Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
427/17.9TXEVR-E.E1
Relator: ANA BRITO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
RENOVAÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 08/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - O art. 61.º, n.º 3, do CP obriga à ponderação sobre a liberdade condicional “quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena”, não resultando do art. 180º do CEPMPL a derrogação deste comando.

2 - A referência feita no referido artº 180º do CEPMPL à data em que foi proferida a anterior decisão (referência temporal utilizada no despacho recorrido) é feita pela lei apenas neste preciso contexto, ou seja, quando ocorram as duas circunstâncias cumulativas previstas nesse mesmo artigo (nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano) e fora da previsão do art. 61.º do CP.

3 - A renovação da instância de doze em doze meses acresce assim às apreciações legais obrigatórias previstas no art. 61.º do CP, quando for o caso, independentemente do período que mediar entre aquela renovação e esta apreciação ao abrigo do artº 61º do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 427/17.9TXEVR-E.E1 TXEVR-F, do Tribunal de Execução de Penas de Évora, foi proferida decisão negando a concessão de liberdade condicional a (...).
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“A) Vem o presente recurso interposto da douta decisão a qual recusou conceder a liberdade condicional ao recluso por alegada ausência de preenchimento do requisito descrito no nº 2 do art. 61º do Código Penal.
B) Por outro lado, desconsiderou o art. 61º do Código Penal e 180º, n.º1 do CEPMPL, e determinou que a próxima renovação da instância, legalmente prevista para 2/3 da pena que ocorrerá em 29 de Agosto de 2020, para 08 de novembro de 2020 (três meses depois de cumprimento de 2/3 da pena).
C) O Tribunal a quo deveria ter analisado a liberdade condicional aquando do cumprimento da metade da pena em 29 de Março de 2019, cuja instrução deveria ter sido concluído 60 dias antes dessa data, o que não sucedeu.
D) No entanto viria a notificar o recluso apenas em 19/03/2020, ou seja, um ano e dois meses depois, violando assim o n.º 2 do art. 173º do CEPMPL, que dispões o seguinte: “A instrução deve estar concluída até 60 dias antes da data admissível para a concessão da liberdade condicional”.
E) Quanto ao fundamento da recusa da concessão da liberdade condicional ela se baseia essencialmente nos factos ja analisados aquando da condenação e da medida da pena.
F) Não podem os mesmos factos serem considerados para efeitos da análise na fase da execução da pena.
G) No essencial do que se depreende no fundamento da decisão, considerando apenas factos a partir da execução da pena, o juízo prognose é favorável ao recluso.
H) E nesse sentido a decisão deveria ter sido a concessão da liberdade condicional.
I) Assim, os argumentos factuais posteriores a esta graduação violam o elemento teleológico de atribuição da possibilidade ressocializadora da pena.
J) A observação da expiação a ser imposta ao recluso à luz do CEPMPL passou a ser pela ótica da previsão especial positiva, mitigada, por critérios de prevenção geral.
K) Deste modo os fundamentos em que se baseiam a decisão da não merecem merecem ser acolhidos para agravar a situação do recluso, tendo em vista que a extensão normativa que autoriza um juízo desfavorável sobre condenações anteriores, descrita no art. 75º do Código Penal, somente possibilita esta influencia pelo prazo de 5 anos entre “ a sua prática e a do crime seguinte”.
L) Tal como feito, ao utilizar os efeitos do instituto da reincidência para agravar a situação penitenciária do recluso, a decisão fundamentou em confronto a norma e desprazer de estender perpetuamente os efeitos da condenação pretérita.
M) Feitas estas considerações, todas motivações durante a execução da pena demonstram juízo de prognose favorável ao recluso em ter o benefício da liberdade condicional, como configura na própria decisão do indeferimento de liberdade condicional, mas com conclusão contrária na decisão.
N) Desta forma, merece melhor análise a decisão que recusa a liberdade condicional pois não pode basear-se em razões inconsistentes.
O) Por outro lado, o análise da liberdade condicional deveria ter ocorrido em 29 de março de 2019, no entanto o Recluso veria a ser notificado da decisão apenas em 19/05/2020, depois de um ano e dois meses, quando na verdade a instrução deveria ter sido concluída até 60 dias da data admissível da liberdade ,condicional conforme alude o art. 173º, n.º 2, da CEPMPL.
P) O Recluso não pode ser novamente prejudicado pela inércia do sistema em não conseguir no espaço de 4 meses realizar todas as diligências legalmente exigidas para o efeito, conforme estabelecido por Lei.
Q) Embora o Tribunal reconheça que considerando o art. 61º do Código Penal e 180º, n. 1, do CEPMPL, que a liberdade condicional deverá ser apreciada aquando de cumprimento de 2/3 da pena, no entanto decide contrariamente, renovando a instância por mais seis meses, o que demostra claramente a decisão contrariamente a determinação da Lei.
R) Os fundamentos para sucumbir o recluso a mais três meses enclausurado são alheios a questão processual e legal, sendo que este não pode ter os seus direitos derrogados por ausência de eficácia sistémica.
S) Portanto deverão todas as exigências serem cumpridas conforme o art. 173º do CEPMPL.
