Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
674/06.9TAABF.E2
Relator: ANA BACELAR
Descritores: SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A substituição das penas impostas nos autos aos arguidos por prestação de trabalho a favor da comunidade, constitui a causa de suspensão da prescrição de tais penas acautelada na alínea a) do n.º 1 do artigo 125.º do Código Penal, uma vez que enquanto perdurar a pena de substituição, a pena principal não pode ser executada.
E só com a decisão que revogue a pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e determine a execução das penas impostas nos autos volta a correr o prazo de prescrição destas penas principais.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 674/06.9TAABF da Secção Criminal [Juiz 1] da Instância Local de Albufeira da Comarca de Faro, por decisão judicial datada de 18 de dezembro de 2020 foi declarada a prescrição das penas nele impostas aos Arguidos (…).

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.ª Interpõe-se recurso do douto despacho de 16 de dezembro de 2020 exarado a fls. 727-732 que declarou prescritas asa penas, não verificada qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição.
2.ª (…) foram condenados, cada um dos condenados, nas penas 4 meses de prisão substituídas por 120 dias de multa e nas penas de 175 dias de multa.
3.ª A sentença transitou em julgado no dia 20 de outubro de 2014 – fls. 494.
4.ª No dia 13 de junho de 2016 os condenados requereram a substituição das penas de multa que deveriam pagar por prestação de trabalho a favor da comunidade – fls. 524-525 e fls. 527-528.
5.ª Por despachos de 12 de junho e 14 de setembro de 2017 foram ambos os arguidos admitidos a prestar, cada um deles, 295 horas de trabalho correspondentes à soma dos dias de penas de multa, aplicada a título principal (175 dias) e aplicada em substituição de prisão (120 dias) – fls. 538, 548.
6.ª (…) cumpriu 65 horas e 30 minutos de trabalho entre 26-4-2018 e 11-3-2020 – fls. 698-699 e (…) cumpriu 84 horas de trabalho entre 25-1-2018 e 28-2-2020 – fls. 712.
7.ª Não foram revogadas as penas de prestação de trabalho.
8.ª O prazo de prescrição das penas aplicadas, 4 meses de prisão e multa é de 4 anos (artigo 122.º, n.º 1 al. d) e n.º 2 do Código Penal).
9.ª Erradamente o despacho recorrido considerou não se aplicar ao caso a causa de suspensão prevista no artigo 125.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal.
10.º Ao invés, aplica-se este artigo – “a prescrição da pena e da medida de segurança suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que por força da lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar.”
11.ª Admitida a substituição, o prazo está suspenso desde 13-6-2016 e não cessou por não ter sido proferido despacho de revogação da prestação de trabalho.
12.ª Ao contrário do defendido no despacho de que se recorre, verifica-se a causa de suspensão do prazo de prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
13.ª Sem prejuízo da existência de interrupções e do reinício da contagem do prazo em cada dia de trabalho prestado (artigo 126.º, n.º 1 a) e n.º 2 do Código Penal), do prazo de 4 anos de prescrição apenas decorreram 2 anos e 23 dias desde a data do trânsito em julgado até à data da suspensão determinada pelo requerimento dos arguidos no dia 13 de junho de 2016.
14.ª A aplicação do critério do artigo 126.º, n.º 3 do Código Penal, em face de interrupções do prazo, pressupõe que o prazo de suspensão esteja definido.
15.ª Os prazos de prescrição das penas de 175 dias de multa e de 4 meses de prisão não se completaram devendo os arguidos cumprir as penas.

Em conformidade, deverá o despacho de 16 de dezembro de 2020 ser substituído por outro que declare não prescritas as penas aplicadas aos arguidos (…).
Espera-se deferimento.»

O recurso foi admitido.

