Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
683/05.5TAPTG.E1
Relator:
CORREIA PINTO
Descritores: INTERVENÇÃO E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
VIOLAÇÃO DAS ``LEGES ARTIS´´
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
Data do Acordão: 04/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. O crime de intervenção e tratamentos médicos com violação das “leges artis” é doloso. O dolo tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, a criação do perigo (para a vida, de grave ofensa para o corpo ou para a saúde).

2. Por isso que não se enquadra na configuração do crime a que se reporta o n.º2 do art. 150.º do Código Penal, a apreciação do comportamento do médico em termos de negligência, sem prejuízo da sua responsabilização por outras vias.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I)
Relatório
1. No âmbito do processo comum singular n.º …do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre, foram julgados os arguidos A. e M., melhor identificados nos autos, sendo imputada a cada um deles, em autoria material e na forma consumada, a prática de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, previsto e punível pelo artigo 150.º, n.º 2, do Código Penal.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença onde, concluindo-se que, “ao nível do tipo subjectivo, os arguidos (…) actuaram com dolo eventual na violação das leges artis, todavia, actuaram de forma negligente na criação do perigo, pelo que não se encontram preenchidos, in casu, os elementos do tipo subjectivo de cuja verificação depende a punibilidade”, se decidiu absolver ambos os arguidos relativamente à prática do aludido crime.

2. O Ministério Público, não se conformando com esta decisão, interpôs recurso da sentença.

Na respectiva motivação, formulou as seguintes conclusões:

1. Uma vez que o dolo pertence à vida interior e afectiva de cada um e é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infracção.

2. E o julgador considerou preenchidos todos esses elementos materiais da infracção, tendo a sentença recorrida consignado que, do ponto de vista objectivo – intervenção e tratamento médico com violação das leges artis causadora de perigo causadora de perigo para a vida –, se mostram preenchidos todos os elementos do tipo.

3. Constatando ainda factualmente que, tanto no dia 1 como nos dias 3 e 4 de Novembro de 2005, apesar de já medicada com antibióticos N. continuava a evoluir desfavoravelmente.

4. Tal leva a inferir que, sendo os arguidos médicos e com bons conhecimentos técnico-científicos, teriam, pelo menos, de representar como possível – no caso do arguido M. até como necessário – que, dando alta à paciente sem realizar exames complementares (análises de sangue e de urina) nem recorrer a uma terapêutica mais activa, designadamente antibioterapia intravenosa, criariam perigo para a vida daquela ou perigo de grave ofensa para o seu corpo ou saúde.

5. Desta forma, ao entender-se como não provado que os arguidos tenham tido a consciência que ao actuar como actuaram criariam perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N., incorreu o julgador em erro notório na apreciação da prova – artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. – violando o disposto no artigo 14.º, n.º 2 e 3 do C. Penal.

6. Ainda que assim não fosse entendido, sempre restaria o vício de contradição insanável na fundamentação – artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do C.P.P. –, pois o facto de se dar como provado que o arguido A. agiu com intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia N. e que o fez conformando-se com a possibilidade de estar a violar as leges artis, pois o quadro clínico que aquela apresentava, atento o agravamento do seu estado de saúde, imporia, designadamente, que lhe não fosse dada alta e estabelecida uma terapêutica mais activa com exames complementares e antibioterapia intravenosa, criando tal violação perigo para a vida de N. e que o arguido M. agiu com intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia N., contudo, fê-lo conformando-se com a possibilidade de estar a violar as leges artis, pois o quadro clínico que aquela apresentava, apontando para uma sepsis (não diagnosticada pelo arguido) imporia, designadamente, que não lhe fosse dada alta e estabelecida uma terapêutica mais activa com exames complementares e antibioterapia intravenosa, criando tal violação perigo para a vida da paciente, é contraditório com aquele outro afirmando que os arguidos não representaram como possível que com a sua conduta podiam causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.
7. Porque, se é admitido que os arguidos agiram dolosamente (ainda que sob a forma de dolo eventual) relativamente à violação das leges artis, ou seja, tiveram consciência, se representaram que não procediam correctamente face ao constatado agravamento do estado de saúde da paciente, inevitavelmente, também teriam de admitir como possível (ou até como necessário quanto ao arguido M.) que, assim actuando, fariam perigar a sua vida ou saúde de forma grave, porque, repete-se, se deu como provado que se aperceberam do agravamento do estado de saúde de N.

8. De forma que, ao absolver os arguidos por inexistência de dolo relativamente à criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde da paciente, violou a sentença recorrida o disposto nos artigos 14.º, n.ºs 2 e 3 e 150.º, n.º 2, ambos do C. Penal.

9. Razão pela qual, nessa parte, deve ser revogada e substituída por outra que condene os arguidos em conformidade.

3. Ambos os arguidos apresentaram resposta.

3.1 O arguido A. formulou as seguintes conclusões:

I – Nenhum erro de apreciação de prova existiu quando o Tribunal a quo, sustentado nos restantes elementos probatórios presentes no processo que o contradiziam, negou a existência de dolo, ainda que eventual, na mera actuação externa e objectiva do agente, conducente ao preenchimento de um tipo objectivo de ilícito.

II – In casu, o recorrido examinou a paciente, pediu exames complementares e, em função dos respectivos resultados, prescreveu a medicação que entendeu adequada a debelar a patologia que afectava N.

III – Não obstante ter resultado provado que a intervenção do recorrido violou as leges artis, todos os elementos presentes no processo demonstram que o recorrido não representou a possibilidade de, com tal violação, estar a criar um perigo para o corpo ou saúde da paciente.

IV – A necessária suficiência da verificação dos elementos objectivos do tipo de ilícito para a prova do dolo defendida pelo Ministério Público, mais não seria que uma presunção de dolo, fazendo derivar da natureza exterior da conduta realizada pelo agente e da correspondente verificação objectiva do ilícito típico a presença de dolo, que assim ficaria a cargo do agente.

V – Invertendo o ónus da prova, obrigando assim o arguido a provar, mau grado a prática da infracção, a falta de intenção (representação e volição) na comissão da mesma, o que constituiria uma clara violação do Princípio in dubio pro reo.

VI – Nenhuma contradição insanável de fundamentação da sentença existiu quando o Tribunal a quo julgou provado o dolo eventual quanto à violação das leges artis, e não julgou provado dolo quanto à criação de perigo para o corpo ou saúde da paciente.

VII – A representação que necessariamente terá que preceder a vontade de realização do tipo de ilícito penal terá de se estender, de forma mais ou menos segura, a todos os elementos, autonomamente considerados, que o compõem.

VIII – Pelo que a tese ora apresentada pelo Mui Digno Procurador não poderá vencer senão à custa do sacrifício da consideração autónoma de cada um dos elementos fáctico-objectivos do tipo de crime e da necessidade de, sobre cada um deles, pontualmente, recair o dolo do agente.

IX – E, correndo o risco de repetição, reafirma-se que em todas as suas acções, o recorrido demonstrou a intenção de diagnosticar e debelar os padecimentos daquela, como, aliás, se julgou provado nos pontos acima mencionados (25, 4, 6, 7, 8, 9 e 10 da matéria de facto).

