Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1372/22.1T8FAR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA REGULARIDADE E LICITUDE DO DESPEDIMENTO
DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
CONTRATO DE MANDATO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Na ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, a falta de resposta à reconvenção tem como consequência direta terem-se por provados os factos alegados que sustentam o pedido reconvencional, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
II- Compete ao trabalhador que se arroga titular do direito à remuneração por trabalho suplementar, alegar e provar que prestou trabalho para além do horário normal, em circunstâncias que conferem o direito a tal retribuição.
III- Num caso singular como o dos autos, em que na mesma pessoa se cumulam a qualidade de trabalhadora subordinada, com a categoria profissional de cozinheira, e a de mandatária do empregador, que era seu filho, para a gestão do estabelecimento, competia à trabalhadora alegar e provar que o trabalho que executou para além do seu horário diário normal, foi determinado por circunstâncias relevantes e num quadro de subordinação jurídica característico do vínculo laboral.
IV- O procedimento disciplinar não pode servir para averiguar comportamentos reveladores de incumprimento de um contrato de mandato celebrado com a trabalhadora.
V- Logo, o despedimento decorrente de tal procedimento disciplinar é ilícito, por falta de justa causa.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
Na presente ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que AA (Autora) instaurou contra BB (Réu), foi proferida sentença, contendo o seguinte dispositivo:
«Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o R. BB a pagar à A. AA o montante de € 13.702,77 a título de retribuições em dívida no período de duração do contrato, subsídios de férias e de Natal, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal que se vencerem até integral pagamento, absolvendo-se do restante peticionado.
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Fixo o valor da ação em € 13.702,77.
A A. e o R. suportarão as custas devidas na proporção do respetivo decaimento/vencimento.
Registe e notifique.».
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A Autora interpôs recurso desta decisão, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso da sentença proferida, em 19 de Julho de 2023 e notificada à Recorrente em 20 de Julho de 2023, pelo Juízo do Trabalho ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....
B. Ora, certo é que a Recorrente foi contratada como “cozinheira de 2ª”.
C. De acordo com a Contratação Coletiva aplicável ao setor na região, a categoria profissional de “Cozinheiro de 1ª, 2ª e 3ª” tem funções detalhadas, nomeadamente “ocupar-se da preparação e confeção das refeições e pratos ligeiros; elaborar ou colaborar na elaboração das ementas, receber os víveres e os outros produtos necessários à confeção das refeições, sendo responsável pela sua guarda e conservação;” entre outros, sempre ligados à confeção de alimentos.
D. Certo é que a Recorrente desempenhou as funções de cozinheira durante seu contrato.
E. Pelo que o despedimento promovido pelo Recorrido foi, na verdade, com base em alegadas transgressões resultantes de uma procuração outorgada por aquele à Recorrente, em virtude de esta ser sua mãe.
F. Com efeito, é entendimento da Recorrente que as eventuais transgressões que foram usadas como justificação para o despedimento resultam de transgressões a obrigações que resultariam da procuração e não do contrato de trabalho.
G. Ora, o Recorrido poderia ter promovido a Recorrente a “Diretora do Restaurante” mantendo tudo na esfera da relação laboral, mas não o fez.
H. Certo é que, embora paralelas no caso concreto, a relação que resulta da procuração outorgada não é igual, nem se confunde, com a relação laboral.
I. Até porque a procuração não implica obrigação de prestar contas ou praticar atos específicos.
J. É, por isso, entendimento da Recorrente que o Recorrido usou o processo disciplinar para sancionar a Recorrente por atos que, em boa verdade, não estariam abrangidos pelo processo disciplinar e pela legislação que o regula.
K. Veja-se, que o próprio Tribunal a quo reconhece a existência de pelo menos um pagamento feito da conta pessoal da Recorrente, sendo certo que a relação laboral não obriga o trabalhador a pagar dívidas da entidade patronal.
L. Pelo que, não obstante o devido respeito pela decisão, que é muito, há que discordar da mesma, concluindo-se que não há justa causa para o despedimento, pelo que deve o mesmo ser declarado ilícito.
M. A sentença recorrida resulta, também, na parte em que absolve o Recorrido do pagamento do trabalho suplementar e prestado em dia feriado, de uma incorreta interpretação das normas legais chamadas a regular as questões que decidiu.
N. Com efeito, a Recorrente apresentou reconvenção onde peticionava o pagamento de trabalho suplementar e prestado em dia feriado, sendo factos novos na medida em que não havia ainda tal tema sido discutido nos presentes autos.
O. Contudo, dúvidas não restam que o Recorrido não apresentou qualquer resposta ao articulado apresentado pela Recorrente, o que, salvo melhor entendimento, deveria ter a consequência que abaixo se verá.
P. Desde logo se dirá que não se está, no presente caso, perante uma situação de mera falta de impugnação, na resposta, de “novos factos” alegados na reconvenção, mas sim perante uma omissão de resposta geradora de determinado efeito.
Q. Ora, independentemente disso incluiu o douto Tribunal nos factos não provados “E) A A. Prestou trabalho para além do horário que havia acordado com o A. E em dias feriados.”
R. Contudo, e salvo melhor entendimento, deveria o Tribunal a quo ter chegado a decisão diferente.
S. Com efeito, e desde logo, essa interpretação resulta nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do art. 98º L do Código do Processo do Trabalho, em conjugação com o nº 4 do art. 60º, do mesmo Código, e ainda do artº. 574.º do Código de Processo Civil.
T. De acordo com o nº 2 do artigo supramencionado “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.”
U. Ora, salvo melhor entendimento, a concreta matéria do trabalho suplementar e do trabalho prestado em dia feriado não se encontrava em oposição com a “defesa” do Recorrido, mais sendo de concluir que é possível confissão sobre a mesma, bem como, legalmente, admite prova por outros meios que não o documento escrito (conforme resulta do disposto no artigo 337.º, nº 2 do Código do Trabalho a contrariu).
V. Assim, salvo melhor opinião e considerando tudo o que consta nos autos, é nosso entendimento que andou mal o Tribunal ao decidir por incluir nos factos não provados o “E) A A. Prestou trabalho para além do horário que havia acordado com o A. E em dias feriados.” Que, salvo melhor entendimento, deveria antes constar dos factos provados.
W. A sentença recorrida julgou, assim, erradamente os factos dados como provados na decisão quanto à matéria de facto, os quais deveriam ter solução diversa da obtida em sede de sentença final.
X. Assim, ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida quanto a esta matéria, com o devido e mui merecido respeito, violou o disposto nos normativos legais supramencionados. Pelo que,
Y. Deve a douta sentença recorrida ser revogada, condenando-se o Recorrido tal como o peticionado pela A. Ora recorrente.».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
Tendo o processo subido à Relação, foi observado o disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pelo parcial provimento do recurso.
Não foi oferecida resposta.
O recurso foi mantido nos seus precisos termos.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, são as seguintes as questões suscitadas:
1.ª Impugnação da decisão de facto.
2.ª Direito ao pagamento do trabalho suplementar e trabalho prestado em dias feriados.
