Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
335/18.6T9SSB.E2
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: COMUNICAÇÃO DA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VAROLAÇÃO DOS RELATÓRIOS POLICIAIS E DOS AUTOS DE INTERCEÇÕES
LENOCÍNIO SIMPLES
BEM JURÍDICO
CRIME CONTINUADO E CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Se nas situações em que o tribunal comunica uma alteração não substancial de factos, nos termos previstos no artigo 358º, nº 1 do CPP, tal comunicação não deverá ser acompanhada da indicação das provas em que se sustenta a alteração, relegando-se tal indicação para a sua sede própria, ou seja, para a sentença, menos ainda tal indicação deverá ocorrer quando o que se comunica é apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal.
II - Pressupondo a alteração da qualificação jurídica uma manutenção absoluta dos factos – sendo certo que só se falará de uma alteração de qualificação jurídica quando os factos imputados persistam – àquela será alheia qualquer tipo de atividade probatória, quer como pressuposto da comunicação a que alude o artigo 358º. nº 3 do CPP, quer em consequência da mesma, ou seja, no âmbito da defesa que o arguido venha a apresentar.

III - Não sendo as escutas ilegais, nem as vigilâncias inexistentes, e não tendo os autos e relatórios respetivos sido valorados na sentença enquanto meios de transmissão de avaliações, perceções ou qualquer tipo de registo pessoal dos seus autores, visando apenas atestar a realização das referidas diligências e abrindo caminho para a análise dos seus resultados, não estamos perante a valoração de provas proibidas e, consequentemente nulas.

IV - A exigência da exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui para preenchimento do tipo do nº 1 do artigo 169º do CP foi expressa e intencionalmente retirada pelo legislador na alteração introduzida em tal preceito pela Lei n.º 59/2007 de 04/09. Atualmente, não só tal exigência não consta do tipo de lenocínio simples previsto na citada norma penal, como se encontra prevista na alínea d) do seu nº 2, para onde foi deslocada, pelo que a interpretação restritiva de tal preceito, a mais de não consentida pelos princípios gerais que deverão reger a interpretação da lei – que sempre deverá encontrar na sua letra um mínimo de correspondência verbal, nos termos previstos no artigo 9º, nº2 do CC – esvaziaria totalmente de conteúdo a previsão da citada agravação.

V - Com a incriminação do lenocínio prevista no artigo 169º, nº 1 do CP o legislador pretendeu tutelar antecipadamente a exploração de pessoas que exercem a prostituição, censurando-se a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da tal atividade e inexistindo uma individualização precisa de um bem jurídico determinado, pelo que a exclusão da aplicação da figura do crime continuado operada pelo nº 3 do artigo 30º do CP só encontra aplicação nas situações de condenação pelo n.º 2 do art.º169º do CP, pois que apenas em tais situações se atenta contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal, concretamente contra a autodeterminação sexual.

VI - Não se tendo revelado possível determinar o número de crimes cometidos no período de tempo em causa nos autos, mas tendo-se apurado a existência, em tal período, de atos reiterados, sucessivos, homogéneos, ocorridos num mesmo contexto situacional e em proximidade temporal, aos quais presidiu uma unidade resolutiva e abarcando o dolo dos agentes, desde o início da sua atuação, tal pluralidade de atos, praticaram os arguidos um único crime de lenocínio p. e p. no artigo 169º, nº 1 do CP em trato sucessivo

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º335/18.6T9SSB, foram os arguidos AA, filho de BB e de CC, natural de …, …, nascido em …1960, divorciado, comerciante, domicílio: Rua …, Lote …, … e DD, filha de EE e de FF, natural do …, nascida em …1967, divorciada, designer de interiores, domicílio: Rua … , Lote …, …, condenados, por sentença proferida em 04.03.2022, como autores de um crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em trato sucessivo.

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Inconformados com tal condenação, interpuseram os identificados arguidos recurso de tal sentença, tendo invocado, entre o mais, a sua nulidade por preterição do cumprimento do regime previsto no artigo 358º do CP. Tal recurso sido julgado procedente, nessa parte, por acórdão desta Relação proferido em 11.10.2022, que determinou a declaração de nulidade da sentença e o consequente reenvio dos autos à primeira instância para sanação de tal nulidade.

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Em cumprimento do acórdão desta Relação, o tribunal “a quo” procedeu à reabertura da audiência na qual realizou a comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, conforme consta da ata da respetiva sessão datada de dia 07.02.2023.

Na sequência da aludida comunicação, requereram os arguidos recorrentes prazo para preparação da defesa, prazo que lhes foi concedido nos termos do artigo 358º nº 1 do CPP. No decurso de tal prazo os mesmos apresentaram o requerimento datado de 15.02.2023 no qual solicitaram que o tribunal indicasse com precisão as provas produzidas que, em seu entender, poderiam sustentar a alteração comunicada. No mesmo requerimento, cautelarmente, indicaram ainda duas testemunhas, cuja inquirição requereram.

Tal requerimento veio a ser globalmente indeferido por despacho proferido em 27.02.2023, relativamente ao qual os arguidos recorrentes reagiram de duas formas: arguindo a respetiva nulidade, o que fizeram através do requerimento apresentado em 06.03.2023 e através do recurso apresentado em 24.03.2023.

O requerimento de arguição de nulidade do aludido despacho veio a ser conhecido por despacho datado de 21.04.2023 – proferido no decurso da última sessão de julgamento – que decidiu pela sua improcedência, tendo deste último despacho sido interposto novo recurso através do requerimento apresentado em 17.05.2023.

Em 21.04.2023 foi proferida nova sentença que condenou os arguidos recorrentes nos seguintes termos:

- AA, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, em coautoria material, na forma consumada e em trato sucessivo, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres/regras de conduta:

i) Obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 5.000,00 (cinco mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, quantia de € 2.000,00 (dois mil euros).

ii) Proibição de frequentar o bar … ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição).

- DD, pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, em coautoria material, na forma consumada e em trato sucessivo, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres / regras de conduta:

i) Obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 3.000,00 (três mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros).

ii) Proibição de frequentar o bar … ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição).

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Inconformados com tal decisão, vieram tais arguidos interpor recurso da mesma através do requerimento apresentado em 18.05.2023, recurso que foi admitido por despacho proferido em 12.06.2023.

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Os dois recursos interlocutórios – concretamente o recurso interposto em 24.03.2023 relativamente ao despacho proferido em 27.02.2023 (que indeferiu a concretização das provas solicitada pelos arguidos e que não admitiu o rol de testemunhas por aqueles apresentado) e o recurso interposto em 17.05.2023 relativamente ao despacho proferido em 21.04.2023 (que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 27.02.2023) – foram admitidos, respetivamente, por despachos proferidos em 29.03.2023 e 12.06.2023, para subirem e serem julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que viesse a por termo à causa.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o objeto da nossa análise integra, pois, a apreciação dos três recursos: os dois recursos interlocutórios e o recurso da decisão final.

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No recurso interlocutório interposto em 24.03.2023 relativamente ao despacho proferido em 27.02.2023, concluíram os recorrentes da seguinte forma:

“1. Através de Recurso apresentado pelos Arguidos, ora Recorrentes, em 04-04-2022, apresentado junto deste Colendo Tribunal, os mesmos invocaram, ao abrigo do artigo 379.º, n.º 1, al. b) - por (clara) violação do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, ambos do C.P.P. - a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo em 07-03-2022, atenta a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica em sede de leitura da sentença e a inerente decisão surpresa.

2. Isto porque, muito sucintamente, contrariamente à Acusação deduzida pelo Ministério Público - através da qual se considerou que os Arguidos haviam incorrido, cada um deles, em co-autoria material e na forma consumada e continuada, na prática de um crime de lenocínio - entendeu o Tribunal a quo afastar a pretendida qualificação de crime continuado, considerando, ao invés que tal instituto não é aplicável por conseguinte, que estamos perante um crime de trato sucessivo condenando, assim, os Arguidos pela prática de um único crime de lenocínio.

3. Motivo pelo qual, este Tribunal Superior, através de Acórdão datado de 13-10-2023, declarou nula a sentença recorrida e ordenou fosse a mesma substituída por outra que, depois de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P., decidisse em conformidade.

4. Nesta sequência, em 07-02-2023, foi reaberta a audiência e, apesar de ter sido comunicada a alteração da qualificação jurídica, e de ter sido conferido o prazo de 10 dias para preparação da defesa, não foi dado cabal cumprimento às normas acima invocadas, pois que, o Tribunal a quo, se demitiu de indicar ou concretizar os meios de prova de onde resultava, in casu, a alteração comunicada, para efeitos do efectivo exercício direito de defesa dos Arguidos.

5. Motivo pelo qual, os Arguidos, em 15-02-2023, requereram que o Tribunal a quo, por um lado, desse cabal cumprimento àqueles incisos legais, sob pena de nulidade, e, à cautela - por desconhecerem em concreto, por falta de indicação das concretas provas que foram essenciais para o Tribunal para a aludida comunicação da alteração - indicaram duas testemunhas que pudessem depor sobre toda a matéria da acusação, isto é, para contraprova (defesa) da prova que, na esteira do requerido, o Tribunal a quo viesse a concretizar e que impôs a referida alteração.

6. Sucede que, para manifesta perplexidade dos Arguidos, através de Despacho proferido em 27-02-2023 (ora Recorrido), o Tribunal a quo não só entendeu que não havia lugar a qualquer indicação ou concretização dos meios de prova que sustentaram a alteração da qualificação jurídica, como indeferiu o pedido de inquirição das testemunhas indicadas pelos Arguidos (!).

7. É, pois, deste Despacho de que os Arguidos recorrem, pois que o mesmo padece de gritante nulidade ou, no limite, irregularidade (já devidamente arguidas junto do Tribunal de 1.ª Instância), por preterição do cumprimento do Acórdão proferido por este Tribunal Superior e por violação dos preceitos legalmente estipulados, nomeadamente, dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do C.P.P. (acrescente-se que, na presente data ainda não recaiu Despacho sobre o Requerimento de Arguição de Nulidade apresentado pelos Recorrentes em 06-03-2023).

8. Conforme já adiantado, através do Acórdão proferido em 13-10-2022, foi declarada nula a sentença recorrida, e ordenado fosse dado cumprimento ao estatuído no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do Código de Processo Penal.

9. No que ao primeiro segmento concerne, contraiando a tese erigida pelo Tribunal a quo, o n.º 3 do art. 358.º, do Código Processo Penal, fixou para a alteração da dimensão normativa dos factos descritos na acusação ou na pronúncia regime idêntico ao da alteração não substancial prevista na lei, pelo que, salvo o devido respeito, é até risível que o Tribunal se tenha demitido de indicar e concretizar as provas que sustentaram a alteração por se tratar de uma alteração da qualificação jurídica e não uma alteração (substancial ou não substancial de factos) quando a norma expressamente refere que se aplica o mesmíssimo regime.