X – Por último, é de referir que o Tribunal a quo, em momento algum, deixou consignado em que fundamento se baseou para julgar provado o dolo eventual do recorrido quanto à violação das leges artis.
Conclui que deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.
3.2 O arguido M. formulou as seguintes conclusões:

A) – Contrariamente ao que defende o Senhor Magistrado do Ministério Público, a sentença recorrida não padece de qualquer erro na apreciação da prova. Com efeito,

B) – Se é certo que o tribunal considerou provado que o Arguido e ora Recorrido violou as leges artis, não é menos certo que considerou igualmente provado que a dita violação ocorreu sem que o Arguido tivesse representado como possível que com a sua conduta pudesse causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde da falecida N..

C) – O mesmo é dizer que, perante esta factualidade assente falta, desde logo, o elemento volitivo para que a conduta do Arguido pudesse configurar ou integrar qualquer modalidade do dolo como pretende e defende o Senhor Magistrado do Ministério Público;

D) – Isto é, da matéria de facto dada como provada só pode concluir-se que o Arguido, embora tendo actuado em termos técnicos de forma menos adequada face à situação, sempre e unicamente quis com a sua conduta debelar a doença em termos que para ele representou como adequada;

E) – E daí que não exista não só qualquer contradição como inflexão inadequada da ponderação da factualidade pois, inequivocamente, inexiste qualquer conduta dolosa seja em que grau for quando o arguido actuou na convicção de que tecnicamente seria para si essa a conduta mais adequada, ou seja, não há conformação com a eventual violação das leges artis.

F) – E, por maior “esforço” que se faça jamais seria possível, sob pena de se violarem os mais elementares princípios do direito processual, penal sem factos que a sustentem, imputar tal consciência ao Arguido;

G) – Como se consignou na sentença recorrida na ausência de qualquer outra prova factual, não se apuraram factos suficientes para concluir que o Arguido M. tenha tido consciência de que ao dar alta à paciente lhe estivesse a causar perigo para a vida ou de grave ofensa no corpo ou na saúde”. (sublinhado nosso);

H) – E se tais factos porventura existissem, como defende o Senhor Magistrado do Ministério Público, o que salvo melhor opinião não acontece, então sempre lhe caberia efectuar a respectiva prova;

I) – Logo, não havendo prova dos factos, jamais se poderá dizer que o Arguido actuou com a consciência que a entidade Recorrente lhe pretende imputar;

J) – Aliás, neste contexto cumpre dizer que o Arguido, como clínico responsável que é, e com uma longa carreira, actuou no sentido de diagnosticar e curar o mal da doente e nunca com a intenção de lhe causar qualquer perigo para a vida ou para o corpo;

L) – Atender-se à tese do senhor Magistrado do Ministério Público seria, no fundo, fazer impender sobre o Arguido o ónus de provar a falta de intenção na prática da infracção, o que violaria os princípios processuais penais;

M) – De igual modo, não se verifica a invocada contradição insanável de fundamentação da sentença recorrida ao não julgar provada a existência /representação de dolo quanto ao perigo para o corpo ou para a saúde da falecida N.;

N) – Existência de dolo que terá que preceder e comandar a vontade de realização de qualquer ilícito penal;

O) – Aliás, mesmo no que tange ao dolo eventual quanto à violação das leges artis, não se consignou na sentença recorrida quais os fundamentos em que se alicerçou a invocada violação das leges artis, pois não se pode confundir actuação técnica deficiente com dolo eventual;

P) – Por último, dir-se-á ainda que atenta a factualidade provada, mormente nos factos 12 a 17 e 28 sempre o Arguido agiu com a intenção de diagnosticar o mal de que a paciente padecia, mas jamais de lhe causar qualquer dano no corpo ou na saúde, tendo sempre julgado que a sua actuação seria suficiente para debelar o mal.

Conclui que deverá improceder o recurso, com todas as consequências daí decorrentes.

4.1 Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, com vista nos autos e acolhendo a generalidade da argumentação que integra a motivação de recurso em 1.ª instância, emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso.

4.2 Os arguidos foram notificados nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Penal.
Apenas respondeu o arguido M. reiterando os termos da respectiva motivação, concluiu defendendo que o parecer deverá ser desatendido.

5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Considerando o disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e as conclusões formuladas pelo recorrente, o objecto do recurso consubstancia-se na apreciação das seguintes questões:

§ A alegada existência de erro notório na apreciação da prova, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, com violação do disposto no artigo 14.º, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal.

§ Na improcedência do fundamento anterior, a alegada existência de contradição insanável na fundamentação, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, com violação do disposto nos artigos 14.º, n.º 3, e 150.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.

1.1 Com interesse, importa considerar que na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos:

1) No dia 31 de Outubro de 2005, pelas 20h15m, N. dirigiu-se, com a sua filha M, à Clínica …, em …, para ser observada por um médico.

2) Aí chegada, uma vez que N. apresentava dores e febre desde o dia anterior, disúria, ardor à micção e Murphy renal positivo à direita, foi-lhe diagnosticada pela médica que se encontrava de serviço, Dra. M., uma cistite, tendo-lhe sido ministrado soro e receitado Buscopan drageias, Furadantina MC 100 e Bê Cê oral.

3) No dia seguinte, 01 de Novembro de 2005, porque N. não sentia melhoras, a sua filha M. dirigiu-se de novo à referida clínica onde foi atendida pelo médico J., que prescreveu que a referida M. acrescentasse à medicação que lhe havia sido prescrita no dia anterior o antipirético Dafalgan.

4) Porque continuava a não sentir melhoras, N. dirigiu-se com a sua filha M., nesse mesmo dia 01 de Novembro de 2005, ao Hospital …, em Portalegre, onde deu entrada pelas 22.25 horas, tendo sido observada pelo seu médico de família, o arguido A., que ali se encontrava de serviço.

5) N. referiu ao mencionado médico, ora arguido A., sentir disúria, ardor miccional e poliaquiúria há cerca de três dias, que estava a ser medicada com Furadantina 100 e Bêcê há um dia e que havia iniciado a toma de Dafalgan nesse dia.

6) Do exame físico então elaborado pelo ora arguido A. a N. resultou que a mesma se apresentava "vigil, colaborante, pele e mucosas normacaradas, normahidratadas, eupneica, discurso fluido e coerente" bem como com Murphy renal positivo à direita e temperatura axilar de 39ºC, tendo-lhe diagnosticado uma pielonefrite aguda sem lesão de necrose renal medular.

7) A pedido do arguido A., N. fez análises à creatinina e ureia, bem como hemograma com fórmula leucocitária (eritograma, contagem de leucócitos e contagem de plaquetas) e ionograma, encontrando-se os resultados de tais exames plasmados a fls. 100, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.

8) O arguido A. acrescentou à medicação que havia sido prescrita a N. outro antipirético (Nolotil), e deu-lhe alta clínica pelas 23.51 horas desse mesmo dia 01 de Novembro de 2005.

9) No dia 03 de Novembro de 2005, M. dirigiu-se ao Centro de Saúde do Cano, onde reportou ao arguido A. que a sua mãe não registava melhoras, tendo febre incontrolável e vómitos.

10) O referido arguido decidiu, então, retirar o Dafalgan e prescreveu o Ben-U-Ron alternado com Nolotil com intervalos de administração mais curtos, mantendo ainda o antibiótico prescrito, mais referindo não ser necessário N. deslocar-se ao Hospital.

