Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3214/21.6T8FAR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
TEMPO PARCIAL
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- O artigo 153.º do Código do Trabalho regula a forma e o conteúdo obrigatórios do contrato de trabalho a tempo parcial.
II- No que respeita à forma, resulta do artigo que o contrato de trabalho a tempo parcial tem de ser reduzido a escrito.
III- Entendemos que a solenidade exigida para a celebração desta modalidade do contrato de trabalho constitui uma formalidade ad substantiam, cuja inobservância determina um vício de forma que afeta a validade do contrato.
IV- O artigo 153.º, n.º 3 do Código do Trabalho estipula que quando não tenha sido observada a forma escrita exigida para o contrato de trabalho a tempo parcial, o contrato considera-se celebrado a tempo completo.
V- Num caso em que ficou demonstrado que o Autor trabalhou durante toda a vigência da relação laboral (que já terminou) apenas durante meio dia, de segunda a sexta-feira, entendemos que conjugando a natureza da forma escrita exigida para o contrato de trabalho a tempo parcial (formalidade ad substantiam), a consequência para a inobservância da mesma (invalidade do contrato a tempo parcial) e a consequência consagrada no artigo 153.º, n.º 3 do Código do Trabalho, a melhor solução interpretativa do quadro legal em questão é a de que durante o tempo em que o contrato foi executado a tempo parcial as prestações das partes devem ser aferidas por referência ao período de trabalho efetivamente praticado, o que impede que o Autor tenha direito às diferenças salariais baseadas na retribuição base mensal fixada em CCT para trabalhador com a mesma categoria profissional, que exerce as suas funções num período normal de trabalho de 40 horas semanais.
VI- Admitindo, porém, que esta solução não é isenta de dúvidas, também referiremos que o direito às reclamadas diferenças salariais nunca poderia ser reconhecido por se verificar um manifesto abuso de direito.
VII- Permitir que o Autor, pessoa com habilitações superiores, que acordou trabalhar para a Ré apenas meio dia, de segunda a sexta-feira, viesse beneficiar, após a cessação da relação laboral, do disposto no artigo 153.º, n.º 3 do Código do Trabalho, para obter uma remuneração desproporcional ao que foi a sua prestação laboral e que o enriqueceria sem contrapartida dada, é algo que é injusto, ofende o sentimento ético-jurídico dominante e ultrapassa intoleravelmente os limites da boa-fé e o fim social ou económico do direito em causa.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
P. 3214/21.6T8FAR.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
AA instaurou contra A..., Unipessoal, Lda., ação declarativa emergente de contrato de trabalho, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:
a) A quantia de € 13.038,14, a título de diferenças salariais (devidas desde a admissão até julho de 2020), retribuição do mês de agosto de 2020 (retribuição base + subsídio de alimentação), retribuição de férias e subsídio de férias vencidos em 01-01-2020 e proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal referentes ao trabalho prestado em 2020.
b) Juros de mora sobre as quantias peticionadas, calculados á taxa legalmente aplicada às dividas civis (4%), desde a data de vencimento de cada uma das prestações em dívida até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para o que ora releva, que foi admitido ao serviço da Ré em 1 de junho de 2018, para, por tempo indeterminado e com horário completo, exercer, sob a autoridade, direção e fiscalização daquela, as funções de Contabilista Certificado e Diretor Técnico, mediante retribuição. A relação laboral cessou em 31-08-2020, por denúncia do contrato por si apresentada. Ao longo da vigência do contrato de trabalho sempre auferiu a retribuição base mensal no valor de € 800, quando, de acordo com o CCT aplicável, deveria ter auferido a retribuição base mensal de € 1.060.
Realizada a audiência de partes, na mesma não foi possível obter solução conciliatória para o litígio.
A Ré contestou, alegando, com relevância para o que agora importa, que o Autor foi admitido para exercer as suas funções a tempo parcial, sendo o seu período normal de trabalho semanal de 20 horas, de segunda a sexta-feira. Na sequência, concluiu, o mesmo não tem direito a auferir a retribuição base mensal de € 1.060, que se mostra prevista para um trabalhador que preste trabalho a tempo inteiro (40 horas semanais).
A ação prosseguiu a tramitação que consta dos autos e que é do conhecimento das partes processuais.
Destaca-se que no “despacho saneador” o objeto do litígio foi assim identificado:
«Com o presente litígio visa-se saber se o A. em decorrência da realização de trabalho 40h semana tem direito às diferenças salariais que peticiona, bem assim à retribuição e subsídio de alimentação de agosto de 2020, à remuneração de férias e subsídio de férias vencidos em janeiro de 2020 e proporcionais de férias, subsídio de férias e de natal pelo trabalho prestado em 2020.».
E enunciaram-se os seguintes temas de prova:
«- horário normal de trabalho do A;
- dias trabalhados em julho e agosto de 2020;
- férias gozadas;
- pagamentos realizados pela R. a título de subsídio de férias;
- pagamentos realizados pela R. a título de férias vencidas em 01 de janeiro de 2020.»[2].
Em momento próprio, deu-se início à audiência final.
Depois de terem decorrido os debates previstos no n.º 3 do artigo 72.º do Código de Processo do Trabalho, a 1.ª instância proferiu o seguinte despacho, datado de 05-01-2023 (ref.ª ...21):
«Após estudo dos autos tendo em vista a prolação de sentença afigura-se-nos conveniente, antes de mais, chamar à colação o disposto no art.3º nº3 do Código de Processo Civil por força do qual “O Juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não se lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
No caso vertente peticiona o A., além do mais, diferenças retributivas alegando que, tendo sido admitido pela R. por contrato verbal e horário completo, recebeu apenas €800,00/mês (o acordado) quando devia ter recebido €1060,00 ( por força de tabela de CCT aplicável à relação). Contesta a R. alegando que o contratado e executado foram 20 horas semanais (e não as 40h subjacentes à alegação de horário completo).
