Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/15.3T8CCH.E1
Relator: MARTINS SIMÃO
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
INIBIÇÃO DE CONDUZIR
DISPENSA
SUSPENSÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O legislador afastou, deliberadamente, do atual Código da Estrada, a possibilidade de aplicação de dispensa da sanção acessória de inibição de conduzir, e só é permitida por lei a suspensão da execução de tal sanção, em relação às contraordenações graves, no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, e desde que se encontre paga a coima.
Decisão Texto Integral:


ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório
Por decisão de 28 de Abril de 2015 do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Coruche - Inst. Local – Sec. Comp. Gen. J1, proferida nos autos de recurso de contra-ordenação, com o número acima indicado, foi mantida a decisão da autoridade administrativa que aplicou ao arguido FAMV, id. a fls. 82, a sanção de inibição de conduzir pelo período de 120 dias.
Inconformado o arguido recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
1- O ora Recorrente não se conforma com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo que «decide negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente FAMV e, consequentemente, mantém-se a decisão da autoridade administrativa, que aplicou ao recorrente a sanção de inibição de conduzir pelo período de 120 dias», motivo pelo qual vem interpor o presente recurso;
2- Produzida a prova, o Tribunal a quo considerou como provados, os seguintes factos:
a) No dia 7 de Junho de 2013, pelas 15h19, na E.N. 119-Km 34.700, Biscainho, comarca de Coruche, o recorrente conduzia o veículo tractor de mercadorias de matrícula (....) à velocidade de 76 Km/h.
b) A velocidade máxima permitida no local referido em 1) é de 50 Km/h.
c) O recorrente não procedeu com o cuidado a que estava obrigado.
d) A coima aplicada ao recorrente foi por este liquidada voluntariamente.
e) Na data referida em 1), do certificado de registo individual de condutor do recorrente constava averbada a prática, em 11/02/2009, de uma contra- ordenação grave, que determinou a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa por 180.
f) O recorrente é titular de carta de condução de veículos pesados, há cerca de 11 anos.
g) O recorrente é um condutor prudente e consciencioso.
h) O recorrente é motorista de pesados, auferindo cerca de € 750 por mês.
i) O recorrente vive com uma companheira, que trabalha como escriturária, e tem um filho com 3 anos de idade.
j) O recorrente vive em casa própria, despendendo a título de amortização de empréstimo para aquisição da mesma, cerca de € 400 por mês.
k) O recorrente tem de habilitações literárias o 7º ano de escolaridade.
l) O recorrente mostrou-se arrependido e consciente das implicações da sua conduta.
3 - São essencialmente dois os aspetos que nos oferece analisar, instando ao seu exame, na Sentença ora recorrida: a) Da dispensa da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir; b) Da aplicação da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, por ser proporcional, adequada e suficiente ao caso concreto (art.º s 132º do CE, 32º do RGCO e 50º do Código Penal);
4 - Quanto à dispensa de dispensa da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir, é humilde, mas firme, convicção do Recorrente que no casu sub judice se verificam os pressupostos para a determinação da dispensa da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir nos termos do disposto no artigo 74.º do Código Penal, aplicável por força do artigo 32.º do Regime Geral das Contra – Ordenações - DL nº 433/82 de 27 /10;
5 – Apesar do Código da Estrada excluir a possibilidade, até então prevista, da dispensa da sanção acessória da inibição de conduzir, considera o impugnante, salvo melhor opinião em contrário, que nada obsta a que no âmbito do direito contra-ordenacional rodoviário se aplique, com as necessárias adaptações, o artº 74º do Código Penal, que regula os casos em que o julgador pode lançar mão da dispensa de pena;
6 – Na verdade o artigo 32º do RGCO — que, no que respeita ao regime substantivo das contra-ordenações, estabelece a aplicação subsidiária das normas do Código Penal— e no artº 132º do CE — que prevê expressamente a possibilidade de as contra-ordenações rodoviárias serem reguladas, subsidiariamente, pelo RGCO — dúvidas não restarão quanto à aplicabilidade de tal preceito em sede de contra-ordenações estradais, dúvidas não restarão quanto à aplicabilidade de tal preceito em sede de contra-ordenações estradais;
7 – Na realidade pese embora o CE tenha suprimido a disposição correspondente ao instituto de dispensa da sanção acessória, não excluiu expressamente a aplicação subsidiária do regime de dispensa de pena previsto no CP o que evidencia por si uma clara lacuna, portanto face à ausência no CE de um preceito específico sobre a dispensa da sanção acessória, aplicam-se subsidiariamente as disposições do RGCO e do Código Penal que regulam essa matéria, designadamente os artºs 74º do Código Penal, 32º do RGCO e 132º do CE.
