Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
988/18.5T8OLH.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - o artigo 248.º do CIRE consagra um regime especial aplicável ao devedor que se encontra sujeito ao incidente da exoneração do passivo restante, na pendência desse incidente;
- após prolação da decisão final no incidente de exoneração do passivo restante, deixa tal regime de ser aplicável, podendo o devedor valer-se do instituto do apoio judiciário;
- se o benefício apenas foi requerido após ter-se verificado o desfecho do processo, não está já em causa o acesso ao direito, pretendendo o requerente eximir-se do pagamento das custas;
- o que não encontra acolhimento do instituto do apoio judiciário, aplicável de igual modo a todo e qualquer processo judicial.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrentes / Insolventes: (…) e (…)
Recorrido: Ministério Público

Os Insolventes requereram o benefício do apoio judiciário em 31/07/2018 para proporem a presente ação especial de insolvência sendo que, em 25/09/2018 tal pedido foi indeferido por decisão do Instituto da Segurança Social IP, decisão essa com que os Insolventes se conformaram.
O processo de insolvência iniciou-se, foi proferida a sentença de declaração da insolvência, foi admitido o incidente de exoneração do passivo restante que veio a ser encerrado com a concessão da exoneração.
Na sentença que pôs termo ao incidente, proferida a 18/07/2022, a responsabilidade pelas custas foi fixada aos Insolventes.
Findo tal incidente e elaborada a correspondente conta de custas e encargos, os Insolventes foram notificados da conta de custas a 03/11/2022.
A 16/11/2022, os Insolventes requereram seja dada sem efeito a conta de custas, invocando gozarem do benefício do apoio judiciário, tacitamente deferido.
A 17/11/2022 os Insolventes apresentaram outro pedido de proteção jurídica para o presente processo, o qual foi deferido em 30/11/2022 na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o benefício do apoio judiciário não pode dispensar os beneficiados do pagamento das custas, uma vez que foi requerido depois da notificação da conta de custas.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida decisão conforme segue:
«a) Julgar improcedente a pretensão dos Insolventes;
b) Julgar não abrangida pelo apoio judiciário a obrigação dos Insolventes pagarem a conta de custas em pagamento nos autos e determinar que os Insolventes procedam ao seu pagamento;
c) Autorizar o pagamento das custas em prestações, nos termos e com os limites estabelecidos no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais, caso seja essa a vontade dos Insolventes e o expressem no prazo de 10 dias após trânsito da presente decisão.»

Inconformados, os Insolventes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que os dispense do pagamento das custas. Concluíram a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1 - O presente recurso vem interposto do douto despacho de fls. …, que julgou improcedente a pretensão dos Insolventes e julgou não abrangida pelo apoio judiciário a obrigação dos insolventes pagarem a conta de custas em pagamento nos autos.
2 - Salvo o devido respeito, o entendimento do Tribunal não pode proceder.
3 - Em 18/07/2022, foi proferido despacho final de exoneração do passivo, e
4 - A conta de custas foi elaborada em 03/11/2022, de acordo com a decisão proferida em 18/07/2022.
5 - Os recorrentes apresentaram pedido de proteção jurídica, o qual foi deferido na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
6 - Em 14/12/2022 foi comunicada, ao douto Tribunal a quo, a decisão de deferimento da proteção jurídica.
7 - O Mmo. Juiz a quo entendeu que o apoio judiciário concedido abrange apenas os atos praticados após a data do pedido.
8 - Ao assim decidir o Mmº Juiz a quo desconsiderou a insuficiência económica dos recorrentes e a decisão de concessão do apoio judiciário e não observou a decisão proferida no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 480/2020.
9 - O supra indicado Acórdão declarou a inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE na parte em que impede a obtenção de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que, tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica, por violação dos artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
10 - Resulta da lei que as custas que não sejam satisfeitas pela massa insolvente e pelo rendimento disponível no período de cessão, face à insuficiência, devem ser suportadas pelo devedor que tenha requerido a exoneração do passivo restante.
11 - Só após a decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo é que o insolvente está em condições de saber se face aos rendimentos disponíveis e ao valor referente às custas tem meios para proceder ao seu pagamento;
12 - Caso não tenha meios económicos para o fazer, o insolvente poderá pedir apoio judiciário, sob pena de se frustrarem os objectivos almejados com a exoneração do passivo.
13 - Exigir aos insolventes o pagamento do remanescente das custas irá voltar a colocar os ora recorrentes na mesma situação de incapacidade que levou à apresentação à insolvência,
14 - Inviabiliza o fim que se pretende alcançar com a exoneração do passivo e frustrando o seu direito à justiça.
15 - Conforme decidido no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto – Proc. 2656/15.0T8STS.P1 –, proferido em 08/03/2022, “Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente das custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições económicas (fresh start) a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.
16 - Os recorrentes mantêm a situação de insuficiência económica.
17 - Não têm condições económicas que lhes permitam suportar as custas restantes, como decorre do deferimento do pedido de proteção jurídica, pelo que,
18 - Os mesmos devem ser dispensados do pagamento das custas por gozar do benefício de apoio judiciário.
19 - Ao não decidir deste modo, o Mm. Juiz a quo violou os artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.»
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se o beneficio do apoio judiciário concedido aos Recorrentes os dispensa do pagamento das custas do processo.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os que decorrem do supra exposto.