3.ª Ilicitude do despedimento promovido.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
A) Por carta registada com aviso de receção, datada de 09 de fevereiro de 2022, foi a A. notificada da nota de culpa, da possibilidade de consulta dos autos de procedimento disciplinar, de que se manteria suspensa preventivamente nos termos do disposto no art. 354.º do CT, do prazo de que dispunha para responder à nota de culpa, sendo igualmente informada da possibilidade de, a final, lhe ser aplicada a sanção de despedimento com justa causa;
B) A nota de culpa enviada pela R. à A. tem o seguinte teor: “1. O empregador é BB, que explorava um estabelecimento comercial que se dedicava, entre outros, à área da restauração e bebidas. 2. A Autora foi contratada em 21 de Julho de 2020, para fazer exercer as funções de cozinheira de 2ª; Por ser a trabalhadora mãe do empregador, confiou-lhe este a gestão do estabelecimento comercial, pois iria estar fora do país, numa missão militar. 4. Nesse sentido, a trabalhadora comprometeu-se a desempenhar essa gestão, prestando contas regularmente ao empregador, seu filho. 5. Para o efeito e de modo a facilitar tal gestão, atendendo a que o empregador iria estar fora do país, ficou a trabalhadora na posse de uma procuração outorgada pelo empregador para o efeito, onde este lhe concedia os poderes referidos. 6. Ainda quando se encontrava em Portugal, o empregador abriu uma conta solidária com a trabalhadora, a qual seria unicamente utilizada com vista à movimentação do referido estabelecimento comercial, receitas e despesas inerentes à exploração do mesmo. 7. Pensou e confiou o empregador que a trabalhadora iria assumir essas funções com zelo e cuidado, defendendo os seus interesses. Tendo o mesmo se ausentado do estabelecimento confiante em tal facto. 8. No entanto, rapidamente a trabalhadora se apoderou do estabelecimento em causa como se dela fosse, fazendo seus os frutos e não prestando qualquer tipo de contas, esclarecimento ou informação ao empregador quando este as pedia. 9. O empregador estava condicionado na sua ação pois encontrava-se numa missão militar de extrema importância, em representação do Estado Português, pelo que não conseguia controlar a situação. 10. Mais, apesar de apresentar despesas que ascendem a montantes altos, a trabalhadora apenas introduzia mensalmente na conta que detém conjuntamente com o empregador e que foi criada para ser a conta do estabelecimento comercial, valores irrisórios como demonstram o balancete e os extratos bancários da referida conta, que ora se juntam. 11. Desde que a trabalhadora começou a comportar-se como “dona” do estabelecimento comercial que, sempre que o empregador tentava tomar alguma decisão relativa ao mesmo, esta dizia que as decisões seriam tomadas por ela. 12. No entanto, quando o negócio estava mais em baixo, esta ligava ao empregador e dizia que nada mais queria haver do estabelecimento em causa e que ele é que tinha que voltar para tratar de tudo. 13. De acordo com os depósitos efetuados pela trabalhadora na conta supra referida, consegue-se verificar uma discrepância de um mês para ao outro, não se compreendendo porque num mês a trabalhadora depositava quantias elevadas e no mês seguinte quantias irrisórias, quantias essas que deveriam refletir a faturação/receitas do estabelecimento comercial. 14. Também da análise dos extratos da conta conjunta referida se verifica que a trabalhadora utilizou montantes que eram do restaurante para fazer compras e pagamentos pessoais, como por exemplo, com Mc Donald’s, Primark, Pull and Bear, Tabacarias, KFC, Churrasqueira Franguinho, Real Petisqueira, Melro Sport (Loja de Desporto) e até Clínica Veterinária… 15. Fica claro que a trabalhadora, com um despeito total pelo empregador, quis fazer seu o estabelecimento, usando e “abusando” dos meios que tinha ao seu dispor. 16. Nunca seguiu nenhuma das claras instruções que o Réu lhe deu quanto à forma correta de registar os montantes ganhos em cada dia de trabalho do estabelecimento e também como fazer a contabilização dos gastos, de modo a terem um registo claro de tudo. 17. O empregador tinha interesse em ceder a exploração do estabelecimento e para esse efeito contactou a trabalhadora, sugerindo até que esta adquirisse o estabelecimento dessa forma, se assim era do seu interesse. 18. A Autora arranjou sempre “desculpas”, pedindo mais tempo para se organizar de forma a poder fazê-lo. 19. No regresso do empregador, em Outubro de 2021, este tentou tomar conhecimento das condições em que se encontrava o estabelecimento, o que não foi facilitado pela trabalhadora, pelo que autonomamente a entidade empregadora tentou obter essas informações junto da contabilidade e do banco onde detêm a conta supra referida. Claro é que, todas as situações supra referidas causaram o maior dos constrangimentos ao empregador, que perdeu totalmente a confiança na trabalhadora, enquanto tal. 21. O que torna a relação laboral contratada entre empregador e trabalhador insustentável e inviável. (…)”;
C) Apesar das várias tentativas de obter informação junto do banco e da contabilidade, apenas em fevereiro de 2022, quando se deslocou ao Algarve (pois o seu único filho tinha nascido há pouco tempo) é que o Réu obteve informação relativa à contabilidade do estabelecimento e conta bancária;
D) O inquérito teve o seu início em 9 de fevereiro de 2022, com a entrega à instrutora nomeada da nomeação e procuração forense;
E) E, no dia 10 de fevereiro de 2022, o empregador dirigiu-se ao seu estabelecimento comercial de forma a entregar a nota de culpa à Autora em mão e notificá-la também da revogação da procuração;
F) Era também intenção do Réu trocar as fechaduras do referido estabelecimento para poder então retomar a sua posse;
G) O Réu conseguiu entrar no estabelecimento e ao consultar a documentação do estabelecimento que se encontrava lá guardada, deparou-se com a mais variada correspondência endereçada a si, já aberta, da qual o mesmo não tinha qualquer conhecimento;
H) No dia em causa, a Autora, quando chegou ao local, acompanhada do seu companheiro, criou uma situação de grande constrangimento, expulsando o Réu do local, enquanto o seu companheiro também expulsava com alguma violência o técnico que na altura mudava as fechaduras, o que só cessou com intervenção policial;
I) A Autora recusou sair e ainda impediu que o Réu entrasse no estabelecimento, mudando de postura já no final, dizendo que este poderia entrar se quisesse, mas que a mesma e o seu companheiro é que ficariam com a chave, o que sucedeu;
J) Com a recusa da Autora em receber a nota de culpa em mão, a mesma apenas tomou conhecimento da instauração do processo disciplinar no dia 18 de fevereiro de 2022, através de comunicação escrita, com aviso de receção;
K) A Autora nunca contactou a Instrutora do processo, a fim de consultar o mesmo;
L) A Autora tinha até dia 4 de março de 2022 para proceder à sua defesa, em sede de resposta à nota de culpa, a qual chegou à esfera da instrutora do processo no dia 4 de março de 2022, com o teor de fls. 44 a 47 verso do procedimento disciplinar que se dá por reproduzido;
M) Na sua defesa, arguiu a Autora antes de mais a nulidade da nota de culpa e a caducidade e invalidade do presente processo disciplinar;
N) Pelo Instrutor de processo disciplinar foi proferido relatório final, em 28 de março de 2022, no qual concluiu pela adequação da aplicação da sanção de despedimento com justa causa;
O) Em face da proposta de decisão proferida pelo Instrutor nomeado, o R. proferiu decisão final de despedimento com justa causa, em de 28 de março de 2022, que comunicou à trabalhadora por meio de carta registada com aviso de receção;
P) O Réu, explorava um estabelecimento comercial que se dedicava, entre outros, à área da restauração e bebidas;
Q) A Autora foi contratada em 21 de julho de 2020, para exercer as funções de cozinheira de 2ª;
R) Por ser a Autora mãe do Réu, confiou-lhe este a gestão do estabelecimento comercial, pois iria estar fora do país, numa missão militar;
S) A Autora comprometeu-se a desempenhar essa gestão, prestando contas regularmente ao Réu, seu filho;
T) Para o efeito e de modo a facilitar tal gestão, atendendo a que o Réu iria estar fora do país, ficou a trabalhadora na posse de uma procuração outorgada pelo Réu para o efeito, onde este lhe concedia, entre outros, os seguintes poderes: “ “(…) b) Comprar, para ela mandatária, pelos preços e condições que entender convenientes, quaisquer bens móveis, relacionados com o estabelecimento comercial supra referido, podendo pagar os preços e deles pagar quitação, outorgar e assinar os respetivos contratos e quaisquer outros documentos que se mostrem necessários; (…) h) Junto do Instituto de Segurança Social tratar de toda a documentação necessária, pagar contribuições, taxas, fazer reclamações e pedir certidões: i) Contratar quaisquer fornecedores, prestadores de serviços, funcionários, fazer os respetivos pagamentos; (…)”.