10. É entendimento pacífico que cabe ao Tribunal proceder à comunicação da alteração mas também fazer a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta, in casu, a alteração da qualificação jurídica que pretende operar.

11. A posição adoptada pelo Tribunal a quo, vertida no Despacho Recorrido, causou manifesta perplexidade aos Arguidos (e, com certeza, também a este Tribunal causará), padecendo, inclusivamente, de uma falta de coerência e até lealdade gritantes, na medida em que, pese embora se tenha o Tribunal a quo recusado a indicar e concretizar os meios de prova de onde resultava, in casu, a alteração da qualificação jurídica que pretendeu operar, veio, depois, indeferir o requerimento de prova com base numa alegada falta de fundamentação, a qual pasme-se - sempre estaria dependente daquilo que lhe foi solicitado e que, incompreensivelmente, o mesmo se recusou fazer!

12. Primeiramente, independentemente de os factos se terem mantido inalterados, o certo é que a alteração da qualificação jurídica operada e não comunicada, tal como este Tribunal Superior observou, fez com que o Tribunal a quo fizesse uma série de considerações factuais em sede de medida concreta da pena, agravando-a severamente em prejuízo dos Arguidos, ora Recorrentes, atentas as manifestas diferenças entre a figura do trato sucessivo e do crime continuado, com uma evidente agravação da moldura aplicável, pois a figura do trato sucessivo impõe um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.

13. Aliás, este Tribunal da Relação de Évora inclusivamente detetou a factualidade inserta pelo Tribunal a quo que permitiu agravar a qualificação jurídica, sem dar hipótese de defesa aos Arguidos, ora Recorrentes e, consequentemente, agravar severamente as penas dos Arguidos.

14. Ora, considerando que, conforme este Tribunal Superior atestou, tal alteração teria, necessariamente, reflexos ao nível da medida concreta da pena, os Arguidos, ora Recorrentes, ao abrigo dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, requereram prazo para defesa e requereram – embora desconhecendo os concretos meios de prova onde resultava a comunicada alteração - a inquirição de duas testemunhas, requerimento esse que veio a ser indeferido pelo Tribunal a quo através do Despacho ora Recorrido, sustentando tal indeferimento no invocado artigo 340.º do Código de Processo Penal, o qual, salvo melhor entendimento, não tem, neste caso, qualquer aplicação.

15. Desde logo, porquanto, face aos contornos e circunstâncias da presente comunicação, nomeadamente, o facto de a mesma e, consequentemente, a concessão de prazo para defesa dos Arguidos, terem sido ordenadas por um Tribunal Superior; depois, porque os critérios estabelecidos no artigo 340.º do Código de Processo Penal, nomeadamente, a obrigatoriedade de fundamentação da prova requerida, tomam relevância, isso sim, no decurso da fase de audiência de julgamento, pois que, nessa fase, o Arguido, já é conhecedor da factualidade e dos meios de prova oferecidos na Acusação pelo menos desde o momento em que aquela é proferida, motivo pelo qual se justifica que, naquela fase, seja absolutamente necessário fundamentar qualquer Requerimento de Prova. O que não aconteceu no momento em que os Recorrentes apresentaram o seu Requerimento de Prova, pelo facto de o mesmo não consubstanciar um requerimento para produção de prova suplementar na medida em que os mesmos só agora tomaram conhecimento da factualidade em que se baseou a alteração -, este sim, sujeito aos pressupostos estabelecidos no já aludido inciso legal.

16. Aliás, o artigo 358.º, não estabelece qualquer critério subjacente ao Requerimento de Prova, pelo que, salvo melhor entendimento, não podia o Tribunal a quo, fazer aplicar um critério que o próprio legislador não aplicou.

17. Recorrendo a critérios de analogia e lógica, no limite, tal requerimento de prova estaria sujeito aos critérios estabelecidos para a Contestação e Rol de Testemunhas, insertos no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal - os quais foram absolutamente cumpridos - por terem os Arguidos, ora Recorrentes, apenas tomado conhecimento, pela primeira vez, da alteração da qualificação jurídica e dos factos que a sustentaram, na audiência realizada no dia 07-02-2023.

18. Mas ainda que assim não se entendesse, isto é, ainda que se entendesse que, ao invés, o Requerimento de Prova estaria sujeito ao preenchimento dos requisitos do artigo 340.º, do C.P.P. o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sem conceder sempre se dirá que o Despacho Recorrido padece de falta de fundamentação, na medida em que o Tribunal se demitiu de, ao abrigo dos n.ºs 3 e 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, justificar tal indeferimento, em clara violação do n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal, constituindo uma irregularidade à luz do artigo 118.º, nº 2 do mesmo diploma legal, a qual expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

19. Acresce que, salvo melhor entendimento, sempre estaria o Tribunal a quo sujeito ao dever de cooperação, consagrado no n.º 1 do artigo 7.º do Código de Processo Civil, impondo aquele que o tribunal, antes de decidir, solicitasse aos Arguidos os necessários esclarecimentos, só depois podendo pronunciar-se sobre eles - o que também não fez.

20. Em suma, o Tribunal a quo, através do despacho proferido, violou o direito de defesa dos arguidos, o qual deve contemplar todas as expectativas admissíveis à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem de lhes ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório, pois que, na verdade, o Tribunal está vinculado ao princípio da verdade material e deve desenvolver todas as diligências possíveis, em busca da mesma, o que, manifestamente, não foi o caso.

21. Face ao exposto, ao indeferir o requerimento de prova dos Arguidos, o Tribunal não só violou o comando deste Tribunal Superior, como violou as garantias de defesa dos arguidos, expressamente consignadas no artigo 32.º da Constituição da República, e, bem assim, o seu direito ao contraditório, expressamente instituído nos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

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A tal recurso respondeu o Ministério Público, tendo concluído da seguinte forma:

“1. A presente resposta é atinente ao recurso interposto pelos arguidos/recorrentes AA e DD, no que concerne à douta decisão proferida no dia 27-02-2023, em virtude de não terem sido indicados os meios de prova que sustentavam a alteração da qualificação jurídica, bem como, pelo facto de não ter sido deferida a inquirição de novas testemunhas.

2. Entendemos que não assiste razão aos arguidos;

3. Desde logo, porque a sentença proferida e que foi alvo de recurso já havia sido lavrada tendo em consideração que se estava perante um crime praticado em trato sucessivo, fazendo uma análise dos meios de prova produzidos, logo, os arguidos sabiam perfeitamente que meios de prova eram esses;

4. Também não existe qualquer irregularidade quando o Tribunal, no âmbito da aplicação do Artº. 340º do Código de Processo Penal indeferiu a inquirição de mais duas testemunhas indicadas pelos arguidos;

5. De facto, o Tribunal deve fazer a ponderação da necessidade de tais meios de prova, o que fez, logo, estão cumpridos os pressupostos para o respectivo indeferimento.

6. Pelo que, não assiste razão aos arguidos e, como tal, deve o recurso a que agora se responde improceder, mantendo-se a decisão nos seus exactos termos.

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No recurso interlocutório interposto em 17.05.2023 relativamente ao despacho proferido em 21.04.2023, concluíram os recorrentes da seguinte forma:

“1. Em virtude do Recurso apresentado pelos Arguidos a 04-04-2022, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora datado de 13-10-2022, o qual declarou nula a sentença recorrida e ordenou que a mesma fosse substituída por outra depois de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P..

2. Nesta sequência, em 07-02-2023, foi reaberta a audiência e, apesar de ter sido comunicada a alteração da qualificação jurídica e de ter sido conferido o prazo de 10 dias para preparação da defesa, não foi dado cabal cumprimento às normas acima invocadas, porquanto o Tribunal a quo demitiu-se de indicar ou concretizar os meios de prova de onde resultava, in casu, a alteração comunicada, para efeitos do efectivo exercício direito de defesa dos Arguidos, expressamente conferido pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.

3. Por esse motivo, os Arguidos requereram, em 15-02-2023, que o Tribunal a quo, por um lado, desse cabal cumprimento àqueles incisos legais, sob pena de nulidade, e, à cautela indicaram duas testemunhas que pudessem depor sobre toda a matéria da acusação, isto é, para contraprova (defesa) da prova que, na esteira do requerido, o Tribunal a quo viesse a concretizar e que impôs a referida alteração.

4. Sucede que, para manifesta perplexidade dos Arguidos, através de Despacho proferido em em 27-02-2023, o Tribunal a quo não só entendeu que não havia lugar a qualquer indicação ou concretização dos meios de prova que sustentaram a alteração da qualificação jurídica, como indeferiu o pedido de inquirição das testemunhas indicadas pelos Arguidos (!).

5. Deste despacho foi apresentado recurso em 24-03-2023, na medida em que entendem os Recorrentes que o mesmo padece de gritante nulidade ou, no limite irregularidade, as quais haviam também sido devidamente invocadas junto do Tribunal de 1.ª Instância (em requerimento datado de 06-03-023) por preterição do cumprimento do Acórdão proferido por este Tribunal Superior e por violação dos preceitos legalmente estipulados, nomeadamente, dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do C.P.P..

6. Só em 21-04-2023, por despacho lavrado em acta que antecedeu as alegações finais e imediata leitura de sentença (despacho recorrido constante da acta de audiência de julgamento datada de 21-04-2023), o Tribunal a quo pronunciou-se, finalmente, sobre o Requerimento de Arguição de Nulidade (ou, no limite irregularidade) apresentado pelos Arguidos em 06-03-2023, dizendo em súmula que, no que concerne às duas questões suscitadas anteriormente (alteração e inquirição de testemunhas), o tribunal nada mais tinha a acrescentar; e quanto ao despacho de 27-02-2023 entende o Tribunal que não há irregularidade ou nulidade que cumpra sanar.

7. Ora, e não obstante inexista, nesta sede recursiva, qualquer alteração da fundamentação já esgrimida anteriormente (no recurso interposto a 24-03-2023), os Recorrentes recorrem deste despacho exarado em ata de audiência de julgamento datada de 21-04-2023 com os seguintes fundamentos (os quais, necessariamente, incidem sobre o teor do despacho datado de 27-02-2023 porquanto o despacho recorrido entende, relativamente àquele, nada mais ter a acrescentar e que nenhuma nulidade/irregularidade foi cometida):

8. O Despacho de que ora se recorre ao consignar, relativamente ao despacho de 27-02-2023, nada mais ter a acrescentar e que nenhuma nulidade/irregularidade foi cometida representa uma insubmissão por parte do Tribunal de primeira instância em face do que foi decidido, e bem, por este Colendo Tribunal da Relação de Évora, representando, ademais, uma total falta de imparcialidade do julgador que, como é bom de ver, tem a sua decisão já tomada, sendo que a comunicação da alteração e, bem assim, a reabertura da audiência mais não foi do que, na verdade, cumprir um desiderato por imposição superior para aplicar a mesmíssima decisão anteriormente determinada.