Ora, não se olvidando que a omissão da forma escrita tem associada a consequência prevista no art.153º nº3 do Código de Trabalho, o supra mencionado pode conduzir a que se questione eventual existência de abuso de direito, instituto que constituindo exceção perentória é, no entanto, de conhecimento oficioso.
Assim, sem prejuízo do que a final se vier a decidir a tal respeito, por forma a que o Tribunal na sentença que proferirá esteja habilitado a equacionar todas as soluções plausíveis da questão de direito, sem surpresas para as partes, notifique as mesmas para, em dez dias, sobre tal questão, querendo, se pronunciarem.».
Ambas as partes ofereceram resposta.
Em 20-03-2023 foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto julgo a ação parcialmente procedente e a reconvenção improcedente e, consequência:
a) condeno a R. A..., Unipessoal, Lda. a pagar ao A. AA a quantia de €1 466,67 (mil quatrocentos e sessenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal atualmente de 4%, desde a data da cessação do contrato e até efetivo e integral pagamento;
b) absolvo a R. do demais peticionado;
c) absolvo o A. do pedido reconvencional.
d) Custas por A. e R. na proporção do respetivo decaimento (cfr. art.527º do CPC ex vi art.1º nº 2 al. a) do CPT).
e) Notifique e registe.».
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Inconformado, veio o Autor interpor recurso da sentença, finalizando as suas alegações com as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«A-) Discorda o Recorrente do tribunal a quo relativamente à sentença aqui recorrida que determinou “b) absolvo a R. do demais peticionado; (…)”;
B-) Entende o Recorrente que a decisão recorrida avaliou erradamente a prova documental produzida em audiência de julgamento, tendo ignorado documentos emitidos pela própria Ré que, conjugados com o depoimento gravado da única testemunha que poderia ter conhecimento efetivo e detalhado do horário praticado pelo Autor ao serviço da Ré, BB – funcionária a tempo inteiro da Ré, para além do Autor e do responsável de facto da Ré - o qual tem, por via disso, um interesse direto e evidente no desfecho final da presente causa – inquinando o juízo por ela efetuado quanto à matéria de facto referente ao período normal de trabalho efetuado pelo Autor;
C-) Não compreende o Autor como poderá o Tribunal Recorrido ter ignorado o teor da comunicação de admissão do Autor ao seu serviço efetuada pela Ré à Segurança Social junta aos Autos com a Petição Inicial, em que expressamente esta refere num documento oficial dirigido a uma Entidade Pública que este é admitido “Sem termo, Tempo Completo”, declaração essa que acabou confirmada pelo depoimento da testemunha BB no seu depoimento (a mins. 3.30 a 04.00), preferindo valorizar prova testemunhal circunstancial e que em nada colide com a o alegado por esta testemunha, pois nenhuma delas era visita habitual das instalações da Ré;
D-) Entende o Recorrente que, atento o acima exposto, deverá ser alterada matéria de facto provada que:
“3- Acordaram A. e R. que o referido em 2. seria realizado a tempo completo, de segunda a sexta feira.” (com base no teor da comunicação de admissão do Autor ao seu serviço efetuada pela Ré à Segurança Social, corroborada pelas declarações da testemunha BB, e declarações de parte do Autor);
“4- O A. realizava tais funções durante o dia, de manhã e à tarde.” (também com base no teor da comunicação de admissão do Autor ao seu serviço efetuada pela Ré à Segurança Social, corroborada pelas declarações da testemunha BB, e declarações de parte do Autor);
E-) Entende o ora Recorrente que face às supra referidas alterações à matéria de facto supra peticionadas, reforçadas pela presunção judicial constante do art. 153º, nº 3, do CTrabalho, deveria o Tribunal Recorrido condenado a Ré no pagamento ao Autor das diferenças salariais peticionadas por este nos presentes Autos, em sede de Petição Inicial, em cumprimento do disposto no CCT outorgado entre a APECA e o SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015), e respetivas e sucessivas alterações, atualizações, revisões e Portarias de Extensão no seu Anexo II;
F-) Defende o Recorrente, subsidiariamente, que o Tribunal Recorrido sempre deveria ter, desde logo, considerado que a presunção constante do disposto no art. 153º, nº 3, do CTrabalho é uma presunção iure et de iure e, como tal, inilidível, não admitindo prova em contrário, pelo que a deveria ter aplicado, condenando a Ré no pagamento ao Autor das diferenças salariais peticionadas por este nos presentes Autos, em sede de Petição Inicial, aplicando, consequentemente, o disposto no CCT outorgado entre a APECA e o SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015), e respetivas e sucessivas alterações, atualizações, revisões e Portarias de Extensão no seu Anexo II;
G-) Também entende o Recorrente que nunca poderia ser levantada qualquer eventual questão relativamente à violação dos ditames da boa fé por parte do Autor, nem em momento algum pôr-se a hipótese de haver lugar à hipótese de haver qualquer ação em Abuso de Direito por parte deste, uma vez que, salvo melhor opinião, a aplicação de tal figura jurídica é incompatível com a aplicação das presunções legais inilidíveis, prevalecendo a aplicação destas últimas sob pena de estas não terem qualquer razão de ser relativamente às que permitem prova em contrário, por poderem ser contornadas pelo recurso à figura jurídica do Abuso de Direito.