11) No dia 04 de Novembro de 2005, porque continuava a piorar, N. foi de novo conduzida pela filha M. ao Serviço de Urgência do Hospital …, em Portalegre, onde deu entrada às 09.54 horas.

12) Nessa instituição, N. foi primeiramente observada pelo médico S..

13) A solicitação do médico S., N. efectuou análises à creatinina, à glucose, à ureia, à proteína C reactiva, bem como hemograma com fórmula leucocitária e ionograma, encontrando-se os resultados de tais exames a fls. 104, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

14) Da história clínica constante do relatório detalhado do episódio de urgência desse mesmo dia (fls. 31-33), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, resulta que “desde segunda-feira (31 de Outubro de 2005) começou com dores lombares com irradiação para o ventre; veio à consulta e foi medicada com Furadantina MC + Buscopan + Bêcê. Terça-feira (01 de Novembro de 2005) mantém as mesmas queixas acompanhadas de febre sem alterações urinárias; foi medicada com Dafalgan + Nolotil. Desde ontem (03 de Novembro de 2005) continuou com queixas e foi-lhe medicado Ben-U-Ron”, informação que foi inserida pelo médico S.
.
15) Por entender que N. carecia de mais tempo de permanência hospitalar, o médico S. encaminhou-a para o médico internista de serviço, o ora arguido M., que inseriu no referido relatório detalhado do episódio de urgência desse dia (fls. 31-33), no historial da doença, que a paciente se mostrava "muito pouco colaborante e muito queixosa de mialgias, apirética. Auscultação cardio pulmunar sem alterações, abdómen globoso móvel dolorosa à palpação superficial e profunda em todos os quadrantes, membros sem edemas, medicada habitualmente com Co-diovan e Nebilet e desde há cinco dias está a fazer Furadantina. O RXtórax não parece ter alterações excepto rotação anti-horária da sombra cardíaca. As análises têm insuficiência renal/desidratação. Tem creatinina de 5,6, ureia 137,9 e K 3, 64”.
16) Pelo arguido M., foi solicitada a administração de soro por via endovenosa a N., tendo os valores da pressão arterial melhorado, ao longo de 4 horas.

17) Por tal motivo, o arguido M. deu alta clínica a N. pelas 19.24 horas, prescrevendo que mantivesse a medicação habitual, mas acrescentando os medicamentos Kainever e Effortil, tendo-lhe diagnosticado uma desidratação.

18) Como N. continuava a piorar, no dia 05 de Novembro de 2005, pelas 07.54 horas, regressou ao Serviço de Urgência do Hospital… em Portalegre, onde foi observada pela Dra. M., que avaliou a situação considerando tratar-se de um quadro de "sepsis com ponto de partida eventualmente genito-urinário”, conforme resulta do relatório completo de episódio de urgência desse dia (fls. 34-38), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

19) Nesse momento, foi colhido sangue para reavaliação laboratorial e urina para realização de urocultura, tendo ainda sido pedido Raio-X ao tórax e ao abdómen, bem como TAC abdominal e pélvico com carácter de urgência.

20) A doente foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos às 13h03m desse dia, vindo a falecer às 17.45 horas após paragem cardio-respiratória, tendo sido infrutíferas as manobras de reanimação realizadas.

21) Do relatório da consulta técnico-científica de fls. 175-176 resulta que "a continuação dum quadro clínico apontado para uma sepsis obrigaria a que, nas observações realizadas no Serviço de Urgência do Hospital de Portalegre nos dias 1 e 4/11 não se desse alta sem que se tivesse recorrido a tais exames complementares e estabelecido uma terapêutica mais activa, designadamente com antibioterapia intravenosa”.

22) Do relatório do processo de averiguações de fls. 163-167 resulta que o diagnóstico de pielonefrite aguda implica "uma atitude mais interventiva, nomeadamente o internamento da doente”.

23) Do mesmo relatório resulta ainda que, no dia 03 de Novembro de 2005, a febre da paciente estava incontrolável e que esta apresentava vómitos o que indicava “um agravamento da situação a qual não estaria a responder ao antibiótico prescrito pela primeira médica”, pelo que, em tal momento, “a doente deveria ter sido observada e muito provavelmente enviada ao Hospital da área de residência”.

24) Mais resulta do referido relatório que “na observação de 4/11/2005, a utente manifestava claros sintomas e sinais de gravidade. Nesta altura, a situação apresentava sinais e sintomas clínicos aos quais se juntavam análises laboratoriais que indiciavam a presença de um quadro que impunha atitudes tais como o internamento e/ou discussão da situação com outros colegas”, sendo o internamento, na opinião do médico instrutor do processo, a atitude correcta a adoptar nesta fase.

25) O arguido A. agiu com a intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia N., contudo, fê-lo conformando-se com a possibilidade de estar a violar as leges artis, pois o quadro clínico que aquela apresentava, atento o agravamento do seu estado de saúde, imporia, designadamente, que não lhe fosse dada alta e estabelecida uma terapêutica mais activa com exames complementares e antibioterapia intravenosa, criando tal violação perigo para a vida da paciente.

26) Ao actuar da forma descrita, o arguido A. fê-lo, contudo, sem representar como possível que com a sua conduta pudesse causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

27) O arguido M. agiu com a intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia N., contudo, fê-lo conformando-se com a possibilidade de estar a violar as leges artis, pois o quadro clínico que aquela apresentava (factos 13 a 15 e 24), apontando para uma sepsis (não diagnosticada pelo arguido), imporia, designadamente, que não lhe fosse dada alta e estabelecida uma terapêutica mais activa com exames complementares e antibioterapia intravenosa, criando tal violação perigo para a vida da paciente.
28) Ao actuar da forma descrita, o arguido M. fê-lo, contudo, sem representar como possível que com a sua conduta pudesse causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

29) O arguido M. é casado e vive com a mulher e com dois dos seus cinco filhos em casa própria.
30) É médico de profissão, com a especialidade de medicina interna, e tem um rendimento mensal de pelo menos € 10.000,00 (dez mil euros).

31) É proprietário de três casas de habitação.

32) Paga por conta de um empréstimo bancário que contraiu para a aquisição de habitação uma prestação mensal de cerca de € 500,00 (quinhentos euros).

33) Tem como habilitações literárias uma licenciatura em medicina e especialidade em medicina interna, medicina do trabalho e reumatologia.

34) É considerado pelos seus colegas de profissão como um profissional dedicado aos doentes e com bons conhecimentos técnico-científicos.

35) Do seu certificado de registo criminal nada consta.

36) O arguido A. é casado e tem dois filhos menores, um com quatro anos e outro com um ano de idade.

37) Vive com a mulher e com os dois filhos em casa própria, pagando por conta de um empréstimo bancário que contraiu para a aquisição da mesma uma prestação mensal de cerca de € 500,00 (quinhentos euros).

38) É médico de profissão, e tem um rendimento mensal não inferior a € 3.000,00 (três mil euros).

39) Tem como habilitações literárias uma licenciatura em medicina e especialidade em medicina familiar.

40) É considerado pelos médicos e enfermeiros com quem trabalhou como um profissional atento e com bons conhecimentos técnico-científicos.

41) Do seu certificado de registo criminal nada consta.

1.2 Na mesma peça processual, relativamente à matéria de facto consignaram-se como não provados os seguintes factos:

A) Que no dia 01 de Novembro de 2005 N. tivesse sido observada pelo médico J.