9. Não há, pois, nenhum efectivo direito de defesa, aliás, nem os Arguidos, ora Recorrentes, tinham qualquer veleidade ou sequer expectativa nesse tocante, cabendo agora a este Tribunal Superior corrigir, uma vez mais, aquela que é uma manifesta denegação do exercício do direito de defesa dos Arguidos, a par de outros tantos atropelos legais de resto já evidenciados.

10. Dispõe o n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, que o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e dispõe o n.º 1 do referido artigo, por sua vez, que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente

11. Assim, não se pode senão concluir que, sempre que haja alteração da qualificação jurídica dos factos, há que dar oportunidade ao arguido para salvaguardar os seus direitos de defesa e lhe ser proporcionado o exercício do direito ao contraditório.

12. O certo é que o Tribunal a quo, ao referir no despacho recorrido que, quanto ao despacho de 27-02-2023, nenhuma irregularidade ou nulidade cumpre sanar e que, no que concerne às duas questões suscitadas em 06-03-2023 (alteração e inquirição de testemunhas), nada mais tinha a acrescentar, fazendo-o em claro derespeito pelas normas acima transcritas, não só manteve o indeferimento do pedido de indicação e concretização dos elementos de prova que sustentaram a comunicada alteração, como, violando gritantemente o comando emanado deste Tribunal, manteve o indeferimento do pedido de inquirição de duas testemunhas.

13. Primeiramente, no que concerne ao pedido de indicação e concretização dos elementos de prova que sustentaram alteração da qualificação jurídica, entendeu o Tribunal a quo que não lhe competia a prova produz-se relativamente a factos e estes mantêm-se inalterados acrescentando ainda caso concreto, por se tratar de uma alteração da qualificação jurídica e não de uma alteração

14. Porém, é entendimento pacífico que cabe ao Tribunal proceder à comunicação da alteração mas também fazer a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta, in casu, a alteração da qualificação jurídica que pretende operar.

15. Aliás, só esta concretização permitiria aos Arguidos identificar o objeto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo outros que, em seu entender, pudessem contrariar a alteração comunicada.

16. Com efeito, respigando a comunicação operada nos termos em que o fez, constata-se que o Tribunal a quo foi genérico, remetendo indistintamente para toda a prova produzida e que consta dos autos, o que, mais do que o vício de nulidade que tal deficiente comunicação configura, é fazer preterir na sua plenitude o direito de defesa dos Arguidos.

17. Tendo sido a iniciativa desta alteração da qualificação jurídica do Tribunal a quo, na comunicação que fez aos Arguidos, aquele teria de abrir todo o jogo, ser claro e, consequentemente, dar a conhecer os meios de prova em que fundou a alteração comunicada, pois caso contrário não seria atendida na sentença pelo que não se justificaria tal comunicação.

18. Isto porque foram produzidas durante a audiência inúmeras e variadas provas e, naturalmente, só com uma indicação concreta por parte do Tribunal a quo de quais poderiam permitir um entendimento diverso, estariam os Arguidos habilitados a exercer o seu direito a uma defesa efectiva, sob pena deste exercício de defesa, não passar de uma mera formalidade.

19. Ainda para mais quando, na modesta perspectiva dos Arguidos, ora Recorrentes, era difícil, senão mesmo impossível, desde logo do ponto de vista da boa técnica jurídica e sobretudo considerando os respectivos pressupostos para a sua verificação, defender a existência da prática de crime em trato sucessivo, menos ainda no tipo de crime em apreço (lenocínio); porém, foi o Tribunal a quo que, através da comunicação operada, veio a entender que a prova produzida poderá resultar provada a prática de crime em trato sucessivo.

20. A questão é deveras simples: a falta de transparência e de rigor na comunicação da alteração operada, apenas e só ocorrida por determinação deste Tribunal Superior, teve para o Tribunal a quo o único propósito de cumprir calendário, tratando-se de uma mera formalidade, e não de um efectivo direito de defesa como se pretendia.

21. Face à ausência de indicação dos meios de prova, seria sempre impossível aos Arguidos, ora Recorrentes, fundamentarem melhor o seu requerimento de prova, motivo pelo qual, os mesmos, dentro do direito que lhe é conferido pela lei, e previamente imposto pelo Acórdão de 13-10-2022, indicaram duas testemunhas, e requereram a concessão de novo prazo para, após a devida indicação ou concretização dos meios de prova de onde resultava a comunicada alteração da qualificação jurídica, aquilatarem e comunicarem a este Tribunal da pertinência da prova indicada.

22. Primeiramente, independentemente de os factos se terem mantido inalterados, o certo é que a alteração da qualificação jurídica operada e não comunicada, tal como este Tribunal observou, fez com que o Tribunal a quo fizesse uma série de considerações factuais em sede de medida concreta da pena, agravando-a severamente em prejuízo dos Arguidos, ora Recorrentes, atentas as manifestas diferenças entre a figura do trato sucessivo e do crime continuado, com uma evidente agravação da moldura aplicável, pois a figura do trato sucessivo impõe um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.

23. Ora, o Acórdão proferido por este TRE em 13-10-2022, que determinou a nulidade, revogou a sentença e impôs a comunicação da alteração com a possibilidade de prazo de defesa, pretendia que os Arguidos, ora Recorrentes, em querendo, pudessem defender-se destes considerandos factuais insertos em sede de dosiometria da pena, para os quais os Arguidos, ora Recorrentes, sempre teriam (ou deviam ter) o direito de poder defender-se, contestando, isto é, indicando prova para os poder contestar.

24. Foi tal factualidade acrescentada pelo Tribunal a quo na Sentença entretanto declarada nula, que não consta dos factos provados, mas em sede de motivação que permitiu, segundo considerou este Tribunal da Relação de Évora, que pudesse, ainda que mal, agravar a qualificação jurídica, sem dar hipótese de defesa aos Arguidos, ora Recorrentes.

25. Acresce ainda que o referido indeferimento do requerimento de prova dos Arguidos foi sustentado, ademais, no invocado artigo 340.º do Código de Processo Penal, o qual, salvo melhor entendimento, não tem, neste caso, qualquer aplicação.

26. Aliás, o Tribunal Superior expressamente ordenou que se reabrisse a audiência de julgamento, por forma a dar cumprimento ao n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, e, nessa medida, fosse produzida prova aquela que os Arguidos requereram pelo que, face ao comando deste Tribunal Superior, entendem os Arguidos, ora Recorrentes, que o Requerimento de prova não está sujeito aos requisitos do artigo 340.º do Código de Processo Penal, cuja aplicação se cinge aos Requerimentos de prova apresentados no decurso da fase da Audiência de Julgamento.

27. Ademais, através da referida comunicação da alteração da qualificação jurídica, os Arguidos tiveram conhecimento, pela primeira vez, de tal alteração/nova interpretação jurídica e, consequentemente, da motivação daquela, assente nos factos já transcritos, pelo que tal Requerimento de prova nunca poderia estar sujeito aos pressupostos do artigo 340.º do Código de Processo Penal, novamente, porque o mesmo regula a admissão de prova no decurso da fase de audiência de julgamento.

28. Contrariamente ao consignado pelo Tribunal a quo no Despacho Recorrido, o Requerimento de Prova apresentado pelos Arguidos não consubstancia um requerimento para produção de prova suplementar, este sim, sujeito aos pressupostos estabelecidos no já aludido inciso legal.

29. No limite, tal requerimento de prova estaria sujeito aos critérios estabelecidos para a Contestação e Rol de Testemunhas, insertos no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal - os quais foram absolutamente cumpridos - por terem os Arguidos, ora Recorrentes, apenas tomado conhecimento, pela primeira vez, da alteração da qualificação jurídica e dos factos que a sustentaram, na audiência realizada no dia 07-02-2023.

30. Refira-se, ademais, que é também risível e, inclusivamente, despida de sentido a alusão à falta de cumprimento do artigo 283.º, n.º 3, alínea e) do C.P.P., concernente à discriminação das testemunhas que só deporiam sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º do C.P.P., pois que, face à alteração da qualificação jurídica comunicada, bem se percebe que a indicação das testemunhas apresentadas não deporiam sobre aqueles aspectos, pois que tal natureza de depoimento não consubstanciaria qualquer contraprova da prova que impôs a comunicada alteração.

31. Pelo que, contrariamente ao consignado pelo Tribunal a quo, dúvidas não podem restar de que os Arguidos, ora Recorrentes, cumpriram escrupulosamente os requisitos ínsitos no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal.

32. Em suma, o Tribunal a quo, através do despacho proferido (referindo-se ao despacho de 2702-2023 e seus fundamentos), violou o direito de defesa dos arguidos, o qual deve contemplar todas as expectativas admissíveis à qualificação jurídica dos factos, cujo direito de a discutir e dela discordar, tem de lhes ser assegurado, através do exercício pleno do contraditório, pois que, na verdade, o Tribunal está vinculado ao princípio da verdade material e deve desenvolver todas as diligências possíveis, em busca da mesma, o que, manifestamente, não foi o caso.

33. Face ao exposto, o Tribunal a quo, por via do despacho recorrido, ao manter o indeferimento do requerimento de prova apresentado pelos Arguidos e ao entender que nenhuma nulidade/irregularidade cometeu no despacho de 27/02/2023, não só violou o comando deste Tribunal Superior, como violou as garantias de defesa dos arguidos, expressamente consignadas no artigo 32.º da Constituição da República, e, bem assim, o seu direito ao contraditório, expressamente instituído nos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.

34. Pelo que se requer a V. Exas. se dignem declarar nulo o Despacho recorrido, por ter omitido as diligências probatórias requeridas, e que se têm como necessárias para a descoberta da verdade e por violação do princípio do contraditório, ao abrigo dos artigos 358.º, n.º 1 e 3 e 120.º, n.º 2, al. d) do C.P.P., devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que defira o requerimento de inquirição de duas testemunhas apresentado pelos ora Recorrentes em 15-02-2023.”

*

A tal recurso respondeu o Ministério Público, concluído da seguinte forma:

“1. A presente resposta é atinente ao recurso interposto pelos arguidos/recorrentes AA e DD, no que concerne à douta decisão proferida no dia 21-04-2023, onde se decidiu nada mais haver a acrescentar em relação à decisão proferida no dia 27-02-2023, pugnando pela sua nulidade.