Responderam os Arguidos, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1 – No processo supra identificado foram ambos os arguidos condenados, como autores materiais pela prática de um crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 199.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, ambos do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, cada um deles, na pena de 4 (quatro) meses de prisão e 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de e 5,00 (cinco euros) , o que perfaz o total de € 875,00 (oitocentos e setenta e cinco euros). Sendo que as penas de 4 (quatro) meses de prisão aplicadas foram substituídas por uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o total de € 600,00 (seiscentos euros).
2 – O recurso apresentado tem por objeto o facto de saber se os pedidos de substituição do pagamento das penas de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade vêm, ou não, suspender o decurso do prazo da prescrição das penas, nos termos do previsto no art.º 125.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
3 – Ora, estamos aqui perante crime que se enquadra na previsão da al. d) do n.º 1 do art.º 122.º do Código Penal, ou seja, cujo prazo de prescrição da pena é de 4 anos.
4 – A presente Sentença transitou em julgado em 20 de outubro de 2014.
5 – E, de acordo com o previsto no art.º 122.º, n.º 2 do Código penal, “O prazo de prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena.”
6 – Logo, tal prazo de prescrição já decorreu, pois iniciou-se assim, em 20 de outubro de 2014, e decorreram entretanto, mais de 6 anos desde o seu início.
7 – Para além disso, estabelece o art.º 128.º, n.º 3 do Código Penal que: ”A prescrição da pena e da medida de segurança tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade.”
8 – Tendo também já decorrido o prazo normal da prescrição (4 anos) acrescido de metade (2 anos), ou seja, de seis anos, previsto na disposição legal supra referida.
9 – Dado que não se verificaram aqui quaisquer causas de suspensão da prescrição, mas tão só e apenas, causas meramente interruptivas, que se consubstanciaram no cumprimento parcial da pena, pela prestação de horas de trabalho a favor da comunidade, conforme prevê o art.º 126.º, n.º 1, al. a) do Código Penal,
10 – pelo arguido (…), que iniciou a prestação de trabalho entre 24/04/2018 e 11/03/2020 e pela arguida (…) que iniciou a prestação de trabalho entre 25/01/2018 e 28/02/2020.
11 – Sendo que tal interrupção ocorreu, não pelo cumprimento da pena originária de multa, mas pela prestação de trabalho, ocorrendo o último ato de interrupção da prescrição, quanto ao arguido (…), em 11/03/2020 e, quanto à arguida (…), em 28/02/2020.
12 – No entanto, tais atos de interrupção, não suspendem o prazo de prescrição, pois cada prestação de trabalho reinicia o prazo, mas não o suspende
13 – e o prazo limite contido no art.º 126.º, n.º 3 do Código Penal, que estabelece que haverá sempre lugar à prescrição do procedimento criminal quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tenha já decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade opera inelutavelmente, pelo que os seis anos de cômputo do prazo sempre ocorreriam em 20/10/2020,
14 – ou seja, seis anos contados desde a data do trânsito em julgado da Sentença, que tinha ocorrido em 20/10/2014.
15 – Não havendo, por isso, em nosso modesto entender e, salvo o devido respeito, lugar à aplicação do previsto no art.º125.º, n.º 1, al. a) do Código penal, conforme posição da Digníssima Magistrada do Ministério Público.
16 – Assim, e salvo o devido respeito por diversa opinião, considera-se que devem ser declaradas extintas as penas em causa, por ter já decorrido o prazo prescricional.
17 – Pelo que, sem maiores considerações, e salvo o devido respeito, deverá o presente recurso improceder.

Termos em que,
deverá assim, ser negado provimento ao recurso apresentado pela Digníssima Magistrada do Ministério Público e, consequentemente, ser confirmado, na íntegra, o Douto despacho recorrido, como é de
JUSTIÇA!»
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Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer [transcrição]:
«O recurso apreciando vem interposto pela senhora magistrada do Ministério Público do despacho datado de 16.12.2020 (a fls. 727-732), que declarou extintas, por prescrição, as penas de multa principal e substitutiva aplicadas aos arguidos.
Louvo-me na argumentação expendida na motivação do recurso interposto, que no essencial se acompanha, nada mais, com relevo para a decisão a proferir, se me oferecendo aduzir em abono do que em tal peça processual vem sustentado/peticionado.
Nessa medida, convocando o ali expendido, sou de parecer que ao recurso deve(rá) ser concedido provimento

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada.