Nestes termos, e nos demais que V. Exa. doutamente suprirá, pede-se que o presente recurso seja considerado procedente e, em consequência: -Conceder a liberdade condicional ao recluso; A Cautela, -Ordenar o Tribunal da Execução de Pena a realização de diligências até 60 dias conforme alude o art. 173º, n.º 2, do CEPMPL.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:
“1-a - O recurso em apreço é restrito a matéria de direito, por falta de impugnação da factualidade julgada provada e não se evidenciar vício de conhecimento oficioso no julgamento daquela.
2-a - No caso dos autos, tendo o recorrente atingido o cumprimento de metade da pena, mas ainda não dos dois terços, a concessão da liberdade condicional depende da verificação cumulativa de ambos os requisitos materiais estabelecidos no art. 61-°, n-02, ais. a) e b), do Cód. Penal (CP).
3-a - Por um lado, a falta de adequada consciência crítica do recluso sobre os crimes cometidos; as acrescidas necessídades de prevenção especial, por já antes ter sido condenado e cumprido pena de prisão por crimes dos mesmos tipos legais (tráfico de estupefacientes e falsificação de documento); a falta de emprego no exterior e de meios próprios de subsistência; e a falta de avaliação da sua capacidade de determinação normativa em meio livre, posto que cumpre a pena em regime comum e não beneficiou de licenças de saída (nem é previsível que delas venha a beneficiar, por não ter permanência regular em território português), tornam prematuro e infundado prognóstico positivo sobre a sua capacidade de reinserção social responsável em liberdade, sem cometer crimes.
4-a - E, por outro, devendo presumir-se que a pena de prisão foi fixada na medida estritamente adequada a realizar as finalidades da punição e não tendo ocorrido após a condenação alteração de política criminal nem abrandamento do flagelo social do consumo de estupefacientes, não é razoável considerar integralmente satisfeitas as elevadíssimas necessidades de prevenção geral da prática do crime de tráfico de estupefacientes com a execução de metade da pena aplicada; Requisito cuja análise foi totalmente omitida no recurso.
5-a - Assim, não está verificado qualquer dos requisitos materiais da concessão da liberdade condicional facultativa, que, recorde-se, tem natureza excepcional e há de ser sempre suportada em juízo positivo de atenuação das necessidades preventivo-especiais e de cabal satisfação das necessidades de prevenção geral, reflectidas na medida da pena de prisão aplicada, sendo a regra o cumprimento daquela em estabelecimento prisional.
6-a - A fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida é absolutamente conforme com os critérios de ponderação estabelecidos no art. 61-°, n-º 2, do CP, e o entendimento do recorrente, no qual radica o seu inconformismo face ao decidido, de deverem ser excluídas daquela as circunstâncias do caso (os factos subjacentes à responsabilidade penal fixada) e a vida anterior do agente, na qual se incluem os seus antecedentes criminais e penitenciários, é manifestamente contrário do disposto no art. 61°, nº 2- a), do CP.
7-a - A decisão recorrida, de não concessão da liberdade condicional ao recorrente, fez correcta interpretação e aplicação das normas legais pertinentes, designadamente do disposto no art. 61-°, n-º2, als. a) e b), do CP.
8-a - No que concerne o pedido subsidiário, relativo à data aprazada na decisão recorrida para a renovação da instância, o recurso é legalmente inadmissível, porque, não estando expressamente prevista a recorribilidade desse segmento da decisão, contraria a regra da tipicidade dos recursos, estabelecida no art. 235-°, n-º1, do CEPMPL.
9-a - No caso de diverso entendimento, deve considerar-se, como consta daquela decisão, que o período de 6 meses, contado da última apreciação dos pressupostos legais da liberdade condicional, é o tempo mínimo necessário a uma evolução positiva e consolidada da personalidade do recluso, passível de fundamentar decisão diversa.
10-a - Pelo exposto, não deve ser conhecido o pedido subsidiário, por nessa parte o recurso ser legalmente inadmissível, e deve ser confirmada a douta decisão recorrida, julgando-se, no mais, o recurso improcedente.”
O Sr. Procurador-geral Adjunto referiu acompanhar a resposta ao recurso.
Teve lugar a conferência.

2. A decisão recorrida é do seguinte teor:
“O presente processo de liberdade condicional diz respeito ao recluso (...), com demais sinais nos autos, actualmente preso no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz.
Para efeitos de apreciação da concessão da liberdade condicional por referência à metade da pena que o recluso cumpre, foram na renovação da instância juntos aos autos os relatórios a que alude o art. 173º, nº 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (de ora em diante designado apenas por CEPMPL).
O conselho técnico reuniu, prestando os seus membros os esclarecimentos que lhes foram solicitados e emitindo, por unanimidade, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (art. 175º, nºs 1 e 2, do CEPMPL) – cfr. fls. 93.
Procedeu-se à audição do recluso, nos termos estabelecidos no art. 176º do CEPMPL, sendo que aquele consentiu na aplicação da liberdade condicional. Em sede de audição o recluso não ofereceu quaisquer provas – cfr. fls. 94.
Cumprido o disposto no art. 177º, nº 1, do CEPMPL, o Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional – cfr. fls. 95.
*
O Tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio.
Não existem nulidades insanáveis, nem questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta à apreciação do mérito da causa (a eventual concessão da liberdade condicional).
