Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2318/19.0T8PTM.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ADVOGADO
SIGILO PROFISSIONAL
PREVALÊNCIA
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da concreta factualidade que se pretende apurar com recurso aos documentos bancários abrangidos pelo segredo profissional, bem como a relevância de tal consulta pela autoridade tributária, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios que permitam alcançar tal desiderato.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2318/19.0T8PTM.E1
Juízo Local Cível de Portimão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

A Direção de Finanças de Faro – Autoridade Tributária e Aduaneira, representada pelo Diretor de Finanças de Faro, intentou contra (…), advogado, a presente ação especial de suprimento, nos termos previstos nos artigos 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, e 1000.º do Código de Processo Civil, requerendo o levantamento do segredo profissional invocado pelo requerido e autorização judicial para aceder às contas bancárias do mesmo, relativamente aos anos de 2016 e 2017, de modo a fiscalizar o cumprimento de obrigações tributárias.
A justificar o pedido, alega, em síntese, que decorre desde 13-03-2019 uma ação de inspeção externa de âmbito geral ao requerido, que exerce a atividade de advogado, visando o controlo de operações bancárias suspeitas, bem como a verificação e comprovação do cumprimento das obrigações tributárias, relativas aos anos de 2016 e 2017. Sustenta que detetou, numa situação em que o requerido agiu como representante de cliente em liquidação de IMT/IS relativa a aquisição de imóveis, a inexistência de emissão de fatura-recibo em nome do cliente; mais detetou, em diversas situações relativas à celebração de escrituras por clientes do requerido, que as despesas, nomeadamente com IMT, IS, cartório e registos, foram pagas pelo requerido, não tendo os pagamentos sido efetuados a partir da conta bancária refletida na contabilidade; detetou, ainda, que os pagamentos a que respeitam as faturas-recibo emitidas foram, na maioria das vezes, efetuados através de transferência bancária de uma conta do próprio requerido, não existindo na contabilidade qualquer documento de suporte de tais pagamentos; mais detetou que, nos anos em apreço, não foram emitidas pelo requerido faturas-recibo relativas a verbas de adiantamentos, por conta de honorários ou pagamento de despesas por conta e em nome do cliente, o que não é normal neste tipo de atividade; constatou que foram emitidas faturas-recibo cujo recebimento foi considerado efetuado em dinheiro, tendo alguns desses recebimentos sido depositados na conta bancária constante da contabilidade e não tendo sido verificado o mesmo procedimento relativamente a outras faturas-recibo, desconhecendo-se se terão sido depositados noutra conta; noutras situações as transferências entre contas são efetuadas dias após a emissão da fatura-recibo, como tudo melhor consta do requerimento inicial. Acrescenta que, na sequência de notificação pessoal para autorização de acesso aos documentos bancários de todas as contas por si detidas, referentes aos movimentos realizados nos exercícios de 2016 e 2017, o requerido negou tal autorização, comunicando o seguinte: «(…) não autorizo o levantamento do sigilo bancário referente à conta clientes com o n.º (…) do Banco (…), uma vez que a mesma está abrangida pelo sigilo profissional, decorrente das normas deontológicas que regulam a minha atividade enquanto advogado e à conduta de sigilo que as minhas relações profissionais com os clientes obrigam».
O requerido apresentou contestação, alegando, em síntese, que não foram demonstrados fundamentos de facto ou situações potencialmente enunciadoras de atuação concreta que justifiquem a quebra do segredo profissional para acesso às contas bancárias de que é titular, pugnando no sentido do indeferimento do pedido formulado.
A 1.ª instância, por despacho de 14-06-2022, considerou legítima a escusa e determinou a remessa dos autos a esta Relação, com invocação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Remetidos os autos a esta Relação, determinou-se a audição da Ordem dos Advogados, tendo-se solicitado a emissão de parecer.
O Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados emitiu parecer a 20-09-2022, no sentido de «não se dever proceder ao levantamento de sigilo profissional, nos termos e quanto aos factos pedidos, no âmbito do Processo 2318/19.0T8PTM, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos legais para a quebra do mesmo».

2. Fundamentos

2.1. Fundamentos de facto
A 1.ª instância não indicou factualidade tida por assente.

