprio contexto da sentença ou despacho, ou nos termos que o precederam, se depreenda claramente que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever; se assim não for a aplicação do art.º 667.º é ilegal.”

18º
No caso em apreciação o Assistente na pessoa da sua mandatária no capítulo da prova indica como prova “a da acusação”, quando o que queria que constasse era a prova que constava dos autos, como de imediato á receção do Despacho corrigiu e enviou ao Tribunal a Acusação devidamente corrigida com o pedido de aceitação da correção, nos termos do art.º 249.º do C. Civil, porque claramente o que estava escrito não é o que queriam escrever, e a correção do erro é feita por mero despacho;

19º
Mais o MP retificou por via acusatória, com indicação da respetiva prova testemunhal e documental vide fls. 104/105, ora o tribunal oficiosamente pode corrigir um erro de escrita, suprindo assim o erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade…

20º
A acusação não padece assim, da nulidade a que alude os arts. 283.º, n.º 3, als. d a f)) do C.P.P., ex vi do art.º 285.º, nºs 1 e 3 do mesmo Código, nem é manifestamente infundada nos termos do art.º 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, do mesmo Código. Mais a nulidade por “falta de indicação da prova”, neste caso “erro na indicação da prova”, não é de conhecimento oficioso, como dita o art.º 120, n.º 1 do C.P.P. .

21º
Não passando a referência no capítulo da prova a “a da acusação” de um simples erro material, de um lapso manifesto, urge proceder à sua correção nos termos do art.º 380.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Código de processo Penal e 249.º do Código Civil.

Deve, assim, em consequência, ser revogado o douto despacho de fls. e substituído por outro que receba a acusação particular e o consequente Pedido de Indemnização Civil, nos autos contra P.

Termos em que se pede a procedência do presente recurso, com as legais consequências, desta forma se fazendo a acostumada e pretendida justiça!

8. Igualmente o M.º P.º veio interpor recurso, concluindo nos termos seguintes: (transcrição)

1 – A Mma Juiz no despacho de fls. 117 a 120 rejeitou a acusação particular por manifestamente infundada com base na falta de indicação dos meios de prova;

2 -Salvo o devido respeito, a acusação particular deve ser apreciada em conjunto com a acusação do Ministério Público que a veio complementar indicando os meios de prova;

3 – O Ministério Público acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente e complementou aquela indicando os meios de prova;

4- O Ministério Público pode/deve completar a acusação particular, desde que, do complemento, não resulte uma alteração substancial dos factos descritos na acusação particular, conforme resulta do disposto no artigo 285.º, nº 4 do CPP;

5- A mera indicação dos meios de prova não pode ser qualificada como alteração substancial dos factos;

6- A acusação particular deduzida pela assistente, que se encontrava viciada pela falta de indicação dos meios de prova, tornou-se válida com o referido complemento da acusação do Ministério Público;

7- Na verdade, até o assistente, nos 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, pode também deduzir acusação pelos mesmos factos, ou parte deles, ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles cfr. Art. 284.º do C.P.P. e o nº2 al b) do mesmo preceito legal estipula que só são indicadas a produzir ou a requerer que não constem da acusação do Ministério Público;

8- A acusação do assistente que acompanha a acusação pública pode indicar provas diferentes das indicadas na acusação pública. E é nossa convicção, por identidade de razão, que de igual modo, pode o Ministério Público apresentar prova diferente da indicada na acusação particular, na sua acusação de acompanhamento;

9- Usando o mesmo raciocínio, nada obsta a que o Ministério Público ao acompanhar a acusação particular, possa/deva indicar a prova a produzir ou a requerer, mesmo quando no caso a acusação particular se limitou a dizer “a da acusação”;

10- Na fase de saneamento, ao proferir o despacho a que alude o artigo 311.º, do CPP, o presidente tem de apreciar em conjunto a acusação particular e a acusação do Ministério Público de acompanhamento daquela, pois que cada uma delas se interliga e formam uma unidade interdependente;

11- A acusação particular depois de complementada pela acusação proferida pelo Ministério Público, a fls. 97 a 103 e 104/105, não é manifestamente infundada e deve ser recebida e designada data, hora e local para a audiência;

12- O despacho recorrido, ao rejeitar a acusação particular sem atender à acusação de acompanhamento do Ministério Público, violou ou interpretou de forma incorrecta o disposto nos artigos 285.º, nº4, e 311.º, nº2, al. a), e nº3, al. c), todos do CPP.

