Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
850/17.9T9FAR.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: DIFAMAÇÃO AGRAVADA
DENÚNCIA CALUNIOSA
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Da relação entre as normas dos artigos 365.º e 180.º, do C. Penal, resulta a exclusão da aplicação do art. 180.º do C. Penal sempre que esteja em causa a conduta do agente que, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime com intenção de que contra ela se instaure procedimento, resolvendo-se ao nível da relação entre normas a questão de ilicitude que sempre teria que resolver-se pela consideração do “exercício de um direito” enquanto causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31.º, nº2, al. b) do C.Penal.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correu termos no Juízo Criminal de Faro (J3) do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Ministério Público acusou MM, casada, professora (reformada), nascida a 11-04-1948, imputando-lhe a prática de um crime de difamação agravado, previsto e punível, pelos artigos 180.°, n. 1, 184.°, 188.°, nº 1, alínea a), com referência ao 132.°, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa do advogado BB.

2. Constituído assistente, o ofendido, BB, veio deduzir pedido de indemnização civil contra a arguida pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 6 000,00, a título de danos não patrimoniais por si sofridos com a conduta da arguida.

3. Realizada a Audiência de julgamento, o tribunal singular julgou a acusação improcedente e absolveu a arguida do crime que lhe vinha imputado e do pedido cível contra si deduzido pelo assistente.

4. Inconformados, vieram o MP e o assistente interpor recurso da sentença absolutória.

4.1. O MP extrai da sua motivação as seguintes conclusões:
- «EM CONCLUSÃO:

1º - A arguida MM foi julgada pela prática dos factos descritos na acusação pública constante de fls. 137 a 142, imputando-lhe factos passíveis de integrar a prática, em autoria material, de um crime de difamação agravada, previsto e punível pelos artigos 180.°, n.º 1, 184.°, 188.°, n. 1, alínea a), com referência ao 132.°, n.º 2, alínea 1), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa do advogado BB.

Realizado julgamento, a arguida foi absolvida do crime de que vinha acusada, tendo o Tribunal julgado como provados apenas seguintes factos:

"1. BB exerce a profissão de advogado, usando o nome profissional de BB, tendo sido mandatado por JJ, ex-marido da aqui arguida MM, para intervir em sua representação, em diversos processos judiciais instaurados por esta contra aquele, entre os quais no Processo n.º ---/15.2T8FAR que correu termos no Juízo Central Cível de Faro, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.

2º. No dia 25 de Janeiro de 2017, no âmbito do Processo n.º ---/15.2T8FAR descrito em 1., BB, mandatário do ali Réu JJ foi notificado de dois escritos subscritos pela arguida MM, que deram entrada naqueles autos, no dia 24 de Janeiro de 2017.

. No requerimento apresentado pela arguida MM no processo descrito em 1., denominado "Reclamação", esta profere as seguintes expressões, dirigidas a BB, mandatário do Réu naqueles autos:

- "Dr. Juiz como é fácil ser enganado e enredado na teia de uma pessoa egoísta, egocêntrica e que não olha a meios para atingir os fins, neste caso o Réu, ajudado por um advogado habilidoso e esperto.";

- "O R e o seu advogado usam o ardil de entupir os processos com assuntos que nada têm a ver com ele, manipulando factos, mentindo nuns, omitindo outros para, pura e simplesmente, baralhar o Tribunal"

- "À A. não resta outra alternativa, senão denunciar, ao M.P. todos os crimes praticados pelo R. e seu cúmplice, (o advogado que o representa e tão "bem" o defende) durante a vigência daqueles processos e mais neste:

- declarações falsas. prestadas às Finanças, à C. R. Predial e ao Tribunal
- fraude fiscal e registral
- evasão fiscal
- calúnia
- manipulação de documentos
- manipulação de testemunhas
- roubo de património".

4. A acompanhar o requerimento denominado de "Reclamação", supra mencionado, a arguida MM apresentou um escrito com o seguinte teor:

"Ex.mo Sr. Procurador do M. P.
MM, ( ... ) vem denunciar a V: Ex: os seguintes crimes, do seu conhecimento, praticados por
( ... )
BB - Rua …. Loulé
- falsas declarações feitas às Finanças, C. Registo Predial de Loulé e Tribunal de Loulé e Faro
- fraude fiscal e registral
- evasão fiscal
- calúnia
- manipulação de documentos
- manipulação de testemunhas
- roubo de património ( ... )", sendo que, este escrito deu origem ao processo com o n° ---/17.7T9FAR que foi remetido ao DIAP de Loulé em 10.03.2017.

5. A arguida MM agiu sempre de modo livre e consciente."

2.° - Relativamente à matéria fáctica constante da acusação, o tribunal deu como não provados os seguintes pontos:

"1. A arguida MM ao redigir e enviar os escritos mencionados em 2.1 supra, com as referidas expressões e conteúdos, quisesse colocar em causa o profissionalismo e honestidade do assistente enquanto advogado e/ ou que tivesse agido com o propósito concretizado de ofender o assistente/ advogado BB, na sua qualidade, na sua honra e consideração e/ou que tal tivesse representado como consequência necessária da sua supra descrita conduta e/ou que representando tal como consequência possível da sua conduta, tivesse actuado conformando-se com tal realização."

3.° - Ora, quanto a este ponto da matéria de facto dada como não provada, temos por inequívoco que a prova produzida em audiência, conjugada com a prova documental constante dos autos, impunha que se dessem os mesmos como provados - e não como não provados, nos seguintes termos:

(o ponto 5. dos factos dados como provados na Sentença recorrida passaria a ser o ponto 7.)

5. A arguida MM ao transmitir e juntar os requerimentos com as referidas expressões e conteúdos no Processo descrito em 1., formulando aqueles juízos de valor sobre a actuação de BB, quis colocar em causa o profissionalismo e honestidade deste enquanto advogado.

6. A arguida MM agiu sempre de modo livre e consciente, com o propósito concretizado de ofender o advogado BB, na sua qualidade, na sua honra e consideração.