2.2. Fundamentos de direito
A Direção de Finanças de Faro – Autoridade Tributária e Aduaneira intentou ação especial de suprimento, ao abrigo do disposto no artigo 1000.º do Código de Processo Civil e invocando o estatuído no artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, requerendo autorização judicial para aceder às contas bancárias do requerido, relativamente aos anos de 2016 e 2017, de modo a fiscalizar o cumprimento de obrigações tributárias, sustentando que o requerido é advogado e deduziu oposição à consulta de tais elementos com fundamento no dever de sigilo profissional, defendendo a requerente o levantamento de tal segredo profissional e a concessão da pretendida autorização.
Sob a epígrafe Suprimento de consentimento no caso de recusa, dispõe o artigo 1000.º do CPC o seguinte: 1 - Se for pedido o suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite, com o fundamento de recusa, é citado o recusante para contestar. 2 - Deduzindo o citado contestação, é designado dia para a audiência final, depois de concluídas as diligências que haja necessidade de realizar previamente. 3 - Na audiência são ouvidos os interessados e, produzidas as provas que forem admitidas, resolve-se, sendo a resolução transcrita na ata da audiência. 4 - Não havendo contestação, o juiz resolve, depois de obter as informações e esclarecimentos necessários.
Conforme explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 454), «este processo tem como pressuposto a existência de norma de direito substantivo que permita o suprimento judicial em face da respetiva recusa», sendo que, no caso presente, a requerente invoca o estatuído no artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária.
O artigo 63.º da LGT, com a epígrafe Inspeção, dispõe, no n.º 1, o seguinte: Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente: a) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua atividade ou com a dos demais obrigados fiscais; b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecer a sua situação tributária; c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução; d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas; e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais; f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da ação inspetiva. Estabelece o n.º 2 a seguinte ressalva: O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável. Acrescenta o n.º 3: Sem prejuízo do número anterior, o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário e pelo sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro faz-se nos termos previstos nos artigos 63.º-A, 63.º-B e 63.º-C. Esclarece o n.º 5, além do mais, que a falta de cooperação na realização das diligências previstas no n.º 1 será legítima quando, entre outras situações, as mesmas impliquem: b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, com exceção do segredo bancário e do sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro, realizada nos termos do n.º 3. Dispõe o n.º 6 o seguinte: Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária.
No caso presente, sendo o requerido advogado e tendo negado a autorização solicitada pela autoridade tributária para acesso a determinados documentos bancários, invocando o dever de sigilo profissional, mostra-se preenchida a previsão do n.º 6 do preceito, nos termos do qual a realização da diligência depende de autorização judicial, com base em pedido fundamentado da administração tributária.
A questão do levantamento do segredo profissional configura matéria incidental suscitada no âmbito da ação judicial, intentada na 1.ª instância, visando a concessão de autorização para a consulta, pela administração tributária, de todas as contas bancárias na titularidade do requerido, relativamente aos anos de 2016 e 2017, com o objetivo de fiscalizar o cumprimento de obrigações tributárias.
A 1.ª instância considerou legítima a recusa e determinou a remessa dos autos a esta Relação, com invocação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Com a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil o seguinte: Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Acrescenta o n.º 3 do preceito que a recusa é, porém, legítima se a obediência importar, entre outras situações, a prevista na alínea c): a violação do sigilo profissional. Esclarece o n.º 4 que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Tendo o requerido recusado a autorização em causa com fundamento na violação do sigilo profissional, cumpre atender, por força do estatuído no artigo 63.º da LGT e no n.º 4 do artigo 417.º do CPC, ao disposto no artigo 135.º do CPP, designadamente às normas constantes dos seus n.ºs 2 e 3, com a redação seguinte: 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Acrescenta o n.º 4 deste preceito o seguinte: 4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência: 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
Extrai-se da análise deste regime, e conforme decorre do citado AUJ, que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento; se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional.