9. O assistente igualmente interpôs recurso do despacho que não considerou ter havido lapso de escrita e que não admitiu a retificação da acusação particular, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)


Alega a Exm.ª Sr.ª Dr.ª Juiz no Douto Despacho aqui recorrido que não inutiliza o Despacho proferido a 05-04-2016, “… por falta de fundamento legal.”


Ora quem não tem fundamento legal para emitir o Douto Despacho de 05-04-2016 e a Exm.ª Sr.ª Dr.ª Juiz do Tribunal recorrido;

Porquanto; a nulidade invocada pela Exm.ª Sr.ª Dr.ª Juiz do tribunal recorrido é a “falta de indicação da prova”;


Acontece que, a alegada, invocada nulidade, não é de conhecimento oficioso como dita claramente o art.º 120, n.º 1 do C.P.Penal: “1. Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados…”;


O procedimento a tomar pela Exm.ª Sr.ª Dr.ª Juiz do tribunal recorrido, quando tomou conhecimento da irregularidade, erro de escrita no “capítulo


Sendo que, se tal erro de escrita não fosse reparado afetaria o valor do ato praticado.


De notar que já se encontra nos autos a Acusação Particular devidamente retificada, tendo sido tacitamente aceite pelo Tribunal recorrido a sua junção aos autos, porquanto, não foi neste despacho recorrido ordenado o seu desentranhamento dos autos.


Mais, o MP já tinha reparado o erro que se encontrava no capítulo “Da Prova”, e muito bem, porque o tribunal tem competência para reparar erros de escrita que perceba nos autos, nos termos do art.º 249 do Código Civil e art.º 380, n.ºs 1, al. b) e 3 do Código de processo Penal.


A acusação não padece assim, da nulidade a que alude os arts. 283.º, n.º 3, als. d a f)) do C.P.P., ex vi do art.º 285.º, nºs 1 e 3 do mesmo Código, nem é manifestamente infundada nos termos do art.º 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, do mesmo Código. Mais a nulidade por “falta de indicação da prova”, neste caso “erro na indicação da prova”, não é de conhecimento oficioso, como dita o art.º 120, n.º 1 do C.P.P. .


Não passando a referência no capítulo da prova a “a da acusação” de um simples erro material, de um lapso manifesto, urge proceder à sua correção nos termos do art.º 380.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Código de processo Penal e 249.º do Código Civil. Retificação que já se encontra junta aos autos.

Deve, assim, em consequência, ser revogado o douto despacho aqui recorrido, datado de 04-05-2016, bem como o Douto despacho datado de 05-04-2016 que lhe deu azo e substituídos por outro que receba a acusação particular e o consequente Pedido de Indemnização Civil, nos autos contra P.

Termos em que se pede a procedência do presente recurso, com as legais consequências, desta forma se fazendo a acostumada e pretendida justiça!

10.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procurador-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que se passa a designar de CPPenal), emitiu parecer pronunciando-se no sentido da improcedência dos recursos interpostos, defendendo que se está efetivamente perante acusação manifestamente infundada.

Foi apresentada resposta ao parecer por parte do Assistente, mantendo todo o posicionamento assumido nos requerimentos de interposição de recurso.

11. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do CPPenal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido.

Tendo em conta os fundamentos dos recursos interpostos pelo Assistente e pelo Ministério Público, importa apreciar e decidir as seguintes questões:

-acusação particular manifestamente infundada por falta de indicação dos meios de prova;
-erro de escrita na ausência de indicação dos meios de prova.

2. Apreciação
Como acima se expendeu, o thema decidendum cinge-se, num primeiro momento, à verificação ou não de situação enquadrável na previsão da última parte da alínea c) do nº3 do artigo 311.º do CPPenal que, a verificar-se conduz à existência de acusação manifestamente infundada.