4.° - O Mm" Juiz efectuou uma notória errada apreciação da prova, ao não ter considerado as declarações prestadas pela arguida em sede de julgamento como relevantes e essenciais para dar como provada aquela factualidade.

5.° - Para além disso, analisada a fundamentação feita pelo Mmo Juiz na apreciação a prova produzida, entendemos que nunca podia ter concluído como concluiu. De facto, o percurso cognitivo e lógico-dedutivo realizado pelo julgador para chegar às conclusões plasmadas na factualidade dada como provada e não provada não se mostra coerente, existindo contradições insanáveis entre os factos e a fundamentação usada para sustentar a decisão.

6.° - Na verdade, com relevância para a decisão a proferir sobre estes pontos da matéria de facto dados como não provados, e a impor que os mesmos fossem dados como provados, passamos a sumariar a seguinte prova coligida nos autos, incluindo as concretas passagens produzidas em Julgamento e que fundam a impugnação supra transcritas e que se dão por integralmente reproduzidas, e que deve ser reapreciada pelo Venerando Tribunal Superior:

a) As declarações da arguida (constantes do Citius Media Studio - dia 26.06.2018, entre 05:34 e 06:07, 07:28 e 08:09, 12:38 e 13:39, 14:40 e 15:31, 15:38 e 17:27,18:42 e 19:03,23:03 e 23:40, bem como dia 03.07.2018, entre 02:16 e 04:58¬supra transcritas) onde a arguida manteve e sublinhou as imputações que fez ao assistente, tendo-se verificado que essas imputações eram manifestamente infundamentadas e movidas exclusivamente por um sentimento de vingança por o assistente ter sido Advogado do ex-marido da arguida nas acções judiciais e por ter conseguido vencer essas acções judiciais à arguida.

b) Nas declarações referidas em a) a arguida negou que tivesse procurado visar o assistente mas, quando desenvolvia a matéria e detalhava o tema objecto de julgamento, acabou sempre por reiterar em sede de julgamento as imputações ao assistente conforme supra citamos e sublinhamos.

c) As declarações do assistente (constantes do Citius Media Studio - dia 26.06.2018, entre 01:58 e 02:53) onde explicou como teve conhecimento dos factos e a motivação da arguida. Explicou que se tratou de um acto gratuito, em processo que já se encontrava findo e movido por vingança por o seu cliente ter vencido todas as acções judiciais à arguida.

d) A reapreciação da prova documental constante de fls. 7 a 12 e de fls. 15 a 89 (certidão extraída do processo 2509/15.2T9FAR), onde constam os elementos documentais que deverão ser reapreciados pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora.

e) De facto, a arguida fez constar no documento junto ao processo 2509/15.2T9FAR um escrito elaborado e assinado por si onde fez referência a prática dos crimes acima elencados e onde afirmava terem sido praticados pelo R. e "seu cúmplice, (o advogado que o representa e tão "bem" o defende) " (cfr. fls. 79), juntando ainda cópia de outro documento que havia entregue na mesma data junto do Ministério Público. Nesta cópia a arguida afirmava que denunciava crimes praticados por BB (fls. 86). A concretização do Assistente como tendo praticado os crimes é inequívoca nos dois escritos.

f) Assim, verifica-se que o modo com o Douto Tribunal a quo avaliou a capacidade probatória e fundamentou a credibilidade daqueles meios de prova violou as regras de experiência comum. De facto, não podia o Tribunal fundamentar a factualidade não provada em declarações da arguida quando do seu conteúdo resulta precisamente a conclusão contrária.

g) Acresce que negou ter denunciado o Assistente nos escritos juntos ao processo 2509/15.2T9FAR e analisado o conteúdo desses escritos verifica-se literalmente o contrário. Na dita "reclamação" referiu-se ao advogado do réu como cúmplice dos crimes e na cópia do documento junto no MP a arguida afirma expressamente que denuncia crimes praticados por BB (fls. 86). A concretização do Assistente como tendo praticado os crimes é inequívoca nos dois escritos.

h) Assim, a conjunção desses elementos de prova com as regras de normalidade e de experiência comum, obrigava a que fosse dado comprovado que a arguido actuou com dolo, com consciência da ilicitude e com culpa.

7.° - O modo com o Douto Tribunal fundamentou a credibilidade das declarações da arguida, para dar como não provada aquela factualidade, violou as regras de experiência comum. De facto, não podia o Tribunal fundamentar a factualidade não provada em declarações sem credibilidade e onde a própria arguida entra em contradição consigo mesma em sede de julgamento. A arguida ao mesmo tempo que negou ter denunciado o assistente BB confirmou a autoria dos escritos onde o mesmo é denunciado expressamente e onde lhe é imputada a cumplicidade em crimes, bem como referiu expressamente nas declarações prestadas em julgamento (que supra se transcrevem) que o assistente é co-responsável pelos factos (criminosos) que considera terem sido levados a cabo pelo seu ex-marido.

8.° - Ao apreciar a prova nos termos supra referidos, violando as regras do normal acontecer e efectuando raciocínios errados e contraditórios, incorreu a Sentença recorrida em erro manifesto na apreciação das provas supra referidas, cuja reapreciação se requer.

9.° - Pelo exposto, pugna-se junto do Venerando Tribunal da Relação que reaprecie as provas acimas elencadas e, em consequência, alterando a factualidade julgada provada nos termos pugnados pelo Ministério Público e referidos em 3.° destas conclusões, condene a arguida pela prática do crime de que vinha acusado.

10.° - Violou a Tribunal a quo o disposto nos artigos 127.° do CPP e os artigos 347.°, n." 1, e os artigos 180.°, n." 1, 184.°, 188.°, n." 1, alínea a), com referência ao 132.°, n.o 2, alínea 1), todos do Código Penal.

11.° - Nesta medida, deve ser revogada a Douta Sentença recorrida e, em consequência, ser substituída por Douto Acórdão que condene a arguida nos termos pugnados neste Recurso e aplique à arguida uma pena de multa.

12.° - Subsidiariamente, caso não se entenda nos termos acima pugnados, deverá ser declara a nulidade da Sentença recorrida, por falta de fundamentação, determinando-se que o Tribunal "a quo" profira nova sentença.