H-) Entende que, face ao acima exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal Recorrido fez uma errada avaliação da prova documental e gravada, e aplicação das regras de apreciação de prova, bem como uma errada aplicação do art. 334º do CCivil e, por via disso, acabou por omitir a aplicação, entre outras normas legais, nomeadamente do disposto no art. 153º, nº 3, do CTrabalho, e do Anexo II do CCT outorgado entre a APECA e o SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015).
Termos em que, atento o acima exposto, V. Exas., concedendo total provimento ao presente recurso, revogando, a final, a sentença recorrida e, consequentemente, ser substituída por uma decisão que condene a Ré a efetuar o pagamento das quantias relativas às diferenças salariais peticionadas pelo Autor nos presentes Autos, farão A DEVIDA JUSTIÇA.».
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Contra-alegou a Ré, propugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
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O processo subiu à Relação e foi observado o disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual concluiu que o recurso não merece provimento.
O recorrente respondeu.
Por despacho proferido pela relatora, o recurso foi mantido nos seus precisos termos.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, são as seguintes as questões suscitadas:
1.ª Impugnação da decisão de facto.
2.ª Saber se foi celebrado um contrato de trabalho a tempo completo.
3.ª Inexistência de abuso de direito.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma sociedade comercial unipessoal por quotas que se dedica, entre outras, às atividades de prestação de serviços de contabilidade, consultoria fiscal e de recursos humanos possuindo estabelecimento no local da sua sede.
2. Em 01 de Junho de 2018, a Ré verbalmente e por tempo indeterminado admitiu ao seu serviço o Autor para, sob a sua autoridade, direção e fiscalização, exercer, como exerceu, as funções de Diretor Técnico, equivalente à de Diretor de serviços prevista no CCT estabelecido entre a APECA - Associação Portuguesa das Empresas de Contabilidade e Administração e o Sindicato do Comércio, Escritórios, Serviços, Alimentação, Hotelaria e Turismo (SinCESAHT) e outras .
3. Acordaram A. e R. que o referido em 2. seria realizado meio dia, de segunda a sexta feira.
4. O A. realizava tais funções, numa parte do dia, de manhã ou à tarde.
5. Desde data não apurada o A. passou a exercer também as funções de contabilista certificado de alguns clientes da R..
6. Como contrapartida da atividade realizada o A. auferia €800,00/mês, acrescida de €6,41/dia a título de subsídio de refeição.
7. A R. não pagou ao A. qualquer quantia a título de retribuição de agosto de 2020, nem respetivo subsídio de alimentação.
8. A R. não pagou ao A. qualquer quantia a título de proporcionais de férias pelo trabalho prestado em 2020.
9. O A. não gozou as férias vencidas em 01 de janeiro de 2020, nem recebeu qualquer remuneração respeitante às mesmas.
10. O A. recebeu os subsídios de férias e de natal por duodécimos tendo recebido os últimos aquando do recebimento da retribuição de julho de 2020.
11. Em 2 de julho de 2020 o A. comunicou por escrito à R. a denúncia do contrato com efeitos em 31 de agosto de 2020.
12. Em 24 de julho de 2020 o A. dirigiu à R. e´mail constante de fls. 36 vº dos autos comunicando-lhe “A indisponibilidade de atividades ATL por determinação da Delegação Regional de Saúde conjugada com as limitações nos corredores aéreos seguros hoje conhecidas, marcam a necessidade de regresso à modalidade de teletrabalho a partir de 1 de agosto de 2020 para acompanhamento do meu filho”.
13. No dia 31 de julho de 2020 a R. dirigiu ao A. o e´mail constante de fls. 37 dos autos comunicando-lhe “tendo em consideração (…) hoje ter reforçado a sua intenção de ficar em regime de teletrabalho a partir de segunda-feira, dia 03-08-2020 a empresa vê-se na obrigação de ser ela a estabelecer um plano de trabalho pois não concorda com o teletrabalho: (i) face à denúncia apresentada pelo Autor proceder à passagem do trabalho à funcionária admitida (em 20/07/2020) para o substituir no que ao processamento de salários diz respeito; (ii) Concluir as IES (Informações Empresariais Simplificadas) dos Clientes (iii) Proceder ao envio das Declarações Mensais de remunerações (DMR) para a AT e impressão dos impostos elaborados pelo Autor relativamente aos Clientes da Ré (…)”.
14. Em 3 de agosto de 2020, pelas 11h57m a R. dirigiu ao A. o e´mail de fls. 37 vº comunicando-lhe “em virtude de não ter respondido ao email (abaixo) enviado a 31-07-2020 e até ao momento ainda não ter comparecido no escritório. Vimos por este meio solicitar que compareça no escritório (seu local de serviço habitual) com urgência.”
15. Entre o dia 20 e o dia 31 de julho de 2020 o A. não prestou trabalho presencial nas instalações da R..
16. A R. não se opôs ao referido em 15., tendo-lhe pago a remuneração correspondente a tais dias.
17. À relação laboral aplica-se o CCT entre a APECA – Associação Portuguesa das empresas de Contabilidade e Administração e o Sindicato do Comércio, Escritórios, Serviços, Alimentação, Hotelaria e Turismo - SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015), e respetivas e sucessivas alterações, atualizações, revisões e Portarias de Extensão (cfr. Portaria 107/2016).
18. À data da admissão do Autor, o contabilista certificado da Ré era CC, responsável pela contabilidade de todos os clientes da Ré.
19. Posteriormente, e por necessidade de serviço, o Autor assumiu as funções de Contabilista Certificado de alguns clientes que vieram a celebrar contrato de prestação de serviços com a Ré.