2. Entendemos que não assiste razão aos arguidos;

3. O tribunal analisou bem a situação e manteve a decisão anterior que, quanto a nós, já era a correcta, pelo que, inexiste qualquer nulidade;

4. Não tendo, portanto, coarctado o direito de defesa dos arguidos;

5. Pelo que, não assiste razão aos arguidos e, como tal, deve o recurso a que agora se responde improceder, mantendo-se a decisão nos seus exactos termos.

***

No recurso interposto da sentença, apresentaram os recorrentes, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. Para efeitos do disposto no art.º 412º n.º 5 do C.P.P., os Recorrentes pretendem ainda a apreciação de ambos os recursos interlocutórios apresentados, o primeiro em 04-04-2023 e o segundo em 17-05-2023, que se encontram intimamente relacionados com o presente, em concreto com a primeira questão suscitada no presente recurso.

2. O Tribunal Recorrido entendeu aderir, por decalque, à acusação, por um lado, alicerçando a sua convicção em elementos que não são prova e, como tal, proibidos de serem valorados (como sejam os relatórios intercalares de polícia e relatório final), em prova de ouvir dizer em relação ao principal investigador, e por outro lado, ignorando toda a prova produzida, mesmo a da acusação que de forma esmagadora arredou por completo a participação dos Arguidos Recorrentes nos factos imputados.

3. Este processo foi construído desde o seu início com o determinado fim visado – associar os Arguidos Recorrentes à participação dos factos de lenocínio, num processo de intenções, o qual partiu de um processo crime anterior contra os Recorrentes pelo qual estes foram condenados (ainda que tenham sido inicialmente absolvidos numa decisão corajosa de inconstitucionalidade material da norma que criminaliza o crime de lenocínio).

4. A decisão recorrida padece de graves vícios, não apenas de valoração de prova proibida, como de vícios de revista alargada, concretamente, manifesto erro notório na apreciação da prova.

5. De igual forma o Tribunal a quo aplica mal o Direito aos factos provados, pois tal como se explicou em sede de alegações finais, ainda que a presente factualidade lograsse ser toda provada, ainda assim, nunca os Recorrentes podiam ser condenados pelo crime de lenocínio.

6. Os Arguidos Recorrentes foram acusados pelo Mº.Pº. imputando-lhes os factos descritos na acusação deduzida, considerando que os mesmos incorreram, cada um deles, em co-autoria material e na forma consumada e continuada, na prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelos artigos 169.º, n.º 1 e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

7. A sentença recorrida, afastando a pretendida qualificação de crime continuado, considerou que no caso concreto, “tal instituto não é aplicável”, entendendo, “por conseguinte, que estamos perante um crime de trato sucessivo”, e “assim, o Tribunal condena os arguidos pela prática de um único crime de lenocínio”.

8. Com efeito, no crime continuado, o elemento fundamental é a menor culpa do agente fundada numa menor exigibilidade.

9. Tal alteração da qualificação jurídica imporia sempre, atentas as manifestas diferenças entre a figura do trato sucessivo e do crime continuado, uma evidente agravação da moldura aplicável, pois, em regra, a figura trato sucessivo impõe um progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.

10. Ora, estando-se perante uma alteração de qualificação jurídica, impunha-se a necessidade de comunicação nos termos do artº. 358º do C.P.P..

11. Assim, cumpria ao Tribunal recorrido o dever de, sob pena de nulidade, comunicar a alteração aos arguidos e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, o que de todo não fez!

12. Assim, desde já se requer a V. Exas. a declaração de nulidade da sentença recorrida nos termos do artº. 379º nº 1 al. b) do C.P.P., por violação do disposto nos artsº. 358º nº1 e 3 do C.P.P., atenta a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica e a inerente decisão supressa.

13. A manifesta falta de prova admissível por parte do Tribunal Recorrido foi tão avassaladora que em desespero e em socorro da tese do Mº.Pº. que pretendia a todo o custo condenar os Arguidos, teve necessidade de valorar prova que está vedada ao Tribunal.

14. Em sede de motivação da decisão de facto, após um breve excurso em que o Tribunal a quo se refere a prova pericial inexistente nestes autos e que, como tal, só por lapso se pode compreender, consigna-se o seguinte:

“Feitas estas considerações, cumpre referir que o tribunal formou a sua convicção através da análise dos seguintes meios de prova:

Prova Documental

- Relatório de serviço datado de 12.06.2018, fls. 4, onde se refere que, no dia 12.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna …;

- Relatório de serviço datado de 11.06.2018, fls. 9 e 10, onde se refere que, no dia 10.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna …;

(…)

- Relatório intercalar datado de 15.10.2018, fls. 120 a 123;

- Relatório intercalar datado de 24.10.2018, fls. 135 a 142;

(…)

- Relatório intercalar datado de 06.11.2018, fls. 206 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 19.11.2018, fls. 264 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 29.11.2018, fls. 289 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 12.12.2018, fls. 332 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 03.01.2019, fls. 431 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 16.01.2019, fls. 444 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 21.01.2019, fls. 489 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 27.01.2019, fls. 540 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 07.02.2019, fls. 565 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 20.02.2019, fls. 657 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 06.03.2019, fls. 728 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 19.03.2019, fls. 798 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 01.04.2019, fls. 848 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 15.04.2019, fls. 848 e ss.;

(…)

- Relatório intercalar datado de 29.04.2019, fls. 941 a 944;

- Relatório intercalar datado de 13.05.2019, fls. 989 a 1022;

(…)

- Relatório intercalar datado de 27.05.2019, fls. 1107 e 1108;

- Relatório intercalar datado de 06.06.2019, fls. 1140 e ss.;

(…)

- Relatório Intercalar datado de 18.06.2019 (fls. 1559 e ss.);

- Relatório final datado de 13.11.2019, fls. 1913 e ss.; (…)”

15. Como decorre, com evidência, do regime de permissões dos artºs. 355º e 356º do C.P.P. uma expressa proibição de valoração da prova por referência aos princípios da imediação (aqui excepcionado) e publicidade, próprio das nulidades (tal como é sustentado pelos professores Costa Andrade e Germano Marques da Silva), mas que é especial ao catálogo das proibições previstas no do artº. 126º do C.P.P., seguindo ambas (as proibições aí previstas e as proibições que se encontram previstas dispersamente no processo penal, como são o caso dos artº.355º e 356º do C.P.P.) o regime das nulidades previstas neste último preceito, cuja “ratio” visa a integridade da convicção do julgador, que deve ser preservada e acautelada de meios de prova proibidos. A ofensa às proibições de prova determina a nulidade que é de conhecimento oficioso, embora baste o procedimento de não valorar as provas proibidas.

16. De essencial, devemos reter que as normas de proibições de prova, à margem da discussão sobre se serão regras de direito material ou adjectivo, o que parece indiscutível é serem regras imperativas de cumprimento obrigatório pelos Tribunais, não podendo por isso ser valoradas essas provas proibidas.

17. Ora, o Tribunal Recorrido decidiu, pasme-se, indicar como prova documental que valorou para sustentar a sua convicção, todos os relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final de polícia!!!

18. Os relatórios de serviço, os intercalares ou o relatório final de polícia não constituem prova documental na medida em que as declarações que esses relatórios consubstanciam não são idóneos a provar qualquer facto juridicamente relevante – alínea a) do artigo 255.º do Código Penal – uma vez que, na sua essência, essas declarações não traduzem em qualquer conhecimento directo dos factos que constituem o objecto do processo por parte de quem os elaborou.

19. Julgava-se que este ensinamento pacífico na nossa jurisprudência e que está nos antípodas dos mais elementares princípios da valoração probatória em processo penal estivesse já perfeitamente adquirido na praxe do foro, contudo, para o Tribunal Recorrido assim não é, clamando por isso a necessária intervenção do Tribunal ad quem.

20. Acresce que, tratando-se de peças escritas de natureza valorativa que, têm por base declarações dos arguidos e de testemunhas, informações policiais, convicções, ilações e presunções também elas policiais, interpretações de intercepções telefónicas, relatórios de vigilâncias e/ou diligências externas, alguma observação pessoal, e sobretudo conclusões sobre as circunstâncias em que a investigação se desenvolve, não podem servir para formar a convicção do tribunal de julgamento nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal.

21. Já nos idos anos de 1995, ensinava o STJ que “o relatório final do agente da Polícia Judiciária instrutor do processo não pode ser considerado meio de prova e não deve ser indicado na fundamentação”.

22. Embora tais ensinamentos não sejam perfilhados pelo Tribunal Recorrido, à míngua de prova para condenar os Arguidos, entendeu (mal) valorar informações de polícia, as quais não constituem provam, nem podem ser valoradas.

23. Aliás, basta verificar que, por um lado, os ditos relatórios não foram, nem podiam, ser examinados em audiência por não constituírem prova válida e, como tal, não podem servir para formar a convicção do Tribunal recorrido e, por outro lado, tais relatórios foram também subscritos por militares da GNR que nem sequer foram ouvidos em audiência, o que invalidaria igualmente o respectivo contraditório.

24. Esta prova proibida foi essencial para a decisão a que o Tribunal recorrido chegou, o que é bastante evidente em sede de fundamentação onde o a decisão recorrida (deliberadamente) nunca consigna a respectiva razão de ciência e apreende determinados factos tendo por base os referidos relatórios e informações de polícia – v.g., entre outros, a seguinte passagem: “em 17.11.2018, numa ação de fiscalização levada a cabo pela GNR juntamente com os serviços do SEF, a arguida encontrava-se no bar … e identificou-se como colaboradora13”.

25. Na sequência do elenco da prova documental considerada para a sua convicção o Tribunal Recorrido indicou ainda a seguinte: “- Autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 112 e ss.; 115 e ss.; 143 e ss.; 146; 148 e ss.; 223 e ss.; 251 e ss.; 254; 304 e ss.; 342 e ss.; 372 e ss.; 381 e ss.; 451 e ss.; 454 e ss.; 545 e ss.; 578 e ss.; 581 e ss.; 634 e ss.; 706 e ss.; 710 e ss.; 783 e ss.; 788 e ss.; 791 e ss.; 795 e ss.; 829 e ss.; 832 e ss.; 835 e ss.; 898; 902; 904 e ss.; 907 e ss.; 947 e ss.; 956 e ss.; 960 e ss.; 1049; 1053 e ss.; 1056; 1060; 1109 e ss.; 1369 e ss.”;

26. Com o devido respeito, também neste segmento o Tribunal Recorrido andou mal, pois não podia ancorar a sua convicção em autos de intercepção de escutas telefónicas constantes do inquérito.

27. O auto de intercepção telefónica documenta o acto do OPC, de quem procedeu à intercepção e gravação de um conjunto de comunicações que considera ter interesse para a investigação, através do qual sumaria e faz um conjunto de interpretações e deduções sobre tais conversações com vista a convencer o Mº.Pº. da necessidade de promover a respectiva transcrição – nº1 do artº. 188º do C.P.P..