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II – Fundamentação
II – A) Dos Factos
O tribunal considera provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1. Quanto às circunstâncias do caso:
1.1. O recluso (...) cumpre à ordem do processo comum colectivo nº (…), do Juízo Central Criminal de Portimão (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, a pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, 1 (um) crime de falsificação de documento e 1 (um) crime de violação de medida de interdição de entrada;
1.2. O referido crime de tráfico de estupefacientes relaciona-se, em síntese, com a venda directa de estupefacientes (nomeadamente heroína) a consumidores de tal produto, no período compreendido entre 29 de Maio de 2014 e 29 de Dezembro de 2014;
1.3. O referido crime de violação de medida de interdição de entrada relaciona-se, em síntese, com a seguinte factualidade: no âmbito de processo que correu termos nas extintas Varas Criminais de Lisboa, o recluso foi condenado, além do mais, na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 6 anos, com interdição de entrada em território nacional por idêntico período;
O recluso foi expulso do território nacional no dia 6 de Novembro de 2011, tendo regressado no dia 19 de Agosto de 2012;
1.4. O referido crime de falsificação de documento relaciona-se, em síntese, com a posse e a exibição a autoridade policial de um passaporte falso;
1.5. A pena referida no ponto 1.1. dos factos provados foi liquidada nos seguintes termos:
- Início – 29 de Dezembro de 2014;
- Metade – 29 de Março de 2019;
- Dois terços (2/3) – 29 de Agosto de 2020;
- Cinco sextos (5/6) – 29 de Janeiro de 2022;
- Termo – 29 de Junho de 2023;
2. Quanto à vida anterior do recluso:
2.1. O recluso, nascido a (…) (actualmente conta com 38 anos de idade), cresceu numa área rural da ilha de Santiago, Cabo Verde, sendo o mais velho de seis irmãos de um conjunto familiar de modesta condição socioeconómica, que vivia da agricultura;
2.2. O progenitor deixou Cabo Verde em 1986 e aos 10 anos de idade o recluso começou a trabalhar no campo, ocupação que trocou pela construção civil aos 18 anos de idade;
2.3. O exercício de actividade laboral não o impediu de continuar a estudar e terminar o 11º ano, bem como de tomar conta dos irmãos mais novos, sobretudo despois da mãe ter vindo para Portugal em 2001;
2.4. Após o falecimento do pai em 2006, o recluso deixou o país de origem com os irmãos e juntou-se ao agregado materno no Cacém, obtendo trabalho em diversas obras da zona da grande Lisboa, num percurso laboral marcado por períodos de desemprego e vínculos precários;
2.5. Conjuntamente com a mãe explorou ainda um pequeno café na (…);
2.6. O recluso tem duas filhas menores, ambas nascidas em Portugal, fruto de dois relacionamentos afectivos diferentes e já terminados;
2.7. Após ter voltado a entrar em Portugal em Agosto de 2012, voltou a morar junto da família materna no Cacém, mas as dificuldades de inserção laboral na zona de residência fizeram-no optar, em 2013/2014, por outras oportunidades no Algarve, na construção civil e num restaurante de uma tia;
2.8. Para além das condenações referidas no ponto 1.1. dos factos provados, o recluso regista ainda condenações pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes e 1 (um) crime de falsidade de depoimento ou declaração, respeitando a sua primeira infracção criminal a factos praticados em Março de 2007;
2.9. Encontra-se preso pela segunda vez, datando a sua primeira reclusão de quando tinha 26 anos de idade;
3. Quanto à personalidade do recluso e evolução daquela durante a execução da pena:
3.1. O recluso refere ter praticado o crime de tráfico de estupefacientes porque estava numa situação difícil, tendo caído num esquema montado por um conhecido, a quem devia dinheiro, tendo guardado um saco de heroína desse conhecido, tendo sido apanhado no dia em que devia entregar esse saco;
3.2. Não faz qualquer referência aos crimes de falsificação de documento e de violação de medida de interdição de entrada;
3.3. No Estabelecimento Prisional (EP) regista uma infracção punida disciplinarmente, datada de 4 de Fevereiro de 2018 (posse de telemóvel);
3.4. Encontra-se laboralmente activo desde de 27 de Dezembro de 2018, desempenhando actualmente funções como faxina do ginásio, o que faz com empenho e dedicação;
3.5. Demonstrou interesse em frequentar formação profissional, aguardando oportunidade para tal;
3.6. Não beneficiou de qualquer licença de saída jurisdicional (LSJ);
3.7. Permanece colocado em regime comum desde o início da reclusão;
4. Situação económico-social e familiar:
4.1. Uma vez em liberdade, o recluso pretende voltar a viver com a sua companheira, na zona de Lisboa, sendo que actualmente aquela se encontra temporariamente em França, junto de uma irmã;
4.2. Contudo, a sua situação em território nacional não se encontra regularizada;
5. Perspectivas laborais/educativas:
5.1. O recluso pretende exercer actividade laboral na área da construção civil.
Com interesse para a decisão, inexistem factos não provados.
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II – B) Motivação
II – B – 1) Motivação Fáctica
Para prova dos factos supra descritos o tribunal atendeu aos elementos a que de seguida se fará referência, analisados de forma objectiva e criteriosa, nunca esquecendo que os relatórios e pareceres das diversas entidades que têm intervenção no processo de liberdade condicional (com especial relevância para a equipa dos serviços de educação e ensino da DGRSP, a equipa dos serviços de reinserção social da DGRSP e o conselho técnico) não são vinculativos, constituindo apenas informação auxiliar do juiz (neste Tribunal de Execução das Penas de Évora.
Neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Outubro de 2009 e de 7 de Julho de 2016, os Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010 e de 31 de Outubro de 2012 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Julho de 2011 e de 26 de Outubro de 2011, todos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 8027/06.2TXLSB-A.L1-3, Proc. 2006/10.2TXPRT-C.P1, Proc. 3536/10.1TXPRT-H.P1, Proc. 1797/10.5TXCBR-D.C1 e Proc. 165/11.6TXCBR-A.C1).
Assim, tal informação é livremente apreciada pelo julgador, devendo naturalmente ser conjugada com as impressões retiradas da reunião do conselho técnico e da audição do recluso, o que, na feliz expressão do referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010, «habilita o tribunal a fazer uma avaliação global orientada pelos princípios jurídicos que regem esta matéria».
Feitas estas notas prévias, a convicção do tribunal fundou-se na referida análise conjugada, global e crítica dos seguintes elementos:
- Certidão da decisão condenatória e da liquidação da pena – fls. 2 a 13v;
- Certificado de registo criminal do recluso – fls. 78 a 80v;
- Relatório da equipa dos serviços de educação e ensino da DGRSP – fls. 82-83;
- Relatório da equipa dos serviços de reinserção social da DGRSP – fls. 88-89;
- Ficha biográfica do recluso – fls. 84 a 86v;
- Acta da reunião do conselho técnico (fls. 93) e esclarecimentos aí prestados;
- Auto de audição do recluso – fls. 94.
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II – B – 2) Motivação de Direito
Dispõe o nº 1 do art. 40º do Cód. Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», acrescentando o nº 1 do art. 42º do mesmo diploma que «a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» (em termos essencialmente idênticos, veja-se o disposto no art. 2º, nº 1, do CEPMPL).
Tendo em consideração tais finalidades, o legislador do Código Penal de 1982 consignou no ponto 9 do preâmbulo do Dec.-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, que «definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão» (a este propósito, veja-se igualmente o ponto II.3. do anexo à Recomendação Rec(2003)22 do Conselho da Europa, adoptado pelo Comité de Ministros a 24 de Setembro de 2003 – documento disponível no sítio electrónico do Conselho da Europa).
A liberdade condicional tem assim uma «finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização» (neste sentido, vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, p. 528), sendo que do ponto de vista da sua natureza jurídica é hoje em dia inequívoco que constitui um incidente ou medida de execução da pena de prisão (a este propósito, veja-se JOAQUIM BOAVIDA, A Flexibilização da Prisão, Almedina, 2018, p. 124-125, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 2016 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Junho de 2010 e de 27 de Setembro de 2017, todos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 824/13.9TXLSB-J.L1-3, Proc. 435/05.2TXCBR-A.C1 e Proc. 386/16.1TXCBR-E.C1).
O instituto da liberdade condicional encontra-se preceituado, quanto aos seus pressupostos e duração, no art. 61º do Cód. Penal, que dispõe do seguinte modo:
«1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena».
O art. 61º do Cód. Penal consagra assim duas modalidades de liberdade condicional: a liberdade condicional facultativa, que opera “ope judicis”; a liberdade condicional obrigatória, que opera “ope legis”, pois deverá ser concedida logo que o condenado tenha cumprido cinco sextos da pena de prisão superior a seis anos ou da soma das penas a cumprir sucessivamente que exceda seis anos (cfr. art. 61º, nº 4 e 63º, nº 3, ambos do Cód. Penal).
De acordo com o disposto nos arts. 61º, nº 2, do Cód. Penal, são três os pressupostos formais de concessão da liberdade condicional:
1 – Que o condenado tenha cumprido no mínimo 6 meses de prisão;
2 – Que se encontre exaurida pelo menos metade da pena;
3 – Que o condenado consinta em ser libertado condicionalmente (requisito que também é exigido nos casos da referida liberdade condicional obrigatória).
Por outro lado, constituem requisitos materiais (ou substanciais) da concessão da liberdade condicional:
A) Que fundadamente seja de esperar, «atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes» (o legislador seguiu a sugestão de FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 539, quanto a deverem ser aqui tomados em consideração todos os elementos necessários ao prognóstico efectuado para decretar a suspensão da execução de pena de prisão);
B) «A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social» (este requisito deixa de se mostrar necessário logo que sejam atingidos os dois terços da pena, conforme resulta expressamente do disposto no nº 3 do preceito em causa).
Relativamente a estes requisitos, resulta claro que o primeiro se prende com uma finalidade de prevenção especial (mais concretamente prevenção especial positiva), visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006 p. 356; em idêntico sentido, ANTÓNIO LATAS, Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, p. 223 e 224, nota 32).
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Regressando ao caso concreto e subsumindo os factos ao direito, é isento de dúvidas que se mostram preenchidos os pressupostos formais da liberdade condicional, pois o recluso:
- Já cumpriu pelo menos 6 meses de prisão;
- Já cumpriu metade da pena;
- Aceitou ser libertado condicionalmente.
No que diz respeito aos requisitos de natureza material, estando em causa nos autos a apreciação da liberdade condicional por referência à metade da pena, mostra-se indispensável o preenchimento de ambas as exigências a que supra fizemos referência em A) e B), ou seja, quer as exigências de prevenção especial de socialização, quer as exigências de prevenção geral.