À luz deste regime, com as adaptações decorrentes de a questão do levantamento do segredo profissional integrar o próprio objeto da ação, nos termos supra expostos, verifica-se que, tendo o tribunal de 1.ª instância considerado legítima a recusa, caberá a esta Relação decidir sobre a quebra do segredo, ouvindo previamente o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
A solicitação desta Relação, o Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de não se dever proceder ao levantamento de sigilo profissional, nos termos e quanto aos factos pedidos, no âmbito do Processo n.º 2318/19.0T8PTM, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos legais para a quebra do mesmo.
Consta da fundamentação de tal parecer, além do mais, o seguinte:
Na situação descrita, estamos perante a divulgação de dados relativos a movimentos bancários do Advogado, nas suas contas profissionais, nomeadamente da conta de clientes, na qual este mantém dinheiros que lhe são entregues por clientes para realizar operações, por conta e em nome destes.
Toda a informação contida nos respetivos extratos bancários está sujeita a segredo profissional, uma vez que, através da análise dos respetivos movimentos se consegue identificar quem são os clientes do Advogado, bem como as operações de que foi o Advogado encarregue de realizar em nome e por conta dos seus clientes.
O pedido de exibição destes extratos, sem mais, coloca em causa, indiscriminadamente, informação sigilosa que o Advogado é obrigado a guardar, quer relativamente aos movimentos sobre os quais poderão existir suspeitas de práticas ilegais, quer a todas as restantes informações sobre todos os clientes relativamente aos quais o Advogado é depositário de valores.
(…)
Apesar de ser permitida a quebra de segredo profissional, tal deverá apenas ser realizado quando for essencial e não existirem outras formas de fazer a prova dos factos concretos de que é acusado, neste caso, o Advogado.
Assim, deverá Autoridade Tributária realizar todo um conjunto de diligências probatórias que a façam chegar aos factos concretos de que acusa o Advogado, nomeadamente cliente e operações em concreto (…).
Para este desiderato, deverá inclusivamente instar o Advogado para se pronunciar sobre as operações em concreto em investigação, não resultando dos documentos juntos aos autos que tal tenha sido feito.
O que Autoridade Tributária não pode é pedir, sem mais, a quebra de segredo profissional sobre todas as contas bancárias de que o Advogado é titular, acedendo a informação a que não pode aceder, por ser segrego imposto por lei e “pescar” quais as operações que entende não cumprir a lei.
A Autoridade Tributária pode servir-se dos meios de prova à sua disposição para provar eventuais infracções praticadas, mas não proceder a uma análise indiscriminada e em quebra de sigilo imposto por lei, a fim de fiscalizar se existem eventuais infracções que desconhece. Tal actuação viola claramente o dever de segredo profissional do Advogado, o qual, por ser um dever de Ordem Pública e de proteção fundamental da Justiça e do seu funcionamento, não pode ser colocado em causa fora da interpretação estrita dos seus pressupostos.
Estando em causa o sigilo profissional de advogado, há que atender ao disposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09), com a epígrafe Segredo profissional, o qual dispõe, no n.º 1, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a) a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) a factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) a factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) a factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) a factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. Esclarece o n.º 2 do mencionado artigo que a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. Acrescenta o n.º 3 do preceito que o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
Sendo o requerido advogado, cumpre averiguar se os elementos que a autoridade tributária pretende consultar estão ou não sujeitos ao invocado segredo profissional.
Pretende a Direção de Finanças de Faro – Autoridade Tributária e Aduaneira autorização para aceder e consultar as contas bancárias do requerido, relativamente aos anos de 2016 e 2017, com o objetivo de verificar o cumprimento de obrigações tributárias, por entender existirem inícios de terem sido prestados serviços não faturados.
Face à pretensão deduzida, dúvidas não há de que está em causa a consulta de documentos bancários conexos com o exercício pelo requerido da advocacia.
Decorre do citado artigo 92.º que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente os elencados nas alíneas a) a f) do n.º 1, quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial (n.º 2), abrangendo o segredo profissional, ainda, documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo (n.º 3).
Consta da petição inicial que, na sequência de notificação pessoal para autorização de acesso aos documentos bancários de todas as contas por si detidas, referentes aos movimentos realizados nos exercícios de 2016 e 2017, o requerido negou tal autorização, por comunicação escrita constante do doc. 1 junto com o aludido articulado, com o teor seguinte:
«(…) não autorizo o levantamento do sigilo bancário referente à conta clientes com o n.º (…) do Banco (…), uma vez que a mesma está abrangida pelo sigilo profissional, decorrente das normas deontológicas que regulam a minha atividade enquanto advogado e à conduta de sigilo que as minhas relações profissionais com os clientes obrigam.