13.° - A Sentença recorrida não contém uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, nem contém o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

14.° - Pelo exposto, a Sentença recorrida é nula nos termos dos artigos 374.°, n. 2, e 379.°, n. 1, al. a), ambos do CPP, o que se argui para todos os efeitos legais.

15.° - Tendo sido dados como provados elementos objectivos do tipo de crime e dada como não provado elemento subjectivo consideramos que existia um dever acrescido de fundamentação.

16.° - A própria arguida referiu ser professora de português, referiu ter sido vereadora de uma câmara municipal e demonstrou ter conhecimentos sobre o modo de funcionamento dos Tribunais.

17.° - Nesta medida, não podia Ignorar o significado das palavras que fez constar nos escritos objecto destes autos e das próprias palavras que proferiu em sede de julgamento.

18.° A Douta Sentença recorrida não fez tal análise que se impunha legalmente, tendo-se limitado a citar parte das declarações da arguida, sem realizar um exame crítico dessas declarações e sem conjugar a prova por declarações produzida em julgamento com a prova documental constituída nos autos.

19.° - Neste sentido, violou ainda a Tribunal a quo o disposto nos artigos artigos 374.°, n. 2, e 379.°, n. 1, al. a), ambos do CPP, devendo nesse caso ser declarada a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, determinando-se que o Tribunal "a quo" profira nova sentença.»

4.2. Por sua vez, o assistente extrai da sua motivação as seguintes conclusões:

- «EM CONCLUSÃO
I- Nos presentes autos foi a arguida/demandada absolvida do crime de Difamação Agravada p. e p. pelo artigo art.º180, nº l, art.º184, art.º188, nº l alínea a) com referência ao art.º132, nº2, alínea l), todos do Código Penal e declarado improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil.

Entende o recorrente que o Tribunal erro no julgamento da matéria de facto, o que conduziu a uma violação do artigo 180º nº 1, art. 184º, art. 188º, nº l alínea a) com referência ao art.º132, nº2, alínea l), todos do Código Penal.

III- Entendeu o tribunal que das declarações prestadas pela arguida, conjugada com os restantes elementos probatórios (escritos enviados ao tribunal no dia 24 de Janeiro de 2017, o teor da notificação datada de 25 de Janeiro de 2017 de fls.7, documento de fls.8 a II-verso, o documento de fls.12 e documento de fls.16 a 90), foi suficientemente para formar a convicção do tribunal quanto aos factos constantes na matéria de facto provada e ponto 1 da matéria de facto não provada.

IV- Entende o recorrente que a prova produzida, na sua globalidade, revela, dentro do que é lógico, que as coisas se sucederam ao contrário do que consta da matéria de facto não provada.

V- A arguida representou e quis praticar o facto ilícito criminal pelo qual vinha acusada, conformando-se com o seu resultado pois esta, face à sua experiência de vida, não poderia ignorar que tais escritos continham expressões que ofendiam a honra e reputação do assistente.

VI- É notório que as declarações da arguida, conjugadas com o teor da restante prova, supra-referida, impõem decisão diversa da proferida no que concerne à matéria de facto não provada.

VII- Efetivamente, a prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento impõe ao Tribunal recorrido a conclusão que a arguida agiu com dolo, com intenção de ofender a honra e consideração do Assistente.

VIII- É notório, segundo o critério do homem médio, que as expressões constantes dos escritos enviados para o tribunal revestem um desvalor ético e penal que permitiu à arguida materializar a sua intenção de ofender a honra e reputação do assistente.

IX- Verificam-se os elementos objetivos e subjetivos do crime de Difamação Agravada p. e p pelo art.º180, nº l, art.º184, art.º188, nº1 alínea a) com referência ao art.º132, nº2, alínea l), todos do Código Penal, devendo a arguida ser condenada pela prática desse crime.

X- Deve, por isso, toda a prova aqui posta em crise ser reapreciada, procedendo-se à alteração da decisão sobre a matéria de facto, devendo a matéria de facto não provada ser inserida na matéria de facto provada.

Termos em que deve o presente recurso ser recebido e considerado procedente e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que considere a matéria de facto, ora em crise, declarada como provada e, consequentemente, condenar-se a arguida pelo Crime de Difamação Agravada p. e p. pelo artigo art.º180, nº l, art.º184, art.º188, nºl alínea a) com referência ao art.º132, nº2, alínea 1), todos do Código Penal e, consequentemente, declarar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil, com o que reporão V. Exas. a Vossa costumada JUSTIÇA!»

5. A arguida apresentou resposta ao recurso interposto pelo MP, pugnando pela sua improcedência.

6. Nesta Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência de ambos os recursos.

7. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do C. P. P., os interessados nada acrescentaram.

8. Transcrição parcial da sentença recorrida:

«2.1. Matéria de facto provada
Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. BB exerce a profissão de advogado, usando o nome profissional de BB, tendo sido mandatado por JJ, ex-marido da aqui arguida MM, para intervir em sua representação, em diversos processos judiciais instaurados por esta contra aquele, entre os quais no Processo n. ° ---/15 .2T8F AR que correu termos no Juízo Central Cível de Faro, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.

2. No dia 25 de Janeiro de 2017, no âmbito do Processo n.º …./15.2T8FAR descrito em 1., BB, mandatário do ali Réu JJ foi notificado de dois escritos subscritos pela arguida MM, que deram entrada naqueles autos, no dia 24 de Janeiro de 2017.

3. No requerimento apresentado pela arguida MM no processo descrito em 1., denominado "Reclamação ", esta profere as seguintes expressões, dirigidas a BB, mandatário do Réu naqueles autos:

- "Dr. Juiz como é fácil ser enganado e enredado na teia de uma pessoa egoísta, egocêntrica e que não olha a meios para atingir os fins, neste caso o Réu, ajudado por um advogado habilidoso e esperto.";

- "O R e o seu advogado usam o ardil de entupir os processos com assuntos que nada têm a ver com ele, manipulando factos, mentindo nuns, omitindo outros para, pura e simplesmente, baralhar o Tribunal"

- "À A. não resta outra alternativa, senão denunciar, ao MP todos os crimes praticados pelo R. e seu cúmplice, (o advogado que o representa e tão "bem" o defende) durante a vigência daqueles processos e mais neste:

- declarações falsas prestadas às Finanças, à C. R. Predial e ao
Tribunal
- fraude fiscal e registraI
- evasão fiscal
- calúnia
- manipulação de documentos
- manipulação de testemunhas
- roubo de património".