28. Nesse sentido e nos termos do referido artº. 188º do C.P.P., durante o inquérito o Juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações, só podendo valer como prova as conversações e comunicações que o Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e gravação e indicar tais conversações ou comunicações como meios de prova – cfr. nºs 7 e 9, alínea a) do art. 188º do C.P.P.

29. Os requisitos são cumulativos e, portanto, as comunicações que o Ministério Público não mandar transcrever não podem valer como prova.

30. As transcrições consubstanciam a prova obtida das referidas intercepções já sem quaisquer filtros do OPC e que são depois livremente valoráveis pelo Tribunal ao abrigo do disposto no artº. 127º do C.P.P.

31. O que o Tribunal Recorrido não pode fazer é fundamentar a sua convicção em autos de polícia, por um lado, porque se desconhece se para todas as conversas aí interceptadas foi ordenada a sua transcrição e, por outro lado, porque o Tribunal a quo não pode também sustentar a sua convicção em interpretações, presunções e deduções policiais retiradas de conversas, ao invés de se basear nas referidas transcrições.

32. O Tribunal Recorrido fundou a sua convicção, no que ao Recorrente diz respeito, entre outras, nos seguintes autos de transcrição das escutas telefónicas:

- “Outrossim, foram analisados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas, designadamente os de fls. 304, 381, 454, 578, 657, 788 e 898 (…) – pág. 32/60”;

- “Outrossim, foram também positivamente valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas supra referidos (…) Destacam-se os autos de fls. 578, em que o arguido AA recebe uma chamada telefónica a propósito de uma obra que estaria a decorrer no bar … para partir uma parede e fazer mais um quarto; o auto de fls. 788, que atesta que o arguido recebeu uma chamada telefónica cujo assunto foi a deslocação de três funcionários da Câmara Municipal ao bar … para realização de uma fiscalização ao local – págs. 32 e 33/60;

- “Por outro lado, foram também valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 115, 146, 304, 342, 372, 451, 657, 710, 795, 947, 1049, 1109 e 1369 (...) – pág. 33/60;

- “Em análise ao auto de fls. 904 é também possível constatar que o arguido GG refere-se à arguida DD como HH e ao arguido AA como II e identifica-os como proprietários / exploradores do bar. Outrossim, resulta do auto de fls. 710 que a arguida discutiu os termos dos contratos de trabalho dos arguidos JJ e GG, enquanto trabalhadores do bar …”.

33. Ao formar a sua convicção com base nos referidos autos policiais de intercepção, pelos quais o OPC interpreta aquela que pensa ser o sentido de determinada comunicação, desconhecendo-se inclusivamente que trecho foi transcrito das respectivas sessões, cujas transcrições naquela data ainda nem sequer foram promovidas pelo Mº.Pº. e, consequentemente não foram autorizadas pelo Juiz de Instrução, o Tribunal Recorrido fundou a sua convicção num meio probatório que não pode servir como tal, que não é apto a servir como prova, que, do ponto de vista processual, penal e do ponto de vista probatório não existe.

34. A nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável, a qual expressamente se invoca, por violação do disposto no artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P.

35. Assim, devem V. Exas. declarar a nulidade da sentença recorrida, porque fundada em prova nula (a prova proibida que foi utilizada na fundamentação da decisão é também ela nula nos termos do artº. 122º, nº 1, do C.P.P.), quer pela valoração proibida de relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final do OPC nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal, quer pela valoração igualmente proibida de autos de intercepção telefónica nos termos do artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P., ordenando a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.

36. Em conformidade com disposto no nº 2 artigo 374º do Código de Processo Penal, a sentença tem de conter uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, aqui se incluindo não só a indicação, mas também o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

37. Assim, o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são impostos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão.

38. Exige-se um exame, ou seja, uma observação atenciosa ou cuidada, efectuada de um modo crítico, isto é, sob um juízo de censura ou de “contraponto”. O exame crítico das provas há-de consistir por isso numa análise que permita uma perfeita compreensão da decisão pelos destinatários, aqui aferidos considerando um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas.

39. Assim, haverá nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, alínea a) Código de Processo Penal) sempre que, em consequência de uma omissão ou deficiência na análise crítica da prova, fique afectada a compreensão do processo lógico e racional que conduziu à decisão concreta em relação a cada facto provado e não provado.

40. Ora, nos presentes autos, as testemunhas de acusação dividiram-se, no essencial, por um lado, entre as senhoras que alegadamente frequentavam o espaço praticando actos sexuais e, por outro lado, os alegados clientes de tais serviços.

41. Compulsadas as súmulas dos vários depoimentos prestados pelas testemunhas, e não obstante a prova arrasadora que aí ressalta no que concerne à total ausência de participação nos factos pelos Arguidos Recorrentes, não se alcança quais os fundamentos que no entender do Tribunal Recorrido conferem credibilidade a determinadas provas e não a outras.

42. Após a referida súmula dos depoimentos das senhoras que alegadamente frequentavam o espaço praticando actos sexuais, o Tribunal a quo consigna na decisão recorrida o seguinte:

“As testemunhas supra referidas prestaram depoimentos credíveis quando ao modo de funcionamento do bar … e à atividade de prostituição aí exercida e respetivos moldes, pese embora algumas, no início dos seus depoimentos, tenham demonstrado algum constrangimento em descrever tal atividade.

Quanto à identificação dos responsáveis pela exploração do bar, considerou-se que os depoimentos de KK e LL foram credíveis quanto à intervenção do arguido MM e o depoimento de NN foi espontâneo e claro quanto à intervenção do arguido AA.”

43. É consabido que na apreciação do depoimento das testemunhas atribui-se sobretudo relevância aos aspectos verbais, embora se possa também atribuir importância a uma série de circunstâncias na prestação do próprio depoimento, cabendo ao Tribunal fazer um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

44. Porém, cabe ao Tribunal Recorrido ancorar os fundamentos da sua decisão na motivação e explicação racional em atribuir coerência, fiabilidade e espontaneidade a um determinado depoimento que pode não atribuir a outro.

45. Ora, o segmento da motivação da convicção do tribunal acima transcrito não permite sequer identificar os alicerces probatórios e o raciocínio que conduziram à decisão sobre os factos provados. Assim como impossibilita a apresentação dos argumentos de defesa e o controlo sobre a fundamentação factual e lógica da decisão, imprescindível na apreciação da impugnação da decisão em matéria de facto.

46. É que, bem vistas as coisas, aparentemente, segundo o trecho citado da decisão recorrida, todos os depoimentos parecem ter sido credíveis, mas, no entanto, o julgador acabou por atribuir relevâncias diferentes e até cindíveis entre si sem que explique por que razão o faz.

47. Na decisão sobre a matéria de facto, para além da indicação do que se considera provado e não provado, exigia-se que o Tribunal Recorrido explicasse o seu processo de formação da convicção, procedendo quer à enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, quer dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, quer dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor dos documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da sua convicção.

48. Sobretudo quando a prova testemunhal produzida aponta de forma clara num sentido e o Tribunal Recorrido prefere ancorar a sua convicção num único depoimento, o qual interpreta em sentido oposto (que, como veremos em sede de impugnação da matéria de facto, tal interpretação não é sequer admissível). Neste caso, impunha-se ao Tribunal a quo que apreciasse a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade a determinada versão em detrimento da unanimidade das restantes versões, permitindo aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

49. Já quanto aos alegados clientes que frequentavam o espaço e que foram também ouvidos como testemunhas, o vício de erro notório é igualmente evidente.

50. Neste conspecto, diferentemente da súmula dos depoimentos em relação às alegadas senhoras que praticariam prostituição, em relação aos clientes o Tribunal Recorrido bastou-se com uma mera descrição em “traços gerais”, a qual peca por ser bastante reduzida e muitíssimo imprecisa.

51. Todavia, para o que aqui releva, o que faz a decisão recorrida tornar-se incompreensível é o seguinte: após consignar-se na referida decisão que a esmagadora e arrasadora maioria das testemunhas que prestaram o seu depoimento esclareceram que os Arguidos Recorrentes nada têm que ver com a exploração do bar, o Tribunal a quo remata com “nesta parte, os depoimentos destas testemunhas não mereceram a credibilidade do Tribunal”.

52. Não obstante, o Tribunal Recorrido para sustentar a factualidade provada e bem assim a condenação dos Arguidos Recorrentes vem a consignar na decisão recorrida que “Em sentido diverso, a testemunha OO, de modo credível, isento e circunstanciado, referiu que conhece os arguidos AA e DD do bar …; frequentou o bar cerca de 3 ou 4 vezes, até à data em que foi inquirido na GNR; conhece estes arguidos por serem os “proprietários da casa” (sic), pois costumava falar com eles ao balcão.”.

53. E nesta questão, na sequência do que se vem expondo, se é certo que os Recorrentes não podem sindicar a convicção do Tribunal Recorrido, mesmo que esta vá em manifesta contra-corrente, já podem e devem sindicar o processo de convicção quando o mesmo não é motivado e minimamente racional.

54. É que “traduzindo por miúdos” a decisão do Tribunal Recorrido chega-se mais ou menos a esta conclusão: em relação a todas as testemunhas que, com excepção de uma, disseram que os Arguidos Recorrentes nada têm que ver com a exploração do bar, eu, enquanto julgador não acredito; já em relação à única testemunha que, alegadamente (veremos em sede de impugnação de matéria de facto que também não foi bem assim) implicou os Recorrentes, eu, enquanto julgador, acredito porque me mereceu credibilidade.

55. Ora, o que se exigia ao Tribunal a quo era que explicasse de forma fundamentada por que razão atribuiu credibilidade e isenção a determinado depoimento em detrimento de todos os demais!

56. É que no caso concreto, como já se disse, tal fundamentação assume particular acuidade pois, bem vistas coisas, há um sentido praticamente unanime e coincidente em todas as testemunhas ouvidas mas o Tribunal Recorrido escolhe um outro sentido, ancorado numa única testemunha postergando todas as outras.

57. Sabemos que os depoimentos não se somam mas que se pesam, porém, não deixa se ser impressivo que o Tribunal Recorrido rejeite a quase totalidade dos mesmos em detrimento de um único, e aquilo que em sede de vício de erro notório é sindicável é tão-somente a ausência de justificação dessa opção.

58. Não basta ao Tribunal a quo dizer que determinado depoimento se mostra credível e isento e os restantes não. Tem, ainda que de forma sumária, explicar a razão pela qual assim os reputou, sob pena de total discricionariedade, o que é inadmissível e é fulminado com o vício de erro notório na apreciação da prova.