Posto isto e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, apenas, a questão da prescrição das penas impostas nos autos.
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Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
(i) Por sentença proferida nestes autos, datada de 13 de novembro de 2013 e transitada em julgado a 20 de outubro de 2014,
-(...) foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 199.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, ambos do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, substituídos por 120 (cento e vinte) dias de multa, e em 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), num total de e 875,00 (oitocentos e setenta e cinco euros);
- (...) foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 199.º, n.º 1 e 197.º, n.º 1, ambos do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, substituídos por 120 (cento e vinte) dias de multa, e em 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), num total de e 875,00 (oitocentos e setenta e cinco euros).
(ii) No dia 13 de junho de 2016, (...) requereu a substituição da pena de multa em que foi condenada por dias de trabalho a favor da comunidade.
(iii) No dia 13 de junho de 2016, (...) requereu a substituição da pena de multa em que foi condenada por dias de trabalho a favor da comunidade.
(iv) Por decisão judicial datada de 14 de setembro de 2017, deferiu-se a substituição da pena de multa principal e substitutiva imposta ao Arguido (...) pelo cumprimento de 295 (duzentas e noventa e cinco) horas de trabalho a favor da comunidade.
(v) Por decisão judicial datada de 10 de novembro de 2017, deferiu-se a substituição da pena de multa principal e substitutiva imposta à Arguida (...) pelo cumprimento de 295 (duzentas e noventa e cinco) horas de trabalho a favor da comunidade.
(vi) Alegaram, entretanto, os Arguidos ter ocorrido o prazo de prescrição das penas que lhes forma impostas.
(vii) Na vista que teve nos autos, o Ministério Público entende que o prazo de prescrição das penas não ocorreu.
(viii) A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«Por acórdão transitado em julgado a 20.10.2014, foram os arguidos (…) ambos condenados na pena de 175 de multa à taxa diária de € 5,00 e na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.
Foi requerido por ambos os arguidos a substituição das penas de multa principal e substituta por prestação de trabalho a favor da comunidade, tendo sido deferida pelas prestação pela prestação de 295 horas de TFC por despacho proferido a 12.07.2017 e homologada a 10.11.2017 (…) e a 14.09.2017 (…).
O arguido (...) cumpriu 65 horas e 30 minutos da prestação de trabalho a favor da comunidade, desde, desde 26.04.2018 até 10.03.2020, tendo mantido uma presença inconstante e irregular, de pouca substância e tendo cessado o seu cumprimento, alegando receio de contágio do COVID-19 dada a sua saúde.
A arguida (...) cumpriu 84 horas da prestação de TFC, desde 25.01.2018 até 28.02.2020, tendo deixado de comparecer, nunca justificando a sua ausência.
Aliás, ambos os arguidos cumpriram as penas de modo inconstante e irregular, tendo deixado de comunicar ou de estar contactáveis com a DGRSP.
O prazo de prescrição da pena de prisão e da pena de multa é de 4 anos e começaram a correr no dia em que transitou em julgado a sentença que a aplicou – artigo 122.º, n.ºs 1, d) e 2 do Código Penal.
Aplicada uma pena de multa, compete ao condenado pagá-la no prazo de 15 dias a contar da notificação para o efeito – artigo 489.º, n.º 2, do CPP.
Só não será assim, se entretanto o pagamento for deferido ou autorizado em prestações – n.º 3 daquele preceito – ou for requerida e deferida a sua substituição, total ou parcial, por dias de trabalho – artigos 490.º do CPP e 48.º, n.º 1, do CP.
É o caso sub judice, em que os condenados, tendo requerido a substituição da pena de multa por TFC, tal foi deferido por despacho datado de 12.06.2017.
A questão que se segue é então apurar da exta natureza dessa substituição da pena de multa (principal e substituta) aplicada por dias de trabalho a favor da comunidade na perspetiva de saber se essa substituição é fundamento de suspensão da execução daquela pena de multa, nos termos do artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, conforme douta promoção.
A resposta passa necessariamente pelo tratamento jurídico que o legislador dá a esta substituição bem como ao facto de o arguido não cumprir ou prestar efetivamente os dias de trabalho resultantes daquela substituição.