U) Ainda quando se encontrava em Portugal, o Réu abriu uma conta solidária com a Autora, no Banco BPI com o nº. ...01, NIB ...21 e IBAN ...21, a qual seria unicamente utilizada com vista à movimentação do referido estabelecimento comercial, receitas e despesas inerentes à exploração do mesmo;
V) O Réu encontrava-se numa missão militar de extrema importância, em representação do Estado Português;
W) A A. apenas depositou na conta referida valores irrisórios;
X) Sempre que o R. tentava tomar alguma decisão relativa ao estabelecimento a A. dizia que as decisões seriam tomadas por ela;
Y) Quando o negócio estava mais em baixo, esta ligava ao Réu e dizia que nada mais queria haver do estabelecimento em causa e que ele é que tinha que voltar para tratar de tudo;
Z) A Autora utilizou montantes que eram do restaurante para fazer compras e pagamentos pessoais, como por exemplo, com Mc Donald’s, Primark, Pull and Bear, Tabacarias, KFC, Churrasqueira Franguinho, Real Petisqueira, Melro Sport (Loja de Desporto) e até Clínica Veterinária;
AA) Nunca a A. seguiu nenhuma das claras instruções que o Réu lhe deu quanto à forma correta de registar os montantes ganhos em cada dia de trabalho do estabelecimento e também como fazer a contabilização dos gastos, de modo a terem um registo claro de tudo;
BB) O Réu tinha interesse em ceder a exploração do estabelecimento e para esse efeito contactou a Autora, sugerindo até que esta adquirisse o estabelecimento dessa forma, se assim era do seu interesse;
CC) A Autora arranjou sempre “desculpas”, pedindo mais tempo para se organizar de forma a poder fazê-lo;
DD) No regresso do Réu, em outubro de 2021, este tentou tomar conhecimento das condições em que se encontrava o estabelecimento, o que não foi facilitado pela Autora;
EE) A A. auferia mensalmente como contrapartida do seu trabalho o salário mínimo nacional, à data da contratação, € 635,00;
FF) Em 2021, o valor mensal auferido pela A. era de € 665,00;
GG) E em 2022, o valor mensal auferido pela A. era de € 705,00;
HH) O período normal de trabalho da A. seria de 40 (quarenta) horas semanais, distribuídos por 6 (seis) dias da semana, nomeadamente de terça-feira a domingo, no período das 11h00 às 22h00, com intervalo para o almoço das 14h00 às 18h00 e ao domingo das 10h00 às 15h00;
II) A A. é mãe do R.;
JJ) A A. transferiu € 2500,00 para CC, anterior dona do estabelecimento do R.;
KK) A A. prestava trabalho sem receber qualquer salário, não obstante os descontos que eram feitos para a Segurança Social;
LL) Devido às dificuldades provocadas pelo surto epidémico de Covid-19 a A. informou o R. que o estabelecimento se encontraria numa situação precária, solicitando ao R. que pudesse fazer algo, mas sem receber qualquer resposta positiva por parte daquele;
MM) Em 16 de novembro de 2020, a A. efetuou um crédito pessoal, no Banco BPI, no valor de € 10.978,32 através da conta do estabelecimento;
NN) Foi a A. informada pela Securitas que havia disparado o sinal do alarme do estabelecimento onde prestava o seu trabalho;
OO) Deslocando-se ao local confrontou-se com a inesperada presença do R., bem como da S. ilustre mandatária, que se encontravam no exterior do estabelecimento, e ainda da sua companheira que se encontrava já dentro do mesmo;
PP) Durante todo o período de execução do contrato de trabalho, nunca foi entregue à A. qualquer montante a título de retribuição, subsídio de férias ou subsídio de Natal;
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Referiu ainda a 1.ª instância que mais se provou que:
A) O R candidatou-se à medida Novo Incentivo à Normalização da Atividade Profissional, tendo recebido, em 05.08.2021, o montante de € 1.330,00;
B) O R. apresentou a candidatura ...1, processo 13..., tendo sido atribuído um apoio financeiro de € 2.660,00;
C) À A., no âmbito do benefício Layoff foi atribuído: a partir de 24.02.2021, referente ao período compreendido entre 05.01.2021 a 31.01.2021, o valor de € 248,37; a partir de 15.03.2021, referente ao período compreendido entre 01.02.2021 a 28.02.2021, o valor de € 465,60; a partir de 09.04.2021, referente ao período compreendido entre 01.03.2021 a 31.03.2021, o valor de € 465,60;
D) Estes montante foram transferidos para a conta bancária IBAN ...21;
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E foi julgada não provada a seguinte factualidade:
A) A Autora encontrava-se ao serviço do R. desde 16 de Julho de 2020;
B) No dia 16 de Julho realizou-se a inauguração do estabelecimento “K...”, tendo a A. desde essa data prestado o seu trabalho para o R.;
C) A A., confrontada com o vazio deixado pelo R. que não se encontrava nunca presente, assumiu a gestão do estabelecimento, na medida das suas possibilidades;
D) O empréstimo efetuado pela A. no valor de € 10.978,32 através da conta do estabelecimento, foi utilizado no estabelecimento para a realização de obras, manutenção, pagamento de despesas adicionais do estabelecimento;
E) A A. prestou trabalho para além do horário que havia acordado com o R.[2]. e em dias feriados.
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IV. Impugnação da decisão de facto
Impugna a Apelante a decisão sobre a alínea E) dos factos não provados, sustentando que a factualidade aí descrita deve ser considerada provada, por falta de impugnação, nos termos do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 98.º-L do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o n.º 4 do artigo 60.º do mesmo Código e artigo 574.º do Código de Processo Civil.
Consigna-se que foi observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso, quanto a esta questão.
Analisemos, pois.
Consta na alínea E) do conjunto dos factos não provados:
- A A. prestou trabalho para além do horário que havia acordado com o R. e em dias feriados.
Na contestação-reconvenção, a Apelante alegou que prestou, nos anos de 2020 e 2021, trabalho em dias feriados, que nunca lhe foi pago.
Nos artigos 118.º e 120.º do mencionado articulado indicou quais os específicos dias feriados em que trabalhou.
Na sequência, em pedido reconvencional, pediu a condenação do Apelado, a pagar-lhe a quantia de € 848,31, pelo trabalho prestado em feriados.
Ainda na mesma peça processual, alegou que prestou, diariamente, trabalho suplementar, durante todo o período em que durou a relação laboral - artigo 128.º da contestação-reconvenção.
E especificou, deste modo, o trabalho executado:
«129.º
Com efeito, a AUTORA iniciava a sua prestação de trabalho pelas 8:30, tinha uma pausa de duas horas durante o dia e prolongava a sua prestação de trabalho bem para além das 8 horas diárias.
130.º
Com efeito, entre 16 de julho 2020 e o final de novembro de 2020, a AUTORA entrava às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia, pelo que prestava, diariamente, 5 horas de trabalho suplementar.
131.º
No mês de Dezembro de 2020 a AUTORA entrava à mesma hora, mas saía pelas 22:00, pelo que, nesse mês, realizava por dia “apenas” 3,5 horas de trabalho suplementar.
132.º
Ao todo, durante o ano de 2020 a AUTORA terá prestado 180 horas de trabalho suplementar.
(…)
136.º
Já durante o ano de 2021, a AUTORA entrava às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia, pelo que prestava, diariamente, 5 horas de trabalho suplementar.
137.º
Devido às restrições provocadas pelo surto epidémico de Covid 19, a AUTORA não prestou qualquer trabalho suplementar entre Fevereiro e 15 de Maio.
138.º
Com o fim da obrigatoriedade do regime de “venda ao postigo”, entre 15 de Maio e até ao final de Julho de 2021, a AUTORA trabalhava entre as 8:30 e as 22:30, com uma pausa de duas horas.
139.º
Face ao exposto, a AUTORA prestou, nos dias em causa, 4 horas de trabalho suplementar.
140.º
Entre Agosto de 2021 e Outubro do mesmo ano, o trabalho era prestado entre as 8:30 e as 00:00, com a pausa de duas horas.