20. Quando iniciou funções na Ré, o Autor já exercia as funções de Gestor na sociedade “B..., LDA.”, com o NIPC ...82, com sede e estabelecimento comercial de restaurante sitos na ..., ..., ... ... (procedendo designadamente à gestão das compras e ao controle financeiro e de stock).
21. Funções que continuou a exercer mesmo depois do dia 1 de junho de 2018 e durante todo o tempo em que durou a relação com a R. .
22. A Ré é uma empresa que foi constituída por DD, contabilista certificada, que geria diariamente os destinos da empresa.
23. Após o falecimento daquela em 2016 a Ré ficou apenas com uma única trabalhadora a tempo integral e em permanência nas instalações da mesma, BB.
24. O A. procedeu ao lançamento dos salários dos clientes da R. no programa “Toc Online”, sua pertença, ao invés de o fazer no programa da Ré “QUERYPro (Contabilidade – RH e Imobilizada)”.
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E julgou a seguinte factualidade não provada:
1. A. e R. tenham acordado que aquele realizaria o trabalho a tempo completo.
2. A R. não tenha pago ao A. todos subsídio de férias e de natal .
3. O A. tenha gozado as férias vencidas em 01 de janeiro de 2020 e os proporcionais relativos ao trabalho de 2020.
4. O A., entre o dia 20 e o dia 31 de julho de 2020, não tenha exercido qualquer atividade para a R..
5. A R. tenha dado ordens expressas ao A. para proceder ao lançamento dos salários no programa Querypro.
6. O A. não tenha procedido a quaisquer lançamentos na contabilidade de clientes da R. desde abril de 2020.
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IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, relativamente aos pontos 3 e 4 do elenco dos factos provados.[3]
No seu entendimento, a factualidade impugnada deve ser alterada nos termos que especifica, tendo em consideração o depoimento prestado pela testemunha BB, as declarações de parte do recorrente e o documento junto com a petição inicial que a recorrida remeteu logo no início da relação laboral para a Segurança Social, onde ficou a constar que o recorrente foi admitido “Sem Termo, Tempo Completo”.
Foi observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do estatuído no artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.
Nada obsta, assim, ao conhecimento da impugnação.
A materialidade impugnada é a seguinte:
3. Acordaram A. e R. que o referido em 2. seria realizado meio dia, de segunda a sexta feira.
4. O A. realizava tais funções, numa parte do dia, de manhã ou à tarde.
Com fundamento nos meios de prova que indicou, pugna o recorrente para que a redação dos pontos impugnados passe a ser a seguinte:
«3- Acordaram A. e R. que o referido em 2. seria realizado a tempo completo, de segunda a sexta feira.”
“4- O A. realizava tais funções durante o dia, de manhã e à tarde.».
Consigna-se que ouvimos toda a gravação da prova produzida em julgamento e analisámos a prova documental apresentada nos autos, e, após ponderação, entendemos que não há fundamento para alterar a decisão impugnada.
Efetivamente, da conjugação dos depoimentos das testemunhas CC, EE, FF, GG, HH e II, resultou evidente que o Autor foi contratado pela Ré a tempo parcial, mais precisamente para prestar trabalho durante meio dia, de segunda a sexta-feira, podendo realizar o seu trabalho tanto de manhã como à tarde.
Isso mesmo foi referido pela testemunha CC, que foi quem contactou o Autor sobre as condições de trabalho a contratar. Esta testemunha referiu, inequivocamente, que lhe transmitiu que seria um trabalho a tempo parcial. Ademais, a testemunha que também prestava serviços de contabilidade à Ré e ia às instalações da empresa 1 ou 2 vezes por semana, muitas vezes, não encontrava lá o Autor. Apenas lá trabalhavam a tempo inteiro a BB e o EE. E por necessitar, por vezes, de se encontrar com o Autor via-se obrigado a coordenar com o mesmo as idas à empresa para irem na mesma altura, precisamente porque o Autor não se encontrava a trabalhar a tempo completo na Ré.
Também a testemunha EE afirmou que o contrato de trabalho do Autor foi celebrado a tempo parcial. A ideia era terem dois técnicos de contabilidade (o CC e o Autor), cada um a tempo parcial, o que corresponderia a um técnico de contabilidade a tempo inteiro, que era o que existia anteriormente, quando a sua esposa, DD, era viva e era a única técnica de contabilidade da Ré, coadjuvada, administrativamente, pela funcionária BB, que laborava a tempo inteiro.
A testemunha GG, explicou, com imenso detalhe e coerência, que foi contratada inicialmente a tempo parcial (meio dia de trabalho), como técnica de contabilidade, porque a ideia era ela ir substituir o Autor, que tinha apresentado a sua demissão. Aliás, na altura da sua contratação, acordaram que ela iria trabalhar só de manhã, porque também assumira funções no período da tarde noutra empresa, em .... Sucede que por força da saída do Autor e também da administrativa BB, em simultâneo, acabou por ficar a trabalhar a tempo completo na Ré, desistindo do trabalho em ....
A testemunha FF, cliente da Ré há mais de 25 anos, declarou que se desloca frequentemente às instalações da Ré (4, 5 vezes por mês), tanto no período da manhã como no da tarde e que nunca lá viu o Autor. Só falou com ele por telefone. A testemunha afirmou que quem estava, sempre, nas instalações da Ré era a administrativa BB e o Sr. EE.
Igualmente, a testemunha HH, que foi cliente da Ré desde 2017 até março de 2020, e conhecia o Autor por ser funcionário da empresa, disse que o via, frequentemente, à entrada do restaurante B..., para o qual o Autor também trabalhava, entre as 15 horas e as 17 horas.
Finalmente, a testemunha II informou que sabia que o Autor trabalhava para a Ré, mas que o conheceu através do restaurante B..., para a qual a testemunha fornecia diariamente fruta no período da manhã, sendo que chegou a encontrar-se com o Autor nesse restaurante quando ia entregar a fruta.