4. A acompanhar o requerimento denominado de "Reclamação ", supra mencionado, a arguida MM apresentou um escrito com o seguinte teor:

"Ex.mo Sr. Procurador do M P.
MM, (. . .) vem denunciar a V. a Ex. a os seguintes crimes, do seu conhecimento, praticados por
(. . .)
BB – Rua… Loulé
- falsas declarações feitas às Finanças, C. Registo Predial de Loulé e
Tribunal de Loulé e Faro
- fraude fiscal e registral
- evasão fiscal
- calúnia
- manipulação de documentos
- manipulação de testemunhas
- roubo de património (. . .) ", sendo que, este escrito deu origem ao processo com o n.º ---/17. 7T9F AR que foi remetido ao DIAP de Loulé em 10.03.2017.

5. A arguida MM agiu sempre de modo livre e consciente.

Mais se apurou que:
6. A arguida MM encontra-se socialmente inserida.
Não tem antecedentes criminais.
A arguida sempre foi uma pessoa trabalhadora, séria e honesta, culta. Tem livros publicados e já expôs pinturas por si efectuadas.
Durante anos foi professora, tendo em 2002, sido reformada da função pública por motivo de doença. Recebe uma pensão de reforma no valor mensal líquido de € 1 200,00.
A arguida é casada; o seu marido é engenheiro civil reformado.
A arguida exerceu as funções de vereadora na Câmara Municipal de …; foi Presidente da Assembleia Municipal de …, periodicamente, e foi Presidente do Sindicato dos Professores Licenciados na zona ...
É considerada uma pessoa muito activa e bem comportada socialmente; respeitada e respeitadora dos demais.

7. O ofendido e aqui assistente/demandante civil, BB sentiu-se ultrajado e ofendido com as expressões utilizadas pela arguida nos escritos em causa. Com tal sentiu-se, ainda, nervoso.

2.2. Factos não provados
Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, não se provou que:

1. A arguida MM ao redigir e enviar os escritos mencionados em 2.1 supra, com as referidas expressões e conteúdos, quisesse colocar em causa o profissionalismo e honestidade do assistente enquanto advogado e/ou que tivesse agido com o propósito concretizado de ofender o assistente/ advogado BB, na sua qualidade, na sua honra e consideração e/ou que tal tivesse representado como consequência necessária da sua supra descrita conduta e/ou que representando tal como consequência possível da sua conduta, tivesse actuado conformando-se com tal realização.

Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) e em 2.2. (factos não provados) ou são conclusivos, ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa criminal ou cível.

2.3. Motivação da decisão de facto

2.3.1. Quanto ao apuramento da matéria fáctica supra vertida o Tribunal formou a sua convicção:

- Nas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pela arguida Mm, a qual, em audiência de discussão e julgamento, afirmou ser a autora dos escritos descritos em 2.1.3° e 4° supra e explicitou as razões de ter subscrito os mesmos, narrando as circunstâncias que os envolveram mas negando que com os mesmos quisesse colocar em causa o profissionalismo e honestidade do assistente enquanto advogado e/ou que tivesse agido com o propósito concretizado de ofender o assistente/ advogado BB, na sua qualidade, na sua honra e consideração.

Por outro lado, tais declarações relevaram, ainda, para aferir da sua actual situação familiar e socioeconómica (conf. 2.1.6° supra), conjuntamente com os depoimentos das testemunhas PP (com 72 anos de idade, professor reformado), MC (comerciante reformada, conhece a arguida há cerca de 9 anos) e MS (com … anos de idade, professora reformada, a qual conhece a arguida desde os tempos em que a mesma leccionava), as quais, atestaram, igualmente, sobre o comportamento da arguida.

O Tribunal considerou as declarações prestadas pelo ofendido/assistente/demandante civil, BB maxime, face às consequências psicológicas e anímicas que para si tiveram as expressões de que a arguida foi autora, sendo que, sobre tal depuseram, igualmente, as testemunhas JJ (ex-marido da arguida e cliente do assistente) e MB (com 56 anos de idade, advogada e colega do assistente há cerca de 33 anos).

O depoimento da testemunha DD (com 43 anos de idade, funcionário da Repartição de Finanças de Loulé) revelou-se totalmente inócuo para o apuramento da matéria fáctica supra vertida assim como inócuos/despiciendos se revelaram os documentos juntos a fls. 213 a 263 dos autos.

Cotejada com a prova supra referenciada o Tribunal Judicial considerou, igualmente, a prova documental junta aos autos, nomeadamente, o teor da notificação datada de 25 de Janeiro de 2017, Processo n. ° ---/15.2T8FAR, de fls. 7; o teor da "Reclamação", com carimbo de entrada de 24 de Janeiro de 2017, de fls. 8 a II-verso; o constante a fls. 12 dos autos; o teor da certidão de fls. 16 a 90 dos autos; a informação de fls. 92 dos autos; o termo de incorporação de fls. 95 e a cópia actualizada do certificado de registo criminal da arguida de fls. 172 dos autos e do qual nada consta.
*
2.3.2. Os factos não provados assim foram considerados por, na convicção do Tribunal Colectivo, a prova produzida não ter conduzido a diversa qualificação dos mesmos, evitando-se aqui repetir o por nós atrás expendido, a tal propósito.

Quanto a tudo (factos não provados), importa não esquecer que "em Direito Penal, a prova para condenação deve ser plena, do mesmo passo que a dúvida determina a absolvição, sendo este o efeito necessário da presunção da inocência" - vd. Acórdão da Relação de Évora de 18/10/1988, BMJ, 380°-558.