140.º
Pelo que, nesse período, a AUTORA prestava diariamente 5,5 horas de trabalho suplementar.
141.º
Nos meses de Novembro e Dezembro de 2021 o encerramento era, respetivamente, às 21:00 e 20:00, sendo por isso o trabalho suplementar prestado de, também respetivamente, 2,5 horas e 1,5 horas.
142.º
Ao todo, durante o ano de 2021 a AUTORA terá prestado 420 horas de trabalho suplementar.
(…)
145.º
Por fim, no ano de 2022 a AUTORA prestou o seu trabalho entre Janeiro e a data em que foi notificada da nota de culpa, tendo ficado suspensa nessa data, sendo que, durante o período em que prestou o seu trabalho, trabalhava entre as 8:30 e as 20:00, com uma pausa de 2 horas durante o dia.
146.º
A AUTORA prestava, assim, diariamente durante este período 1 hora e meia de trabalho suplementar.
147.º
Ao todo, durante o ano de 2022 a AUTORA terá prestado 35,5 horas de trabalho suplementar.».

Em resultado do alegado, terminou a pedir, em reconvenção, a condenação do Apelado a pagar-lhe o valor de € 4.680,97, a título de trabalho suplementar prestado e não pago.
O Apelado não apresentou qualquer articulado de resposta.
Ora, nos termos previstos pelo n.º 3 do artigo 98.º-L do Código de Processo do Trabalho, o trabalhador que impugnou o despedimento pode, na sua contestação, deduzir reconvenção nos casos previstos no n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, assim como pode peticionar créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou da sua cessação, incluindo a indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 389.º do Código do Trabalho, independentemente do valor da ação.
Por sua vez, o n.º 4 do artigo refere que se o trabalhador tiver deduzido reconvenção, nos termos do número anterior, pode o empregador responder à respetiva matéria no prazo de 15 dias.
Ainda com relevo, manda o n.º 5 do artigo aplicar, por remissão, o disposto nos n.ºs. 3 a 5 do artigo 60.º do mesmo Código e no n.º 6 do artigo 266.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o n.º 4 do artigo 60.º do Código de Processo de Trabalho, a falta de resposta à reconvenção tem o efeito previsto no artigo 574.º do Código de Processo Civil, ou seja, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
Ora, tendo em consideração este quadro legal, a consequência a extrair para a falta de resposta à reconvenção, por não estar em causa nenhuma das situações expressamente salvaguardadas, é a admissão, por acordo, dos factos alegados pela Apelante, respeitantes ao trabalho prestado em dias feriados e ao trabalho prestado para além das 8 horas diárias.[3]
Assim, procede a impugnação da decisão de facto, pelo que se elimina a alínea E) do conjunto dos factos não provados e acrescentam-se ao elenco dos factos provados as seguintes alíneas:
QQ) No ano de 2020, a Autora prestou trabalho para o Réu, nos seguintes dias feriados: 15 de agosto, 1 de novembro, 1 de dezembro e 8 de dezembro;
RR) No ano de 2021, a Autora prestou trabalho para o Réu, nos seguintes dias feriados: 1 de Janeiro, 2 de abril, 4 de abril, 25 de abril, 1 de maio, 3 de junho, 10 de junho, 15 de agosto, 5 de outubro e 8 de dezembro.
SS) O trabalho prestado nos dias feriados não foi pago à Autora.
TT) Entre 16 de julho 2020 e o final de novembro de 2020, a Autora entrava às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia.
UU) No mês de dezembro de 2020 a Autora entrava à mesma hora, mas saía pelas 22:00.
VV) Durante o ano de 2021, a Autora entrava às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia, com exceção dos períodos indicados em ww), xx), yy) e zz).
WW) Devido às restrições provocadas pelo surto epidémico de Covid 19, a Autora não prestou qualquer trabalho para além do horário diário de oito horas, entre fevereiro e 15 de maio.
XX) Com o fim da obrigatoriedade do regime de “venda ao postigo”, entre 15 de maio e até ao final de julho de 2021, a Autora trabalhava entre as 8:30 e as 22:30, com uma pausa de duas horas.
YY) Entre agosto de 2021 e outubro do mesmo ano, o trabalho era prestado entre as 8:30 e as 00:00, com a pausa de duas horas.
ZZ) Nos meses de novembro e dezembro de 2021 o encerramento era, respetivamente, às 21:00 e 20:00.
AAA) No ano de 2022 a Autora prestou o seu trabalho entre janeiro e a data em que foi notificada da nota de culpa, tendo ficado suspensa nessa data, sendo que, durante o período em que prestou o seu trabalho, trabalhava entre as 8:30 e as 20:00, com uma pausa de 2 horas durante o dia.
BBB) Durante todo o período de execução do contrato de trabalho, nunca o Réu pagou à Autora qualquer quantia a título de trabalho suplementar.
-
Ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, este Tribunal, adita, ainda, ao elenco dos factos assentes, um elemento temporal importante para completar o quadro factual. Este elemento resulta da procuração passada a favor da Apelante e da revogação da mesma, que foram juntas em 30-05-2022, e que não foram objeto de qualquer impugnação ou arguição de falsidade.
Assim, a alínea T) dos factos provados passará a ter a seguinte redação:
- Para o efeito e de modo a facilitar tal gestão, atendendo a que o Réu iria estar fora do país, ficou a trabalhadora na posse de uma procuração outorgada pelo Réu para o efeito, datada de 30-12-2020, onde este lhe concedia, entre outros, os seguintes poderes: “ “(…) b) Comprar, para ela mandatária, pelos preços e condições que entender convenientes, quaisquer bens móveis, relacionados com o estabelecimento comercial supra referido, podendo pagar os preços e deles pagar quitação, outorgar e assinar os respetivos contratos e quaisquer outros documentos que se mostrem necessários; (…) h) Junto do Instituto de Segurança Social tratar de toda a documentação necessária, pagar contribuições, taxas, fazer reclamações e pedir certidões: i) Contratar quaisquer fornecedores, prestadores de serviços, funcionários, fazer os respetivos pagamentos; (…)”.
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V. Trabalho suplementar e trabalho prestado em dia feriado
Em reconvenção, a Apelante pediu a condenação do Apelado a pagar-lhe:
- A quantia de € 848,31, a título de retribuição pelo trabalho prestado em dias feriados.
- O valor de € 4.680,97, a título de trabalho suplementar prestado.
- Juros de mora legais sobre as quantias em dívida, contados desde a citação e até integral pagamento.
Na sentença recorrida, os peticionados créditos laborais não foram reconhecidos por «não ter resultado provado o trabalho suplementar e em dias feriados que [a Autora] alegou.».
Sucede que, em consequência da procedência da impugnação da decisão de facto, apreciada no ponto anterior, ocorreu alteração do quadro factual demonstrado.
Analisemos, então, se essa alteração permite reconhecer a existência dos créditos reclamados anteriormente mencionados.
Quanto ao trabalho prestado em dias feriados:
Decorre do elenco dos factos provados que a Apelante, durante a vigência da relação laboral em apreço nos autos, trabalhou para o Apelado nos seguintes feriados:
- Em 2020: 15 de agosto, 1 de novembro, 1 de dezembro e 8 de dezembro.
- Em 2021: 1 de Janeiro, 2 de abril, 4 de abril, 25 de abril, 1 de maio, 3 de junho, 10 de junho, 15 de agosto, 5 de outubro e 8 de dezembro.
À relação laboral sub judice aplica-se o Código do Trabalho e o Contrato Coletivo de Trabalho celebrado entre a Associação dos Industriais Hoteleiros e Similares do Algarve – AIHSA e a FESAHT – Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal e outros, com a sua versão consolidada publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 29, de 08-08-2018, este último, por força da Portaria de Extensão publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 36, de 29-09-2018.