Ora, ponderando os depoimentos relatados, dos mesmos resulta que o Autor foi contratado para trabalhar apenas meio dia, de segunda a sexta-feira, podendo realizar as suas funções de manhã ou de tarde (testemunhas CC, EE e GG), o que explica que não fosse encontrado no escritório ao contrário do que sucedia com quem lá trabalhava a tempo inteiro (testemunha FF) e que fosse visto, em pleno horário de expediente da Ré, no restaurante B... (testemunhas HH e II).
Pretendia o Autor/recorrente que fosse dado como provado que foi contratado para trabalhar a tempo completo, de segunda a sexta-feira, o dia inteiro, isto é, de manhã e de tarde.
Convocou para o efeito as suas próprias declarações em julgamento, o depoimento da testemunha BB e o documento “Comprovativo de comunicação de admissão de trabalhador”, junto com a petição inicial.
Vejamos.
É verdade que nas declarações que prestou, o Autor referiu que o acordo celebrado era para trabalhar a tempo completo, de segunda a sexta-feira, para a Ré.
Sucede que as declarações prestadas pelo Autor, por ser parte interessada no processo, devem ser analisadas com especial rigor e exigência, embora nada impeça que sejam consideradas para provar factos que lhe são favoráveis, desde que corroboradas por qualquer outro elemento de prova, isento e credível[4], o que não sucedeu no presente caso.
É que a testemunha BB, que trabalha para o Autor, não prestou um testemunho isento e verdadeiro. Repare-se que esta testemunha se despediu da Ré ao mesmo tempo do Autor (o seu contrato cessou em agosto de 2020) e imediatamente a seguir à sua saída da Ré foi logo trabalhar para o Autor (setembro de 2020), ainda que estivesse de baixa médica desde 20 de julho de 2020 (ou seja, na fase final do contrato com a Ré e depois de ter apresentado a sua demissão). Acresce que a própria admitiu alguma animosidade contra a Ré, por se considerar titular de créditos laborais, mas que prescreveram.
Logo, o depoimento da testemunha não pode ser valorado face á sua manifesta falta de imparcialidade.
Quanto ao documento particular convocado (“Comprovativo de comunicação de admissão de trabalhador”), desconhece-se quem o elaborou, quem o assinou e quem o remeteu à Segurança Social. Logo, trata-se de um documento particular sem autoria conhecida e que não pode servir para fazer prova de que o contrato de trabalho do Autor foi celebrado sem termo e a tempo completo.
Em conclusão, a prova convocada para fundamentar a impugnação não permite suportar a alteração da decisão de facto pretendida pelo recorrente.
O que efetivamente ficou demonstrado, tendo em consideração o anteriormente exposto, é o que consta descrito nos pontos 3 e 4 do elenco dos factos provados.
Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão fáctica.
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V. Do invocado contrato de trabalho a tempo completo e da alegada inexistência de abuso de direito
O recorrente pugna para que seja reconhecido que o contrato de trabalho que celebrou verbalmente era um contrato a tempo completo, por força da presunção, que afirma ser inilidível, consagrada no n.º 3 do artigo 153.º do Código do Trabalho.
Apreciemos a questão.
Estatui o artigo 153.º do Código do Trabalho:
1 - O contrato de trabalho a tempo parcial está sujeito a forma escrita e deve conter:
a) Identificação, assinaturas e domicílio ou sede das partes;
b) Indicação do período normal de trabalho diário e semanal, com referência comparativa a trabalho a tempo completo.
2 - Na falta da indicação referida na alínea b) do número anterior, presume-se que o contrato é celebrado a tempo completo.
3 - Quando não tenha sido observada a forma escrita, considera-se o contrato celebrado a tempo completo.
Esta norma regula, pois, a forma e o conteúdo obrigatórios do contrato de trabalho a tempo parcial.
No que respeita à forma, resulta do artigo que o contrato de trabalho a tempo parcial tem de ser reduzido a escrito.
Entendemos que a solenidade exigida para a celebração desta modalidade do contrato de trabalho constitui uma formalidade ad substantiam, cuja inobservância determina um vício de forma que afeta a validade do contrato.
No mesmo sentido, escreveu Luís Miguel Monteiro, em anotação ao referido artigo 153.º:[5]
«Ao contrário do que sucedia no CT2003, a forma escrita constitui formalidade ad substantiam deste tipo contratual, cuja inobservância determina a invalidade do contrato (a tempo parcial) celebrado, o qual passa a subsistir a tempo completo (nº3). A partir desse momento, o trabalhador deve prestar atividade a tempo completo e tem direito a exigir a correspetiva retribuição, que lhe é devida quando o empregador recuse receber aquela prestação (CC, art. 815º, nº2). Durante o tempo em que foi executado a tempo parcial, porém, o contrato não reduzido a escrito produz efeitos como válido (nº 1 do artigo 122º do CT), sendo as prestações das partes aferidas por referência ao período de trabalho efetivamente praticado, de duração inferior à normal.».
Seguindo igual entendimento, escreveu Joana Nunes Vicente:[6]
«Está em causa, em nosso entender, uma formalidade ad substantiam cuja inobservância determina um vício de forma que afeta a validade do contrato. Para esta conclusão contribui significativamente o argumento do “lugar paralelo” constituído pelo regime estabelecido para o contrato de trabalho em regime de teletrabalho, caso em que a lei afirma, expressis verbis, que “a forma escrita é exigida apenas para prova da estipulação do regime de teletrabalho” (artigo 166.º, n.º 6[7] do Código do Trabalho). Acresce que segundo os princípios civilisticos sobre a matéria, quando a lei exige documento autêntico, autenticado ou particular como forma de declaração negocial, a formalidade é, em regra, estabelecida, ad substantiam – nos termos do artigo 364.º, n.º 1 do Código Civil – só não o sendo quando resultar claramente da lei que o documento é apenas exigido como prova da declaração.».