Com efeito, a primeira grande incidência do princípio da presunção de inocência do arguido (entre outras de menor alcance) que cumpre destacar é na matéria da prova em processo penal, decorrendo daquele princípio, fundamentalmente: a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem que provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo (expressão cunhada por Stubel); e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele.

Na verdade e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido (consagrado constitucionalmente no n° 2 do art" 32° da CRP (e ainda nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem)) isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação - neste sentido, vd. Rui Patrício "O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português", AAFDL, Lisboa, 2000, pág. 93.

A tal acresce que no que concerne à apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (os factos dados como não provados em 2.2. supra), o Tribunal, em corolário do supra expendido, fez uso do princípio in dubio pro reo, o qual estabelece que:

" ( ... ) na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido. É um princípio de prova que vigora em geral (. .. )" - vd. Acórdão do STJ de 10/05/1995, Proc. n.º 47764, cit. no CPP Anotado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, I VoI., 1996, pág. 550.

Com efeito, "não pode condenar-se um arguido em simples presunções, que não são meios de prova, mas simples meios lógicos ou mentais. As presunções da culpa têm de haver-se como banidas em processo penal, face ao disposto no artº 32 n° 2 da Constituição da República Portuguesa" (vd. Acórdão do STJ, de 07/11/1990, Proc. n'' 41294, 3a secção, ob. cit., pág. 542) e, por outro lado, " a livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com a apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova" - vd. Figueiredo Dias, ob. cit. e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Coimbra, 1988, pág. 228 - não esquecendo, como se deixou dito, que "em processo penal, no domínio da prova, a dúvida sobre os elementos constitutivos da infracção resolve-se a favor do réu, funcionando o princípio in dubio pro reo" (vd. Acórdão do STJ de 19/12/1962, BMJ 122°-464).

Sobre este tema, vide, ainda, Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1986, págs. 257 e ss., Eduardo Correia, "Le preuves en droit penal portugais", Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XV, 1967, págs. 1 a 52 e Acórdão n'' 1124/96 do tribunal Constitucional de 19/11/96, publicado no D.R., II série, n'' 31, de 06/02/1997, pág. 1566.

Aqui chegados importa, igualmente, dizer que segundo o art." 127° do Código de Processo Penal (principio da livre apreciação da prova) "salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente" ou seja, o Tribunal é livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.

Não obstante tal, essa apreciação não pode ser arbitrária.

É que, como escreve o Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, pág. 202 e 203, "a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo ".

Prossegue o citado autor, afirmando que "a livre ou íntima convicção do juiz, de que se fala a este propósito não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável (. . .) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros."

Uma tal convicção existirá só e quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, o que, in casu, não sucedeu quanto ao imputar à arguida os factos dados como não provados em 2.2.1 supra.

Relativamente à fundamentação de facto entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art.º 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/1997, in, CJSTJ, tomo I, pág. 172 e segs. "o artº 372º do Código de Processo Penal não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas serviram para formar a convicção do Tribunal, não impondo a lei a menção das inferências injuntivas levadas a cabo pelo Tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contra provas", o que ainda assim foi feito por este Tribunal e quanto ao núcleo essencial dos factos em apreciação.
*
2.4. Enquadramento Jurídico-penal
2.4.1. Conforme se deixou dito, a arguida MM encontra-se acusada da prática, como autora material e na sua forma consumada, de um crime de difamação agravado, previsto e punível, pelos artigos 180.°, n.º 1, 184.°, 188.°, n.º 1, alínea a), com referência ao 132.°, n. ° 2, alínea 1), todos do Código Penal, perpetrado na pessoa do advogado BB.

Dispõem os referidos preceitos legais que:

Artigo 180.°
Difamação
«1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n. o 2 do artigo 31. ~ o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 - A boa fé referida na alínea b) do n. o 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.»

Artigo 184º
Agravação
«As penas previstas nos artigos 180. o, 181. o e 183. o são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea 1) do n. o 2 do artigo 132. ~ no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.»

Por outro lado, preceitua a alínea 1) do n° 2 do art.° 132º do Código Penal que:

«I) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das \autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;»

O bem jurídico protegido com as incriminações aqui em causa é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se traduz, normalmente, num juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.

Na definição de Beleza dos Santos [R. L. J. nº 3152, pág. 167] ''A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale". A consideração é, ainda na doutrina daquele autor [ibidem] "aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público".

São estes os valores que integram o bem jurídico protegido pelo crime de difamação que à arguida é imputado nestes autos, sendo certo que a sua consagração constitucional opta pela referência aos conceitos de "bom nome" e "reputação ".

Deve-se, desde já, o esclarecimento de que não está em causa a percepção subjectiva que se tem da valia ética individual ou a maior ou menor sensibilidade ao ataque dessa valia individual (daí ser indiferente, para efeitos de tipificação da conduta do arguido, que o visado, no seu texto, se tenha sentido ofendido ou ultrajado) mas antes uma percepção, mediada pela sensibilidade comunitária mediana, daquilo que representa o núcleo essencial das ditas condições morais ou requisitos éticos, à luz do princípio da dignidade humana - conf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-11-2012, processo n.º 4/11.4TASVC.Ll - 3, disponível na base de dados da DGSI.

Nestes termos, "a difamação pode definir-se como atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social" [Acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Fevereiro de 1996, in Colectânea de Jurisprudência, XXI, tomo I, pág. 156].

É líquido que não é de relevar uma ofensa meramente relativa, sentida só pelo lesado, concretamente, e não idónea a produzir esse resultado em termos objectivos.

Assim, só serão de integrar na previsão legal as imputações objectivamente ofensivas da honra e consideração.

A honra ou consideração, a que alude este tipo penal, consiste num bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

Se a norma diz claramente que difamar mais não é que imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do art. 180.° do Código Penal.

A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos. É o que decorre do art.37.º, n.ºl da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações. ",

O direito à liberdade de expressão e crítica tem limites, como decorre do próprio n.º 3 do mesmo art. 37.° da C.R.P, quando estabelece que "as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal. .. ".

Nos termos do art. 31.°/2, al. b) do Código Penal, incluído na Parte Geral, não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito. Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.

Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua optimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.