Estipula a cláusula 62.º do referido CCT que o trabalho prestado em dias feriados é considerado como suplementar e é remunerado em função do número de horas realizadas, de acordo com a seguinte fórmula:
R = (RH x N) x 2
sendo:
R - remuneração do trabalho prestado em dia de descanso semanal/feriado;
RH - remuneração horária[4];
N - número de horas trabalhadas ou ao pagamento das quais o trabalhador tem direito.
Por seu turno, o Código do Trabalho estabelece na alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º na versão anterior à que foi introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, e que é a aplicável aos presente caso, que o trabalhador que preste trabalho suplementar num feriado tem o direito de receber a sua retribuição horária com um acréscimo de 50% por cada hora de trabalho.
Estipula ainda o artigo 269.º do mesmo compêndio legal que, no caso de empresa não obrigada a suspender o funcionamento no dia feriado, o trabalhador que preste trabalho nesse dia tem direito a descanso compensatório com duração de metade do número de horas prestadas ou acréscimo de 50% da retribuição correspondente, cabendo a escolha ao empregador.
No caso que se aprecia, desconhecemos se o estabelecimento comercial onde a Apelante exercia funções tinha (ou não) a obrigação de suspender o funcionamento em dia feriado.
Seja como for, caso não suspendesse a sua atividade em dia feriado, o máximo que a Apelante teria direito a receber pelo trabalho prestado em dia feriado seria o dobro (100%) da retribuição que auferia, o que corresponde ao que se mostra previsto no CCT aplicável.
Na eventualidade da atividade ser suspensa nos dias feriados, o regime do CCT mostra-se mais favorável à trabalhadora, pelo que é esse o regime aplicável.[5]
Não ficou demonstrado o pagamento do trabalho prestado nos feriados indicados.
Deste modo, pelo trabalho prestado em dias feriados, a Apelante adquiriu o direito a receber:
- No ano de 2020: a quantia de € 212,86.
- No ano de 2021: a quantia de € 560,64.
Passamos a explicar os cálculos efetuados:
No ano de 2020, a Apelante auferia a retribuição mensal de € 635,00[6], pelo que a sua retribuição horária (arredondada) era de € 3,67 [€ 7620 : 2080].
A Apelante trabalhou 4 dias feriados: 15 de agosto (sábado), 1 de novembro (domingo), 1 de dezembro (terça-feira) e 8 de dezembro (terça-feira).
O horário de trabalho da Apelante distribuía-se por 7 horas de trabalho diárias de terça-feira a sábado e 8 horas de trabalho aos domingos.[7]
A Apelante tem direito ao dobro da retribuição pelo número de horas contempladas no seu horário.
Logo, tem direito a receber a quantia de € 212,86.
No ano de 2021, a Apelante auferia o valor mensal de € 665,00[8], pelo que a sua retribuição horária (arredondada) era de € 3,84 [€ 7980 : 2080].
Neste ano, trabalhou 10 dias feriados; 1 de Janeiro (sexta-feira), 2 de abril (sexta-feira), 4 de abril (domingo), 25 de abril (domingo), 1 de maio (sábado), 3 de junho (quinta-feira), 10 de junho (quinta-feira), 15 de agosto (domingo), 5 de outubro (terça-feira) e 8 de dezembro (quarta-feira).
O horário de trabalho da Apelante distribuía-se por 7 horas de trabalho diárias de terça-feira a sábado e 8 horas de trabalho aos domingos.[9]
A Apelante tem direito ao dobro da retribuição pelo número de horas contempladas no seu horário.
Logo, tem direito a receber a quantia de € 560,64.
Destarte, pelo trabalho prestado em dias feriados nos anos de 2020 e de 2021, a Apelante tem direito a receber o montante total de € 773,50, e não o valor de € 841,31 peticionado.
Sobre a quantia em dívida acrescem os juros moratórios, à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral pagamento (artigos 804.º, 805.º e 806.º do Código Civil).

Quanto ao trabalho suplementar:
Em reconvenção, a Apelante pediu a condenação do Apelado a pagar-lhe a quantia de € 4.680,97, a título de trabalho suplementar prestado e não pago, acrescida dos respetivos juros moratórios.
Apreciemos.
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 226.º do Código do Trabalho, considera-se trabalho suplementar aquele que é prestado fora do horário de trabalho, com exceção das situações especialmente contempladas no n.º 2 do artigo.
No mesmo sentido, estipula o n.º 1 da cláusula 50.ª do CCT aplicável: «Considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário diário normal».
De acordo com o n.º 2 do artigo 268.º do Código do Trabalho, só o trabalho suplementar cuja prestação tenha sido prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador, é remunerável.
O ónus da prestação de trabalho suplementar remunerável impende sobre o trabalhador, por se tratar de facto constitutivo do direito reclamado – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.
Com interesse, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-03-2000:[10]
«I- O direito do trabalhador ao pagamento do trabalho suplementar não decorre da simples prestação dele: pressupõe também que o trabalho foi efetuado, no mínimo, com o conhecimento e sem a oposição do empregador, a revelar um consciente aproveitamento da atividade suplementarmente exercida pelo trabalhador, estando-se assim perante um elemento também constitutivo daquele direito, a provar por quem o invoca.
II- A permanência no local de trabalho, para além do período normal de trabalho, não é sinónimo de prestação de trabalho suplementar».
Consigna-se que o CCT aplicável segue a legislação laboral geral, especificando, apenas, a cláusula 51.ª daquele instrumento de regulamentação coletiva, que a retribuição da hora de trabalho suplementar será igual à retribuição efetiva da hora normal, acrescida de 100%, o que constitui um regime mais favorável para o trabalhador.
Exposto, assim, o quadro legal a considerar, foquemo-nos agora nos factos demonstrados.
Com relevância, extrai-se do acervo de factos provados:
- O Apelado explorava um estabelecimento comercial que se dedicava, entre outros, à área da restauração e bebidas.
- A Apelante foi contratada em 21 de julho de 2020 para exercer as funções de cozinheira de 2.ª.
- O período normal de trabalho da Apelante era de 40 horas semanais, distribuído por 6 dias por semana, nomeadamente de terça-feira a domingo, no período das 11 horas às 22 horas, com intervalo para o almoço das 14 horas às 18 horas e ao domingo das 10 horas às 15 horas.
- A Apelante é mãe do Apelado.
- Devido a esta relação familiar, este confiou-lhe a gestão do estabelecimento comercial, em virtude de ter de se ausentar do país, numa missão militar, tendo, para o efeito passado a favor da sua mãe, em 30-12-2020, a procuração referida na alínea T) dos factos assentes.
- No período entre 16 de julho 2020 e final de novembro de 2020, a Apelante entrava no estabelecimento às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia.
- No mês de dezembro de 2020, entrava à mesma hora, mas saía pelas 22:00.
- Durante o ano de 2021, entrava às 8:30 e saia às 23:30, com duas horas de pausa durante o dia, com exceção dos períodos indicados nas alíneas ww), xx), yy) e zz) dos factos provados.
- Devido às restrições provocadas pelo surto epidémico de Covid 19, não prestou qualquer trabalho para além do horário diário de oito horas, entre fevereiro e 15 de maio.
- Com o fim da obrigatoriedade do regime de “venda ao postigo”, entre 15 de maio e até ao final de julho de 2021, a Apelante trabalhava entre as 8:30 e as 22:30, com uma pausa de duas horas.
- Entre agosto de 2021 e outubro do mesmo ano, o trabalho era prestado entre as 8:30 e as 00:00, com a pausa de duas horas.
- Nos meses de novembro e dezembro de 2021, o encerramento do estabelecimento era, respetivamente, às 21:00 e 20:00.
- No ano de 2022, a Apelante prestou o seu trabalho entre janeiro e a data em que foi notificada da nota de culpa, tendo ficado suspensa nessa data, sendo que, durante o período em causa, trabalhava entre as 8:30 e as 20:00, com uma pausa de 2 horas durante o dia.
- Durante todo o período de execução do contrato de trabalho, nunca o Apelado lhe pagou qualquer quantia a título de trabalho suplementar.
Eis os factos.