8 – Assim, afigura-se perfeitamente ajustável à contra-ordenação em apreço a dispensa da sanção acessória de inibição de conduzir (pela conjugação dos artºs 132º do CE, 32º do RGCO, 74º, 286º, 291º e 294, nº 3 do Código Penal);
9 – Pois tal medida realizará adequada e suficientemente as finalidades da punição, mormente no que se refere à assimilação e compreensão dos valores que desrespeitou com a sua conduta. Como aliás resulta dos factos provados da Sentença recorrida, supra mencionados, mormente quando refere que o «recorrente mostrou-se arrependido e consciente das implicações da sua conduta», estando desta forma salvaguardadas a finalidade da aplicação da pena.
10 – Assim, deve a douta Sentença do Tribunal a quo ser revogada nos termos supra expostos, sendo ordenada a dispensa de aplicação de sanção acessória de inibição de condução ao ora Recorrente.
SEM PRESCINDIR, Caso assim não se entenda
11 – Sempre se dirá que, é humilde mas firme convicção do Recorrente, admissível a aplicação ao caso sub judice do instituto da suspensão da sanção acessória da inibição de conduzir.
Vejamos,
12 – O Recorrente entende, com o devido respeito, não ter razão o Tribunal a quo quando entende não ser admissível aplicar ao caso em concreto a aplicação da suspensão de execução da sanção acessória de inibição de conduzir, por não estarem verificados os pressupostos do artigo 141º, nº 1 do CE.
Vejamos,
13 - Pela análise da factualidade dada como provada resulta que o Recorrente exerce a atividade profissional de motorista de pesados de mercadorias. Sendo facto incontornável e indispensável, no exercício da sua atividade profissional, a condução de veículos automóveis, sendo que efetua diariamente transportes de mercadorias quer para destinos dentro de Portugal quer para os mais diversos países.
14 – Quer isto dizer que a carta de condução representa, em termos da sua vida profissional e pessoal, uma necessidade incontornável e permanente.
15 - Aplicar ao Recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir será colocar em risco a atividade profissional, bem como a manutenção do seu posto de trabalho e, consequentemente, a estabilidade económica do seu agregado familiar, tendo um filho menor a seu encargo.
16 – Decorre igualmente dos factos provados que o Recorrente é um condutor prudente e consciencioso, tendo demonstrado arrependido pela sua conduta e consciente das implicações da sua conduta.
17 - Perante o quadro comportamental e psicossociológico do arguido/ora Recorrente, é manifestamente percetível que a sanção acessória de inibição de condução pelo período de 120 dias aplicada, são pessoal e profissionalmente graves e prejudiciais para o mesmo, comprometendo seriamente a sua relação laboral e, consequentemente, a subsistência do seu agregado familiar.
18 - Facto esse que conjugado com a sua conduta anterior e posterior à infração e as circunstâncias desta, pode certamente concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da inibição de conduzir realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, especialmente a assimilação e compreensão dos valores que desrespeitou com a sua conduta.
