Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
287/17.0PALGS.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Tendo o MP promovido a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, o tribunal, antes de apreciar tal pretensão, deveria ter notificado a arguida para se pronunciar, querendo, sobre tal promoção. Não o fazendo, violou o tribunal o princípio do contraditório.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No Processo Sumaríssimo nº 217/17.0PALGS, do Juízo de Competência Genérica de Lagos (Juiz 2), em que é arguida AA, foi proferido despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49º do Código Penal.

Inconformada com essa decisão, dela recorreu a arguida, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. A decisão recorrida foi proferida sem que à condenada fosse dada a possibilidade de explicar as razões do não pagamento da multa, ouvindo-a.

2. A decisão judicial que, ao abrigo do disposto no artigo 49º, nº 1, do CP, ordenou o cumprimento de prisão subsidiária, não poderia ter dispensado o respeito pelo princípio do contraditório, resultando violados ditames processuais e constitucionais, designadamente os dos artigos 61º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e artigos 27º e 32º, nº 1, da Constituição da República.

3. A decisão recorrida, por não ter sido precedida de audição da condenada, está, pois, ferida de nulidade (artigo 119º, alínea c), do CPP), por violação dos artigos 49º, nº 3, do Código Penal, 61º, nº 1, alínea b), do CPP, e 27º e 32º, nº 1, da Constituição da República, os quais impõem que sejam dadas ao arguido todas as garantias de defesa, nelas se incluindo, evidentemente, a possibilidade de exercer o direito ao contraditório por via da sua audição.

4. A arguida nulidade deverá ser sanada através da prática do ato processual omitido, nos termos do artigo 122º do Código de Processo Penal”.
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A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância respondeu ao recurso, defendendo a improcedência do mesmo, e concluindo tal resposta do seguinte modo (em transcrição):

“1. A recorrente vem interpor recurso do despacho que declarou a conversão da pena de multa em que foi condenada nos autos em 40 dias de prisão subsidiária.

2. Considera a recorrente que o Tribunal a quo não poderia ordenar a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária sem proceder à audição da condenada, e que a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária só poderia verificar-se após esgotadas as demais possibilidades, como “a suspensão da multa”.

3. A recorrente AA foi condenada na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no montante global de 300,00€, porém não procedeu ao seu pagamento, nem requereu a sua substituição por trabalho a favor da comunidade.

4. Foram realizadas diligências para apurar a existência de bens ou rendimentos penhoráveis da arguida, tendo em vista a cobrança coerciva da multa, porém não se logrou localizar qualquer bem ou rendimento suscetível de penhora.

5. Por esse motivo, a pena de multa a que a arguida foi condenada foi convertida em pena de prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49º, nº 1, do Código Penal.

6. Para que tal operação se verifique o legislador não exige a audição prévia da condenada, bastará ser-lhe efetuada a notificação do despacho proferido, por qualquer das formas previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 113º Código de Processo Penal, para a morada constante do TIR.

7. Formalidade que satisfaz as garantias de defesa da recorrente e permite-lhe pronunciar-se sobre o não pagamento da multa, não exigindo a norma a sua audição presencial, ficando dessa forma salvaguardado o direito consagrado no artigo 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

8. O legislador impõe ao condenado o ónus da demonstração, e não apenas a invocação, de que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pelo que caberia à condenada, se assim o entendesse, provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, tendo em vista a suspensão da pena de prisão subsidiária.

9. Não competindo ao Ministério Público ou ao Tribunal a quo fazer tal juízo, como pretende a recorrente, sendo certo que nos presentes autos a condenada não invocou sequer que o não pagamento da multa lhe não é imputável.

10. Face ao exposto, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer reparo, por não existir qualquer vício ou violação de qualquer norma, nomeadamente dos artigos 49º, nº 3, do Código Penal, 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, ou dos artigos 27º e 32º, nº 1, da Constituição da República, devendo julgar-se o recurso apresentado totalmente improcedente”.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo que deve ser concedido provimento ao recurso da arguida, substituindo-se o despacho revidendo por outro que dê “a possibilidade à arguida de se pronunciar sobre o requerimento do MP relativamente à conversão da pena de multa em prisão subsidiária”.

Com efeito, e além do mais, escreve o Exmº Procurador-Geral Adjunto (no seu douto parecer, constante de fls. 166 a 169 dos autos): “o Tribunal, perante a promoção do MP no sentido de converter a multa em prisão subsidiária, decidiu sem previamente dar à arguida a possibilidade de se pronunciar sobre o que o MP requerera, sendo inquestionável que, a ser deferido o promovido, como o veio a ser, se trataria de uma Decisão que pessoalmente afetava a arguida”.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não tendo sido exercido qualquer direito de resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Tendo em conta as conclusões apresentadas pela arguida e acima transcritas, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma a questão que vem suscitada no presente recurso: saber se, in casu, deve (ou não) ser decretada, sem mais, a conversão da pena de multa (não paga) em prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49º do Código Penal.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Nos presentes autos, aplicada que foi à arguida AA pena de multa, vem o Ministério Público requerer a sua conversão em prisão subsidiária, por não paga integral, voluntária ou coercivamente.