Infere-se dos mesmos que entre 21 de julho e 29 de dezembro de 2020 a Apelante exerceu, em relação ao estabelecimento, apenas funções de cozinheira de 2.ª, enquanto trabalhadora subordinada.
Daí que seja absolutamente irrelevante, para efeitos de apuramento de eventual prestação de trabalho suplementar remunerável, qualquer horário praticado pela Apelante antes de 21 de julho de 2020 (salientamos este aspeto, porque na alínea TT) dos factos provados refere-se o horário praticado antes da data da sua admissão, mais precisamente é mencionado o horário praticado nos dias 16 a 20 de julho de 2020).
Entre 21 de julho e novembro de 2020, a Apelante entrou às 8h30m e saiu às 23h30m, tendo duas horas de pausa durante o dia. No mês de dezembro desse ano, entrou à mesma hora, mas saiu às 22 horas.
Não logrou a Apelante provar, porém, a razão porque entrava e saía do estabelecimento nas referidas horas, designadamente, não logrou demonstrar que entrava e saía àquelas horas para ir trabalhar ao serviço do Apelado.
E o ónus de alegação e prova da razão porque praticou tais horários impedia sobre si.
Deste modo, soçobra a pretensão da Apelante quanto ao direito a receber pagamento por trabalho suplementar prestado no período temporal mencionado.
Vejamos agora o que sucedeu a partir da emissão da procuração para a gestão do estabelecimento.
Desde 30-12-2020, a Apelante, para além das funções de cozinheira de 2.ª, passou a estar mandatada para a prática de atos relacionados com a gestão do estabelecimento.
Não está em causa qualquer contrato de trabalho celebrado para o exercício de funções de gerência. O que os factos revelam é a celebração de um contrato de mandato gratuito – artigos 1157.º a 1159.º do Código Civil.
E, com arrimo nos factos assentes, é possível deduzir que a Apelante praticou, a partir de então, os seguintes horários:
- Nos dias 30 e 31 de dezembro de 2020, entrou às 8h30m e saiu às 22 horas, tendo feito uma pausa de duas horas durante o dia.
- No mês de janeiro de 2021, entrou às 8h30 e saiu às 23h30m, tendo feito duas horas de pausa durante o dia.
- Entre fevereiro e 15 de maio de 2021, praticou um horário diário de oito horas.
- A partir de 15 de maio até final de julho de 2021, trabalhou entre as 8h30m e as 22h30m, com pausa de duas horas.
- Entre agosto e outubro de 2021, trabalhou entre as 8h30m e as 00h00, com pausa diária de duas horas.
- No mês de novembro de 2021 abriu o estabelecimento às 8h30m e encerrou-o às 21 horas.
- Em dezembro de 2021, abriu o estabelecimento às 8h30m e encerrou-o às 20 horas.
- No ano de 2022, até ser notificada da nota de culpa e suspensa das suas funções, trabalhou entre as 8h30 e as 20 horas, com uma pausa de duas horas durante o dia.
Ora, deste contexto factual não se extrai, com a necessária segurança, que a Apelante em 30 e 31 de dezembro de 2020 e em janeiro, novembro e dezembro de 2021, enquanto esteve no estabelecimento esteve a exercer, sempre, as suas funções de cozinheira de 2.ª.
Logo, competindo-lhe alegar e provar que prestou trabalho suplementar remunerável, em relação às aludidas datas soçobra o seu pedido de pagamento de trabalho suplementar.
No que se refere aos períodos decorridos entre 15 de maio até final de julho, agosto e outubro de 2021, bem como em 2022 (até à data em que foi suspensa do exercício das suas funções profissionais), resultou provado que a Apelante trabalhou para além do horário normal diário de trabalho.
Todavia, a razão porque o fez é uma incógnita, atendendo aos factos apurados.
Não é possível extrair do quadro factual apurado se os horários de trabalho praticados o foram num quadro de subordinação jurídica, ou, porventura, se foram resultado de um ato voluntário da Apelante.
E num caso tão singular como o dos autos, afigura-se-nos que competia à trabalhadora subordinada alegar e provar que o trabalho que executou para além do seu horário normal foi determinado por circunstâncias relevantes e num quadro de subordinação jurídica característico do vínculo laboral.
É que não podemos olvidar que a prestação de trabalho suplementar tem condições legalmente previstas.
De acordo com o artigo 227.º do Código do Trabalho, o trabalho suplementar só pode ser prestado quando a empresa tenha de fazer face a acréscimo eventual e transitório de trabalho e não se justifique para tal a admissão de trabalhador (n.º 1 do artigo); ou, em caso de força maior ou quando seja indispensável para prevenir ou reparar prejuízo grave para a empresa ou para a sua viabilidade (n.º 2 do artigo).
Por conseguinte, para a Apelante ter direito à retribuição acessória pela prestação de trabalho suplementar deveria ter tido o cuidado de alegar e provar factos suficientes que permitissem concluir, com segurança, que o trabalho prestado para além do horário normal de trabalho foi motivado por circunstâncias que justificaram a realização de trabalho suplementar, num quadro de subordinação jurídica.
Estes elementos factuais são importantes, porque constitutivos do direito reclamado.
Em face de todo o exposto, entendemos que a Apelante não logrou provar que durante a vigência da relação laboral prestou trabalho suplementar remunerável.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
*
VI. Da alegada ilicitude do despedimento
A sentença recorrida, depois de fazer as adequadas e suficientes referências doutrinárias e jurisprudenciais, em torno da figura do despedimento ilícito, apreciou assim o caso concreto:
«Resultou demonstrado que, A nota de culpa enviada pela R. à A. tem o seguinte teor: (…)
Face a esta factualidade constante da nota de culpa, resultou provado que o Réu, explorava um estabelecimento comercial que se dedicava, entre outros, à área da restauração e bebidas.
A Autora foi contratada em 21 de Julho de 2020, para fazer exercer as funções de cozinheira de 2ª.
Por ser a Autora mãe do Réu, confiou-lhe este a gestão do estabelecimento comercial, pois iria estar fora do país, numa missão militar.
A Autora comprometeu-se a desempenhar essa gestão, prestando contas regularmente ao Réu, seu filho.
Para o efeito e de modo a facilitar tal gestão, atendendo a que o Réu iria estar fora do país, ficou a trabalhadora na posse de uma procuração outorgada pelo Réu para o efeito, onde este lhe concedia, entre outros, os seguintes poderes: “ “(…) b) Comprar, para ela mandatária, pelos preços e condições que entender convenientes, quaisquer bens móveis, relacionados com o estabelecimento comercial supra referido, podendo pagar os preços e deles pagar quitação, outorgar e assinar os respetivos contratos e quaisquer outros documentos que se mostrem necessários; (…) h) Junto do Instituto de Segurança Social tratar de toda a documentação necessária, pagar contribuições, taxas, fazer reclamações e pedir certidões: i) Contratar quaisquer fornecedores, prestadores de serviços, funcionários, fazer os respetivos pagamentos; (…)”.
Ainda quando se encontrava em Portugal, o Réu abriu uma conta solidária com a Autora, no Banco BPI com o nº. ...01, NIB ...21 e IBAN ...21, a qual seria unicamente utilizada com vista à movimentação do referido estabelecimento comercial, receitas e despesas inerentes à exploração do mesmo.
O Réu encontrava-se numa missão militar de extrema importância, em representação do Estado Português.
A A. apenas depositou na conta referida valores irrisórios.
Sempre que o R. tentava tomar alguma decisão relativa ao estabelecimento a A. dizia que as decisões seriam tomadas por ela.
Quando o negócio estava mais em baixo, esta ligava ao Réu e dizia que nada mais queria haver do estabelecimento em causa e que ele é que tinha que voltar para tratar de tudo.
A Autora utilizou montantes que eram do restaurante para fazer compras e pagamentos pessoais, como por exemplo, com Mc Donald’s, Primark, Pull and Bear, Tabacarias, KFC, Churrasqueira Franguinho, Real Petisqueira, Melro Sport (Loja de Desporto) e até Clínica Veterinária.