59. No que concerne à impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 alínea a) do Código de Processo Penal, quanto aos pontos de facto que os Recorrentes consideram incorrectamente julgados pelo Tribunal Recorrido, importa desde logo destacar a seguinte factualidade identificada a negrito e em sublinhado segundo a numeração seguida na sentença recorrida:

“1) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos AA e DD, com o auxílio dos arguidos MM, JJ e PP, exploram o estabelecimento comercial denominado “Bar …”, sito na Rua …, lote …, na …; pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até ao dia 18 de março de 2019, o arguido GG auxiliou na exploração do referido bar.

(…)

4) Face a tal condenação, os arguidos DD e AA, no âmbito de um acordo alcançado entre eles e o arguido MM, passaram a dirigir a atividade do “Bar …” também através do arguido MM, sendo que este último passou a constar como responsável pela exploração do bar … e do estabelecimento de “alojamento local” sito no piso superior do aludido bar nos registos que foram efetuados na “Plataforma Digital”, com os números de registo “…” datado de 17- 08-2018 e “…” datado de 21-08-2018.

5) No entanto, apesar de o arguido MM figurar como explorador dos aludidos estabelecimentos, eram os arguidos DD e AA que, efetivamente, pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, continuavam a angariar as mulheres para trabalhar no “Bar …” e explicar às mesmas o funcionamento do bar, bem como a receber o dinheiro entregue pelas mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição.

7) Para controlar a atividade de prostituição desenvolvida no aludido bar, os arguidos DD e AA, para além de beneficiarem do auxílio dos arguidos MM, JJ, PP e GG, utilizavam os seus telemóveis e cartões telefónicos para, não apenas, contactar com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, como trocavam mensagens e efetuavam contactos telefónicos com as várias mulheres que ali exerciam ou pretendiam vir a exercer a atividade de prostituição, explicando as condições e informando se existia ou não vaga no estabelecimento, para além de, em diversas ocasiões, ali se deslocarem pessoalmente, com vista a controlar “in loco” a atividade do bar e dos quartos sitos nos andares superiores do edifício.

8) O arguido AA utilizava os cartões telefónicos com os números …, contactando com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

9) Quanto à arguida DD, esta utilizava, entre outros, os cartões telefónicos com os números … e … para trocar mensagens e efetuar contactos telefónicos com as várias mulheres e com os demais arguidos, angariando as mulheres para trabalhar no “Bar …”, explicando as condições e informando se existia ou não vaga, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

(…)

12) O arguido GG utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.

13) O arguido JJ utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.

14) O arguido PP utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.”

(…)

19) O acesso aos quartos era autorizado pelos arguidos AA e DD, ou na sua ausência, pelos arguidos MM, JJ, PP e GG.

(…)

21) O valor da diária pela utilização dos referidos quartos era de €30 (trinta euros) para cada mulher, sendo tal valor entregue, diariamente, aos arguidos MM, JJ, PP e GG que, por seu turno, os entregavam aos arguidos AA e DD.

(…)

27) Os arguidos MM, JJ, PP e GG prestavam auxílio à exploração pelos arguidos AA e DD do mencionado estabelecimento comercial, quer exercendo no mesmo atividade de empregados de bar, quer facilitando (nos termos acima descritos) o exercício pelos demais arguidos da atividade descrita e da qual também obtiveram os respetivos proventos.

28) Os arguidos AA e DD agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de atos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento "Bar …" e nos pisos superiores do edifício onde tal bar se situa, reunindo no mesmo condições para tal, beneficiando direta e economicamente das relações sexuais ali mantidas, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que ali se deslocavam com o intuito de manterem relações sexuais e que acabavam também por consumir as bebidas ali comercializadas.

29) Por seu turno, os arguidos MM, JJ, PP e GG, ao colaborarem com os demais arguidos, prestando àqueles auxílio, nos moldes descritos, recebendo das mulheres que ali se prostituíam quantias em dinheiro e controlando as deslocações das mesmas aos quartos com os clientes, bem como o tempo que ali permaneciam, durante o tempo em que trabalharam para os arguidos AA e DD no “Bar …”, atuaram com a vontade livre e a perfeita consciência de que, ao adotarem tal conduta, facilitavam o exercício da prostituição por aquelas mulheres e de cuja atividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respetivos proventos.

30) Todos os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente e com o mesmo propósito, durante o período temporal referido, e pelo menos entre maio de 2018 e 18 de março de 2019 quanto ao arguido GG e pelo menos entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019 quanto aos demais arguidos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.

60. Esta factualidade considerada assente na sentença recorrida não tem suporte na prova produzida em audiência, que o Tribunal a quo – na fundamentação da sua decisão – reputou determinante para a formação da sua convicção condenatória.

61. Uma vez que toda a factualidade transcrita assenta na convicção de que eram os aqui Recorrentes quem exploravam/geriam de facto o estabelecimento comercial Bar …, a sua impugnação é efectuada de forma unitária quanto a todos os factos, à excepção dos factos 7, 27 e 28 que tratam de uma questão diversa e que carece de impugnação autónoma.

62. Os elementos de prova que nos termos do artigo 412.º, n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal permitem considerar os factos dados como provados incorrectamente julgados, e que impunham decisão diversa da recorrida, são os seguintes: Depoimento da testemunha QQ, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início às 13:54:10 e fim 14:43:57, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha RR, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11- 2021, respeitante à gravação 0211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha SS, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102150359_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim em 15:17:32, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha TT, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211103100418_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim às 10:40:52, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha KK, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante às gravações 20211103105532_3629957_2871817, com início às 10:55:33 e fim às 11:18:05, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha UU, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante às gravações 20211103135910_3629957_2871817, com início às 13:59:11e fim às 14:19:53, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha VV, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211103142309_3629957_2871817, com início às 14:23:11 e fim às 14:45:43, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha LL, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 14:47:14 e fim às 15:02:53, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha XX, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103150504_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim às 15:35:37, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha OO, ouvida na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 14:15:26 e fim às 14:23:36, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha ZZ, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 10:09:46 e fim às 10:40:43, nas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha AAA, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 14:16:16 e fim às 14:33:20, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha NN, ouvida na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, respeitante à gravação 20211115101908_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim às 10:33:34, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento da testemunha BBB, ouvida na sessão de julgamento do dia 07-12-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782 com início às 14:10:15 e fim às 14:24:02, pelas concretas passagens identificadas na peça recursiva; Depoimento do Arguido AA, ouvido na sessão de julgamento do dia 03-02-2022, referente à gravação 20220203155914_3629957_2871817, com início às 15:59:14 e fim às 16:05:21, com as concretas passagens identificadas na peça recursiva;

Informação da Câmara Municipal de … de fls. 41 e ss. – comunicação de instalação /modificação de estabelecimento –restauração e bebidas, com registo em 17.08.2018, referente à Rua …, porta …, andar…, …, sendo requerente MM; Informação da Câmara Municipal de … de fls. 47 e ss. – comunicação de alojamento local, com registo em 21.08.2018, referente à Rua …, porta …, andar…, …, sendo requerente de tal pedido MM; Contrato de arrendamento para habitação datado de 16.08.2018, onde consta como senhorio o arguido AA e como arrendatário o arguido MM, fls. 52 a 54; Documento comprovativo de alteração de atividade referente a MM, datado de 20.08.2018, fls. 56 a 58; Auto de busca e apreensão a fls. 1157 a 1162; Fotogramas 617 e 688; Fls. 95 e 167 e 1190 dos autos.

63. A decisão ora sob escrutínio carece de fundamentação, sendo que nela não se vislumbram quais as conclusões lógicas e aceitáveis à luz dos critérios do artigo 127.º do C.P.P. que determinaram a valoração selectiva de alguns dos depoimentos.

64. Um desses depoimentos considerados credíveis é da testemunha QQ, militar da GNR e que, tal como consta da decisão recorrida, relatou que “o bar continuava a funcionar precisamente nos mesmos moldes em que funcionava no âmbito da acção de investigação anterior, na qual a testemunha também participou (que deu origem ao processo n.º …” e que “através das vigilâncias externas foi possível visualizar os arguidos AA e DD (conhecida por HH) a entrar e sair do bar várias vezes(…)”.

65. Sucede que, ao contrário do que ali se escreveu, a referida testemunha, militar QQ, não participou das dezenas de vigilâncias externas que, aliás, constam da prova documental junta aos autos, mas apenas de UMA vigilância externa realizada em 20 de Outubro de 2018, a fls. 168 a 171, conforme resulta do seu depoimento, prestado em audiência de julgamento no dia 02-11-2021, que consta da gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início à 13:54:10 e fim às 14:43:57 e que se acha transcrito na presente motivação, nas passagens dos minutos 00:38:25 a 00:41:40,

66. Ora, resulta limpidamente que, à excepção de duas situações perfeitamente autonomizadas (ocorridas em 20-10-2018 e 04-06-2019), a testemunha não participou de qualquer outra diligência investigatória, quer o sejam vigilâncias externas, intercepções telefónicas, autos de busca e apreensão, pelo que o seu conhecimento directo e efectivo dos factos só pode, afinal, escudar-se naquilo que observou naquelas duas diligências ( auto de vigilância externa de 20-10-2018 e auto de busca e apreensão de 04-06-2019).

67. Tudo o mais resulta apenas e só do que ouviu dizer de outras pessoas, do conhecimento que tem do outro processo crime onde também participou nas diligências investigatórias, sendo que nada disso releva para prova da factualidade constante dos autos.

68. Não podia o Tribunal a quo ter ancorado a factualidade provada neste depoimento, pois que tudo o que a testemunha disse se baseia tão só naquilo que ouviu dizer e no conhecimento que tinha da investigação criminal anteriormente efectuada, onde também se investigou este espaço e onde a mesma testemunha também participou.

69. Resulta evidente a míngua da prova que, neste processo, existia contra os Recorrentes, seno que esta testemunha deixa-se contaminar pelo conhecimento indirecto que tem dos factos e acaba por prestar um depoimento absolutamente alicerçado nessa convicção que formou, contando um verdadeiro enredo de novela e fazendo conclusões e especulações à margem das provas concretas trazidas aos autos e nas quais participou.

70. Ora, sendo este um depoimento indirecto, e fazendo apelo às regras de valoração da prova, ínsitas no artigo 127.º, com a excepção prevista no n.º 1 do artigo 129.º do C.P.P., não poderia este depoimento ser valorado como meio de prova e muito menos servir para alicerçar a convicção do tribunal de que os Recorrentes eram os exploradores do bar … por violação do artº. 128º do C.P.P..

71. Até porque, como a própria testemunha o confirma, existiam dois contratos outorgados para aquele espaço, um contrato de arrendamento respeitante ao R/C e um contrato de cessão de exploração do 1.º andar, ambos em nome do Arguido MM.