Resulta da decisão de fls. 129, que foi a arguida condenada na pena de 50 dias de multa à razão diária de € 6,00, perfazendo a multa global de € 300,00.

Decorreu o prazo a que alude o art.º 489º, nº 2, do C.P.P., sem haver sido paga ou requerida a substituição da multa por trabalho.

Realizadas diligências com vista à instauração da execução correspondente, revelou-se a mesma inviável, por à arguida não serem conhecidos bens penhoráveis ou, pelo menos, bens dotados de valor, impossibilitando-se assim o pagamento coercivo da multa.

Nesta conformidade, considerando que o art.º 49º, nº 1, do Código Penal determina que “se a multa, não tendo sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços”, ao caso caberá a conversão, o que se determinará.

Pelos fundamentos expostos, verificados os pressupostos a que alude e nos termos do art.º 49º do C.P., declaro a conversão da multa na pena de prisão subsidiária, determinando, em consequência, que cumpra, efetivamente, a arguida AA o tempo correspondente aos dias da multa aplicada reduzido a dois terços, no total de trinta e três dias de prisão.

Notifique.

Após trânsito, passe os competentes mandados de detenção”.

3 - Factos relevantes para a decisão.
Compulsados os autos, e com interesse para a decisão da questão colocada neste recurso, resultam os seguintes elementos:

a) Sob a forma de “Processo Sumaríssimo”, o Ministério Público requereu a aplicação à arguida AA da pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 300,00.

b) O Exmº Juiz, em 22-05-2018 (cfr. fls. 87 dos autos), proferiu o seguinte despacho (na parte aqui relevante):

Mostram-se reunidos os pressupostos de que, nos termos do art.º 392º, nº 1, do C.P.P., depende a tramitação dos autos como processo sumaríssimo.

A pena proposta pelo Ministério Público mostra-se adequada às necessidades de prevenção geral e especial que o caso requer, quer na sua espécie, quer na sua medida, pelo que, concordo com a mesma.

Cumpra o disposto no art.º 396º, nºs 1, al. b), 2 e 3, do C.P.P.”.

c) A arguida, pessoalmente notificada, nada disse.

d) Nessa sequência, e por decisão judicial datada de 13-12-2018, a arguida foi condenada, pela prática de um crime de ameaça simples, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo o montante global de € 300,00 (cfr. fls. 98 dos autos), nos seguintes termos:

Uma vez que o/a(s) arguido/a(s), devidamente notificado/a(s) nos termos do artigo 396º, nº 1, al. b), nº 2 e nº 3, do Código do Processo Penal, não deduziu(ram) oposição no prazo legal ao requerimento apresentado pelo Ministério Público, constante de fls. 70 a 76, ao abrigo do disposto no artigo 397º do Código do Processo Penal, condeno AA, pela prática de crime de ameaça simples, p. e p. pelo art. 153º, nº 1, do C. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €300,00 (trezentos euros).

Custas a cargo do/a(s) arguido/a(s), fixando a taxa de justiça em 1/2 Uc (artigos 513º e 514.º do CP Penal e 8º, nº9, por referência à tabela iii do Regulamento das Custas Judiciais).

Notifique.
Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal”.

e) Esta decisão judicial condenatória foi pessoalmente notificada à arguida em 06-02-2019 (cfr. fls. 105 vº), que não a impugnou, tendo a referida decisão transitado em julgado em 19-03-2019 (cfr. fls. 106).

f) Não tendo sido possível obter o pagamento da multa através da execução de bens (após diligências levadas a cabo com esse desiderato), o Ministério Público, em 28-05-2019, promoveu a conversão da pena de multa em prisão subsidiária (cfr. fls. 129).

g) Essa promoção do Ministério Público foi deferida através do despacho recorrido (cfr. fls. 131), proferido em 30-05-2019, nos termos do qual foi determinado o cumprimento, pela arguida, de 33 dias de prisão subsidiária (ou seja: ao abrigo do disposto no artigo 49º, nº 1, do Código Penal, a pena de multa em que a arguida tinha sido condenada foi convertida em pena de prisão subsidiária).

h) A arguida não foi notificada da referida promoção do Ministério Público (datada de 28-05-2019), nem foi ouvida, por algum modo, relativamente à possibilidade de conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária.

i) A arguida ainda não procedeu ao pagamento da pena de multa em causa, sequer parcialmente, nem requereu a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade.