O que nos remete desde logo para o disposto no artigo 49.º do Código penal, segundo o qual, sempre que o condenado não cumpra a prestação dos dias de trabalho resultantes da substituição da pena de multa, deverá distinguir-se:
- o incumprimento culposo do condenado, situação em que este cumprirá a prisão subsidiária - n.º 4, 1ª parte, daquele art.º 49.º
- o incumprimento não culposo do condenado ou o incumprimento não imputável ao condenado, situação em que a prisão subsidiária que em princípio deveria ser cumprida, pode ser suspensa nos termos do artigo 49.º, n.º 3, do CP – n.º 4, segunda parte, deste mesmo preceito (art.º 49.º).
Deste regime resulta que a prestação deste trabalho pelo condenado, é uma das formas de cumprimento da própria pena de multa aplicada.
Conclusão que tem ainda apoio no teor do n.º 1, do artigo 49.º do CP, na medida em que equipara a prestação do trabalho ao pagamento da multa, bem como no n.º 1 do artigo 48.º do CP, ao prever que a substituição da multa por trabalho pode ser total ou parcial. O que significa que existe igual equiparação entre o pagamento da multa em dinheiro e a prestação de trabalho, merecendo, pois, o mesmo tratamento.
Podendo ainda afirmar-se que, em caso de prestação parcial de trabalho ou seja, de apenas alguns dias, sempre deverá ser descontado à eventual prisão subsidiária a cumprir, os dias de trabalho efetivamente cumpridos – n.º 4 do artigo 59.º do CP que sempre deverá ter aqui aplicação senão diretamente pelo menos por analogia.
Segundo o regime analisado da substituição da multa por trabalho, existe, pois, uma equiparação desta prestação de trabalho a um verdadeiro cumprimento da pena de multa, de tal modo que a prestação de trabalho corresponderá a uma forma de pagamento da multa. E que a prestação parcial do trabalho significará igualmente um pagamento parcial dessa multa.
Perante esta conclusão, entendemos que tem aqui plena aplicação a jurisprudência do Acórdão n.º 2 de 2012, do S.T.J. de 8.3.2012 (AUJ), na medida em que, de acordo com os elementos do processo, não tendo havido qualquer prestação de trabalho – um dia que fosse –, não chegou a haver também qualquer pagamento ou início de pagamento/cumprimento da pena de multa, ainda que parcial.
Com efeito, o AUJ do STJ de 8.3.2012, in DR 1º Série de 12 de abril de 2012 veio dar corpo ao entendimento de que “(…) a instauração da ação de execução da pena de multa (…) não corresponde ainda à “execução” da pena de multa (…) só com o início do pagamento da pena de multa, isto é, com o pagamento parcial da pena de multa se verifica a interrupção da prescrição da pena” – v. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 2.ª ed. atualizada, p. 387.
Esta substituição da multa por dias de trabalho, não terá outro sentido que não seja a mera equiparação a “instauração de execução patrimonial para pagamento de multa”.
Em súmula, será de concluir que o simples requerimento de deferimento da substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade não constitui, no caso concreto, causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição. E de igual modo, não consideramos que o cumprimento parcial dos dias de trabalho em substituição da pena de multa, consubstancie qualquer causa de suspensão
Não somos alheios à existência de jurisprudência contrária que argumenta que o mero requerimento de substituição da multa por trabalho a favor da comunidade constitui causa de suspensão do prazo de prescrição, ao abrigo do disposto no art. 125.°, n.º 1, al. a) do CP, com fundamento de que sempre que o arguido tiver requerido a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade (ou tiver requerido o pagamento da multa em prestações), o Ministério Público não pode executar a pena de multa.
No entanto, é necessário ponderar o que significa “execução” nos termos da supra referida alínea, remetendo para a definição dada no já mencionado AUJ do STJ de 8.3.2012, que interpretou o termo “execução” no sentido de começo de cumprimento. Tal como a execução da pena de prisão só se inicia com a privação da liberdade, também não há execução da pena de multa (fora dos casos de substituição por trabalho ou conversão em prisão subsidiária) enquanto não houver perda patrimonial, ou seja, pagamento voluntário ou coercivo, por conta do valor da multa.
Ademais, como refere Germano Marques da Silva in Direito Penal Português, Parte Geral, III, fls. 238, “ a previsão da alínea a) significa apenas que, como no corpo do artigo, a lei pode estabelecer outras causas de suspensão da prescrição além das indicadas nas alíneas seguintes e que só a lei o pode fazer, não cabendo por isso ao foro judicial criar ou justificar causas de suspensão não especialmente previstas”.