No que tange ao primeiro daqueles requisitos materiais, a lei impõe que para que seja concedida a liberdade condicional o juiz do Tribunal de Execução das Penas faça um juízo de prognose favorável de que uma vez em liberdade o condenado venha a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, sendo que entendemos que em caso de dúvida sobre tal capacidade, a liberdade condicional não deve ser concedida [com efeito, conforme refere JOAQUIM BOAVIDA a propósito do princípio “in dubio pro reo”, «na fase da execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação (…) Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o carácter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada (ob. cit., p. 137); no mesmo sentido, veja-se FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 540, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de Outubro de 2017, in www.dgsi.pt, Proc. 744/13.7PXPRT-K.C1].
Tal juízo de prognose terá de se revelar através da análise dos seguintes aspectos, conforme previsto na alínea a) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal:
- As circunstâncias do caso. Relaciona-se este segmento com a valoração do(s) crime(s) cometido(s), seja quanto à sua natureza e gravidade, seja ainda quanto às circunstâncias várias que estiveram na base da determinação da medida da pena, nos termos do art. 71º do Cód. Penal, sem que tal constitua qualquer violação do princípio “ne bis in idem” (neste sentido, veja-se o já referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010, in www.dgsi.pt, Proc. 2006/10.2TXPRT-C.P1).
Na situação concreta, de entre os diversos crimes praticados pelo recluso, o crime de tráfico de estupefacientes é valorado de forma naturalmente negativa, devido aos efeitos muito nefastos que produz quer nos consumidores, quer na sociedade em geral, sendo certo que no caso concreto o recluso ainda desenvolveu tal actividade durante um período de tempo relativamente longo;
- A vida anterior do agente. Este item relaciona-se com uma multiplicidade de factores, desde logo de natureza familiar, social e económica, mas também atinentes a eventuais problemáticas aditivas do recluso, bem como à existência ou não de antecedentes criminais, sendo também especialmente importante aferir se o recluso já anteriormente cumpriu penas de prisão ou se o faz pela primeira vez. Conforme refere JOAQUIM BOAVIDA de modo assaz pertinente, em matéria de liberdade condicional o elemento respeitante à vida anterior do condenado «é sobretudo relevante para operar a contraposição entre o homem que o recluso era antes da prática do crime e o homem que revela agora ser depois de executada parte substancial da pena» (ob. cit., p. 139-140).
No caso dos autos, são relevantes os antecedentes criminais e penitenciários do recluso, que já anteriormente cumpriu pena de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.
Relevam também as suas supra-referidas difíceis condições de crescimento e de desenvolvimento, havendo também a realçar a sua difícil situação económica à época dos factos;
- A personalidade do agente e a evolução daquela durante a execução da pena. Quanto a este aspecto, «é relevante apurar a personalidade manifestada pelo recluso na prática do crime, quais os seus traços, sintomas e exteriorizações», sendo que «não é indiferente se o crime é uma decorrência da personalidade impulsiva e agressiva do recluso ou se resultou apenas da conjugação de circunstâncias irrepetíveis ou da mera imaturidade do agente» (JOAQUIM BOAVIDA, ob. cit., p. 139-140).
No caso dos autos, julgamos que os crimes pelos quais o recluso actualmente cumpre pena têm génese diversa: quanto aos crimes de falsificação de documento e de violação de medida de interdição de entrada, estes relacionam-se com a sua vontade de voltar a reunir-se à sua família em Portugal; no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes, este relaciona-se com a difícil situação económica do recluso à época dos factos.
Estabelecida no essencial a personalidade do arguido, vejamos então se se verificou uma evolução positiva desta durante a execução da pena, o que deve ser perceptível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre.
Desde logo, cumpre referir que «não é, em rigor e nos termos legais, requisito de concessão da liberdade condicional (…) que o condenado revele arrependimento e interiorize a sua culpa. Tal é, seguramente, uma meta desejável à luz das finalidades da pena, mas que supõe uma mudança interior que não pode, obviamente, ser imposta (…) A ausência de arrependimento pode ser sinal do perigo de cometimento de novos crimes, mas não necessariamente. Se as circunstâncias em que ocorreu o crime são especialíssimas e de improvável repetição, não poderá dizer-se que a ausência de arrependimento significa perigo de cometimento de novos crimes. E também não pode dizer-se que um recluso que não revele arrependimento, ou não assuma mesmo a prática dos factos que levaram à sua condenação (em julgamento ou durante a execução da pena) não poderá nunca beneficiar de liberdade condicional antes de atingir cinco sextos da pena» (assim, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Dezembro de 2012, podendo encontrar-se no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 2016, ambos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 1796/10.7TXCBR-H.P1 e Proc. 824/13.9TXLSB-J-L1-3).
De qualquer modo, quanto a este aspecto, conforme resulta dos pontos 3.1. e 3.2. dos factos provados, verifica-se ausência de autocrítica por parte do recluso, o que em pessoa com antecedentes criminais e penitenciários pela prática do mesmo tipo de crime constitui sério factor de risco de recidiva criminal.
