Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
90/20.0PTSTR.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DE FORMA DESCONTÍNUA
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO APENAS QUANTO A CERTOS VEÍCULOS
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Não é admissível a suspensão da pena de proibição de conduzir, nem a sua substituição por caução ou prestação de trabalho a favor da comunidade no processo penal, independentemente do destino da pena principal, uma vez que aquela suspensão e esta substituição só estão previstas no CE no âmbito do direito contra-ordenacional.

-A proibição tem um efeito contínuo, como resulta do artigo 500.º, n.º 4, do CPP e do artigo 138.º, n.º 4, do CE (acórdão do TC n.º 440/2002). Por isso, a proibição não pode ser limitada a certos períodos da semana ou do dia.

-A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria. Também aqui é de entender que a proibição tem efeito universal, valendo a proibição para todos os veículos motorizados, mesmo os que não necessitam de licença para conduzir, atenta a supressão da expressão «ou de uma categoria determinada» no artigo 69, n.º 2, do CP, pela Lei n.º 77/2001, de 13.07.”

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de …(J2) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 90/20.0PTSTR e aí, após a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição):

“Tudo visto e ponderado, este tribunal decide julgar a acusação procedente, por provada e, consequentemente:

- Condenar o AA, pela prática de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292, n.º 1 do C.Penal, na pena de 65 dias de multa, à taxa diária de €5,50 ( cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de €357,50.

- Condenar o arguido na pena acessória de inibição de conduzir de todo e qualquer veiculo a motor de 3 meses e 20 dias, nos termos do artigo 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, devendo entregar no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente decisão, na secretaria deste Tribunal ou num posto policial, a sua carta de condução, sob pena de não o fazendo, incorrer na pratica de um crime de desobediência.”

Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1º - O arguido foi judicialmente condenado em pena principal e acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses e 20 dias;

2º - Essa Sentença é – sem conceder – judiciosa, há que reconhecê-lo;

3º - Todavia, o que se impugna é a circunstância de não poder a mesma pena acessória ser suspensa na sua execução, por aplicação do previsto no artº50º do CP se devidamente conjugado com o artº13º-2 da CRP, pois permitindo-se a suspensão da execução de pena de prisão não existe, em face do princípio da igualmente, motivo para as demais penas não poderem ser suspensas igualmente;

4º - Da mesma forma existe a possibilidade legal de o Tribunal fasear o cumprimento da pena definindo períodos concretos da inibição, uma vez que o artº 69º do CP não colide com essa eventualidade;

5º - Por fim pode o Tribunal definir a proibição de condução de certos veículos e permitir a condução de outros, isso resultando da análise do artº 69º-2 do CP;

6º - Pelo que se trata, recursivamente, de colocar a questão de tais entendimentos à consideração alta e douta de V. Excelências, crendo-se estar a delimitar considerações que não são espúrias nem esdrúxulas, sendo o tema cada vez mais atual pelo impacto exagerado que a aplicação judicial que vem sendo feita é altamente penalizadora dos cidadãos;

7º - Que, de resto, podem ser submetidos a atividades ou a pagamentos que igualmente visem alterar o paradigma agora recorrido, nos sobreditos termos.”

O recurso foi admitido.

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo:

“1- Estabelece o art.º 69º, nº 1, al. c), do Código Penal, que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) por crime previsto nos artigos 291º ou 292º do Código Penal”.

2- Esta pena está dependente da aplicação de uma pena principal e corporiza uma censura adicional pelo facto praticado, visando prevenir a perigosidade deste, sendo que, esta perigosidade está intimamente conexionada com o perigo que subjaz ao próprio facto ilícito típico de que depende a sua aplicação

3- Não é legalmente admissível, por não ter sido previsto pelo legislador penal, a suspensão da execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.º do Código da Estrada.

4- A pena acessória corporiza uma censura adicional pelo facto praticado, visando prevenir a perigosidade deste.

5- Tendo esse objetivo, é-lhe alheia a finalidade de reintegração do agente na sociedade, pelo que não lhe pode ser aplicável o instituto da suspensão previsto no art.º 50º, do C. Penal.

6- Este preceito legal, apenas permite a suspensão da execução das penas de prisão, pelo que este normativo não pode ser aplicável no presente caso.

7- Mesmo que os factos apurados pudessem alicerçar a formulação de um prognóstico favorável, nos termos do art.º 50º, do C. Penal, pelas razões explanadas, a pena acessória aplicada ao arguido nunca poderia ser suspensa na sua execução.

8- O nosso ordenamento penal unicamente prevê a possibilidade de substituição da pena de prisão não superior a 2 anos por prestação de trabalho a favor da comunidade e a pena de multa em medida não superior a 240 dias por admoestação, não contemplando tais normas a possibilidade de em circunstância alguma a pena acessória de proibição de conduzir poder ser substituída por admoestação ou trabalho a favor da comunidade

9- A pena acessória de proibição de conduzir, visa prevenir a perigosidade que está imanente na própria norma incriminatória, que a justifica e impõe, sendo-lhe indiferente, quaisquer outras finalidades, tal desiderato só poderá ser conseguido mediante a execução plena e efetiva da correspondente pena.