19 – Demais, não ficou demonstrado nos presentes autos que a conduta do Recorrente é dolosa, não se verificando, quer o dolo específico, quer o dolo eventual, mas apenas um comportamento de momentânea distração, isto é mera negligência, inexistindo qualquer intenção deliberada de infringir regras rodoviárias, como reconhece a Decisão impugnada;
20 – Daí que é convicção do Recorrente que a pena aplicada não é de forma alguma proporcional à culpa do arguido por excessiva, considerando-se que as necessidades de prevenção geral e especiais exigidas no caso concreto não determinam esta pena;
21 – Sendo adequado às circunstâncias do caso em concreto, bem como respeitadas as exigência gerais e especiais que se visam atingir com a aplicação das penas, ao optar-se pela suspensão da sanção acessória da inibição de conduzir;
22 – Isto porque a ratio, razão fundamental do instituto da suspensão da sanção acessória da inibição de conduzir é a suficiência da ameaça, como meio bastante, eficaz para evitar que o agente reitere no cometimento de outra infração;
23 – Sendo certo que a suspensão da sanção de inibição de conduzir só não deverá ser decretada se se vier a provar que da suspensão poderá resultar perigo para a confiança da comunidade, o que não se verifica no caso em apreço.
24 – Da mesma forma deve atender-se que da aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir não pode resultar consequências gravosas e/ou desnecessárias para o condenado ou terceiros dele dependentes, uma vez que as restrições dos direitos devem limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo ainda a restrição ser apta para o efeito (artigo 18º da C.R.P.);
25 - No caso sub judice, ao aplicar-se ao Recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir será colocar em risco a atividade profissional, bem como a manutenção do seu posto de trabalho, colocando em causa a estabilidade económica do seu agregado familiar, também constituído por um filho menor;
26 – Adrede, a aplicação ao Recorrente de uma sanção inibitória de condução que consequentemente o impede de exercer a sua atividade profissional implica uma incontornável violação dos seus direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição da república Portuguesa, mormente o direito ao Trabalho;
27 – Sendo conclusão incontornável que a sanção acessória de efetiva inibição de conduzir aplicada ao Recorrente é manifestamente desadequada porque excessiva, sendo que a simples ameaça de inibição realizaria no caso em apreço de forma adequada e suficientes as finalidades da punição.
Posto isto,
28 - O Recorrente entende que in casu, deve aplicar-se, por analogia, o artigo 141° do CP Estrada, sob pena de esta norma ser considerada inconstitucional, na medida em que, no presente caso, a sua não aplicação colide com direitos fundamentais do recorrente, os quais se encontram constitucionalmente consagrados (artigo 47º e 58º da C. R. P.).
29 – Uma interpretação do artigo 141º, nº1 do C. Estrada, na atual redação, no sentido de não ser possível a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir no caso de contra ordenações muito graves é inconstitucional, por violação, entre outros dos artigos 18º, 47º, 58º da CRP.
30 - A aplicação do regime ínsito no artigo 141º do CE, na redação resultante do Decreto-Lei 44/2003, de 23 de Fevereiro, nos presentes autos, traduz-se na aplicação de uma norma inconstitucional, por violação dos mencionados 18º, 47º, 58º da CRP;
31 – Sendo inconstitucional a norma contida no artigo 141º da CE, nos termos do disposto no artigo 282º, nº 1, da CRP opera-se a repristinação da norma revogada;
32 – Desta forma o caso sub judice tem de ser enquadrado e regulado pelo regime em vigor antes das alterações introduzidas pelo Decreto-lei 44/2003, de 23 de Fevereiro, ou seja, pelo regime previsto no artigo 142º do CE na redação aprovada pelo Decreto-lei nº 20/2002, de 21 de agosto, e optar-se pela suspensão da execução da sanção acessória ao abrigo desse mesmo artigo 142º do CE -na versão em vigor antes das alterações introduzidas pelo Lei 44/2003, de 23 de Fevereiro, depende das verificação dos pressuposto do artigo 50º do CP.