Parece extrair-se do normativo que integra o nº3 do artigo 311.º do CPPenal que, não obstante o legislador não o afirmar categoricamente, foi seu objetivo consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua qualidade, gravidade e intensidade em termos de violação dos princípios enformadores do ordenamento processual penal e expressos na CRP, são irremediáveis/insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.

Na verdade, olhando para as diversas alíneas que compõem o preceito em referência, surge patente que a falha de algum dos elementos ali indicados, na peça acusatória proferida, determinaria uma clara/evidente/inevitável violação dos direitos de defesa do arguido/acusado, limitando, pelo menos, se não mesmo inviabilizando, o exercício dos direitos consagrados no artigo 32.º da CRP.

Realizadas as diligências de investigação e recolha de provas sobre a notícia de um crime, procede-se ao encerramento do inquérito. Inexiste propriamente um ato formal/especifico de encerramento – este decorre da decisão por parte do MºPº, de arquivamento (artigo 277.º do CPPenal), de dedução de acusação pelo MºPº (artigo 283.º do CPPenal), de notificação ao assistente para deduzir acusação, no caso de crimes particulares (artigo 285.º do CPPenal) ou pela decisão de suspender provisoriamente o processo (artigo 281.º do CPPenal)[1].

Concluindo-se pela existência de indícios do cometimento de um crime e de quem foi o seu autor, o MºPº deduz acusação no prazo de dez dias contra aquele (artigo 283.º do CPPenal), sendo que, nos casos de procedimento dependendo de acusação particular, findo o inquérito, o MºPº notifica o assistente para que este, querendo, deduza acusação particular no prazo de dez dias (artigo 285.º do CPPenal).

A acusação, tal como denuncia o artigo 283.º, nº3 do diploma que se vem referindo, está sujeita à observância de diversas formalidades, sob pena de ser nula – indicação da identificação do arguido, narração dos factos, indicação das disposições legais aplicáveis, rol de testemunhas/indicação de peritos e consultores técnicos e de outras provas a produzir ou a requerer, data e assinatura.

As exigências acima escrutinadas aplicam-se, igualmente, à acusação pública e à acusação particular – cf. artigo 285.º, nº3 do CPPenal.

Cumprirá então olhar o quadro em presença nestes autos.

Mostra-se cristalino, crê-se, que está desenhado retrato que integra um crime de natureza particular e, consequentemente, a prossecução processual depende de ação do assistente que, nesta fase, culmina com a dedução de acusação.

Apresenta-se inexoravelmente inquestionável que à acusação particular se aplicam as regras exigidas à acusação pública, sendo que é a acusação, vista no seu todo, que fixa o objeto do processo, dentro do qual se vai mover toda a ação do juiz de instrução e/ou do julgamento, apresentando-se como a base onde se vai desenrolar o contraditório, o exercício do direito de defesa. Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efetividade implica uma definição clara e precisa do objeto do processo - artigo 32.º, nºs 1 e 5 da CRP.

E, nesta senda, parece também notório que a ausência de indicação de provas – sejam elas quais forem - que sustentem os factos que se imputam a alguém, para além de não respeitar o plasmado nos normativos supracitados que determinariam a nulidade da acusação[2], constitui no momento da prolação do despacho a que se refere o artigo 311.º do CPPenal, motivo de se considerar acusação manifestamente infundada.

Por seu turno, também parece inquestionável que, aquando do despacho a proferir nos termos do artigo 311.º do CPPenal, as regras a observar são as aqui expressas e, consequentemente, a disciplina que este encerra prefere a qualquer outra, por ser exatamente um dispositivo específico do momento – os vícios enumerados no nº3 do artigo 311º, sobrepõem-se às nulidades do artigo 283.º, nº3 e consequentemente às que possam decorrer nas situações de dedução de acusação particular nos crimes de natureza particular, pelo que essas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso -, pelo que a consequência ali prevista – acusação manifestamente infundada – é a que se tem de retirar[3].

Acresce que por força do regime aqui consagrado, a acusação particular que não indique provas que a fundamentem, remetida para fase de julgamento, é manifestamente infundada[4].