É certo, nos termos previstos pelo artigo 393.º, n.º 1 do Código Civil, que constituindo a forma escrita exigida para o contrato de trabalho a tempo parcial uma formalidade ad substantiam, mostra-se vedada a produção e valoração de prova testemunhal sobre a existência de acordo verbal.
Sucede que no caso que se aprecia, o Autor, na petição inicial, veio alegar a celebração de um contrato de trabalho «verbal subordinado por tempo indeterminado com horário completo» - artigo 3.º da referida peça processual.
Não veio alegar a celebração de um contrato de trabalho a tempo parcial, nulo, por ausência de forma escrita, que deveria ser convertido em contrato celebrado por tempo completo, nos termos previstos pelo n.º 3 do artigo 153.º do Código do Trabalho.
Logo, de acordo com a regra do ónus probatório estabelecida no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, não lhe estava vedado demonstrar o alegado negócio jurídico através da obtenção de confissão da parte contrária e/ou por prova testemunhal e documental.[8] E foi por esse motivo que reapreciámos a prova aquando do conhecimento da deduzida impugnação da decisão fáctica.
E com arrimo nos factos assentes, o que se apurou foi que o Autor foi contratado verbalmente para exercer, por tempo indeterminado, as funções de Diretor Técnico, sob a autoridade, direção e fiscalização da Ré, mediante retribuição, durante meio dia, nos dias úteis, podendo fazê-lo de manhã ou de tarde.
Ora, de acordo com a cláusula 23.º do CCT entre a APECA – Associação Portuguesa das empresas de Contabilidade e Administração e o Sindicato do Comércio, Escritórios, Serviços, Alimentação, Hotelaria e Turismo - SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015), que se mostra aplicável à relação laboral sub judice, o período normal de trabalho para o pessoal abrangido por este CCT é de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, pelo que se conclui que o Autor prestava trabalho a tempo parcial, de acordo com a definição consagrada no n.º 1 do artigo 150.º do Código do Trabalho.
Prescreve esta última norma:
- Considera-se trabalho a tempo parcial o que corresponda a um período normal de trabalho semanal inferior ao praticado a tempo completo em situação comparável.
O Autor reclamou diferenças salariais, argumentando que tinha um contrato de trabalho a tempo completo e que as funções de Diretor Técnico que exercia eram equivalentes às de Diretor de serviços prevista no CCT estabelecido entre a APECA - Associação Portuguesa das Empresas de Contabilidade e Administração e o Sindicato do Comércio, Escritórios, Serviços, Alimentação, Hotelaria e Turismo (SinCESAHT) e outras.
Assim, baseado neste instrumento de regulamentação coletiva, arrogou-se titular do direito a auferir mensalmente a retribuição base de € 1.060.
Ficou demonstrado que a retribuição base mensal que lhe foi paga durante a vigência do vínculo laboral foi de € 800.
É verdade que o identificado CCT prevê para a categoria de Diretor de Serviços, uma remuneração base mensal de € 1.060. Todavia, prevê-a para o trabalhador que exerça as suas funções num período normal de trabalho de 40 horas semanais.
Ora, o Autor não logrou provar que cumpria tal período de trabalho, pelo que, atendendo à causa de pedir que apresentou, não se lhe pode reconhecer o direito às diferenças salariais peticionadas.
A 1.ª instância, porém, apesar de constatar que o Autor não tinha provado o que alegou, isto é, que tinha acordado a realização de um período normal de trabalho de 40 horas semanais, entendeu que por se ter provado que foi celebrado um contrato de trabalho a tempo parcial, que não foi reduzido a escrito, haveria que aplicar a consequência prevista no artigo 153.º, n.º 3 do Código do Trabalho.
Esta decisão conduziu à apreciação do reivindicado direito às diferenças salariais peticionadas.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«Não se tendo provado a alegação do A. – a de que o acordo foi o de realização de 40 horas semanais – o supra exposto permite concluir estarmos perante contrato a tempo parcial que não foi reduzido a escrito, omissão a que, como já vimos, tem associada a consequência prevista no art.153º nº3 do Código de Trabalho.
Prevê o CCT outorgado entre a APECA – Associação Portuguesa das empresas de Contabilidade e Administração e o Sindicato do Comércio, Escritórios, Serviços, Alimentação, Hotelaria e Turismo - SinCESAHT (cfr. BTE n.º 45, de 08/12/2015), e respetivas e sucessivas alterações, atualizações, revisões e Portarias de Extensão (cfr.Portaria 107/2016, no seu Anexo II, que à categoria de Diretor de serviços, – nível I- está associada uma remuneração de € 1 060,00 pelo que, não obstante a falta de prova do alegado pelo A., por força do supra exposto, tendo-se apurado que o mesmo auferia €800,00/mês, em principio, é de verificar se o mesmo tem direito à diferença salarial.».
Contudo, a final, a 1.ª instância acabou por concluir que não poderiam ser concedidas as diferenças remuneratórias pretendidas, utilizando a seguinte fundamentação:
«Ora considerando que a relação laboral já cessou e que o A. durante a respetiva vigência, laborou apenas uma parte do dia, a resposta àquela questão impõe que se indague se a atribuição de tais diferenças salariais se contém dentro dos limites da boa fé porquanto, na esteira do estatuído no art.334º do Código Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Prevê-se em tal norma a conceção objetiva de abuso de direito em que não se exige, como bem referem Antunes Varela e Pires de Lima, in Código Civil anotado, Coimbra editora, 4ª edição revista e atualizada, p. 298, “(…) a consciência de se excederem (…) os limites impostos pela boa fé; basta que se excedam esses limites.(…) o que não significa que a tal conceito “ (…) sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido.”, fatores cuja consideração releva “ (…) para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bens costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito”.