O comportamento prisional do recluso, constituindo também factor de avaliação da eventual evolução positiva da personalidade, não é no entanto decisivo, «sob pena de se estar a atribuir à liberdade condicional uma natureza – a de uma medida de clemência ou de recompensa por boa conduta – que ela não tem» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Outubro de 2013, podendo ver-se no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Janeiro de 2013, ambos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 939/11.8TXPRT-H.P1 e Proc. 1541/11.0TXLSB-E.E1).
Regressando ao caso concreto, verifica-se que o recluso regista no essencial comportamento regular, registando apenas uma infracção disciplinar, pelo que a análise deste item é globalmente favorável.
Por outro lado, tem demonstrado hábitos de trabalho, o que constitui factor de protecção quanto a poder sustentar-se em liberdade sem recorrer à prática de crimes.
Contudo, ainda não foi testado em meio livre, nomeadamente através da concessão de LSJ, o que associado à sua falta de autocrítica nos leva a concluir não ser possível fazer juízo positivo quanto à evolução da sua personalidade e quanto à sua futura capacidade para manter comportamento social responsável e isento da prática de crimes.
Assim, não se encontra preenchido o requisito a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal.
Conforme dissemos, o recluso não atingiu ainda os 2/3 da pena, pelo que para que fosse concedida a liberdade condicional sempre seria ainda necessário o preenchimento do requisito material a que alude a alínea b) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal, relacionado com razões de prevenção geral.
Conforme refere JOAQUIM BOAVIDA, ob. cit., p. 147 a 150, «o juiz, ao abordar o caso concreto, averigua se a libertação condicional do recluso poderá abalar a consciência jurídica comunitária. Não estão apenas em causa as repercussões sociais da libertação no meio comunitário onde o condenado pretende fixar a sua residência mas também na sociedade na sua globalidade», tendo «necessariamente de ponderar se a concessão da liberdade condicional será representada pela sociedade como uma minimização grave da conduta criminosa e, no limite, um acto escandaloso, não contribuindo para a pacificação social, antes pondo em causa a confiança na validade do ordenamento jurídico».
Para tal terá de considerar diversos elementos, desde logo começando, em termos gerais, pelo tipo de crime em causa e pela sua maior ou menor incidência, mas passando também, em determinadas situações específicas, pela eventual mediatização da ocorrência criminal que conduziu à condenação ou ainda pela repercussão que a libertação trará para as concretas vítimas do crime.
No caso dos autos, não existe relato de que no meio de residência se verifiquem sentimentos de rejeição à presença do recluso.
Contudo, indo aos crimes praticados pelo recluso, há que não olvidar que foi condenado, além do mais, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
Ora, é praticamente unânime na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que o bem jurídico protegido pelo crime de tráfico de estupefacientes é a saúde pública em geral (neste sentido, veja-se FERNANDO GAMA LOBO, Droga – Legislação, Quid Juris, 2006, p. 41, bem como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2011, in CJSTJ, Ano IX, Tomo I, p. 235 a 237; também a Convenção de Nova Iorque de 1961, a Convenção Sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, a Convenção de 1988 e o próprio preâmbulo do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro).
Já no seu Acórdão de 6 de Novembro de 1991, o Tribunal Constitucional considerou que «o escopo do legislador, ao incriminar o tráfico de estupefacientes, é evitar a degradação e destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que aquele tráfico indiscutivelmente potencia; assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes, e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos» (BMJ 411, p. 56).
E na realidade, embora actualmente pareça evidente que o cenário já não é tão catastrófico como já o foi até bem recentemente, mantêm-se ainda assim actuais as palavras de MANUEL M. GUEDES VALENTE, de acordo com as quais «o flagelo da droga atinge as famílias dos nossos dias como se de uma epidemia se tratasse, provocando desavenças, amarguras, desilusões, sofrimento psíquico e, até mesmo, a morte dos cidadãos. A busca de momentos de felicidade efémero produz chagas no consumidor e nos seus entes mais próximos, cujas cicatrizes jamais encontram cura verdadeira (…) Ninguém está livre de sentir a dor física e espiritual do flagelo e do fenómeno da droga, que infelizmente, corrompe e branqueia não só as almas, mas os corpos daqueles que se alimentam deste vil veneno» (Consumo de Drogas – Reflexões Sobre o Novo Quadro Legal, Almedina, 2002, p. 115).
Assim, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes são muito elevadas as razões de prevenção geral, pelo que a comunidade não compreenderia que o recluso fosse neste momento colocado em liberdade, para mais quando se trata de pessoa com antecedentes criminais e penitenciários pela prática do mesmo tipo de crime (sustentam esta posição, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Julho de 2010, 22 de Setembro de 2010 e de 28 de Setembro de 2011, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Junho de 2013, todos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 2318/10.5TXPRT-C.P1, Proc. 2006/10.2TXPRT-C.P1, Proc. 2368/10.1TXPRT-H.P1 e Proc. 161/12.6TXCBR-E.C1).
Deste modo, também não se encontra preenchido o requisito previsto na alínea b) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal.
Assim, há que concluir no sentido de não se encontrarem reunidos os requisitos necessários para que seja concedida a liberdade condicional.
***
III – Decisão
Pelo exposto, não concedo a liberdade condicional ao recluso (...).
Considerando o disposto nos arts. 61º do Cód. Penal e 180º, nº 1, do CEPMPL, a liberdade condicional deveria ser reapreciada aos 2/3 da pena.