Ora, no caso dos autos o assistente/recorrente, estando em causa um crime de natureza particular – crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, nº1 do CPenal -, deduziu acusação, mas, no libelo acusatório não indicou qualquer prova. Limitou-se a consignar “DA PROVA - A da acusação”. Inexistindo outra acusação que não a sua, parece óbvio que não se indica prova, não há qualquer indicação de prova, a prova elencada pura e simplesmente não existe.

E não se diga que se está perante um erro de escrita ou que tal falha foi completada com o acompanhamento pelo MºPº da acusação particular, onde este indicou prova e, como se alega, complementou a acusação particular.

Um erro de escrita é um lapso visível/imediato, que numa leitura rápida e até superficial, se deteta. Não é o caso. Aqui o que sobressai é uma completa ausência de menção a prova, não é um engano num nome, numa referência. Não há qualquer erro, há uma total omissão de indicação/alusão.

Por seu turno, não se complementa o que não existe. O nada não é complementado com nada. É simplesmente nada. Complementar significa adicionar/acrescentar. Ora tal pressupõe a existência de algo a que se vai acrescentar/adicionar. Daí ser incompreensível o defendido pelo MºPº em primeira instância. O que o MºPº fez, foi indicar a prova ex novo e não a complementar.

Diga-se ainda, que não se alcança o que pretende o MºPº em primeira instância, com a defesa de que ao indicar a prova, “complementando/completando” a acusação particular, não está a proceder a uma alteração substancial dos factos. Trata-se de uma alegação frouxa e sem qualquer suporte nestes autos.

Aqui discute-se tão-só ter ou não havido o respeito pela exigência ínsita na parte final da alínea c) do nº3 do artigo 311.º do CPPenal, ou seja, ter ou não o assistente indicado as provas que fundamentam a sua acusação. Não está em causa a narração factual levada a cabo na peça acusatória.

Colhe também, em jeito final aduzir que, sendo entendimento dos tribunais que a simples ausência da identificação de testemunhas configura motivo de não admissibilidade do respetivo rol[5], a não indicação/apresentação de qualquer prova na acusação, para além de não assumir a qualidade de mero erro/lapso, não é senão causa que integra a noção de peça acusatória manifestamente infundada.

Em presença do expendido, entende-se que na verdade se está perante uma acusação – a do assistente – manifestamente infundada, sendo que estando em causa um crime de natureza particular, a acusação púbica carece de suporte pois, não tem o MºPº legitimidade para prossecução do respetivo procedimento – cf. artigo 50, nº1 do CPPenal.

Face ao ora concluído, mostra-se prejudicado o pronunciamento específico quanto à segunda questão suscitada como a conhecer - erro de escrita na ausência de indicação dos meios de prova - que, aliás, estando interligada com a primeira, foi objeto de análise.

Assim se retira que a decisão recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida, sendo de negar provimento ao recurso interposto pelo Assistente.

III - Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – 2ªSubsecção - desta Relação de Évora em negar provimento aos recursos interpostos pelo assistente C e pelo Mº Pº mantendo-se as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 29 de novembro de 2016
(o presente acórdão, integrado por onze páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do CPPenal.)

__________________
(Carlos de Campos Lobo)

__________________
(António Condesso)

_________________________________________________
[1] Neste sentido SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2009, pg. 107.

[2] “Uma acusação sem indicação dos meios de prova a produzir é uma acusação nula, já que o acusador não se propõe produzir prova em julgamento e toda a prova necessária à condenação há-de ser necessariamente produzida ou discutida em audiência de julgamento” – SILVA, Germano Marques da, ibidem, pg. 121.

No mesmo sentido ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pg.744

[3] Neste sentido o Acórdão do STJ de 17/11/2010, proferido no processo nº 51/10.7YFLSB.S1, disponível em dgsi.pt.

[4] Neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 21/09/2005, proferido no processo nº 42089/2005, citado em GASPAR António da Silva Henriques e outros, Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2016, 2ª edição revista, pg. 994 – “é manifestamente infundada, devendo por isso ser rejeitada, a acusação particular que não indica as provas que a fundamentam e que só vem a ser corrigida depois de expirado o prazo referido no artigo 285.º, nº1”.

[5] Neste sentido o Acórdão da Relação de Évora de 30/06/2015, proferido no processo nº 627/13.0PBFIG.E1, Relator RENATO BARROSO, disponível em dgsi.pt