33 – Prevê o artigo 50º do Código Penal que a suspensão da execução das penas pode ser aplicado mesmo que seja imputado ao arguido contra ordenação muito grave;
34 - Verificam-se assim os pressupostos para a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao Recorrente, por ser admissível, proporcional, adequada e suficiente ao caso em concreto;
35 – Entendendo humildemente o Recorrente que a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir possa ser condicionada a prestação de caução de boa conduta, ou ao cumprimento do dever de frequência de ação de formação, nos termos previstos nos artigos 141º, nº 3, alíneas a), b), c) do CE;
36 – Assim, é nossa respeitosa pretensão que o Tribunal ad quem reaprecie a questão em apreço da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 120 dias aplicada ao Recorrente;
37 - Atendendo ao exposto e ao comprovado nos autos, é de justiça requer-se a V.Exas se dignem revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, anulando a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, nos presentes autos e dispensar a aplicação da sanção acessória ou, caso assim não se entenda suspender a sanção acessória de inibição de conduzir a plicada ao recorrente, nos termos dos artigos 50º do CP e 142º do CE, na versão anterior às alterações introduzidas pelo Decreto Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro.
TERMOS EM QUE, E SOBRETUDO PELO QUE MAIS DOUTA E SUPERIORMENTE SERÁ SUPRIDO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA NOS TERMOS UT SUPRA EXPOSTOS.
COM O QUE FARÃO V. EXCELÊNCIAS A COSTUMADA JUSTIÇA!”
O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:
“1-Não é aplicável a dispensa de pena neste caso, uma vez que o legislador, deliberadamente afastou a sua aplicação.
2-A sua aplicação subsidiária contraria os princípios consagrados no DL 44/2005, de 23/02 bem como a unidade do sistema.
3-Com efeito, não se compreenderia a sua aplicação no caso dos autos quando o legislador afastou a aplicação da suspensão da execução da sanção acessória nos casos de contra-ordenações muito graves.
4-A suspensão da execução da sanção acessória também não será admissível, também por força da lei, que expressamente a afastou no caso de contra-ordenações muito graves.
Pelo que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a douta sentença recorrida”.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido do recurso ser julgado improcedente.
Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, o arguido não respondeu.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir

II - Fundamentação
Factos Provados
Com relevância para a decisão de mérito resulta dos autos a seguinte factualidade:
1-No dia 7 de Junho de 2013, pelas 15h19, na E.N. 119-Km 34.700, Biscainho, comarca de Coruche, o recorrente conduzia o veículo tractor de mercadorias de matrícula (....) à velocidade de 76 Km/h.
2) A velocidade máxima permitida no local referido em 1) é de 50 Km/h.
3) O recorrente não procedeu com o cuidado a que estava obrigado.
4) A coima aplicada ao recorrente foi por este liquidada voluntariamente.
5) Na data referida em 1), do certificado de registo individual de condutor do recorrente constava averbada a prática, em 11/02/2009, de uma contra-ordenação grave, que determinou a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa por 180.
6) O recorrente é titular de carta de condução de veículos pesados, há cerca de 11 anos.
7) O recorrente é um condutor prudente e consciencioso.
8) O recorrente é motorista de pesados, auferindo cerca de € 750 por mês.
9) O recorrente vive com uma companheira, que trabalha como escriturária, e tem um filho com 3 anos de idade.
10) O recorrente vive em casa própria, despendendo a título de amortização de empréstimo para aquisição da mesma, cerca de € 400 por mês.
11) O recorrente tem de habilitações literárias o 7º ano de escolaridade.
12) O recorrente mostrou-se arrependido e consciente das implicações da sua conduta.
Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

Motivação da decisão da matéria de facto
No que diz respeito à matéria de facto dada como provada a mesma teve por base, desde logo, os factos descritos no auto de contra-ordenação, que não foram contrariados pela defesa do recorrente.

No que concerne, designadamente, à matéria de facto descrita em 4), tal resulta da decisão de fls. 10 e 11 emanada da Direcção Geral de Viação, que refere expressamente que o arguido efectuou o pagamento voluntário da coima.