B – O Direito
O instituto do apoio judiciário pretende garantir que, por insuficiência económica, não seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus direitos nos tribunais. Materializa, assim, o imperativo constitucional plasmado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Em consonância com o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aquele normativo constitucional determina que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Assim, o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos – artigo 1.º, n.º 1, da LAJ (Lei n.º 34/2004, de 29 de julho). O acesso ao direito compreende a informação jurídica e a proteção jurídica (artigo 2.º, n.º 2, da LAJ) sendo que a proteção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário (artigo 6.º, n.º 1, da LAJ).
O apoio judiciário, por sua vez, compreende, entre outras, a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da LAJ).
Relativamente à oportunidade de fazer valer o benefício do apoio judiciário, dispõe o artigo 18.º, n.º 2, da LAJ que o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica. Já para o caso de se verificar insuficiência económica superveniente, suspende-se o prazo para pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo até à decisão definitiva do pedido de apoio judiciário, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 24.º – n.º 3 da mencionada disposição legal.
Colhe-se do regime legal aqui citado que o instituto do apoio judiciário, destinado a garantir o exercício dos direitos em juízo, deve operar enquanto houver litigio para decidir, direitos a exercer nos tribunais. A jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional consigna o seguinte: “Já no que respeita à questão da oportunidade do pedido de apoio judiciário, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar, em jurisprudência uniforme, que o apoio judiciário tem sobretudo em vista evitar que qualquer pessoa, por insuficiência de meios económicos, veja impedido, condicionado ou dificultado o recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos, não podendo, contudo, ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa. Por esta razão se tem considerado que não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão (cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos n.ºs 508/97, 308/99, 112/2001, 297/01 e 590/2001)”.[1]
Nestes termos, “o apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, prosaicamente, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo, o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado.”[2]
Uma vez que os Recorrentes requereram o benefício do apoio judiciário após terem sido notificados da conta de custas, decorridos que estavam os termos do processo, é manifesto que não podem valer-se dele para dispensa do pagamento da referida conta.
Coloca-se, então, a questão de saber se o regime contemplado no artigo 248.º do CIRE implica alteração de tal conclusão. Dispõe o seguinte:
1 - O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2 - Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3 - Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.
4 - (Revogado.)
O n.º 4 foi revogado pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, sendo que contemplava a seguinte redação: o benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono. Essa revogação foi subsequente ao Ac. TC n.º 418/2021 (DR n.º 142/2021, série I de 23/07/2021) que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, na parte que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade da dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do pedido de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.
Na vigência do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE entendia-se que o deferimento do momento de pagamento das custas devidas no processo de insolvência consagrado no n.º 1 vigorava tão só enquanto o património do insolvente estivesse submetido ao administrador de insolvência, a quem competirá, além do mais, proceder ao pagamento das dívidas, incluindo das custas judiciais.[3] «O n.º 1 do artigo 248.º do CIRE regula o período temporal entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final proferida sobre tal pedido, pelo que o disposto no n.º 4 desse artigo, que expressamente remete para o benefício concedido no seu n.º 1, apenas se pode reportar a esse mesmo período temporal. Assim, a partir do momento em que é proferida decisão final, deixa de vigorar tal benefício e, em consequência, as modalidades do regime do apoio judiciário que tinham sido afastadas voltam a valer na sua plenitude.»[4]
Com a revogação do n.º 4 resulta evidenciado o acerto da citada jurisprudência.
O artigo 248.º do CIRE consagra um regime especial aplicável ao devedor que se encontra sujeito ao incidente da exoneração do passivo restante. No decurso de tal procedimento beneficia do diferimento do pagamento das custas, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, e, sendo concedida a exoneração do passivo restante, assiste-lhe o direito ao pagamento das custas em prestações nos moldes estabelecidos no artigo 33.º do RCP. Após prolação da decisão final no incidente de exoneração do passivo restante, deixa tal regime de ser aplicável, podendo o devedor valer-se do instituto do apoio judiciário.
Sujeito estará, no entanto, ao regime do apoio judiciário na sua essência, tal qual se conforma para aplicação, de igual modo, a todo e qualquer processo judicial. Se acaso demonstrou, aquando do pedido de exoneração do passivo restante, beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça e encargos, findo o procedimento e notificado que seja da conta de custas, encontra-se dispensado do respetivo pagamento.[5] Se apenas requereu o benefício do apoio judiciário após ter-se verificado o desfecho do processo, então não está já em causa o acesso ao direito; pretende só eximir-se do pagamento das custas, o que não encontra acolhimento do instituto do apoio judiciário.
Dado que os Recorrentes apenas requereram, junto da Segurança Social, o benefício do apoio judiciário após terem sido notificados da conta de custas, decidido que estava o incidente, revela-se tal requerimento inoportuno (artigo 18.º, n.º 2, da LAJ) e destituído de efeito relativamente às custas contadas.
Não merece, assim, censura a decisão proferida em 1.ª Instância.

Sem custas, dado o beneficio do apoio judiciário de que gozam os Recorrentes.

Sumário:
(…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Sem custas.
*
Évora, 30 de março de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite

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[1] Ac. do TC n.º 215/12 (DR - 2.ª Série, n.º 102, de 25/05/2012).
[2] Ac. do TRP de 12/01/2021 (José Igreja de Matos).
[3] Cfr. Ac. do TRE de 21/11/2019 (Tomé de Carvalho), subscrito pela aqui relatora.
[4] Ac. do TRE de 23/04/2020 (Emília Costa), secundando, entre outros, o referido acórdão do TRE de 21/11/2019.
[5] Situação factual verificada nos casos apreciados nos Acórdãos do TRE de 21/11/2019 e de 23/04/2020, já citados.