Ainda na esteira de tais insignes autores, in op. citada, p. 300, “ a nota típica do abuso de direito reside (…) na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido”.
No seguimento do defendido no Ac. RE de 10-11-2022, proc.5100/19.0T8STB-K.E1, acessível in www.dgsi.pt “ o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites. (…)” sendo que “(…)Manifestamente “deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objetivos. (…) não se justificando, nos dias de hoje, “(…) a necessidade de que a violação dos limites impostos ao exercício do direito seja especialmente grave para que se identifique abuso, bastando que o excesso se identifique para além da dúvida razoável. (…)
Os limites “impostos pela boa fé” têm em vista a boa-fé objetiva (…) concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.( sublinhado nosso)
(…) Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos paras as regras da moral social (…) regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos (…).
Finalmente: o fim social ou económico do direito invoca uma determinada construção historicamente situada.”
Ana Prata, no seu C.C. Anotado, Vol. I, 2017, pág. 408, identifica o fim social ou económico do direito da seguinte forma: “se o direito (hoc sensu) é sinteticamente um poder jurídico para realizar um interesse, está-se fora do domínio de permissão jurídica sempre que o interesse tutelado pelo direito não é aquele que é perseguido pelo seu titular. (…) a permissão jurídica tem objetivos que, defraudados, não se contêm nela.”
Constituindo uma válvula de segurança do sistema, destinada a operar em situações- limite de ofensa evidente da boa-fé negocial o mesmo só deverá ser utilizado quando o direito estiver a ser usado ou der origem a uma situação não querida pelo legislador.
Por isso, no seguimento do defendido pelo Ac. RE de 13 de julho de 2022, proc.645/21.5T8TMR.E1, acessível in www.dgsi.pt “A aplicação do instituto do abuso de direito, como forma de paralisação de uma declaração de nulidade, reveste carácter excecional, exigindo-se sempre uma atuação intoleravelmente ofensiva do sentimento ético-jurídico dominante.”
Ora, no caso vertente, o A. tem habilitações superiores, acordou trabalhar meio dia e, durante a vigência do contrato, trabalhou esse meio tempo. Não obstante, já depois do referido contrato ter, por sua iniciativa, cessado, pretende que lhe sejam pagas diferenças salariais correspondentes à execução da atividade de uma jornada diária completa.
Ora, constituindo a remuneração a contrapartida da prestação da atividade, salvo o devido respeito, uma vez cessado o contrato, após cumprimento da atividade a tempo parcial, permitir-se que o trabalhador, por via das consequências da invalidade decorrentes do art.153º nº3 do Código de Trabalho, obtenha montantes correspondentes aos que teria auferido caso tivesse executado uma jornada de 8 horas diárias de trabalho, a nosso ver, corresponde a fazer tábua rasa de uma realidade que existiu (o trabalhador só cumpria meia jornada).
Por outro lado, como já se referiu, retira-se do disposto nos nºs 1 a 3 do art.153º nº1, 2 e nº3 do Código de Trabalho que a exigência da forma escrita, com os requisitos constantes no nº2, visa obstar a abusos por parte da entidade empregadora, colocando no seu livre arbítrio a atribuição, ou não, de um número mínimo de horas de trabalho diário ou semanal, ou de não atribuição de qualquer trabalho por largos períodos de tempo, com a atribuição de recompensas retributivas miseráveis e arbitrárias. Por isso, visando-se proteger o trabalhador, refere-se no nº3 do art.153º do Código de Trabalho o contrato “passa a subsistir a tempo completo”.
Ora, no caso vertente, além do contrato já não subsistir, afigura-se-nos que a proteção supra mencionada não abrange situações como as dos autos em que, enquanto aquele vigorou, o trabalhador executou a atividade no tempo contratado e, por isso, foi remunerado. Permitir agora que o mesmo, relativamente a um contrato que já não vigora (e cujo terminus a si se deveu) receba por tempo que não trabalhou é, a nosso ver, profundamente injusto e exorbita o interesse que o legislador com aquela norma pretendeu salvaguardar.
Em face do que acabámos de referir não serão, pois, de atribuir as diferenças remuneratórias pretendidas.».
Quid júris?
Conforme já referimos anteriormente, decorre do artigo 153.º do Código do Trabalho que o contrato de trabalho a tempo parcial está obrigatoriamente sujeito à forma escrita.
Esta solenidade exigida para a celebração desta modalidade do contrato de trabalho constitui uma formalidade ad substantiam, cuja inobservância determina um vício de forma que afeta a validade do contrato.
Dito de outro modo, o contrato de trabalho a tempo parcial que não tenha sido reduzido a escrito está afetado de vício formal que o torna nulo.
Prescreve o artigo 122.º, n.º 1 do mesmo compêndio legal que o contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como válido em relação ao tempo em que seja executado.
Por sua vez, o artigo 153.º, n.º 3 do referido Código estipula que quando não tenha sido observada a forma escrita exigida para o contrato de trabalho a tempo parcial, o contrato considera-se celebrado a tempo completo.