Relativamente ao referido em 5) tal resulta do teor do registo individual de condutor de fls. 9 ao referido em 6) a 12) o Tribunal atendeu às declarações do recorrente e ao depoimento das testemunhas MMM e FVV, companheira e pai do recorrente que, não obstante a relação de proximidade para com o recorrente, efectuaram um depoimento espontâneo e coerente.


III - Apreciação do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (art. 412º, nº 1 do CPPenal, “ex vi” do disposto no art. 74º nº 4 do Regime-Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27-10 e sucessivamente alterado pelos Decretos-Leis nº 356/89, de 17-10 e 244/95, de 14.9), e os poderes de cognição deste Tribunal encontram-se limitados ao conhecimento da matéria de direito (art. 75º do R.G.C.O).
Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir consistem em saber se, é possível face à lei actual, dispensar o arguido da sanção acessória de inibição de conduzir, ou suspender a execução de tal sanção, que lhe foi aplicada pela prática de uma contra-ordenação muito grave.
Vejamos.
No dia 7 de Junho de 2013, o arguido conduzia, pelas 15h 19, na E.N 119, km 34.700 em Biscainho, Comarca de Coruche, o veículo tractor de mercadorias matrícula (....) à velocidade de 76 km/h. A velocidade máxima permitida para o local é de 50 km/h.
Na data referida, do certificado de registo individual de condutor do arguido constava averbada a prática, em 11-02-2009, de uma contra-ordenação grave, que determinou a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias suspensa por 180.
O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e pagou voluntariamente a coima.
Os factos integram a contra-ordenação prevista no art. 27º, nº 2, al. b), 3º, 138º e 146º al. i), todos do Cód. da Estrada que é de natureza muito grave, a que cabe a coima de € 300 a € 1500 e a sanção de inibição de conduzir pelo período de 120 dias a dois anos, arts.147º nº 1 e 2 e 143º do diploma referido.
Poderá o arguido ser dispensado da sanção acessória de inibição de conduzir nos termos do art.74º do C.Penal ex vi do art. 32º do RGCO, ou suspensa a execução de tal sanção?
A resposta é, sem dúvida, negativa.
Para uma melhor compreensão dos motivos de tal resposta, imporá analisar o teor dos preceitos que regiam esta matéria, no anterior Código da Estrada, DL nº 265-A/2001, de 28-09 e as do actual, DL nº 44/2005, de 23-2.
Dispunha o art. 141º do DL nº 265-A/2001, de 28-9, sob a epígrafe “dispensa e atenuação especial da inibição de conduzir”:
“1- A sanção de inibição de conduzir cominada para as contra-ordenações graves pode não ser aplicada, tendo em conta as circunstâncias da infracção, se o condutor não tiver praticado qualquer contra-ordenação grave ou muito grave nos últimos cinco anos.
2-Os limites mínimo e máximo da sanção de inibição de conduzir cominada para as contra-ordenações muito graves podem ser reduzidos para metade, nas condições previstas no número anterior”
Por sua vez, o art. 142º, sob epígrafe “ Suspensão da execução da sanção, caução de boa conduta e deveres” estabelecia:
“1- Pode ser suspensa a execução da sanção de inibição de conduzir no caso de se verificarem os pressupostos que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas.
2-A suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir pode ser condicionada, singular ou cumulativamente, ao cumprimento dos seguintes deveres: a) Prestação de caução boa conduta; b) Frequência de acções de formação; c) Cooperação em campanhas de prevenção rodoviária”
Destes preceitos resulta que, face à lei anterior à data dos factos, o arguido podia ser dispensado da sanção acessória de inibição de conduzir pela prática de contra-ordenações graves e a mesma podia ser suspensa na sua execução independentemente da natureza das contra-ordenações (graves ou muito graves).
Actualmente, o DL nº 44/2005 estabelece no art. 141º:
“1- Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves, no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes.