B) Que no dia 01 de Novembro de 2005, quando foi observada pelo arguido A., o quadro clínico de Natália Nogueira apontasse para uma sepsis.

C) Que o arguido A. tenha tido a consciência que ao actuar como actuou criaria perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

D) Que o arguido M. tenha tido a consciência que ao actuar como actuou criaria perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

1.3 Para fundamentar a convicção do tribunal, mostra-se consignado o seguinte, na parte que aqui interessa:

2.3 – Motivação da decisão de facto

A decisão de facto teve por base a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, na sua globalidade, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal (artigos 127.º e 355.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).

(…) Relativamente à factualidade constante dos pontos 4) a 8) dos factos provados assentou o Tribunal a sua decisão na análise do teor do relatório detalhado de episódio de urgência de fls. 29-30, e do teor do documento de fls. 100, relativo às análises clínicas efectuadas a N. no dia 01 de Novembro de 2005, em conjugação com as declarações prestadas pelo arguido A. e pela assistente M.

De referir que, pese embora o arguido A. tenha declarado que diagnosticou a N. uma cistite e que introduziu no sistema informático o diagnóstico pielonefrite aguda porque o referido sistema informático não dispunha daquela opção de diagnóstico (ou ele a não encontrou), tal versão mostrou-se incoerente e infundada, não merecendo, assim, a credibilidade do Tribunal.

Com efeito, o arguido não se limitou a introduzir no sistema o diagnóstico de saída pielonefrite, o mesmo especificou o tipo de pielonefrite de que padecia N., indicando tratar-se de “pielonefrite aguda sem lesão de necrose renal medular”, como resulta do teor do relatório detalhado do episódio de urgência de fls. 29-30. Ora, conforme pelo próprio arguido A. foi referido, sendo a pielonefrite uma infecção do trato urinário ascendente que afecta o rim, e a cistite uma infecção e/ou inflamação da bexiga, parece-nos óbvio que uma necrose renal medular apenas se pode compaginar com uma infecção do rim.

Por outro lado, importa acrescentar que o arguido A. poderia sempre ter feito referência no relatório detalhado do episódio de urgência, nos campos queixa inicial ou exame físico, onde é possível ao médico introduzir observações, que o diagnóstico constante do campo diagnóstico de saída não era o correcto, o que não fez, sendo certo que também não adiantou qualquer explicação para não o ter feito.

Assim, e sem prejuízo do tribunal ter ficado convencido dos problemas práticos graves que o programa informático utilizado no Hospital causa aos médicos, não se convenceu minimamente da versão apresentada pelo arguido A. relativamente ao diagnóstico efectuado.

--- Faz-se aqui um parêntesis para afirmar que a confirmar-se a versão do arguido, tal conduta configuraria só por si, e em nosso entender, uma clara violação das leges artis, consistente na colocação consciente de um diagnóstico errado num relatório de episódio de urgência sem qualquer ressalva, com as implicações que tal poderia ter em observações futuras da doente ---

No que concerne aos factos dados como provados nos pontos 9) e 10), fundou o Tribunal a sua convicção nas declarações prestadas pela assistente M., que se afiguraram coerentes e sérias, pelo que credíveis, em conjugação com as declarações do arguido A. na parte em que, corroborando a assistente, afirmou ter alterado a medicação prescrita a N.

Quanto a estes factos, não mereceram credibilidade, no restante, as declarações do arguido A. não nos parecendo razoável que a ora assistente tenha faltado ao trabalho e se deslocado ao Centro de Saúde apenas para reportar ao médico de família da sua mãe que a mesma estava muito melhor, sendo certo que, conforme resulta da factualidade assente, logo no dia seguinte pela manhã N. deu de novo entrada no Hospital de Portalegre, precisamente porque o seu estado de saúde não revelou melhorias. Acrescente-se que no dia anterior a assistente se havia deslocado à Clínica, pelas 20 horas, onde reportou ao Dr. M. que a sua mãe não apresentava melhorias (facto relatado com absoluta credibilidade pela assistente).

Do mesmo modo, o depoimento das testemunhas D., enfermeira a prestar serviço no Centro de Saúde do Cano à data dos factos, R. àquela data, administrativa no mesmo Centro de Saúde, foi inconsistente e notoriamente proteccionista da posição do arguido A., demonstrando estas testemunhas apenas um conhecimento seccionado e direccionado dos factos.

No que respeita à decisão quanto aos factos vertidos nos pontos 11) a 17), fundou o Tribunal a sua convicção na análise conjugada do teor do relatório detalhado do episódio de urgência de fls. 31-33, e do teor das análises clínicas efectuadas a N. no dia 04 de Novembro de 2005 constantes de fls. 104, conjuntamente com as declarações prestadas pelo arguido M. e pela assistente M., bem como com o depoimento prestado pela testemunha S, médico que primeiramente assistiu N. quando deu entrada no Hospital de Portalegre naquele dia.

Efectivamente, pela testemunha S. foi referido que diagnosticou a N. uma insuficiência renal aguda por desidratação entendendo que a mesma deveria pelo menos passar algum tempo no hospital, motivo que o levou a transferir a paciente para os cuidados do internista de serviço naquela dia, o ora arguido M., que a recebeu.

Pelo arguido M. foi dito, aquando das suas declarações, que confirma o teor da informação constante do relatório detalhado do episódio de urgência de fls. 31-33, e o resultado das análises clínicas efectuadas a N. no dia 04 de Novembro de 2005 constantes de fls. 104, tendo-lhe diagnosticado uma insuficiência renal aguda por desidratação, pelo que solicitou a administração de soro por via endovenosa à paciente.
O próprio arguido M. admitiu que apesar de N. lhe ter dado conhecimento que havia dado já entrada naquele mesmo Hospital no dia 01 daquele mês, não consultou o relatório detalhado do episódio de urgência daquele dia, nem o respectivo diagnóstico porque, como referiu, não achou necessário.

Mais referiu que uma vez que os níveis da tensão arterial de N. foram melhorando e porque a mesma lho pediu, deu-lhe alta para o domicílio.

Relativamente aos factos insertos nos pontos 18), 19) e 20) considerou o Tribunal o teor do relatório detalhado do episódio de urgência de fls. 34-38, o teor do documento de fls. 40-41, respeitante ao diário clínico de N., o resultado das análises clínicas efectuadas à mesma no dia 05 de Novembro de 2005, constantes de fls. 63-64 e 119-121, o teor da certificado de óbito de fls. 14, conjuntamente com as declarações da assistente M., e o depoimento, que reputamos de responsável, sério e objectivo, das testemunhas C. e J., ambos médicos e que assistiram, naquele dia, N. no Hospital de Portalegre.

A testemunha C. esclareceu que assim que observou o estado clínico de N. conjugadamente com o resultado das análises do dia anterior (04 de Novembro de 2005) de imediato apontou o seu diagnóstico para uma septicemia com origem urinária, pelo que a encaminhou de imediato para a Unidade de Cuidados Intensivos.

No mesmo sentido, a testemunha J. referiu que quando N. deu entrada na Unidade de Cuidados Intensivos apresentava um quadro de shock séptico.