Nunca a A. seguiu nenhum das claras instruções que o Réu lhe deu quanto à forma correta de registar os montantes ganhos em cada dia de trabalho do estabelecimento e também como fazer a contabilização dos gastos, de modo a terem um registo claro de tudo.
O Réu tinha interesse em ceder a exploração do estabelecimento e para esse efeito contactou a Autora, sugerindo até que esta adquirisse o estabelecimento dessa forma, se assim era do seu interesse.
A Autora arranjou sempre “desculpas”, pedindo mais tempo para se organizar de forma a poder fazê-lo.
E no dia 10 de Fevereiro de 2022, o empregador dirigiu-se ao seu estabelecimento comercial de forma a entregar a nota de culpa à Autora em mão e notificá-la também da revogação da procuração.
Era também intenção do Réu trocar as fechaduras do referido estabelecimento para poder então retomar a sua posse.
O Réu conseguiu entrar no estabelecimento e ao consultar a documentação do estabelecimento que se encontrava lá guardada, deparou-se com a mais variada correspondência endereçada a si, já aberta, da qual o mesmo não tinha qualquer conhecimento.
No dia em causa, a Autora, quando chegou ao local, acompanhada do seu companheiro, criou uma situação de grande constrangimento, expulsando o Réu do local, enquanto o seu companheiro também expulsava com alguma violência o técnico que na altura mudava as fechaduras, o que só cessou com intervenção policial.
A Autora recusou sair e ainda impediu que o Réu entrasse no estabelecimento, mudando de postura já no final, dizendo que este poderia entrar se quisesse, mas que a mesma e o seu companheiro é que ficariam com a chave, o que sucedeu.
Com a recusa da Autora em receber a nota de culpa em mão, a mesma apenas tomou conhecimento da instauração do processo disciplinar no dia 18 de Fevereiro de 2022, através de comunicação escrita, com aviso de receção.
E, na verdade, de acordo com o artigo 128º. do Código de Trabalho, “sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;
b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade;
c) Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d) Participar de modo diligente em ações de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador;
e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;
f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;
g) Velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador;
h) Promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i) Cooperar para a melhoria da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim;
j) Cumprir as prescrições sobre segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
O dever de obediência respeita tanto a ordens ou instruções do empregador como de superior hierárquico do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhe forem atribuídos”.
O Réu logrou provar os factos supra referidos e que configuram a violação imputada à Autora.
Mas será que a sua gravidade é de tal ordem que torna impossível a subsistência da relação de trabalho?
Vejamos.
A justa causa do despedimento pressupõe uma ação ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, e violadora dos deveres principais, secundários ou acessórios de conduta a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da atividade a que se obrigou, pela disciplina da organização em que essa atividade se insere, ou, ainda, pela boa-fé que tem de registar-se no cumprimento do contrato.
Não basta, porém, aquele comportamento culposo do trabalhador.
É que, sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que o comportamento do trabalhador integre a justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesmo e nas suas consequências, de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral.
E, como ficou dito, a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjetivo do empregador, devendo atender-se a critérios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
Por isso se pode afirmar que existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato, só se podendo concluir pela existência de justa causa, quando, em concreto e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador (cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 8.ª edição, vol. I, págs. 461 e segs; Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, págs. 822; Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, págs. 488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, em Colectânea de Leis do Trabalho, 1985, págs. 249).
E porque o despedimento é sempre um facto socialmente grave por lançar o trabalhador no desemprego e atendendo a que tal sanção é a mais grave do elenco das sanções disciplinares previstas no Código do Trabalho, a justa causa só deve operar quando o comportamento do trabalhador é de tal modo grave em si mesmo e nas suas consequências, que não permite, em termos de razoabilidade, a aplicação de sanção viabilizadora da manutenção da relação de trabalho, não esquecendo que a sanção disciplinar deve ser sempre proporcionada à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator (princípio da proporcionalidade – art. 330º/1 do Código do Trabalho).
Este princípio da proporcionalidade, que é comum a todo e qualquer direito punitivo, implica uma dupla apreciação: a determinação da gravidade da falta e a graduação das sanções.
A primeira resultará da apreciação do facto delituoso em si, das circunstâncias em que ocorreu a sua prática, das suas consequências, da culpabilidade e dos antecedentes disciplinares do arguido.
A segunda justifica-se na medida em que apenas se deverá aplicar uma sanção mais grave quando sanção de gravidade menor não for suficiente para defender a disciplina dentro da empresa.
Neste sentido, Pedro Sousa Macedo, Poder Disciplinar Patronal, págs. 55/ 56.
Na verdade, é sabido que no âmbito das relações jurídicas de trabalho subordinado, o trabalhador deve proceder de boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres (artigos 126º., nº. 1 do Código do Trabalho e 762º., nº. 2 do Código Civil).
Com a ideia de boa-fé estão relacionadas, como é sabido, as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, pág. 2).
É sabido, também, que a confiança entre o empregador e o trabalhador desempenha um papel essencial nas relações de trabalho, tendo em consideração a forte componente fiduciária daquelas; com efeito, a relação juslaboral pressupõe a integridade, lealdade de cooperação e absoluta confiança da/na pessoa contratada.
Do mesmo modo, sabe-se que a subsistência daquela confiança pressupõe a observância do mencionado dever de lealdade do trabalhador para com o empregador, pois que aquela será sempre afetada, podendo mesmo ser irremediavelmente destruída, quando se fere o mencionado dever, sendo que a observância deste é fundamental para o correto implemento dos fins prático-económicos a que o contrato se subordina.
“Em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a atividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de perigo para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa.
Face os factos que resultaram provados, a A. violou o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal”, na medida em que utilizou a conta do estabelecimento para compras pessoais, atitude que sabia proibida e, por outro lado, desrespeitou as ordens e orientações do R. quanto à forma correta de proceder quanto ao registo de receitas e despesas e contabilização das mesmas.
Assim, ficou definitivamente quebrada a relação de confiança que o R. depositava na A..
Os seus comportamentos foram graves em si mesmos e nas suas consequências, de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral.
Foi respeitado o princípio da proporcionalidade e o despedimento é, assim, lícito.».
Em sede de recurso, a Apelante impugna esta decisão, argumentando, em síntese, que o Apelado fez uso do procedimento disciplinar para a sancionar por atos que resultaram do exercício do mandato que lhe foi conferido e não propriamente do contrato de trabalho que mantinha com o mesmo.
Em consequência, pugna pela ilicitude do seu despedimento.
Vejamos.
Em face da factualidade provada, concluímos que entre as partes processuais vigoraram duas distintas relações contratuais.
- Um contrato de trabalho, no âmbito do qual a Apelante se obrigou a desempenhar as funções de cozinheira de 2.ª para o Apelado;
- Um contrato de mandato, por via do qual a gestão do estabelecimento comercial que o Apelado explorava foi confiada sua mãe, a ora Apelante.
Na qualidade de empregador e no âmbito do poder disciplinar por si detido, o Apelado instaurou um procedimento disciplinar, acusando a Apelante da prática de diversas infrações disciplinares.
Todavia, ao percorrermos os comportamentos imputados à Apelante, verificamos que todos eles se relacionam com a gestão do estabelecimento que foi objeto do contrato de mandato celebrado entre as partes processuais.
Repare-se, a Apelante é acusada de:
- se ter apoderado do estabelecimento em causa, como se dela fosse, fazendo seus os frutos e não prestando qualquer tipo de contas, esclarecimentos ou informações da gestão do estabelecimento ao Apelado, quando este as solicitava, e de lhe dizer, inclusive, que as decisões eram tomadas por ela.
- de ter depositado na conta bancária solidária, que foi criada para a movimentação do referido estabelecimento (receitas e despesas da sua exploração), apenas valores irrisórios, que não refletiam a faturação/receitas do estabelecimento comercial.
- de ter utilizado montantes resultantes das receitas do estabelecimento para suportar despesas pessoais, usando e abusando da procuração que lhe tinha sido passada.