2-Se o infractor não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano.
3-A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos se o infractor, nos últimos cinco anos tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso ser condicionada, singular ou cumulativamente: a) a c) (….)”.
E o art. 147º sob a epígrafe (inibição de conduzir) dispõe no seu nº 1 “que a sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir”.
Da redacção destes preceitos resulta de forma clara, que o legislador afastou deliberadamente do actual Código da Estrada a possibilidade de aplicação de dispensa da sanção acessória de inibição de conduzir, e só é permitida por lei, a suspensão da execução de tal sanção, em relação às contra-ordenações graves, no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas e desde que se encontre paga a coima.
Deste modo, o regime actualmente em vigor é mais rigoroso e exigente, o que está em consonância com o preâmbulo do DL nº 44/2005 de 23-02, em que se refere que a segurança rodoviária e a prevenção dos acidentes constitui uma das prioridades do governo. “Assim, para dar execução a esta prioridade, o Governo aprovou o Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, que, de forma integrada e multidisciplinar, procede ao diagnóstico e preconiza a execução de um conjunto de medidas que permitam ir de encontro ao objectivo de uma redução consistente, substancial e quantificada da sinistralidade em Portugal (…) Para assegurar a realização deste objectivo, é necessária uma actuação eficaz a vários níveis, como a educação contínua do utente, a criação de um ambiente seguro e a consagração de um quadro legal, por outro, garantir a efectiva aplicação das respectivas sanções”.
Assim, da letra da lei, do preâmbulo da mesma e das circunstâncias em que a mesma foi elaborada infere-se que o regime de suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir não é aplicável, actualmente, às contra-ordenações muito graves.
O recorrente alega ainda que, o art. 141º do Código da Estrada padece de inconstitucionalidade orgânica.
O Acórdão desta Relação de 06-03-2007, proferido no processo nº 2679/06-1 consultável in www.dgsi.pt, já analisou esta questão, e cujo entendimento também perfilhamos, por isso, seguimos de perto o teor do mesmo.
O art. 165º nº 1 al. d) da Constituição estabelece que: “1- É da exclusiva competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo: d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo”.
Assim, é da competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização do Governo, a elaboração da legislação sobre o regime geral (o comum) de punição de actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º vol. 2ª ed., Coimbra, 1985,pág 200 quanto aos direitos sancionatórios diversos do direito penal, a reserva legislativa da Assembleia da República só abrange o regime geral: «Cabe, assim à AR definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções, bem como os seus limites, além das regras gerais do respectivo processo, mas não a

definição de cada infracção concreta e a cominação da respectiva pena».
A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem caminhado no mesmo sentido. Vide os acórdãos do T. Constitucional nº 309/95 e 447/91 acessíveis in htpp://www.tribunal constitucional.pt.
Como se refere no Acórdão desta Relação acima citado “o regime geral do ilícito de mera ordenação social constante do DL nº 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo DL nº 244/95, de 14-09 e pela Lei nº 109/2001, de 24-12), não contém qualquer referência sobre a suspensão da execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações e, por outro lado, afigura-se-nos de todo em todo descabida a aplicação subsidiária às contra-ordenações do regime de suspensão da execução da pena constante do C.Penal, por força do art. 32º do diploma indicado em primeiro lugar.
Como anotam os Srs. Conselheiros Simas Santos e Lopes de Sousa, « a aplicação subsidiária, (…) só se justifica perante a existência de um caso omisso, pelo que só se deverá recorrer a ela quando se possa concluir que, para além de se tratar de um ponto não regulado no RGCO, nem em lei especial, se está perante um caso que, em coerência deveria ser regulamentada».
Por outro lado, há que ter em conta que o Código Penal apenas prevê a suspensão da execução da pena de prisão não superior a cinco anos (art. 50º nº 1 do C.Penal.