Esta testemunha esclareceu com seriedade e coerência o Tribunal que a retirada do cateter, que inadvertidamente havia sido introduzido na carótida jugular, nenhuma relação teve com o óbito de N.. Referiu que, tendo aquele sido retirado antes das 14h00 e o óbito ocorrido pelas 17h45m, seria de todo impossível com aquele hiato temporal, que uma possível embolia cerebral provocada pela retirada do cateter tivesse sido a causa da morte, na medida em que, se efectivamente a embolia tivesse ocorrido a morte seria praticamente imediata.

No que concerne à decisão sobre os factos contidos no ponto 21), dimanou a mesma da consulta técnico-científica do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal cujo resultado está contido no relatório pericial de fls. 175-176, relatado pelo perito médico P.

A factualidade vertida nos pontos 22), 23) e 24) da matéria assente resultou do teor do relatório do processo de averiguações de fls. 163-167, elaborado pelo médico instrutor A.S.

Por sua vez, convicção do Tribunal relativamente à deliberação sobre os factos constantes dos pontos 25) e 27), resultou da análise conjugada do relatório pericial de fls. 175-176 do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal, do teor do relatório do processo de averiguações de fls. 163-167, conjuntamente com os esclarecimentos prestados em audiência de discussão e julgamento pelo perito médico P, o depoimento isento, objectivo e responsável das testemunhas A.S., médico instrutor do relatório do processo de averiguações de fls. 163-167, e A., médico no Hospital de Portalegre.

Do teor do referido relatório pericial resulta que, efectivamente, atento o quadro clínico que N. apresentava, tanto no dia 01 como no dia 04 de Novembro de 2005, encontrando-se já medicada com antibióticos e, ainda assim, a evoluir desfavoravelmente, a mesma deveria ter sido internada em unidade hospitalar para dessa forma ser sujeita a exames complementares de diagnóstico e a uma terapêutica mais activa, designadamente antibioterapia intravenosa.

Resulta ainda do referido relatório que, pese embora não possa estabelecer-se com segurança um nexo entre a actuação dos arguidos e o óbito de N., uma terapêutica mais enérgica e precoce poderia ter evitado a evolução desfavorável, podendo daí inferir-se que a conduta dos arguidos, ao não actuarem daquela forma, foi efectivamente causadora de perigo para a vida de N.

Alinhando no mesmo entendimento, também no relatório do processo de averiguações de fls. 163-167 se conclui que no dia 01 de Novembro de 2005, quando observou a paciente N., e perante o diagnóstico de pielonefrite aguda, o arguido A. deveria ter adoptado uma atitude mais interventiva, designadamente, o internamento da paciente.

Conclui-se igualmente no referido relatório, que no dia 03 desse mesmo mês, quando a filha da paciente N. referiu ao arguido A. que a mesma não estava melhor, apresentando febre incontrolável e vómitos, indicando estar-se perante um agravamento da situação e uma ineficácia do antibiótico prescrito, deveria o referido arguido ter observado a paciente ou sugerido que a mesma fosse levada ao Hospital da sua área de residência.

Relativamente à actuação do arguido M. conclui-se no aludido relatório que, revelando a paciente N. claros sintomas e sinais de gravidade, a prática médica correcta teria sido o internamento da paciente.
Em esclarecimentos prestados em sede de audiência, o perito médico P. elucidou que nos casos em que um paciente com uma infecção urinária não apresenta melhoras após dois dias com terapêutica antibiótica, é sinal de que se trata de uma infecção com maior gravidade, pelo que nestes casos se torna de suma importância a realização de urocultura e hemocultura de forma a detectar qual o micróbio causador da infecção, para, assim, ser administrado ao paciente o antibiótico mais eficaz, pelo que, conclui, atenta a circunstância de a paciente N. não apresentar melhoras ao cabo de dois dias a tomar medicamento antibiótico conjuntamente com a presença de uma neutrofilia no resultado das suas análises de dia 01 de Novembro de 2005, teria sido prudente o arguido A. ter internado a paciente naquele dia e solicitado a realização de urocultura e hemocultura.

No concernente à actuação do arguido M., pelo mesmo perito médico foi afirmado de modo seguro e firme que o resultado das análises efectuadas à paciente no dia 04 de Novembro de 2005 conjugadas com a evolução do quadro clínico da mesma, seriam suficientes para que se concluísse por um possível quadro de sepsis, pelo que, perante o quadro de notório agravamento do estado de saúde da paciente N., o identificado perito médico não hesitou em afirmar que o tratamento médico hospitalar adequado seria o internamento da paciente e a ministração de antibioterapia intra-venosa.

Importa ainda sublinhar, que pelo referido perito médico foi ainda dito que a circunstância de as hemoculturas e uroculturas efectuadas no dia 05 de Novembro de 2005 terem resultado negativas não afasta, por si só, um possível quadro de sepsis, esclarecendo que nem sempre o resultado laboratorial é compatível com a avaliação clínica.

O mesmo entendimento foi corroborado pela testemunha A.S., que afirmou que um diagnóstico de sepsis é possível ainda que as hemoculturas e uroculturas resultem negativas.

Esta testemunha reafirmou ainda em audiência as conclusões que plasmou no já aludido relatório do processo de averiguações de fls. 163-167 que elaborou.

Por sua vez, também a testemunha A. referiu, com seriedade e segurança, que a prática médica correcta nos casos de diagnóstico de uma infecção urinária é a recolha de urina para a realização de urocultura prévia, que deve ser de novo realizada ao fim de 72 horas da toma do antibiótico para que se possa perceber se o mesmo está ou não a ser eficaz. Caso ao fim de 72 horas a urocultura resulte positiva, o correcto é prescrever antibiótico diverso, prática que nenhum dos arguidos adoptou.

De referir, por fim, que tanto o identificado perito médico, como as referidas testemunhas foram unânimes em afirmar que o quadro clínico e laboratorial que a paciente N. apresentava no dia 01 de Novembro de 2005, embora revelasse já sinais de infecção compatível com uma pielonefrite, não permitia ainda concluir por um diagnóstico de sepsis.

A tal conclusão já não chegou, contudo, o perito médico relativamente ao quadro clínico que N. apresentava no dia 04 de Novembro de 2005, referindo que a evolução negativa do mesmo em conjugação com as análises efectuadas seria suficiente para se concluir por um quadro de sepsis.

Assim, conjugada a prova produzida, não teve o Tribunal dúvidas em considerar assente que os arguidos A. e M. violaram com a sua conduta as regras da boa prática médica, maxime leges artis.

Para a decisão sobre a matéria fáctica inserida nos pontos 26) e 28) dos factos assentes e nos pontos B), C), D) da factualidade dada como não provada considerou o Tribunal, conjugadamente, os esclarecimentos do perito médico P., o depoimento das testemunhas A.S., A. e as declarações dos arguidos A. e M.

Efectivamente, como se referiu, quer o perito médico, quer as referidas testemunhas afirmaram em uníssono que o quadro clínico e laboratorial que a paciente N. apresentava no dia 01 de Novembro de 2005 não permitia ainda concluir por um diagnóstico de sepsis, circunstância que, aliada ao facto de o arguido A. ter observado a paciente N. ainda numa fase muito recente da evolução da sua doença, e ao facto de por este arguido sido dito que entendeu que ainda não havia passado tempo suficiente para que o antibiótico prescrito à paciente actuasse, versão que se coaduna com o entendimento defendido pelas testemunhas médicos de profissão inquiridas, causou no Tribunal a forte convicção de que o arguido A. não representou, aquando da sua actuação, que pudesse estar a causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

Ora, conforme também se referiu, a tal conclusão já não chegou, contudo, o perito médico no que respeita ao dia 04 de Novembro de 2005, referindo que atendendo à evolução negativa do quadro clínico que N. apresentava nesse dia, seria já suficiente para se concluir por um quadro de sepsis.