72. Do depoimento desta testemunha, militar da GNR, QQ, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início em 13:54:10 e fim em 14:43:57, nas passagens dos minutos 00:22:06 e fim às 00:30:39, não só não resulta que os Recorrentes explorassem o bar … na data dos factos, como, aliás, decorre dos contratos juntos a fls. 41 e ss e 52 a 54 dos autos, a que a própria testemunha teve acesso, que era o Arguido MM quem explorava/geria aquele estabelecimento comercial.

73. Por outro lado, do depoimento da testemunha RR, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, no depoimento aos minutos 00:14:59 a 00:16:03, e cujos segmentos do seus depoimento também se acham transcritos na motivação, resulta também que, apesar das inúmeras diligências que efectuou, tendo-se deslocado ao bar … algumas vezes, apenas UMA VEZ “viu os arguidos AA e DD a chegar com sacos, entrarem no bar e dirigirem-se para uma porta com um sinal de sentido proibido ou stop.”.

74. Contudo, a mesma testemunha acaba por referir, ao minuto 00:10:05 a 00:10:46, que não sabe o que transportavam aqueles sacos, mas levanta a possibilidade de se tratarem de bens alimentares.

75. E fá-lo porque, tal como confirmaram várias testemunhas que prestaram depoimento nos autos e que trabalharam naquele espaço, os Recorrentes tinham um estabelecimento comercial, …Café, onde serviam refeições, sendo que, numas situações, essas mesmas testemunhas se deslocavam lá para almoçar ou jantar e, noutras, eram os Recorrentes quem lhes entregavam a comida no bar … (que era muito próximo do … Café).

76. Significando desde logo que os Recorrentes se dirigiam ao bar … e, como tal, aí poderiam ser vistos, mas para levar comida da exploração da sua verdadeira e única actividade que era a restauração do … Café.

77. Aliás, para algumas destas testemunhas, o único conhecimento que têm dos Recorrentes, advém precisamente desta situação. Tal como refere a testemunha UU cujo depoimento se acha transcrito em sede de motivação e que confirma que “conhece a arguida DD por ir ao bar … vender comida ocasionalmente (…)”

78. Também a testemunha LL, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 15:47:14 a 15:02:53, ao minuto 00:00:40 a 00:00:49, declarou que “conhece os arguidos AA e DD por terem um café/restaurante perto do bar …, local onde costumava ir jantar”, conforme resulta do seu depoimento que se acha transcrito na motivação.

79. Em tudo o mais relatado pelo militar RR, ouvido na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, resulta, afinal, de que o seu conhecimento advém do que ouviu dizer de uma senhora chamada CCC, que o abordou no bar …, numa das diligências em que lá se deslocou.

80. Contudo, a testemunha RR, que prestou depoimento no dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20, aos minutos 00:14:59 a 00:16:03, não conseguiu identificar a tal Sra. CCC, pelo que a mesma nunca veio a ser identificada nem prestou qualquer depoimento no processo.

81. Mais uma vez, o Tribunal Recorrido infere o conhecimento de uma testemunha baseado não no seu conhecimento directo e efectivo dos factos, mas tão somente com base no que ouviu dizer por interposta pessoa.

82. Ora, o Tribunal a quo nunca poderia ter valorado este depoimento, nem dele ter-se socorrido para a formação da sua convicção e consequente valoração da factualidade provada, uma vez mais por violação do artº. 128º do C.P.P..

83. Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação, e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e as outras pessoas, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

84. A ratio do artigo 129.º do C.P.P. tem subjacente o propósito de aferir da credibilidade do testemunho indirecto e permitir ao julgador tomar contacto directo com a testemunha e o relato-fonte.

85. Ora, se não se mostrou possível identificar a pessoa que relatou tais situações à testemunha inquirida e que a mesma referiu em audiência de julgamento, o seu depoimento, naquela parte, não poderá ser tido em conta pelo tribunal.

86. Pelo que também o depoimento desta testemunha RR, prestado no dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102144357_3629957_2871817, com início às 14:43:59 e fim 15:03:20 não poderia ter relevado para a factualidade supra transcrita, incorrectamente dada como provada pelo Tribunal a quo.

87. A verdade é que o Tribunal Recorrido se socorreu da valoração de prova indirecta e dela fez-se valer para dar como provados os factos supra transcritos, fazendo tábua rasa da maioria de outros depoimentos, eles sim directos, que vão em sentido contrário ao que foi dado como provado.

88. Um dos depoimentos nos quais o Tribunal Recorrido também alicerçou a sua convicção diz respeito à testemunha SS, que prestou depoimento no dia 03-11-2021, respeitante à gravação 20211102150359_3629957_2871817, com início às 15:04:01 e fim às 15:17:32 e que confirmou ao tribunal que no dia em que foram realizadas as buscas o Recorrente AA não estava no bar e que chegou depois não sabendo precisar em que circunstâncias chegou.

89. Mas contrariamente ao que ali referiu, do auto de busca e apreensão de fls. 1157 a 1162, especificamente a fls. 1528, resulta que no dia 04-06-2019 “A busca foi realizada na presença do explorador do bar, AA, residente na Rua …, lote …, …, tendo neste acto sido entregue cópia do Mandado e cópia do despacho que a determinou, teve início pelas 15h35 de 04 de junho de 2019 e término pelas 20h30.”.

90. Face a tão evidente contradição, em sede de alegações, os Arguidos suscitaram a falsidade deste auto de busca e apreensão, pois que nele consta que o Recorrente se encontrava presente no momento em que se iniciou a diligência, o que não corresponde à verdade.

91. Contudo, entendeu o Tribunal a quo que esta questão seria de somenos importância.

92. Ora, salvo o devido respeito, esta questão manifesta enorme relevância para a construção da investigação que resultou na consequente acusação e agora na condenação dos Recorrentes. E não podia o Tribunal Recorrido ter passado uma “esponja” sobre a questão, pois que nela reside a maior relevância, como infra melhor se explanará.

93. Na verdade, esta investigação há muito que procurava (fruto da influência do anterior processo crime) provar que os Recorrentes eram os verdadeiros exploradores do bar …. Contudo, todos os seus esforços haviam sido infrutíferos, pelo que a investigação havia colhido, até àquele momento, uma mão cheia de nada.

94. Por isso, e porque era essencial demonstrar esta ligação intrínseca do Recorrente AA às actividades desenvolvidas no bar, não faria qualquer sentido que, precisamente nesse dia, estando o bar em pleno funcionamento, ele não se encontrasse no local.

95. Razão pela qual foi propositadamente inscrito no auto – mesmo não correspondendo à verdade – que o Recorrente AA se encontrava no bar … aquando do início das buscas.

96. Sucede que, na verdade, o Recorrente foi LEVADO PELOS OPC’s DO … CAFÉ ONDE SE ENCONTRAVA PARA O BAR …, numa manobra no mínimo muito questionável, cuja factualidade o Tribunal Recorrido nem sequer quis esmiuçar, pois não interessava!

97. Mais uma vez andou mal o Tribunal Recorrido ao desconsiderar a apreciação desta questão, pois que revela, em primeira análise, que existem falsidades na prova documental produzida e na qual repousou a factualidade assente e, em segunda análise, que o depoimento destas testemunhas que participaram na investigação se mostrava eivado de contradições e imprecisões. Curiosamente, nenhuma destas questões mereceu análise por parte do Tribunal Recorrido.

98. De tal forma que decorre do aresto recorrido que o Tribunal considerou que o depoimento dos agentes da polícia “foram prestados de forma credível, isenta e circunstanciada, mostrando-se corroborados por prova documental junta aos autos”.

99. Pese embora, mais uma vez, seja manifesta a falta do iter lógico decisivo que permitiu ao Tribunal Recorrido chegar a tal conclusão, basta atentarmos na prova documental expressamente mencionada na sentença recorrida, nomeadamente quanto àquela que comprova o suposto envolvimento dos Recorrentes no funcionamento do bar …, para verificar que o Tribunal Recorrido se socorreu maioritariamente de relatórios de vigilância externa e também de autos de intercepção e gravação telefónica, dali concluindo que os Recorrentes AA e DD eram, afinal, quem dirigiam o referido estabelecimento comercial.

100. Sucede que, da análise dessa prova documental, designadamente dos relatórios de vigilância externa a fls. 209, 210, 405, 464, 815 e fotogramas 617 e 688, nem sequer é identificada a presença dos Recorrentes no bar …, limitando-se aqueles relatórios a identificar carros estacionados que, na lógica da investigação, pertenciam aos Recorrentes.

101. Ora, o veículo matrícula … pertence a DDD e o veículo … pertence a EEE - como decorre de fls. 95 e 167 dos autos.

102. Então como pode a sentença recorrida referir que estes veículos pertenciam aos Arguidos e, como tal, quando aqueles se encontravam estacionados num local, era sinal de que os Recorrentes também ali se encontravam?!

103. Não interessou ao Tribunal Recorrido fazer o verdadeiro escrutínio da prova documental – ESTA SIM, DIGNA DESSE NOME –, preferindo ater-se em relatórios de polícia!!!

104. Os Recorrentes não conseguem discorrer do texto decisório como foi possível chegar a tal conclusão, ainda que (embora sem conceder) o Tribunal a quo pareça socorrer-se do conceito jurídico do condutor habitual do veículo para dar um salto ilógico (e não circunstanciado) no sentido de que, tendo sido os Recorrentes vistos a conduzir os veículos, só pode presumir-se que estes lhes pertencem.

105. Mais uma vez, a decisão queda-se por um lado, pela enunciação das provas concretas que contribuíram para a formação desta sua convicção e, por outro lado, pelo abandono completo das provas existentes que, outrossim, confirmam que estes veículos automóveis não lhes pertenciam - como decorre de fls. 95 e 167 dos autos.

106. Pelo que também nesta parte a decisão carece de absoluta prova, pelo que se impunha que tais factos fossem dados como não provados.

107. Mas, mesmo naqueles relatórios em que os Recorrentes se encontram presentes no estabelecimento comercial, como é que daqui pode o Tribunal Recorrido concluir que eram eles quem geriam aquele espaço?!

108. Sem esquecer que se encontra assente que o Recorrente AA é, em bom rigor, o proprietário daquele bem imóvel, pelo que seria natural a sua presença naquele local que é, para além do mais, um estabelecimento aberto ao público, que é frequentado inclusivamente pelo Recorrente enquanto cliente.

109. Para além do mais, resulta de inúmeros outros depoimentos que, ao invés do que foi dado como provado, era o Arguido MM quem geria aquele espaço, pelo menos desde 16-08-2018.

110. Aliás, isso mesmo resulta do depoimento da testemunha XX, prestado no dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103150504_3629957_2871817, com início às 15:05:06 e fim às 15:35:37, especificamente aos minutos 00:06:29 a 00:22:02.