Acontece que os 2/3 da pena serão alcançados no dia 29 de Agosto de 2020, ou seja, daqui menos de quatro meses, sendo que considero necessário que entre a presente decisão e a próxima apreciação decorram pelo menos seis meses, pois só desse modo é possível efectuar nova avaliação da situação do recluso e, por outro lado, só nesse prazo é possível ter nos autos todos os elementos legalmente exigidos para o efeito (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14 de Fevereiro de 2012, proferido no processo nº 1690/10.1TXEVR-A.E).
Assim, determino a renovação da instância dentro de seis meses, i.e., por referência a 8 de Novembro de 2020.
Assim, até 90 dias antes de atingida a referida data:
a) Solicite os relatórios a que aludem as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 173º do CEPMPL, fixando-se o prazo de 30 dias para a sua elaboração (juntamente com tais elementos deverá também ser enviada cópia actualizada da ficha biográfica do recluso);
b) Junte CRC actualizado do recluso.
Pelo menos 90 dias antes de atingida a referida data, notifique o recluso para, em 10 dias, querendo, requerer o que tiver por conveniente – art. 173º, nº 1, alínea c), do CEPML.
Instruídos os autos e decorrido o prazo supra, abra vista ao Ministério Público para os mesmos efeitos.
Registe.
Notifique.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente a questão a apreciar respeita à aferição dos pressupostos substanciais para concessão de liberdade condicional ao arguido recorrente. Considera este que se verificam os pressupostos previstos nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 61.º do CP, pelo que, contrariamente ao decidido, lhe deveria ter sido concedida. Subsidiariamente, e no caso da pretensão não lhe ser atendida, impugna o segmento final do despacho, na parte em que se determinou que a reavaliação da sua situação se processasse em Novembro de 2020, e não aos 2/3 da pena.
Da análise do recurso, no confronto da decisão recorrida e visto o contributo do contraditório, resulta claro que o recurso é de improceder no respeitante à negação da concessão da liberdade condicional. Nesta parte, a decisão é integralmente de manter, pelas razões e fundamentos de facto e de direito nela constantes, sendo correctíssima a sua fundamentação. Já na parte em que se considerou que a reapreciação só deveria ter lugar decorridos seis meses sobre a presente decisão, o despacho é de revogar.
Começando pela análise da decisão de negação de liberdade condicional, e apesar da evidência e exaustão no tratamento da questão, lembra-se que a medida em causa, “em qualquer das modalidades que reveste – a de uma liberdade condicional facultativa (ope judicis) e a de uma liberdade condicional necessária (ope legis) – configura um período de transição gradual para a vida livre, com vantagens do ponto de vista da ressocialização dos
delinquentes e da defesa da colectividade”. A liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa por bom comportamento, mas um meio de “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”, fortalecendo “as esperanças de uma adequada reintegração social do condenado” (Simas Santos, Leal Henriques, Noções elementares de Direito Penal, 2009, 207/8).
Visa-se também “adaptar a duração do cumprimento da pena à evolução do arguido no estabelecimento prisional” (Simas Santos, Leal Henriques, loc. cit.), já que o condenado não se ressocializa no último dia da pena, ele vai-se ressocializando. E quando essa ressocialização for compatível com a situação de liberdade (condicional), uma vez verificados os pressupostos formais, ela deve ser concedida.
No caso presente, está em causa a concessão de liberdade condicional facultativa, que depende de determinados pressupostos formais e substanciais, cuja verificação é feita casuisticamente.
Com efeito, na situação prevista no nº 3 do art. 61º do CPP o juiz age no exercício de poderes vinculados e serão razões exclusivamente de prevenção especial que relevam na ponderação. Mas já na situação prevista no nº 2 importa satisfazer ainda exigências de prevenção geral (assim, Sandra Oliveira e Silva, A Liberdade Condicional no Direito Português: Breves Notas, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2004, I, pp 347s e António Latas, O Novo Quadro Sancionatório das Pessoas Singulares, in A Reforma Penal de 2007, 2008, p. 119/20).
São, pois, razões de prevenção geral e especial que estão em causa no caso presente, como bem se considerou no despacho. E como também ali bem se considerou, concretizando-se tudo sempre factualmente, tanto as razões de prevenção especial como as de prevenção geral apontam no sentido da decisão tomada.
Pugna o recorrente por ver reconhecido que se acha em condições de lhe ser concedida a liberdade pelo tempo que resta cumprir da pena de prisão em que foi condenado, contrariamente ao considerado no despacho judicial. E, acrescente-se, contrariamente também à posição manifestada no processo pelo Ministério Público e pelo Conselho Técnico (unanimemente).
Argumenta destacando essencialmente que lhe foram valorados (indevidamente) os antecedentes criminais, o que seria ilegal segundo uma construção jurídica que procura desenvolver e que, manifestamente, não colhe.
Não colhe, desde logo por contrariar ela própria o comando legal, a norma expressa que manda atender precisamente, entre outras circunstâncias, à “vida anterior do agente” e à sua “personalidade” (al. a), do n. 2, do art. 61º).
Não podia pois o tribunal desconsiderar a condenação anterior por crime idêntico, devendo antes fazê-lo, por imperativo legal. Condenação que se revelou insuficiente na prevenção da recidiva. O que, tendo sido, é certo, já avaliado no momento da decisão sobre a pena, não deixa de ser ainda relevante (em conjunto com as demais circunstâncias) na fase da execução da pena, na aferição das concretas necessidades de ressocialização neste momento.