De sublinhar que pelo próprio arguido M. foi dito que entendia que N. devia ter ficado internada no Hospital para hidratar durante mais umas horas e que apenas deu alta à doente porque esta lhe pediu para ir para casa e porque entendeu não haver qualquer sinal grave que a impedisse de ter alta.

Porém, na ausência de qualquer outra prova factual, não se apuraram factos suficientes para concluir que o arguido M. tenha tido consciência de que ao dar alta à paciente lhe estivesse a causar perigo para a vida ou de grave ofensa no corpo ou na saúde.

Para a decisão quantos aos factos constantes do ponto 28) da matéria assente, e dos pontos D) da factualidade não provada, ponderou o Tribunal a circunstância de, conforme resulta do teor do relatório detalhado de episódio de urgência de fls. 31-33, o arguido M. ter diagnosticado a N., correcta ou incorrectamente, uma desidratação, sendo certo que a terapêutica que lhe aplicou se coaduna com o diagnóstico que efectuou, a que se alia o facto de inexistir qualquer elemento probatório que nos permita concluir em sentido inverso e considerando o princípio do in dubio pro reo, que obrigatoriamente terá que subjazer à análise da prova pelo Tribunal.

(…)”.
2. Enquadramento legal.

2.1 Em termos substantivos, discute-se aqui a responsabilidade penal dos arguidos, enquanto médicos.

“O médico não tem o dever jurídico de curar o doente, até porque tal não depende exclusivamente da sua vontade, mas tem o indeclinável dever de empreender o tratamento que, de acordo com as regras da ciência médica, e no estado actual dos conhecimentos técnico-científicos, é considerado como adequado à cura ou, pelo menos, a proporcionar ao doente alguma qualidade de vida compatível com a dignidade do ser humano” – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 230.

Conforme se salienta na parte final da sentença recorrida e tendo em conta a incriminação que é feita na acusação, “o caso dos autos não é um daqueles casos vulgarmente conhecidos como de “negligência médica”. Estes são casos em que se imputam condutas activas ou omissivas negligentes (com violação do dever de cuidado), o presente é um caso em que o crime imputado é um crime doloso e, conforme afirmado, duplamente doloso”.

Na verdade, os actos médicos são passíveis de responsabilização criminal a diferentes níveis; desde logo, a prática de acto médico contrário às leges artis decorrente de acto doloso e sem intuito terapêutico poderá preencher o tipo de crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143.º do Código Penal) ou agravada, desde que se verifiquem as respectivas circunstâncias qualificativas previstas, nomeadamente, nos artigos 144.º, 145.º do mesmo diploma legal. Se a intervenção e/ou o tratamento, causando ofensa no corpo ou na saúde de outra pessoa, forem praticados com negligência, poderão preencher o tipo de ofensa à integridade física por negligência (artigo 148.º do Código Penal). Em qualquer dos casos, releva a admissibilidade de consentimento, nos termos do artigo 149.º do Código Penal. Uma intervenção negligente de que decorra a morte é susceptível de responsabilização nos termos do artigo 137.º do Código Penal.

A tais incriminações e com caracterização diferente, acresce – naquilo que aqui releva – o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, previsto e punível pelo artigo 150.º, n.º 2, do Código Penal, discutindo-se nos presentes autos, em termos concretos, se cada um dos arguidos praticou, ou não, em autoria material e na forma consumada, tal crime.

As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física (artigo 150.º, n.º 1); mas as mesmas pessoas que, em vista das finalidades apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias, se pena mais grave não lhes couber por força de outra disposição legal (artigo 150.º, n.º 2).

No ensinamento do Prof. Manuel da Costa Andrade (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, páginas 312 e 313), “o n.º 2, introduzido pela Reforma de 1998, pôs de pé uma incriminação nova: a criação de um perigopara a vida” ou de “grave ofensa para o corpo ou para a saúde”, como consequência de violação das leges artis. Com a sua consagração, o legislador de 1998 quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (artigo 148.º) e por Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (artigo 156.º), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto.

(…) Na medida em que provoca um perigo para a vida o facto é já punido pelo artigo 144.º, alínea d), face ao qual o n.º 2 do artigo 150.º parece emergir como norma subsidiária. Só na parte em que provoca o perigo para o corpo ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo.

(…) No plano objectivo, a infracção configura um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. No tipo subjectivo só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde)”.

As leges artis são as “regras da arte”. Nos termos consignados na decisão recorrida, “reconduzem-se a normas escritas (não jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos e destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, designadamente, a evitar o desenvolvimento de perigo ou a ocorrência de danos que tais ofícios são naturalmente hábeis a produzir”.

O respeito pelas leges artis, no caso específico da medicina, impõe a execução dos cuidados médicos de acordo com a técnica mais apurada, segundo os processos e regras oferecidas pela ciência médica, quer quanto à técnica da intervenção ou do tratamento médico-cirúrgicos, quer quanto à sua oportunidade e conveniência no caso concreto e à idoneidade dos meios utilizados.

As leges artis constituem, em suma, “um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica” – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54.

O crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis é doloso, não sendo punível a título de negligência – cf. artigos 13.º e 150.º do Código Penal.

Por isso, não se enquadra na configuração do crime a que se reporta o artigo 150.º, n.º 2, a apreciação do comportamento do médico em termos de negligência, sem prejuízo de o poder responsabilizar por outras vias; dito de outro modo, não releva para tal configuração o facto de haver elementos consistentes que permitam concluir no sentido da existência de negligência médica – porque, por exemplo, o médico tratou o paciente com displicência, “ministrando-lhe cuidados de rotina, sem individualizar e cuidar da pessoa em concreto”, mantendo “uma terapêutica rotineira, não cuidando de aprofundar o diagnóstico e posterior tratamento”.

A noção de dolo resulta do artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal. Nos termos desta norma, age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar (dolo directo); age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário); finalmente, quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representado como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização (dolo eventual).

Para a configuração do dolo não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, na certeza de que, nos termos do artigo 16.º, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo.

Relativamente aos factos que configuram o dolo, «trata-se de eventos do foro psíquico, sensorial e emocional, não são directamente captáveis pelos sentidos (visão ou audição). Contudo, a prova no domínio do direito (processual), ao invés do que ocorre com a demonstração, no campo da matemática, ou com a experimentação, no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção (o grau de probabilidade) essencial às relações práticas da vida social (a certeza histórico-empírica). E a este grau de convicção, próprio da prova, podem ascender, não apenas as ocorrências do mundo externo (os factos externos), mas também as realidades do foro psíquico (os factos internos, hoc sensu). Por outro lado, muitas vezes os próprios factos externos só podem ser provados através dos mesmos meios de persuasão (presunções baseadas em regras da experiência, leis da natureza ou cânones do pensamento) que denunciam a existência dos factos internos.