Todavia, e à semelhança do que foi escrito num acórdão da Relação do Porto, de que foi relator o agora conselheiro Manuel Braz, entendemos que:

"É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra "pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função" - Ac. de 12-6-02, recurso 332/02.

Por outro lado, tal como defendido num Acórdão da Relação de Guimarães a ideia de sancionar quaisquer referências negativas ao assistente seria mesmo um absurdo, numa sociedade democrática como a nossa, em que a Constituição da República consagra o direito à liberdade de expressão (art. 37.).

E violaria frontalmente o art. 10.°/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que dispõe: "qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou transmitir informações ou ideias ... ".

Tal interpretação está de acordo com o princípio do mínimo de intervenção do aparelho sancionatório do Estado, que subjaz ao direito penal.

E deste princípio não podemos esquecer-nos na determinação dos elementos objectivos previstos no art.180.º, n.l do Código Penal.

Para a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da "honra ou consideração" são produzidos.

Nas sociedades democráticas e abertas, como aquela em que vivemos, o direito à crítica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão. Pelo que se deixou já expresso pode-se concluir que só perante o caso concreto se pode decidir se a crítica realizada pelo seu autor configura uma conduta típica ou não, do direito à honra.

Nos termos da lei, o ataque à honra tanto pode ocorrer mediante a imputação de um facto como de um juízo e valor, sendo relativamente pacífico na doutrina e na jurisprudência que um facto será "um acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente e susceptível de prova" e um juízo de valor será "toda a afirmação contendo uma apreciação sobre o carácter da vítima que não está inscrita em factos" [Augusto Silva Dias, Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias, AAFDL, 1989, pág. 149].

No entanto, conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, tanto nacional, como estrangeira, "o juízo de valor desonroso não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão (. . .) numa sociedade democrática e tolerante. A crítica pode ser legitimamente exercida no contexto da luta política (acórdão do TRP, de 31.1.1996, in CiJ. XXI, 1, 242). (. .. ) Nestes casos, de crítica legítima, o visado pela crítica não pode apelar à tutela da sua reputação como parte integrante da sua "vida privada" pelo artigo 8° da CEDH (acórdão do TEDH Karako v. Hungria, de 28.4.2009, que distingue claramente entre a reputação e a "integridade pessoal") [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2a edição atualizada, D.C.E., 2010, pág. 570]

Desenvolvendo essa doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque [Ibidem] escreveu que a "condição essencial da legitimidade do juízo de valor é a de que ele se dirija às obras, realizações ou prestações do visado e não ao visado em si mesmo, como pessoa (neste sentido, também, Costa Andrade, (. .. ) Como é ainda legítima a crítica dirigida a um primeiro-ministro de "oportunismo básico", "imoral" e "indigno", na sequência de uma polémica política em torno da formação de uma coligação governamental com um partido chefiado por uma pessoa com passado nazi e do ataque do primeiro-ministro aos "métodos mafiosos" dos detratores desta pessoa (acórdão do TEDH Lingens v. Áustria, de 8.7.1986 (. .. )"

Em democracia, não se pode confundir "comentário e insinuação inverídica" com a expressão de uma mera crítica subjectiva e parcial sobre a conduta pública de uma qualquer figura política, sob pena de se acabar por condicionar, ilegitimamente, o direito à liberdade de expressão - a qual constituiu uma justa e antiga reivindicação liberal, proclamada e teorizada desde o século XVII, por pensadores e activistas políticos da craveira de John Milton, Thomas Jefferson e John Stuart Mill, entre outros, no contexto do desenvolvimento do conceito de cidadania - reconhecido na Constituição da República Portuguesa - artigo 37° da referida Lei Fundamental -e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem - artigo 10° da C.E.D.H. aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro (em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 09 de Novembro de 1978, data do depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral do Conselho da Europa - e violar o princípio da intervenção mínima do direito penal.

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira [Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.a edição revista, Coimbra, 2007, págs. 571 e 572] "(o) "direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento") é, desde logo, e em primeiro lugar, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideias e opiniões".

Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei [vide, neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Outubro de 2009, relatado no processo n." 1/08.0TRLSB.Sl e sumariado no endereço da rede digital global http://www.stj.pt].

Voltando ao caso em apreço.
Dos escritos redigidos pela arguida e cingindo-nos agora, apenas, ao mencionado em 2.1.3 supra, face aos ensinamentos supra vertidos não resulta que o mesmo preencha os elementos objectivos do tipo de crime em causa.

Com efeito, a referência ao assistente/demandante civil como "advogado habilidoso e esperto" pode ser (e é) deselegante, despropositada, despicienda mas, por si só, não reveste a valoração necessária para corporizar o sobredito tipo de crime, sem olvidar o contexto em que a mesma foi redigida e as demais circunstâncias do caso, isto é, após a arguida ter perdido uma acção cível em que era réu o seu ex-marido e que estava representado em juízo pelo aqui assistente.

Relativamente à parte restante do escrito em causa quando concatenado com o escrito mencionado em 2.1.4 dos factos provados, importa trazer à colação o seguinte Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/03/2014, processo n.º12/12.1 TAAFE-A.Pl, disponível na base de dados da DGSI, em cujo sumário se escreveu que:

«1 - Apresentada uma queixa-crime, na qual se imputam factos ou juízos desonrosos a outra pessoa, deverá a mesma ser analisada de forma a perceber se (i) ela apenas denuncia factos suscetíveis de configurar um crime, (ii) se os apresenta de forma dolosa com a consciência da sua falsidade, ou se, além da denúncia, (iii) emite juízos de valor vexatórias sobre o denunciado.

II - No primeiro caso, temos o puro exercício de um direito, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado pelo artigo 20°, da CRP e, por isso, apesar da imputação da prática de factos que podem constituir crime, não há impedimento ou restrição ao exercício do direito pois que deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.