4 - Apreciação do mérito do recurso.
Alega-se na motivação do recurso, em breve resumo, que o tribunal a quo, antes de converter a pena de multa em pena de prisão subsidiária, devia ter “ouvido” a arguida.

Não tendo sido feita essa “audição prévia” da arguida, e no entendimento expresso na motivação do recurso, o despacho revidendo enferma de nulidade insanável.

Cumpre apreciar e decidir.
A pena de prisão subsidiária é uma pena sucedânea da pena de multa, e, por isso, depois da aplicação desta seguem-se as seguintes etapas:

a) Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda 1 ano, ou permitir o pagamento em prestações, de acordo com o disposto no artigo 47º, nº 3, do Código Penal;

b) Mediante requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a multa fixada seja, total ou parcialmente, substituída por dias de trabalho, nos termos do nº 1 do artigo 48º do C. Penal;

c) Se a multa que não tenha sido substituída por trabalho não for paga, voluntaria ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária, nos termos do preceituado no nº 1 do artigo 49º do Código Penal;

d) Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro (conforme estabelece o artigo 49º, nº 3, do Código Penal).

De nenhuma destas normas legais resulta a obrigação de notificação (e, muito menos, a obrigação da audição pessoal) do condenado, antes da conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária, nomeadamente para o condenado poder explicar as razões do não pagamento da multa.

Porém, ponderando que na conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária está em causa a liberdade do condenado, deve-lhe ser assegurado o contraditório, de acordo com o princípio do contraditório genericamente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, e em estrita obediência ao disposto no artigo 61º, nº 1, al. b), do C. P. Penal (preceito este no qual se estabelece que “o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções previstas na lei, dos direitos de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”).

Assim, e a nosso ver, à arguida devia ter sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelo Ministério Público (a fls. 129 dos autos), através do qual era pedida a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária.

À arguida devia, pois, ter sido concedido o “direito de audição” (ou o “direito de pronúncia”, ou o “direito de audiência”), antes da prolação da decisão revidenda, porquanto tal decisão a afeta, pessoalmente, em algo de essencial: a respetiva liberdade.

Com efeito, esse “direito de audição” (ou “direito de pronúncia”, ou “direito de audiência”), como bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, pág. 158 - em doutrina totalmente consentânea com o regime processual penal atualmente vigente -), constitui “a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado de Direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do processo como comparticipação de todos os interessados na criação da decisão”.

Por outras palavras: a todo o sujeito processual, antes do proferimento de qualquer decisão que o possa afetar pessoalmente, deve ser dada a oportunidade, através da sua “audição” (mesmo que esta consista apenas na possibilidade de se “pronunciar”), de influir na declaração do Direito a aplicar ao caso.

A esta luz, e a nosso ver, impunha-se, neste concreto caso, que o tribunal de primeira instância procedesse ao exercício do “contraditório”, com a “audição/notificação” prévia da arguida, tanto mais que, como atrás dissemos, nos termos do disposto no artigo 49º, nº 3, do Código Penal, se esta provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Ou seja, in casu, e como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto (no seu douto parecer, a fls. 167 dos autos), “o Tribunal, perante a promoção do MP no sentido de converter a multa em prisão subsidiária, decidiu sem previamente dar à arguida a possibilidade de se pronunciar sobre o que o MP requerera, sendo inquestionável que, a ser deferido o promovido, como o veio a ser, se trataria de uma Decisão que pessoalmente afetava a arguida”.

Contudo, e como bem refere também o Exmº Procurador-Geral Adjunto (no seu douto parecer, a fls. 168 dos autos), o direito ao contraditório, que não foi respeitado pelo tribunal de primeira instância, não implica, na situação presente, a audição pessoal/presencial da arguida, “mas tão-só a possibilidade de pronúncia” sobre a promoção/pretensão do Ministério público.

Em conformidade com o que vem de dizer-se, e sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, é de revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que dê a possibilidade à arguida de se pronunciar sobre o requerimento do Ministério Público relativamente à conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária.

Assim, e na estrita medida acabada de assinalar, é de proceder o recurso da arguida.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto pela arguida AA, e, em consequência:

1º - Revoga-se o despacho revidendo.

2º - Determina-se que o tribunal de primeira instância, antes de decidir sobre o requerimento do Ministério Público pedindo a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária (requerimento apresentado a fls. 129 dos autos), notifique o mesmo à arguida, para esta, querendo, sobre ele se pronunciar.

Sem tributação.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 19 de dezembro de 2019


João Manuel Monteiro Amaro

Laura Goulart Maurício