10- Só através da proibição (efectiva e plena) da condução tal é alcançável, pelo que a execução da pena acessória de proibição de conduzir não é passível de suspensão, nem de interrupções e intervalos, nem de apenas ser cumprida em período à escolha do condenado

11- A pena acessória de proibição de conduzir tal como a inibição de conduzir imposta em matéria de contraordenação rodoviária se concretiza com a entrega voluntária do título de condução ou com a sua apreensão, ficando retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição sendo, obviamente, cumprida de forma continua, pelo que o cumprimento dessa sanção não pode ser deferido “a prestações”, nem segundo qualquer critério à escolha do condenado, sendo absolutamente irrelevante a circunstância de eventualmente o arguido necessitar da carta de condução para exercer com normalidade, bem como as consequências que eventualmente possam advir da proibição de conduzir para si ou outrem, designadamente para os que estão na sua dependência

12- O art.º 69º nº 2 do Código Penal não contém qualquer referência expressa à possibilidade de a proibição de conduzir veículos com motor abranger apenas uma categoria determinada deles, ou uma espécie deles com exclusão das demais espécies”

Pugnando, em síntese, pelo seguinte:

“Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), tendo o recorrente respondido ao parecer do MP.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II. Fundamentação de facto:

Matéria de facto provada:

Da acusação

1. No dia 05.11.2020, cerca das 18h15, o arguido conduzia o veiculo automóvel ligeiro de mercadorias, marca …, modelo …, …”, matricula …, na Avenida …, em …, após ter ingerido bebidas com teor alcoólico, ode foi interveniente em acidente de viação.

2. Nas circunstancias de modo, tempo e lugar descritas, o arguido conduzia o referido veiculo com taxa de álcool no sangue (TAS) de 2,21g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, o valor de 2.033g/l.

3. O arguido sabia que estava sob a influencia de bebidas alcoólicas que ingerira, não se abstendo, ainda assim, de conduzir o veiculo ligeiro de passageiros na via pública.

4. O arguido agiu assim de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

5. O arguido seguia sozinho no veiculo.

6. Tinha percorrido cerca de 10 km até ser fiscalizado.

7. O acidente ocorreu quando o arguido tentava ultrapassar a outra viatura, que seguia à sua frente, na qual acabou por embater na parte traseira esquerda e mais que uma vez.

Do Enquadramento socioeconómico do arguido

8. O arguido encontra-se reformado.

9. Recebe cerca de €400,00.

10. Vive com a esposa, que se encontra reformada recebendo também uma pensão.

11. Não têm despesas fixas, além das normais co água, luz e gás e medicamentos.

Dos Antecedentes criminais:

O arguido não tem antecedentes criminais.

Matéria de facto não provada

Da acusação

Não resultaram factos não provados.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – Possibilidade de suspensão da pena acessória de proibição de conduzir;

2.ª questão – Possibilidade de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir de forma descontínua;

3.ª questão – Possibilidade de cumprimento da pena de proibição de condução apenas quanto a certos veículos, permitindo-se a condução de outros.

*

B. Decidindo.

1.ª questão – Possibilidade de suspensão da pena acessória de proibição de conduzir.

Inexistem quaisquer dúvidas no plano jurisprudencial e doutrinário quanto à impossibilidade da mencionada suspensão. Com efeito, “não é admissível a suspensão da pena de proibição de conduzir, nem a sua substituição por caução ou prestação de trabalho a favor da comunidade no processo penal, independentemente do destino da pena principal, uma vez que aquela suspensão e esta substituição só estão previstas no CE no âmbito do direito contra-ordenacional. (2) ”

Em síntese, a questão é improcedente, pois não é legalmente admissível a suspensão da execução da pena acessória de proibição de conduzir.

2.ª questão – Possibilidade de cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir de forma descontínua.

Segundo o recorrente, é possível fasear o cumprimento da pena acessória, definindo períodos concretos para o seu cumprimento, uma vez que o art.º 69.º do Código Penal não colide com essa eventualidade.

Entendemos que, também aqui, não legalmente admissível a pretensão do recorrente.

Com efeito, a “proibição tem um efeito contínuo, como resulta do artigo 500.º, n.º 4, do CPP e do artigo 138.º, n.º 4, do CE (acórdão do TC n.º 440/2002). Por isso, a proibição não pode ser limitada a certos períodos da semana ou do dia.” (3)

Deste modo, é também improcedente esta questão.

3.ª questão – Possibilidade de cumprimento da pena de proibição de condução apenas quanto a certos veículos, permitindo-se a condução de outros.

Segundo o recorrente, pode o Tribunal definir a proibição de condução de certos veículos e permitir a condução de outros, como resulta do art.º 69.º, n.º 2 do CP. Segundo este normativo, a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria. Também aqui é de entender que a “proibição tem efeito universal, valendo a proibição para todos os veículos motorizados, mesmo os que não necessitam de licença para conduzir, atenta a supressão da expressão «ou de uma categoria determinada» no artigo 69, n.º 2, do CP, pela Lei n.º 77/2001, de 13.07.” (4)

Assim, é igualmente improcedente esta questão.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 13 de Julho de 2022

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1 Diploma a que se pertencerão as ulteriores referências normativas que não tenham indicação diversa.

2 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, página 380, aí se referindo abundante jurisprudência, a que se acrescentará o Acórdão deste TRE de 16.05.2017 proferido no processo n.º377/16.6GGSTB.E1 (disponível em www.dgsi.pt e referido na resposta do MP ao recurso) e ainda o Acórdão do TC n.º 742/2021 de 23.09 (relatora Joana Fernandes Costa). Na doutrina, vide Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança, Universidade Católica Editora, 1996, página 28.

3 Paulo Pinto de Albuquerque in Ob. cit., página 379, também, quanto a esta questão, aí se referindo abundante jurisprudência concordante.

4 Paulo Pinto de Albuquerque, idem, ibidem, igualmente sendo mencionada, quanto a esta questão, abundante jurisprudência concordante.