III - No segundo caso - em que a denúncia é feita de forma dolosa com a consciência da sua falsidade -, estamos perante a prática do crime de Denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º do Cód. Penal. Este é o mecanismo através do qual a Lei assegura o respeito pelos direitos dos visados em denúncias infundadas, feitas com consciência da falsidade e com a intenção clara de instauração de procedimento

IV - No terceiro caso - em que a denúncia não se limita à narração dos factos e, numa linguagem ofensiva, emite juízos de valor vexatórias sobre o denunciado - a situação pode constituir um crime de Difamação, p. e p. pelo artigo 180º n.º 1, do Cód. Penal, na medida em que o denunciante se serve da queixa para atingir, especificamente, a honra e consideração do denunciado.» ¬(nosso o destaque a negrito).

Ora, retomando ao caso em apreço, cotejando a matéria fáctica apurada com a que foi considerada não provada não temos quaisquer dúvidas em inscrever a acção da arguida - no que tange à parte restante do escrito em causa quando concatenado com o escrito mencionado em 2.1.4 dos factos provados ¬no ponto II (primeiro caso) da exemplificação constante do supra mencionado sumário.

Mas, ainda que a mesma fosse subsumível ao ponto III (segundo caso) lembramos aqui que a arguida, in casu, apenas se mostra acusada da prática do crime de difamação e não de denúncia caluniosa, cujos elementos subjectivos do tipo não contam da acusação em apreço, pelo que, sempre, a acrescentá-los, estaríamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ¬não autonomizáveis em relação ao objecto do processo - e que não poderiam ser tomados em conta para o efeito de condenação no processo em curso (conf. art." 359° do Código de Processo Penal).

Ademais, estamos em crer que tal imputação foi (OU está a ser) objecto de análise no processo com o n.º ---/17.7T9FAR que foi remetido ao DIAP de Loulé em 10.03.2017.

Finalmente, a tudo acresce a falência da prova dos elementos subjectivos do sobre dito tipo de crime (conf. 2. 2. 1° supra).

Nestes termos, improcede na sua totalidade a acusação imputada nestes autos à arguida, o que conduz à sua absolvição.

Relativamente ao pedido de indemnização civil nos autos deduzido contra a mesma valendo aqui, mutatis mutandis, o que supra se deixou expendido importa concluir, igualmente, pela sua total improcedência, com a consequente absolvição da arguida/demandada civil do ali pedido.
(…) ».

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso e poderes de cognição do tribunal de recurso

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O MP e o assistente vêm, nos termos do art. 412º nºs 3 e 4 do CPP, impugnar a decisão recorrida na parte em que julgou não provados os factos descritos no único ponto da factualidade não provada, concluindo que tais factos devem ser julgados provados depois de reapreciada a prova que indicam, condenando-se a arguida pelo crime de Difamação que lhe vinha imputado, entendendo o MP que a arguida deve ser condenada em pena de multa.

Conforme refere expressamente, o MP recorrente vem, subsidiariamente, arguir a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação, ao deixar de apreciar criticamente a prova produzida.

São, pois, estas as questões suscitadas por ambos os recorrentes, que se impõe decidir, sem prejuízo de ficarem prejudicadas pela questão prévia que enunciamos e apreciamos agora.

2. Vejamos.
Conforme descrito nos pontos 1 a 4 da factualidade provada (FP), com base nos artigos 1º a 4º da acusação deduzida pelo MP, a arguida deu entrada em 24.01.2017 no Processo n.º 2509/15.2T8FAR que correu termos no Juízo Central Cível de Faro, a um requerimento denominado “Reclamação”, em que o ofendido e assistente, BB, foi mandatário judicial do ex marido da arguida, JJ, com o teor transcrito no ponto 3 da FP, requerimento aquele acompanhado de um escrito dirigido ao Ex.mo Sr Procurador do MP, onde diz denunciar os crimes praticados pelo ora assistente, BB, enumerados no ponto 4 da FP que reproduzem o teor da “Reclamação” aludida, mencionando-se igualmente no ponto 4 da FP que o escrito aí parcialmente reproduzido deu origem ao processo nº ---/17.7T9FAR que foi remetido ao DIAP de Loulé em 10.03.2017.

2.1. Relativamente ao descrito no ponto.3 da FP, refere o tribunal recorrido a fls 328 dos autos, em sede qualificação jurídica dos autos, que “…a referência ao assistente/demandante civil como "advogado habilidoso e esperto" pode ser (e é) deselegante, despropositada, despicienda mas, por si só, não reveste a valoração necessária para corporizar o sobredito tipo de crime [Difamação agravada] sem olvidar o contexto em que a mesma foi redigida e as demais circunstâncias do caso, isto é, após a arguida ter perdido uma acção cível em que era réu o seu ex-marido e que estava representado em juízo pelo aqui assistente.”.

Nenhum dos recorrentes põe em causa o entendimento do tribunal aqui expresso, nem nós vemos razão para o fazer, pois entendemos igualmente que a referência ao assistente/demandante civil como "advogado habilidoso e esperto" não é ofensiva da honra ou consideração do assistente no contexto em que teve lugar aquela mesma referência.

2.2. Ainda em sede de qualificação jurídico-penal dos factos (cf fls 328 a 330, dos autos), o tribunal a quo considera que os termos em que a arguida imputa ao assistente a prática de crimes na declaração de denúncia dirigida a magistrado do MP, tal como referido e transcrito nos pontos 3 e 4 da FP, não assume relevância criminal nos presentes autos e em nosso ver igualmente com razão, por duas ordens de razões.