Referente à conta que está registada para efeitos de contabilidade organizada n.º (…) do Banco (…), já concedi em momento anterior do presente processo todos os extractos bancários correspondentes aos períodos anuais de 2016 e 2017 sob os quais incide a presente inspeção”.
Estando em causa o acesso a elementos bancários conexos com o exercício pelo requerido da advocacia, com a finalidade de verificar o cumprimento de obrigações tributárias, aferindo da prestação de serviços remunerados não faturados, verifica-se que os documentos que a autoridade tributária pretende consultar se encontram abrangidos pelo segredo profissional.
Neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29-09-2010 (relator: Casimiro Gonçalves), proferido no processo n.º 668/10 (disponível em www.dgsi.pt), no qual se consignou, além do mais, que «(…) as informações bancárias do advogado estarão igualmente abrangidas pelo segredo profissional, pois que, ainda que de forma indirecta, se poderão relacionar com informações bancárias dos clientes e movimentos financeiros em relação aos quais o advogado está obrigado a guardar sigilo». No mesmo sentido, cf. o acórdão da Relação de Guimarães de 26-11-2020 (relator: Afonso Cabral de Andrade), proferido no processo n.º 4033/19.5T8BRG.G1 (disponível em www.dgsi.pt), em que se entendeu que «o acesso à conta bancária de Advogado por parte da AT está protegido pelo segredo profissional consagrado no artigo 92.º do EOA».
Tendo-se concluído que os documentos bancários que a autoridade tributária pretende consultar se encontram abrangidos pelo segredo profissional, impõe-se apreciar se deve ser determinado o levantamento do sigilo.
Decorre do citado artigo 135.º do CPP, cujo regime se mostra aplicável com as necessárias adaptações, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 492) o seguinte: “cabe ao tribunal superior decidir se poderá justificar-se a quebra de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento /informação para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos”. Explica Luís Filipe Pires de Sousa (Prova Testemunhal, 2016 – reimpressão, Coimbra, Almedina, pág. 246) o seguinte: “A decisão final sobre a justificação da escusa invocada pela testemunha pautar-se-á sempre pelo princípio da proibição do excesso. O segmento da norma do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo”.
Na situação em apreciação, impõe-se ponderar se o segredo profissional deve ceder perante o interesse público no combate à evasão fiscal, averiguando se existem elementos que justifiquem o acesso da autoridade tributária a documentos bancários sujeitos a sigilo para apuramento da situação tributária do advogado requerido, bem como se tal se mostra imprescindível a tal desiderato.
A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da concreta factualidade que se pretende apurar com recurso aos documentos bancários abrangidos pelo segredo profissional, bem como a relevância de tal consulta pela autoridade tributária, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios que permitam alcançar tal desiderato.
Neste sentido, cfr. o acórdão desta Relação de 9-11-2017 (relatora: Isabel Imaginário), proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se entendeu o seguinte: “o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida”.
No caso presente, a 1.ª instância não realizou quaisquer diligências, nem consignou elementos factuais considerados verificados, o que não permite aferir da relevância da diligência que a autoridade tributária pretende efetuar, nem da imprescindibilidade desta.
Efetivamente, face à omissão da indicação da factualidade considerada verificada, não poderá esta Relação formular qualquer juízo relativamente à existência de elementos que justifiquem o acesso da autoridade tributária a documentos bancários sujeitos a sigilo, nem à inexistência de outras diligências que permitam alcançar idêntico objetivo sem colocar em causa o dever de sigilo profissional, o que impede se considere imprescindível a consulta a todas a contas bancárias na titularidade do requerido.
Assim sendo, não poderá esta Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional, o qual se não poderá decretar.
No caso presente, mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente, o que não impede a eventual dedução de novo incidente devidamente fundamentado, se assim vier a ser entendido.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em indeferir o incidente de levantamento do sigilo profissional.
Sem custas.
Notifique.

Évora, 27-10-2022
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)