Ora o dolo embora assente em factos, como fenómeno que é da vida psíquica, não é passível de apreensão directa, mas é ilação a tirar das circunstâncias da infracção.

A propósito escreve-se no Acórdão da Relação do Porto de 23/02/83 (BMJ n.º 324/620), “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.”

No mesmo sentido também no Acórdão da Relação do Porto, de 04/05/94 (…) se escreve: “O dolo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir dos factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção”» – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 2008, disponível em www.dgsi.pt, processo 07P607.

Não se defende a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção; afigura-se no entanto que pode comprovar-se o dolo pelo recurso a presunções legais, dado que, com excepção dos casos em que há confissão por parte do agente, a prova do dolo resulta necessariamente do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais.

Importa no entanto salientar que a aplicação desta regra não prejudica a prevalência de princípio basilar no âmbito do processo penal e que configura a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa): o princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre factos decisivos para a solução da causa; dito de outro modo, na dúvida, deve julgar a favor do arguido. Não existindo ónus da prova que recaia em qualquer dos sujeitos processuais, nomeadamente o arguido e o Ministério Público, e devendo o tribunal investigar toda a verdade, não deve desfavorecer o arguido sempre que não alcançar prova do facto para além de toda a dúvida razoável, o que também não se confunde com a simples existência de diversidade de versões.

2.2 Em sede de lei adjectiva e nos termos dos artigos 124.º e 125.º do Código de Processo Penal, constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, sendo admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente – como ocorre nos casos de prova vinculada – o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – artigo 127.º do Código de Processo Penal.

“Como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” – Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Almedina, página 354, em anotação ao artigo 127.º.

“O princípio da livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado. Ele não viola a CRP antes a concretiza (acórdão do TC n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão n.º 464/97): “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

O princípio tem, portanto, limites. A CRP e a lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Esses limites dizem respeito (…) ao grau de convicção requerido para a decisão, (…) à proibição de meios de prova, (…) à observância do princípio da presunção da inocência, (…) à observância do princípio in dubio pro reo" – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, páginas 329 e 330, em anotação ao mesmo artigo.

O limite normativo do princípio da livre apreciação da prova consubstancia-se no princípio “in dubio pro reo”, princípio geral do direito processual penal que antes se deixou caracterizado e que configura a aplicação de uma regra de decisão quando o tribunal, ponderada a prova relevante, mantém a dúvida sobre a matéria de facto.

2.3 A sentença começa por um relatório ao qual se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – artigo 374.º do Código de Processo Penal.

É permitido o recurso das sentenças; e, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida; e mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova – artigos 399.º a 410.º do Código de Processo Penal.

Relativamente ao último destes normativos e no ensinamento de Simas Santos e Leal-Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6.ª Edição, Editora Reis dos Livros, página 71), a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão [artigo 410.º, n.º 2, alínea b)] verifica-se quando se detecta “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.

O erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, alínea c)] consubstancia-se (autores e obra citados, página 74) em “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º (…)”.

Sendo um vício que se relaciona com a apreciação da prova, tem de traduzir-se em vício de raciocínio inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores, designadamente quando o tribunal dá como provado algo que manifestamente está errado, porque baseado em juízo ilógico ou contraditório.

Não se confunde no entanto com a mera divergência de valoração feita por qualquer um dos intervenientes processuais.

Tratando-se de vícios da sentença, os mesmos terão de resultar do texto da mesma apreciada na sua globalidade, sem o recurso a elementos que lhe sejam externos, ainda que integrando o processo e para eles remeta a sentença, como resulta de modo explícito do artigo 410.º do Código de Processo Penal, antes citado.

Em sede de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e transcrevendo parte da súmula que consta do Acórdão da Relação de Coimbra, de 29 de Novembro de 2006, disponível na internet, no endereço www.dgsi.pt, processo 400/03.4GBPBL.C1: “Escreveu-se no (…) Ac. de 3.7.2002, “I.- (…). II – O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal. (…) Acórdão do STJ, de 18.3.2004, proferido no processo n.º 3566/03-5.ª secção, e de que foi relator o Exmo. Conselheiro Simas Santos: “(…) VII. – A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum. VIII. – O erro notório na apreciação da prova unicamente é prefigurável quando se depara ter sido usado um processo racional e lógico mas, retirando-se, contudo, de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irrazoável, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, bem como das regras que impõem prova tarifada para determinados factos (…).”

As restrições apontadas não se verificam quando o recurso, não se condicionando aos vícios a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, discute a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, caso em que cabe ao Tribunal da Relação proceder à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e recorrido e de outras que julgue relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – artigos 412.º, n.º 3 e n.º 6, e 431.º do Código de Processo Penal.

A matéria sob recurso será apreciada a luz do quadro legal que sumariamente se deixa traçado, tendo presente que os fundamentos invocados se restringem aos vícios a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, alíneas c) e b), do Código de Processo Penal.

3. A alegada existência de erro notório na apreciação da prova, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, com violação do disposto no artigo 14.º, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal.

3.1 Na parte que aqui interessa e conforme antes se deixou transcrito, considerou-se provado em sede de sentença que os arguidos A. e M. agiram com a intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia N., fazendo-o, contudo, conformando-se com a possibilidade de estarem a violar as leges artis, pois o quadro clínico que aquela apresentava imporia, designadamente, que não lhe fosse dada alta e que fosse estabelecida uma terapêutica mais activa com exames complementares e antibioterapia intravenosa, criando tal violação perigo para a vida da paciente.

Acolheu-se deste modo na sentença recorrida – como resulta dos factos que se deixam mencionados – que a intervenção dos arguidos, em relação à doente N., ocorreu em ambos os casos em objectiva violação das leges artis, traduzindo-se essa violação no facto de qualquer um deles ter dado alta à doente indevidamente, perante o respectivo quadro clínico, quando é certo que os sintomas evidenciados impunham atitude mais interventiva, especificamente, o internamento, a realização de exames que não foram concretizados e a sujeição a outra medicação.

Acolheu-se ainda na sentença recorrida que, sem se demonstrar que a morte da paciente entretanto ocorrida seja o resultado directo e necessário do comportamento de cada um dos arguidos, resultou de tais comportamentos e em termos objectivos, perigo para a vida da paciente.

Lida a respectiva fundamentação – nos termos que ficaram anteriormente transcritos – e no que concerne à violação das leges artis, verifica-se que o tribunal concluiu nesse sentido ao fazer a ponderação do teor dos relatórios que integram os autos (relatório pericial de fls. 175 e 176 e relatório de processo de averiguações, de fls. 163 a 167) e dos depoimentos do perito médico P. e das testemunhas, igualmente médicos, A.S. e A.

Confrontando o que resulta de tais elementos de prova, nomeadamente quanto aos procedimentos que seriam exigíveis em termos médicos face à concreta situação da doente nos diferentes momentos que foram considerados, com a específica actuação de cada um dos arguidos, concluiu-se na sentença no sentido de terem de igual modo consciência de poderem estar a violar as leges artis, ao procederem nos concretos termos em que o fizeram, com tal se conformando.

Deixou-se anteriormente enunciado este conceito (de leges artis), importando salientar que o conjunto de regras e princípios em questão tem em vista assegurar a resposta técnico-científica e deontológica adequada, o que, além do mais, tem reflexos na minimização de riscos em relação ao doente e na salvaguarda da própria intervenção do médico.