Sobre esta última norma, escreveu Maria do Rosário Palma Ramalho:[9]
«O contrato de trabalho celebrado ab initio a tempo parcial deve revestir forma escrita (art. 153.º, n.º 1). Trata-se de uma exigência de forma qualificada, uma vez que a norma impõe um conjunto de menções obrigatórias no contrato, nomeadamente a identificação e a assinatura das partes e a referência ao regime de tempo parcial.
A falta de forma determina a conversão automática do contrato num contrato de trabalho comum a tempo completo (art. 153.º, n.º 3).».
Joana Nunes Vicente[10] também refere que a solução consagrada no mencionado artigo 153.º, n.º 3 constitui uma “conversão legal” do contrato em contrato de trabalho em regime de tempo completo.
Ora, no vertente caso, em que ficou demonstrado que o Autor trabalhou durante toda a vigência da relação laboral (i.e. desde 01-06-2018 até 31-08-2020) apenas durante meio dia, de segunda a sexta-feira, entendemos que conjugando a natureza da forma escrita exigida para o contrato de trabalho a tempo parcial (formalidade ad substantiam), a consequência para a inobservância da mesma (invalidade do contrato a tempo parcial) e a consequência consagrada no artigo 153.º, n.º3 do Código do Trabalho, a melhor solução interpretativa do quadro legal em questão é a de que durante o tempo em que o contrato foi executado a tempo parcial as prestações das partes devem ser aferidas por referência ao período de trabalho efetivamente praticado.[11]
Tal significa que o Autor não poderia ter direito às diferenças salariais peticionadas, porquanto não prestou trabalho a tempo completo durante a relação laboral, conforme resultou especificamente demonstrado.
Porém, admitindo que esta solução não é isenta de dúvidas, também nos debruçaremos sobre a solução aplicada na sentença recorrida que, desde já adiantamos, não nos merece qualquer censura quanto ao reconhecimento da existência de abuso de direito.
Preceitua o artigo 334º do Código Civil que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Como ensina o Prof. Almeida Costa[12], o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais. Ou seja, tal instituto constitui uma válvula de escape do sistema aplicável às situações em que, pese embora a existência do direito, o seu exercício se mostraria intolerável face aos referidos limites, designadamente o da boa-fé.
Com interesse, cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2019 (Proc. n.º 3722/16.0T8BG.G1.S1):[13]
«I. Existe abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.
II. O juízo sobre o abuso de direito está, assim, dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade.».
Ainda com relevância, cita-se, igualmente, o Acórdão da Relação de Guimarães de 25-05-2017 (Proc. n.º 354/14.1T8VCT-A.G1):[14]
« Existe abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito».
Ora, no caso que se aprecia, temos que o Autor, pessoa com habilitações superiores, acordou trabalhar para a Ré apenas meio dia, de segunda a sexta-feira. Na sequência do acordado, durante a vigência da relação laboral que cessou por sua iniciativa, apenas teve de estar disponível para a prestação de trabalho durante meio tempo. Vir agora beneficiar, após a cessação do vínculo laboral, da norma consagrada no artigo 153.º, n.º 3 do Código do Trabalho, para obter uma remuneração desproporcional ao que foi a sua prestação laboral e que o enriqueceria sem contrapartida dada, é algo que choca o mais elementar sentido de justiça da sociedade em que vivemos.
É algo que ofende patentemente e intoleravelmente o sentimento ético-jurídico dominante e a razão que funda a solução jurídica consagrada no referido artigo.
Não seria esse seguramente esse o objetivo do legislador ao estabelecer a conversão do contrato em contrato por tempo completo.
Reconhecer ao Autor o direito às peticionadas diferenças salariais seria manifestamente injusto, contrário ao princípio da boa-fé e ultrapassaria intoleravelmente o fim social ou económico do direito em causa.
Por tudo isto, sufragamos a decisão recorrida que não reconheceu ao Autor o direito às diferenças salariais peticionadas, por manifesto abuso de direito.
-
Concluindo, o recurso improcede na totalidade.
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
Notifique.
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Évora, 25 de janeiro de 2024
Paula do Paço (Relatora)
Mário Branco Coelho (1.º Adjunto)
Emília Ramos Costa (2.ª Adjunta)
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Emília Ramos Costa
[2] O identificado objeto do litígio e os temas de prova indicados foram confirmados através do despacho datado de 28-03-2022 (ref.ª ...68).
[3] Não obstante, nas alegações do recurso, o recorrente refira que impugna o ponto 20 dos factos provados, nada concretiza ou invoca relativamente a este ponto, nomeadamente nas conclusões do recurso, pelo que entendemos que se tratou de um lapso de escrita e, se assim não for, a impugnação quanto a este ponto também nunca poderia ser admitida por incumprimento das alíneas b) e c) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
[4] Neste Sentido, o Acórdão desta Secção Social de 27 de maio de 2021, proferido no Proc. 3951 18.2....
[5] “Código do Trabalho anotado”, Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro e outros, Almedina, 2020, pág. 395.
[6] In “Trabalho a tempo parcial e trabalho intermitente”, artigo publicado em Estudos APODIT 4, “Tempo de trabalho e tempos de não trabalho”, pág. 260, nota de rodapé n.º 22.
[7] O referido n.º 6 do artigo 166.º do Código do Trabalho corresponde ao atual n.º 5 do artigo.
[8] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 02-12-2002, Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo 5, pág.225.
[9] In “Tratado de Direito do Trabalho – Parte IV – Contratos e Regimes Especiais”, Almedina, pág. 223.
[10] Obra citada, pág. 262.
[11] Esta solução encontra respaldo na posição defendida por Luís Miguel Monteiro, obra citada, pág. 395.
[12] In “Direito das Obrigações”, 6.ª edição, pág. 64.
[13] Consultável em www.dgsi.pt.
[14] Idem.