2.2.1. Em primeiro lugar, porque o escrito parcialmente reproduzido no ponto 4 da FP se traduz na apresentação de queixa-crime contra o ora assistente à autoridade competente, com intenção de que se instaure procedimento criminal contra o assistente, pois afirma ali claramente que “vem denunciar a V. Exa os seguintes crimes do seu conhecimento praticados por BB:

- Falsas declarações feitas às Finanças, C. Registo Predial de Loulé e
Tribunal de Loulé e Faro
- fraude fiscal e registral
- evasão fiscal
- calúnia
- manipulação de documentos
- manipulação de testemunhas
- roubo de património

Deste modo, a utilização das expressões em causa por parte da arguida inserem-se no exercício do direito de queixa e denúncia - se não mesmo do cumprimento do dever cívico de denunciar a prática de crimes -, pelo que a arguida apenas será punida se agir com a consciência da falsidade da imputação e sê-lo-á nos termos do art. 365º do C.Penal, incriminação que protege “…a honra e a liberdade da pessoa visada e, reflexamente, a realização da justiça [pois] o argumento sistemático da inserção num capítulo de crimes contra a realização da justiça não é decisivo, antes o sendo a consideração substantiva da impunidade da auto-denúncia” – Cf. P. Albuquerque, Comentário do C. Penal, 3ª ed., 2018, p. 1137. Também Costa Andrade entende que “… no direito português vigente tudo concorre a favor da interpretação que erige os interesses individuais em bem jurídico típico, reservando aos valores da realização da justiça (eficácia, autoridade, legitimação) uma tutela reflexa ou complementar. Resumidamente, uma teoria monista: um só bem jurídico típico e um bem jurídico individual e disponível”- Comentário Conimbricense do C. Penal, Tomo III, p. 527.

Ou seja, o art. 365º do C. Penal, ao prever especificamente a conduta do agente que, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime com intenção de que contra ela se instaure procedimento, lesando desse modo particular a honra da pessoa visada, faz depender a punição da consciência da falsidade da imputação, pelo que o mesmo art. 365º, delimitando positivamente o conteúdo de ilícito da conduta objetiva que descreve, reduz correspondentemente o âmbito de incidência do art. 180º do C. Penal, cuja aplicação fica excluída naqueles casos, dadas as especiais preocupações de política criminal que subjazem à configuração do tipo penal de Denúncia caluniosa., as quais justificam que se limite a punição da denúncia de crimes (grosso modo) aos casos de consciência de falsidade da imputação.

Isto é, da relação entre as normas dos artigos 365º e 180º, do C. Penal, resulta a exclusão da aplicação do art. 180º do C. Penal sempre que esteja em causa a conduta objetiva descrita no art. 365º, resolvendo-se ao nível da relação entre normas a questão de ilicitude que sempre teria que resolver-se pela consideração do “exercício de um direito” enquanto causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31º nº2 b) do C.Penal.

Com efeito, como refere, por todos, Costa Andrade, ob. e vol. cit., pp. 519-20, “A Denúncia caluniosa configura uma incriminação particularmente “irrequieta”. O seu regime (…) vai obedecendo ao equilíbrio historicamente contingente, instável e mutável, entre as exigências de diferentes constelações de valores. (…) Erigida, por exemplo, a realização da justiça em bem jurídico típico, então o propósito de uma “manutenção de uma justiça eficaz, postulado essencial do Estado de Direito…há de reivindicar a maximização do universo dos comportamentos puníveis. Só que uma justiça eficaz reclama a participação ativa de todos, devendo por isso estimular-se os cidadãos a dar notícia dos crimes de que tenham conhecimento. E a fazê-lo sem o risco de “estarem permanentemente com um pé na prisão”, responsabilizados por Denúncia caluniosa”.

Daí que entendamos encontrar-se excluída a punição, nos termos art. 180º do C.Penal, do agente que, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime com intenção de que contra ela se instaure procedimento, sob pena de se deixar entrar pela janela o que se quis fazer sair pela porta ao limitar a punição daquelas condutas aos casos de consciência da falsidade da imputação.

2.3. Sendo assim, como julgamos ser, a factualidade descrita nos pontos 3 e 4 da FP não preenche sequer os elementos objetivos do crime de difamação agravado, previsto e punível pelos artigos 180.°, n. 1, 184.°, 188.°, nº 1, alínea a), com referência ao 132.°, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, que lhe vinha imputado na acusação, pelo que mesmo a provar-se o ponto único da factualidade provada, impugnado pelos recorrentes, sempre se manteria a absolvição da arguida.

Deste modo, a impugnação da decisão do tribunal a quo que julgou não provado o facto único respetivo é irrelevante e, nessa medida, inadmissível.

Na verdade, como diz Damião da Cunha, [1] “… o ponto de facto deve ter correspondência num «ponto» do dispositivo da sentença (nas questões que nela estão contidas). Pelo que (…) o «ponto de facto» que é impugnado (por ser considerado incorretamente decidido) é aquele que, se tivesse sido corretamente decidido (na ótica do recorrente), teria conduzido à alteração da decisão (absolutória ou condenatória) ou à alteração da medida da pena.”.

Assim, uma vez que a decisão de absolvição em nada seria alterada caso viesse a modificar-se a decisão proferida em matéria de facto na sequência da impugnação deduzida pelos recorrentes nos termos do art. 412º nº 3 CPP, a presente impugnação em matéria de facto é irrelevante e, portanto, inútil, pelo que não cabe conhecer da mesma.

Fica igualmente prejudicado o conhecimento da nulidade de sentença arguida pelo MP, na medida em que a arguida sempre seria absolvida pelas razões substantivas expostas.

2.4. Por último, o MP não imputou à arguida na acusação que esta tivesse feito a denúncia de crimes descrita no ponto 4 da FP com consciência da falsidade da imputação, nem tal factualidade resultou indiciada no decurso da audiência de julgamento, pelo que não se coloca sequer a hipótese de condenação da arguida pela prática do crime de Denúncia caluniosa p. e p. pelo art6. 365º do C.Penal, sendo certo que sempre a condenação nesses termos dependeria de a arguida, o MP e o assistente estarem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, dado estarmos perante alteração substancial de factos uma vez que os novos factos, implicariam a condenação por crime diverso, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 1º al. f) e 359º nºs 1 e 3, do CPP.

2.5. Improcedem, pois, ambos os recursos mantendo-se a sentença recorrida, ainda que com fundamentação diversa.

III. DISPOSITIVO

Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos interpostos pelo MP e pelo Assistente, mantendo integralmente a sentença absolutória recorrida.

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC – cfr art. 515º do CPP e art. 8º nº5 do RCP e Tabela III a que se refere aquele preceito.

Évora, 26 de março de 2019

(Processado em computador. Revisto pelo relator)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete)
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[1] José Manuel Damião Da Cunha, “ O Caso Julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, p. 529.