Ora, se a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir não faz parte do regime geral das contra-ordenações, então, de acordo com o disposto no art. 165º nº 1 al. d) da CRP « cabe na competência concorrente da Assembleia da Republica e do Governo a previsão de existência de sanções acessórias, dentre as dos tipos previstos no nº 1 do artº 21º do regime geral das contra-ordenações, bem como a possibilidade de suspensão da sua execução. E se assim for quanto à opção legislativa do estabelecimento da possibilidade de aplicação de sanções acessórias e da suspensão da sua execução, não poderia deixar de ser diferente quando a opção legislativa seja de eliminação, modificação ou estabelecimento de condições de execução, desde que se quedassem dentro do regime geral.
Teríamos, portanto, de concluir que o legislador do DL nº 44/2005, ao excluir, através da alteração introduzida ao art. 141º, nº 1 do CE, da possibilidade de suspensão da execução as sanções acessórias de inibição de conduzir aplicadas pela prática de infracções muito graves, não estaria a invadir a reserva de competência da Assembleia da República, mas no exercício de competência concorrente”. Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal. Constitucional nº 629/2006 de 16 de Novembro de 2006, publicado no DR, 2ª Série de 3 de Janeiro de 2007.
Assim sendo, a norma do art. 141º do Código da Estrada não padece do vício da inconstitucionalidade orgânica invocado pelo recorrente.
Também não assiste razão ao recorrente ao alegar, que é aplicável às contra-ordenações muito graves a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir, ao abrigo do art. 132º do CE, 32º do RGCO e 50º do C.Penal, que respectivamente remetem subsidiariamente, para o regime geral das contra-ordenações e para o Código Penal, art. 32 do RGCO, em tudo o que não for contrário àquele regime, dado que o art. 141º nº 1 do actual Código da Estrada não contém qualquer omissão ou lacuna legislativa, quanto a tal questão, dado que da interpretação do mesmo se conclui que a suspensão daquela sanção acessória não é aplicável às contra-ordenações muito graves.
Nestes casos, se está afastado tal regime não faz sentido o alegado pelo recorrente, ao fazer apelo subsidiariamente às normas substantivas penais. Como é óbvio, só há que fazer apelo a estas normas quando se concluir que estas são aplicáveis, como se infere do teor do nº 1 do art. 141º do C. Estrada, nomeadamente nos casos em que o arguido incorreu numa contra-ordenação grave e por isso, há que chamar à colação os pressupostos materiais de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, previstos no do art. 50º do C.Penal, ,
Alega ainda o recorrente que, com a interpretação referida do nº 1 do art. 141º se violam direitos fundamentais do recorrente, arts. 18º, 47º e 58º da CRP, mormente o direito ao trabalho.
Como resulta destes preceitos, todos têm direito à escolha de profissão e ao trabalho, direitos que só podem ser limitados nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Na verdade, se a Constituição consagra, por um lado, aqueles direitos, por outro, permite a limitação do direito ao trabalho, em caso de cumprimento de pena ou sanção acessória.
A limitação do direito ao trabalho que possa resultar para o arguido da aplicação da pena ou sanção acessórias está, assim, plenamente justificada do ponto de vista constitucional.
Tal justificação resulta do facto da sanção acessória de inibição de conduzir se apresentar como um meio de salvaguardar outros interesses protegidos pela Constituição, quer, por um lado, na perspectiva do arguido, a quem é imposta a sanção acessória acima mencionada, de acordo com a gravidade da contra-ordenação que cometeu, quer na perspectiva da sociedade, dado que se visa proteger essa sociedade e ao mesmo tempo como que compensá-la do risco, a que os seus membros foram sujeitos da prática de uma contra-ordenação muito grave, em que foi posta em causa a segurança de todos os que circulam na estrada.
Não assiste, assim, razão ao recorrente, pelo que se impõe julgar improcedente o recurso.

IV - Decisão
Termos em que acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que fixamos em 3 Ucs.
Notifique.

Évora, 03-11-2015

(Texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão

Maria Onélia Vicente Neves Madaleno