Contudo, apesar de não considerarmos existir qualquer causa de suspensão, consideramos que ocorreu uma causa de interrupção, porquanto o cumprimento parcial da pena de multa, através da prestação de horas de trabalho, interrompe a prescrição da pena, ex vi do artigo 126.º, n.º 1, alínea a), do CP.
A este propósito valerá trazer aqui à colação o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 2/2012, de 8.03.2012, in DR, 1.ª Série, de 12.04.2012, onde se escreveu a este propósito:
“… Importa, pois, determinar o sentido do conceito de execução da pena, estando em causa uma pena de multa. Toda a pena criminal envolve um sacrifício ou perda para o condenado, sacrifício ou perda que é de ordem patrimonial quando se trate de pena de multa. A execução da pena é a sua efetivação ou materialização; a pena está em execução a partir do momento em que o sacrifício que lhe é conatural se concretiza na esfera de interesses ou valores do condenado… Tal como a execução da pena de prisão só se inicia com a privação da liberdade do condenado, também não há execução da pena de multa… enquanto não houver perda patrimonial, consubstanciando-se esta num pagamento, voluntário ou coercivo, por conta do valor da multa. Por outras palavras, a pena de multa entra em execução com o início do seu cumprimento. …
Se, como se disse, só se entra na execução da pena se houver um princípio de cumprimento… são atos de execução e, por isso, com efeito interruptivo da prescrição da pena de multa: a) o cumprimento de parte dos dias de trabalho pelos quais a multa foi substituída, mas não a decisão de substituição; b) o pagamento voluntário ou coercivo da parte da multa aplicada, mas não a notificação para pagamento nem a instauração da execução patrimonial; c) o cumprimento parcial da prisão subsidiária, mas não a decisão de conversão da multa em prisão subsidiária.
E compreende-se que seja esta a solução legal. Na verdade, se a prescrição encontra fundamento no facto de a execução de uma pena muito tempo depois da sua aplicação não cumprir já as suas finalidades… a sua interrupção só deve ser ativada por atos que não se limitem ao desenvolvimento de determinada atividade processual e tenham impacto fora do processo, junto da comunidade e do condenado, mantendo nos dois planos a atualidade da pena. Esses atos só podem ser de materialização da pena na esfera de interesses ou valores do condenado, ou seja, atos de cumprimento da pena, atos que podem ser múltiplos, visto o cumprimento nem sempre ser contínuo…”.
Em face do que se deixa dito - e no seguimento desta argumentação, que se acolhe sem quaisquer reservas, designadamente, que aí se concluiu que “são atos de execução e, por isso, com efeito interruptivo da prescrição da pena de multa… o cumprimento de parte dos dias de trabalho pelos quais a multa foi substituída…”. A expressão legal “execução” não tem outro sentido literal senão o de “cumprimento” da pena, seja parcial ou total (em abono deste posição pode ver-se o acórdão da RC de 23.05.2012, Proc. 1366/06.4PBAVR.E1, in www.dgsi.pt, onde se decidiu, em síntese, que a prestação de trabalho a favor da comunidade “é uma das formas de cumprimento da própria pena de multa aplicada… a prestação de trabalho corresponderá a uma forma de pagamento da multa. E que a prestação parcial do trabalho significará igualmente um pagamento parcial dessa multa…”).
Retornando ao caso em apreço, resulta que a última interrupção quanto ao arguido (...) ocorreu a 1.03.2020 e quanto à arguida (...) ocorreu a 28.02.2020.
Contudo, não nos podemos esquecer do disposto no n.º 3 do art.º 126.º do CP, no qual se estatui que «a prescrição da pena e da medida de segurança tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade».
Tal impõe que, no caso em apreço, considerando a data do trânsito em julgado da sentença, a natureza da pena, o prazo estabelecido no artigo 122.º, n.º 1 al. d) do Código Penal acrescido de metade do seu prazo (dois anos) que as penas de multa principal e substitutiva aplicadas aos arguidos (...) e (...) prescreveram a 20.10.2020, pelo que as penas se extinguiram por efeito de prescrição.
Notifique.
Após trânsito, remetam-se boletins ao registo criminal.
Oportunamente, arquive.
Nos termos da Circular n.º 494 extraída da Deliberação do Plenário do CSM, informe a presente decisão, extraindo e remetendo ao Conselho Superior da Magistratura certidão do presente despacho, para os fins tidos por convenientes.
De igual modo, comunique ao Juiz Presidente da Comarca.»
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Conhecendo.