Perante isso, a violação dos procedimentos adequados tem, em princípio, associada a possibilidade de acréscimo de risco, relativamente ao doente.

Mas não se confundem os conceitos nem se pode afirmar que a realização de intervenções ou tratamentos em violação das leges artis determina sempre e necessariamente a criação de um perigo efectivo para a vida ou de perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde do doente; na verdade, a ser assim, não faria sentido que a norma incriminatória (artigo 150.º, n.º 2, do Código Penal) mencionasse de forma diferenciada as duas realidades; seria então suficiente para a configuração do crime a simples prática dolosa em violação dos procedimentos adequados e exigidos pelas regras da medicina.

3.2 A este propósito entende o recorrente que, escrevendo-se na sentença recorrida, quanto aos elementos materiais da infracção, que «“in casu, e no que respeita ao tipo objectivo, entendemos que a factualidade apurada expressa que se encontram todos os elementos preenchidos”, (…) só disto, resultaria um forte indicador da existência do elemento subjectivo, sobretudo, estando em causa como está, uma matéria de elevado cariz técnico e de especial exigência para os que com ela tratam.

Mas, para além deste forte indiciador da existência de dolo, outros factos vazados na sentença levam à convicção de que os arguidos, para mais, apetrechados com bons conhecimentos técnico-científicos como se escreve na mesma sentença, necessariamente teriam de admitir, pelo menos como possível, que o comportamento que seguiram traria perigo para a vida ou para a saúde de N.

Logo no atendimento do dia 1 de Novembro de 2005, “quando observou a paciente N., e perante o diagnóstico de pielonefrite aguda, o arguido deveria ter adoptado uma atitude mais interventiva, designadamente, o internamento da paciente”. Acresce ainda “que, no dia 3 desse mesmo mês, quando a filha da paciente N. referiu ao arguido A. que a mesma não estava melhor, apresentando febre incontrolável e vómitos, indicando estar-se perante um agravamento da situação e uma ineficácia do antibiótico prescrito, deveria o referido arguido ter observado a paciente ou sugerido que a mesma fosse levada ao Hospital da sua área de residência” – fls. 788.

No que tange à conduta do arguido M. parece-nos ainda mais ostensiva a existência de dolo (…). A tal respeito diz-se na sentença recorrida a fls. 789: “no concernente à actuação do arguido M., pelo mesmo perito médico foi afirmado de modo seguro e firme que o resultado das análises efectuadas à paciente no dia 4 de Novembro de 2005 conjugadas com a evolução do quadro clínico da mesma, seriam suficientes para que se concluísse por um quadro de sepsis, pelo que, perante o quadro de notório agravamento do estado de saúde da paciente N., o identificado perito médico não hesitou em afirmar que o tratamento médico hospitalar adequado seria o internamento da paciente e a ministração de antibioterapia intra-venosa”.

Então, perante tal quadro factual, todo ele apontando inquestionavelmente para a existência do abordado dolo de perigo, que outros factos lhe contrapõe a sentença recorrida que o afaste?

Relativamente ao arguido A. o facto de “ter observado a paciente N. ainda numa fase muito recente de evolução da sua doença, e o facto de por este arguido ter sido dito que entendeu que ainda não havia passado tempo suficiente para que o antibiótico prescrito à paciente actuasse”.

(…) Quanto ao arguido M. apenas se deixou consignado que “na ausência de qualquer outra prova factual, não se apuraram factos suficientes para concluir que o arguido M. tenha tido consciência de que ao dar alta à paciente lhe estivesse a causar perigo para a vida ou de grave ofensa no corpo ou na saúde”».

Ponderados os termos da sentença recorrida, não se verifica a existência de elementos de prova vinculada, cuja preterição pelo tribunal possa configurar erro notório na apreciação da prova.

Mas também não se vê da análise do texto da sentença recorrida que esta tenha falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Confrontando os factos provados com os fundamentos de convicção do tribunal, não se vê que o texto apresente contradições ou que do mesmo estejam excluídos elementos determinantes.

Não se vê que haja posições antagónicas e inconciliáveis, a afirmação e a negação da mesma coisa.
É certo que, em sede de sentença, se consigna, em relação ao arguido M., que por ele próprio “foi dito que entendia que N. devia ter ficado internada no Hospital para hidratar durante mais umas horas e que apenas deu alta à doente porque esta lhe pediu para ir para casa e porque entendeu não haver qualquer sinal grave que a impedisse de ter alta”. Mas tal afirmação, permitindo sustentar uma actuação dolosa no que concerne à violação das correctas regras de conduta, não se afigura incontroversa quanto à demonstração de consciência e aceitação do perigo para a vida ou do perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde da paciente.

E mesmo que se aceite que, no caso concreto, a factualidade apurada permite afirmar que estão preenchidos todos os elementos no que respeita ao tipo objectivo e que tal facto é indiciador da existência do elemento subjectivo, não inutiliza este elemento a prevalência da dúvida.

Na verdade, o julgador, feita a ponderação dos elementos de prova enunciados em sede de sentença, fez operar o princípio in dubio pro reo.

Pode-se obviamente discutir esta opção, discordar da hesitação do julgador que o levou a não afirmar a efectiva existência de dolo quanto à consciência do perigo; mas, nesse caso, estamos fora do âmbito dos vícios a que se reporta o artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Na verdade, o que não parece adquirido nos autos é a existência de elementos contraditórios ou determinantes que evidenciem a existência de erro notório.

Está obviamente afastada a apreciação do comportamento dos arguidos em termos de eventual negligência e inadequação dos tratamentos ministrados à paciente e consequências daí decorrentes para esta, dado que, como antes se mencionou, tal indagação não integra o objecto do processo.

4. A alegada existência de contradição insanável na fundamentação, a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal.

A este propósito, o recorrente pretende que o facto de se dar como provado que os arguidos agiram conformando-se com a possibilidade de estarem a violar as leges artis, ante o estado clínico da paciente, de agravamento do seu estado de saúde, é contraditório com aquele outro afirmando que os arguidos não representaram como possível que com a sua conduta podiam causar perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de N.

Importa salientar que, tal como reconhece o próprio recorrente, é possível que ocorra actuação com violação dolosa das leges artis sem representação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde do doente.

A não ser assim e como já se afirmou em momento anterior, não faria sentido que a norma incriminatória (artigo 150.º, n.º 2, do Código Penal) mencionasse de forma diferenciada as duas realidades, dado que seria então suficiente para a configuração do crime a simples prática dolosa em violação dos procedimentos adequados e exigidos pelas regras da medicina, resultando daí como consequência necessária a consciência do perigo.

No caso dos autos, analisados os termos da sentença, não se afigura que as razões que justificam a afirmação da violação das leges artis e da conformação dos arguidos com a mesma sejam incompatíveis com o facto de terem actuado sem representar como possível que das suas condutas resultasse perigo para a vida da paciente.

Os elementos contraditórios, a existirem, consubstanciar-se-iam antes no confronto entre a actuação dos arguidos, com a afirmada intenção de diagnosticar e debelar a doença de que padecia Natália Nogueira, por um lado e, por outro, uma actuação antagónica, com a aceitação do perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo ou para a saúde da mesma.

III)

Decisão:

Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Sem custas.

Évora, 8 de Abril de 2010.


(Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto)

(João Luís Nunes)