Lembra-se ainda que o recorrente impugnou a decisão apenas em matéria de direito e as suas demais alegações não encontram correspondência nos factos provados da decisão recorrida. Factos que o contradizem até.
Em suma, o recorrente cumpriu metade da pena, aceitou a liberdade condicional, e formalmente a sua situação enquadrar-se-ia nos nºs 1 e 2 do art. 61º do CP. Assim foi equacionado na decisão.
De acordo com a norma legal aplicável (e aplicada - art. 61.º, nºs 1 e 2, do CP), o tribunal coloca o condenado em liberdade condicional se “for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes” (al. a) do nº 2) e se “a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social” (al. b) do nº 2). Na decisão mostram-se devidamente apreciados todos os índices legais de ponderação. A liberdade condicional encontra-se negada de um modo factualmente sustentado, atendendo aos factos e critérios sinalizados no recurso e a outros (factos) que o recorrente não impugnou. Como sejam, e para nomear apenas os mais impressivos os de que o arguido “ainda não foi testado em meio livre, nomeadamente através da concessão de LSJ, o que associado à sua falta de autocrítica leva a concluir não ser possível fazer juízo positivo quanto à evolução da sua personalidade e quanto à sua futura capacidade para manter comportamento social responsável e isento da prática de crimes”.
Não se encontra, por tudo, preenchido o requisito a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 61º do CP, como bem se considerou.
E não ocorre igualmente o preenchimento do requisito material a que alude a alínea b) do nº 2 do art. 61º do CP, relacionado com razões de prevenção geral.
Como mais uma vez acertadamente se notou, “são muito elevadas as razões de prevenção geral no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes” e “a comunidade não compreenderia que o recluso fosse neste momento colocado em liberdade, para mais quando se trata de pessoa com antecedentes criminais e penitenciários pela prática do mesmo tipo de crime”.
Após se ter reconhecido o preenchimento dos pressupostos formais da liberdade condicional, atendeu-se às circunstâncias do caso (nomeadamente aos factos e aos tipos de crime da condenação), à vida anterior do agente, à sua personalidade, à evolução desta durante a execução da pena de prisão. Do teor da decisão recorrida observa-se que o tribunal apreciou os factos e circunstâncias que pendiam a favor e contra o arguido. E analisada a argumentação desenvolvida em recurso, continua a compreender-se, racional e normativamente, a conclusão a que o tribunal chegou, justificando-se que o recorrente deva continuar a flexibilizar a pena por mais algum tempo, como forma de ser testada a sua capacidade de resistência aos obstáculos com que se depare.
Dos factos provados que relevam para a decisão e de todos os elementos ali ponderados resulta linear a conclusão a que se chegou, de negação de concessão de liberdade condicional. Neste contexto, não dispõe a Relação de nenhum fundamento sério que contrarie o juízo formulado no despacho sobre as razões preventivas que justificaram, e justificam efectivamente, a não concessão da liberdade condicional. Tanto mais que os recursos são remédios jurídicos, que visam reparar erros de decisão, e não se vislumbram elementos que levem a contrariar o juízo de prognose negativa contido na decisão recorrida. Esta permanece, pois, como a decisão acertada, sendo ainda certo que se encontra muito próxima a prolação de nova reavaliação.
E entramos aqui na segunda questão colocada, relativa ao segmento em que se considerou que a reapreciação da situação do recluso só deveria ter lugar “decorridos seis meses sobre a presente decisão”.
Como se adiantou, nesta parte o despacho é de revogar.
Na verdade, o art. 61.º, n.º 3, do CP obriga à ponderação sobre a liberdade condicional “quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena”. E do art. 180º do CEPMPL não resulta a derrogação deste comando.
Pelo contrário, o art. 180.º começa por estatuir a “Renovação da instância” “sem prejuízo do disposto no artigo 61.º do Código Penal”. Preceitua que “sem prejuízo do disposto no artigo 61.º do Código Penal, nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano, a instância renova-se de 12 em 12 meses a contar da data em que foi proferida a anterior decisão”. A referência à data em que foi proferida a anterior decisão (referência temporal utilizada no despacho recorrido) é feita pela lei apenas neste preciso contexto, ou seja, quando ocorram as duas circunstâncias cumulativas previstas no art. 180º (nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano) e fora da previsão do art. 61.º do CP. A renovação da instância de doze em doze meses acresce assim às apreciações legais obrigatórias previstas no art. 61.º do CP, quando for o caso.
Por tudo se conclui que a interpretação seguida no despacho, interpretação in malam partem, não encontra suporte legal. Assim, revoga-se o despacho recorrido na parte em que estipulou “a renovação da instância dentro de seis meses, i.e., por referência a 8 de Novembro de 2020”, o qual deve ser substituído nessa parte por outro que determine a renovação da instância aos dois terços da pena.

4. Face ao exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão na parte em que determinou a renovação da instância por referência a 8 de Novembro de 2020, devendo antes ser determinada a renovação da instância aos dois terços da pena, confirmando-se no mais a decisão recorrida.
Sem custas.
Évora, 03.08.2020
Ana Barata Brito, com assinatura digital
João Amaro, com voto de conformidade