- de não ter seguido nenhuma das claras instruções que o Apelado lhe deu quanto à forma correta de registar os montantes ganhos em cada dia de trabalho do estabelecimento e de fazer a contabilização dos gastos, de modo a terem um registo claro de tudo.
- de não ter facilitado ao Apelado o conhecimento das condições em que se encontrava o estabelecimento, após o seu regresso da missão militar.
- de arranjar sempre desculpas, pedindo mais tempo para se organizar, quando o Apelado lhe sugeria que adquirisse o estabelecimento por cessão de exploração.
Não resulta da nota de culpa a imputação de qualquer comportamento assumido pela Apelante, no âmbito do contrato de trabalho subordinado que esta mantinha com o Apelado.
E o facto de esta cumular em si a qualidade de trabalhadora subordinada e de mandatária do Apelado (como gerente do estabelecimento), não permite que se faça uso do procedimento disciplinar para averiguar comportamentos reveladores de incumprimento do mandato.
Em suma, a aplicação de uma sanção disciplinar expulsiva devido a comportamentos em que não está em causa a violação de deveres laborais é manifestamente ilegal.
E não se verificando justa causa para o despedimento promovido, o mesmo é ilícito, nos termos previstos pela alínea b) do artigo 381.º do Código do Trabalho.
Em consequência da ilicitude do despedimento, o Apelado fica obrigado a pagar à Apelante:
a) Indemnização em substituição da reintegração – artigos 389.º e 391.º do Código do Trabalho
A Apelante optou, na contestação-reconvenção, pela indemnização em substituição da reintegração.
De acordo com o estipulado no artigo 391.º, compete ao tribunal fixar o montante da indemnização, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do despedimento, não podendo o valor da indemnização ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades.
Na fixação do valor da indemnização, o tribunal deve atender ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial – n.º 2 do artigo 391.º.
Assim, o valor da indemnização em substituição da retribuição deve ser fixado de acordo com dois fatores de ponderação, combinados entre si: o primeiro, relaciona-se com o valor da retribuição auferida pelo trabalhador ilicitamente despedido; o segundo, respeita à avaliação que é feita sobre o grau de ilicitude do despedimento.
Com interesse, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-04-2018 (Proc. n.º 354/16.7T8PTM.E1.S1):[11]
«I. Na fixação do valor da indemnização em substituição da reintegração deve atender-se ao valor da retribuição, ao grau de ilicitude do despedimento e ainda ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial.
II. O valor da retribuição é ponderado na graduação da indemnização que tenderá a ser mais elevada para um trabalhador que aufira uma remuneração inferior à média e menor quando a retribuição se situa acima da média.
III. O grau de ilicitude do despedimento é ponderado atenta a graduação estabelecida no art.º 381.º do Código do Trabalho, devendo-se atender ao grau de culpa do empregador, nomeadamente na apreciação do motivo justificativo invocado.
IV. O tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial deve ser considerado, sendo razoável que o montante da indemnização seja tanto menor quanto maior for o dos salários intercalares.».
No caso em apreço nos autos, à data do despedimento, a Apelante auferia a retribuição mensal mínima legal - € 705,00.
O grau de ilicitude do despedimento afigura-se-nos grave, uma vez que o exercício do poder disciplinar foi infundado.
A antiguidade a considerar não vai muito para além do mínimo legal de indemnização, estabelecido no n.º 3 do artigo 391.º do Código do Trabalho, que sempre teria de ser garantido.
Tudo ponderado, afigura-se-nos ser adequado e justo fixar a indemnização em 40 dias de retribuição por cada ano completo ou fração de antiguidade, garantindo-se, assim, a nosso ver, a natureza ressarcitória da indemnização.
Até ao momento, a indemnização ascende ao valor de € 3.266,50.[12]

b) Retribuições intercalares – artigos 389.º e 390.º do Código do Trabalho
Prescreve o artigo 390.º que o trabalhador ilicitamente despedido tem direito a receber as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, com as deduções previstas no n.º 2 do artigo.
Somente as deduções previstas nas alíneas b) e c) do mencionado n.º 2 são de conhecimento oficioso.[13]
O despedimento que se aprecia ocorreu em 28-03-2022.
Não existem elementos factuais que nos permitam concluir que a Apelante, após o despedimento, auferiu, com a cessação do contrato de trabalho, importâncias que não teria recebido se não fosse o despedimento, pelo que não há lugar à dedução prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 390.º.
A ação foi intentada antes de decorridos 30 dias desde a data do despedimento, pelo que não há lugar à dedução prevista na alínea b) do n.º 2 do referido artigo.
Concluindo, a Apelante tem direito a receber, e o Apelado a obrigação de lhe pagar, as retribuições que a mesma deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial de declaração da ilicitude do despedimento, com respeito pelo valores dos salários mínimos legais, deduzidas das importâncias que eventualmente a Apelante tenha auferido a título de subsidio de desemprego, relegando-se a liquidação do valor total devido para incidente de liquidação.

c) Juros de mora – artigos 804.º, 805.º e 806.º do Código Civil
Sobre as quantias em dívida acrescem os juros moratórios, à taxa legal em vigor, desde o trânsito em julgado da decisão do tribunal em relação à indemnização, e desde a liquidação das retribuições intercalares em dívida em relação a estas[14], sendo os mesmos devidos até integral pagamento.
-
Concluindo, o recurso procede parcialmente quanto aos créditos que foram reconhecidos.
*
VII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida e declara-se a ilicitude do despedimento e condena-se o Réu a pagar à Autora:
a) A indemnização em substituição da reintegração, que se fixa em 40 dias de retribuição por cada ano completo ou fração de antiguidade, contada desde 21-07-2020 até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, e que ascende, na presente data, ao montante de € 3.266,50.
b) As retribuições intercalares que a Autora deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial de declaração da ilicitude do despedimento, com respeito pelo valores dos salários mínimos legais, deduzidas das importâncias que eventualmente a Autora tenha auferido a título de subsídio de desemprego, relegando-se a liquidação do valor total devido para incidente de liquidação.
c) Juros de mora à taxa legal em vigor sobre as quantias mencionadas em a) e b), devidos desde o trânsito em julgado da decisão do tribunal em relação à indemnização referida em a), e desde a liquidação das retribuições intercalares em dívida referidas em b), sendo os mesmos devidos até integral pagamento.
Mais se condena o Réu a pagar à Autora, a título de créditos laborais pela execução do contrato de trabalho que se mostram em dívida:
d) A quantia de € 773,50, pelo trabalho prestado em dias feriados nos anos de 2020 e 2021.
e) Juros moratórios sobre a quantia referida em d), à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral pagamento.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento, sem prejuízo da isenção de que beneficia a Autora.
Notifique.
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Évora, 11 de janeiro de 2024
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)



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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] Na sentença recorrida constava, por manifesto lapso material, que se corrigiu “acordado com o A.”.
[3] Neste sentido, Acórdão da Relação de Évora de 26-10-2017 (Proc. n.º 1726/16.2T8TMR.E1), acessível em www.dgsi.pt.
[4] Calculada de acordo com o teor na cláusula 90.ª do CCT, que é idêntico ao estipulado no artigo 271.º do Código do Trabalho.
[5] Cf. Artigo 3.º, n.º3, alínea j) do Código do Trabalho.
[6] Cf. Alínea EE) dos factos provados.
[7] Cf. Alínea HH) dos factos provados.
[8] Cf. Alínea FF) dos factos provados.
[9] Cf. Alínea HH) dos factos provados.
[10] Acessível em AD, 469.º-142.
[11] Publicado em www.dgsi.pt.
[12] Foi considerada a antiguidade de 3 anos, 5 meses e 21 dias, uma vez que a Autora foi admitida em 21 de julho de 2020.
[13] Cf. Acórdão da Relação de Évora de 19-12-2013 (Proc. n.º 679/12.0TTPTM.E1), consultável em www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 20-12-2021 (Proc. 603/05.7TTFAR.E1), acessível em www.dgsi.pt