A prescrição, enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal, encontra-se regulada nos artigos 118.º a 126.º do Código Penal – prescrição do procedimento criminal e prescrição das penas e das medidas de segurança.
A prescrição traduz-se na renúncia do Estado ao seu direito de punir, ditada pelo decurso de um certo lapso de tempo que apaga a exigência de justiça e, consequentemente, a necessidade de retribuição penal para a satisfazer.

A versão do Código Penal saída da revisão de 1995 reflete uma classificação tripartida das penas em penas principais, penas acessórias e penas de substituição.
Penas principais são as que se encontram expressamente cominadas nos tipos legais de crime e podem ser aplicadas por si só, independentemente de quaisquer outras (prisão e multa).
Penas acessórias são as que apenas podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal ou pena de substituição que tome o lugar daquela.
Penas de substituição são as penas aplicadas em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas.

«I – O sistema penal português consagra a regra da substituição das penas de prisão não superiores a 1 ano, salvo se a execução da prisão se mostrar necessária face às exigências de prevenção especial de socialização.
(…)
IV - As penas de substituição são entendidas como aquelas que podem substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas, de prisão ou de multa, sendo aplicadas e executadas em vez de uma pena principal.
V – A lei prevê as penas de substituição em sentido próprio ou estrito - não detentivas – (a multa de substituição; a prestação de trabalho a favor da comunidade; a suspensão da execução da pena, a admoestação e, ainda, atualmente, a pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade) e a penas de substituição em sentido impróprio ou amplo - detentivas, por cumpridas com privação, restrição da liberdade. (a prisão por dias livres, a semidetenção e, hoje, ainda, o regime de permanência na habitação).
VI – O legislador não hierarquiza entre si, cada uma das diversas penas de substituição, pelo que será em função do critério legal da adequação e suficiência, não esquecendo o princípio da proporcionalidade, que o julgador há-de escolher a pena de substituição.
VII – No dizer de Figueiredo Dias, “Pressuposto material de aplicação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade é, que ela se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição, que ela se revele, suscetível de, no caso, facilitar e, no limite, alcançar, a socialização do condenado, sem se mostrar incompatível com as exigências mínimas de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico. A prestação de trabalho a favor da comunidade deverá ter lugar, desde que verificados os pressupostos formais da sua aplicação, sempre que se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição, às finalidades de prevenção de socialização, posto que a ela se não oponham razões de salvaguarda do mínimo de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico”.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de maio de 2013, proferido no processo n.º 163/06.1SFPRT.P1, e acessível em www.dgsi.pt

«I - O trabalho a favor da comunidade foi contemplado pelo legislador numa dupla vertente: i) Pena autónoma de substituição, destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta/média duração (2 anos) – art.º 58.º do CP; e ii) Forma de cumprimento da pena de multa - art.º 48.º do CP.
(…)»
Acórdão do Tribunal da Relação do porto, de 12 de setembro de 2012, proferido no processo n.º 159/10.9PASTS-A.P1, e acessível em www.dgsi.pt

Como refere, com toda a clareza, no acórdão desta Relação, de 10 de Julho de 2007 – proferido no processo n.º 912/07-1, e acessível em www.dgsi.pt - só com a decisão que revogue a pena substitutiva e determine a execução da pena principal se inicia o prazo de prescrição desta.
Porque enquanto perdurar a pena de substituição, a pena principal não pode ser executada.

Este entendimento, que temos como inteiramente ajustado, permitem-nos concluir que a substituição das penas impostas nos autos aos Arguidos (...), por prestação de trabalho a favor da comunidade, constitui a causa de suspensão da prescrição de tais penas acautelada na alínea a) do n.º 1 do artigo 125.º do Código Penal.
E só com a decisão que revogue a pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade e determine a execução das penas impostas nos autos volta a correr o prazo de prescrição destas penas principais.

Este é o sentido da jurisprudência predominante na matéria.
Entre muitos outros, desacatam-se os acórdãos desta Relação que a Magistrada do Ministério Público convoca em abono da sua posição – de 13 de julho de 2017, de 22 de janeiro de 2019 e de 4 de fevereiro do 2020.

Concretizando.
A prescrição das penas impostas nos autos aos Arguidos (...) está suspensa desde a ocasião em que foi judicialmente homologada a pena de substituição das mesmas, de trabalho a favor da comunidade - desde 14 de setembro de 2017 relativamente à pena imposta ao Arguido (…) e desde 10 de novembro de 2017 relativamente à pena imposta à Arguida (...).
Porque as penas de trabalho a favor da comunidade que substituíram as penas principais impostas aos Arguidos (...) não se mostram revogadas, não decorreu o prazo de prescrição de tais penas – que é de 4 (quatro) anos – no período compreendido entre 20 de outubro de 2014 (data do trânsito em julgado da sentença) e 14 de setembro de 2017 (data da substituição da pena principal por trabalho a favor da comunidade ao Arguido (...)) e 10 de novembro de 2017 (data da substituição da pena principal por trabalho a favor da comunidade à Arguida (…)).

Isto posto, o recurso procede.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão judicial que declarou a prescrição das penas impostas aos Arguidos (...), que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.

Sem tributação.
û
Évora, 2021 julho 13
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


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(Renato Amorim Damas Barroso)
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.