111. Do depoimento desta testemunha resulta claro que era o arguido MM quem geria o estabelecimento naquela data, quem recebia as colaboradoras e lhes mostrava o espaço, quem, no fundo, determinava o que ali se passava ou fazia.

112. Aliás, este depoimento é crucial pois na verdade é integrado na restante prova documental. Na verdade, os Recorrentes foram efectivamente os donos e exploradores daquele bar, até 13.10.2015, que culminou com as buscas e apreensões ao bar …, no âmbito do processo n.º …, pelo qual vieram a ser condenados.

113. Desde então, os aqui Recorrentes têm o imóvel à venda e cederam a exploração a terceiros do bar a terceiros.

114. Esta é a verdade insofismável que resulta abundantemente de toda a prova produzida.

115. Resulta igualmente do depoimento da testemunha LL, que prestou declarações no dia 03-11-2021, referente à gravação 20211103144713_3629957_2871817, com início às 15:47:15 a 15:02:53, aos minutos 00:00:40 a 00:00:49, que também trabalhava no bar, que apenas conhecia os Recorrentes por serem os proprietários do café onde jantava.

116. Também decorre igualmente do depoimento da testemunha VV, que esteve presente na sessão do dia 03-11-2021, cujo depoimento consta da gravação 20211103142309_3629957_2871817, com início em 14:23:12 e fim em 14:45:43, aos minutos 00:11:59 a 00:14:31, que na data dos factos era o Arguido MM quem geria aquele espaço.

117. Aliás, esta testemunha explica que em determinada altura a gerência pertencia aos aqui Recorrentes mas que, a partir de determinada data que não soube precisar, a gerência passou a estar a cargo do arguido MM.

118. Da mesma forma, também a testemunha KK, ouvida 03-11-2021, cujo depoimento se encontra presente na gravação 20211103105532_3629957_2871817, com início em 15:55:34 e fim 16:18:05, entre os minutos 00:03:19 a 00:16:20, foi peremptória ao afirmar que quem lhe falou sobre o espaço e as condições foi o arguido MM.

119. Esta testemunha foi inclusivamente mais longe ao explicar que, para si, era o arguido MM quem era o dono do bar, uma vez que tinha sido ele quem falou consigo quando se mudou para lá e lhe explicou quais seriam as condições da sua permanência.

120. Por fim, também a testemunha TT, que prestou depoimento nos autos no dia 03-11-2021, constante na gravação 20211103100418_3629957_2871817, com início em 10:04:21 e fim em 10:40:52, aos minutos 00:04:58 a 00:05:27, tendo declarado que quem era o dono do bar era o arguido MM.

121. Ora, o Tribunal Recorrido ignorou olimpicamente o depoimento isento, concreto e credível destas 5 (cinco) testemunhas, sendo que todas elas referem o arguido MM como sendo aquele com quem falavam, que lhes mostrava o espaço e determinava as condições de permanência, no fundo quem detinha e explorava o estabelecimento.

122. Nesta senda, e porque a decisão ora recorrida carece de fundamentação neste conspecto, nem tão pouco é perceptível a razão pela qual o Tribunal Recorrido optou por escolher valorar positivamente alguns depoimentos, sendo que a grande maioria da restante prova testemunhal trazida aos autos vai precisamente em sentido contrário àquele que decorre da factualidade dada como provada.

123. Ademais, veja-se que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção no depoimento da testemunha NN, também trabalhadora daquele espaço, referindo que “falou com o dono do bar” – que indicou ser o arguido AA – pessoa que lhe explicou como funcionava o trabalho.

124. Sucede que ao contrário do que se encontra transcrito neste trecho do aresto, a testemunha não identificou o Recorrente AA como sendo o dono do espaço, que prestou depoimento na sessão de julgamento do dia 15-11-2021, respeitante à gravação 20211115101908_3629957_2871817, com início às 10:04:19 e fim 10:32:54, especificamente aos minutos 00:00:20 a 00:02:10 e entre 00:05:09 a 00:06:45

125. Na verdade, resulta claro que a testemunha não só não se recorda inicialmente do Recorrente, razão pela qual quando instada pelo Tribunal Recorrido, que alude ao seu nome, diz não saber de quem se trata, como aliás identifica um outro arguido como sendo aquele quem lhe explicou as condições de funcionamento e permanência no espaço – curiosamente de nome … igual ao Recorrente!

126. Na verdade, aquilo que resulta claro do depoimento da testemunha é que, apesar de posteriormente reconhecer o Recorrente AA (com a ajuda do Tribunal), não reconhece a Recorrente DD, nem identifica o Recorrente como sendo a pessoa que lhe mostrou o bar e explicou as condições do estabelecimento.

127. Ainda assim, inexplicavelmente, o Tribunal Recorrido acaba por retirar do seu depoimento a conclusão de que o Recorrente AA explorava o espaço e, ainda mais surpreendente, que também a Recorrida DD o fazia – quando a testemunha NUNCA, EM MOMENTO ALGUM, a reconheceu.

128. Ainda quanto a esta questão impõe-se fazer uma análise, que se impunha ao Tribunal Recorrido fazer, relativa ao facto de o Recorrente AA ser o proprietário do imóvel há mais de 20 anos e, para além disso, ter sido gerente do bar …, até à data em que se mostrou condenado no anterior processo crime, altura em que, como o mesmo referiu nas suas declarações, prestadas no dia 03-02-2022, contidas na gravação 20220203155914_3629957_2871817, com início em 15:59:14 e fim em 16:05:21, aos minutos 00:01:01 a 00:01:55, cedeu a exploração daquele estabelecimento comercial a terceiros.

129. Ora, é absolutamente natural que, tendo em conta o meio pequeno em que este estabelecimento se encontra inserido, na …, onde todos se conhecem pelo nome, e atento o muito significativo lapso temporal em que o Recorrente foi responsável pelo bar …, algumas das pessoas se refiram ao Recorrente como sendo o dono, ou a pessoa que explorava, pois que é absolutamente natural que o reconheçam como tal.

130. Muitas das testemunhas acabaram por referir que “era o que se dizia”, ou seja, o que resultava da vox populis, baseado no conhecimento geral da população que ali habita e frequenta aquele espaço. Por isso é absolutamente natural que algumas testemunhas tenham indicado o aqui Recorrente como a pessoa que mandava no espaço, naturalmente convictas que assim seria, pois que era a percepção das pessoas que conheciam e frequentavam o bar ….

131. Mas essa percepção pode ou não ter respaldo na realidade, sendo certo que a mesma não bastará, per si, para formar a convicção de um tribunal acerca da participação de uma determinada pessoa na factualidade ilícita.

132. Dito de outro modo, é natural e admissível que algumas das testemunhas possam ter a convicção de que era o Recorrente quem geria aquele espaço, não sendo espectável sequer que saibam em que data exacta o foi ou em que altura deixou de ser ele quem explorava o bar ….

133. Acrescido ainda ao facto de os Recorrentes terem também uma pastelaria/café perto do bar … que serve refeições, frequentada também por algumas testemunhas.

134. Uma dessas testemunhas é BBB, ouvido no dia 07-12-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782 com início às 14:10:15 e fim em 14:24:02, especificamente aos minutos 00:02:04 a 00:04:34, que disse precisamente conhecer os Recorrentes como donos do bar …, que frequentou até há 6, 7 anos atrás e do café ao lado do mesmo bar que frequenta actualmente.

135. Ora, esta testemunha referiu que conhece os Recorrentes do bar …, que frequentou durante cerca de 20 anos e até há 6/7 anos e que, actualmente, os mesmos têm um café/restaurante perto do bar …, onde também se tomam refeições.

136. Também a testemunha ZZ, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 10:09:46 e fim 10:40:43, aos minutos 00:04:00 a 00:04:39, refere que o Recorrente deixou a exploração do bar, há cerca de 3, 4 anos, sendo que nunca mais o viu no bar.

137. Também a testemunha AAA, ouvida na sessão de julgamento do dia 05-11-2021, referente à gravação 20190606173704_3538199_2871782, com início às 14:16:16 e fim em 14:36:20, aos minutos 00:12:55 a 00:13:59, confirma que se desloca habitualmente ao bar … e que há cerca de 4/5 anos que não vê o Recorrente naquele espaço.

138. Ora, do depoimento destas testemunhas, frequentadores, alguns deles regulares, do bar …, alguns deles que conhecem pessoalmente o aqui Recorrente, resulta límpido que o mesmo abandonou há alguns anos (após a sentença no processo crime anterior) a exploração do bar …, mantendo-se somente como proprietário e senhorio daquele espaço.

139. Inexplicavelmente, a decisão recorrida vem concluir quanto a este e outros depoimentos de testemunhas que “No que concerne ao conhecimento que têm dos arguidos, foi patente que algumas das testemunhas pretendem fazer crer que alguns dos arguidos não tinham qualquer relação com o bar … no período aqui em apreço”, entendendo que “nesta parte, os depoimentos destas testemunhas não mereceram a credibilidade do tribunal”.

140. Este trecho consignado no aresto recorrido mal se percebe atento a unanimismo dos depoimentos no sentido em que os Recorrentes não exploravam de facto o bar ….

141. Queda-se por saber qual a razão que levou a que o Tribunal a quo tenha considerado apenas parte dos depoimentos prestados – que como vimos nem sequer resulta o que o Tribunal Recorrido entendeu que resulta –, trinchando-os e escolhendo apenas uma porção do seu conteúdo como sendo credível.

142. Ora, como comummente se diz, “não se pode querer sol na eira e chuva no nabal”, aqui reportado ao facto de o Tribunal de 1.ª instância valorar selectivamente partes de um depoimento, desconsiderando tudo quanto não cumpre a formação da convicção de condenação dos Arguidos. E, mais grave do que esta selecção propositada é nem sequer ser apreensível da decisão a motivação que subjaz a este entendimento.

143. Sendo que a totalidade destes depoimentos é absolutamente consentânea e credível ao referir que o Recorrente era o dono do espaço há largos anos, tendo abandonado a exploração do bar há vários anos – o que é coincidente com a data das buscas no bar …, reportadas ao anterior processo crime (13.10.2015).

144. Não podemos perder de vista que todas estas testemunhas prestaram declarações em sede de inquérito, decorrido durante o ano de 2019, pelo que como bem se compreenderá a referência temporal das mesmas reporta-se a esse ano.

145. Ainda assim, aquilo que resulta provado de todos estes depoimentos é que as testemunhas referiram que deixaram de ver os Recorrentes no bar … há cerca de alguns anos, não voltando a vê-los naquele local.

146. Em sentido contrário, o tribunal optou por alicerçar a sua convicção, nesta parte, no depoimento da testemunha OO, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim em 14:23:36, aos minutos 00:02:02 a 00:03:37 e 00:04:20 a 00:04:28, tendo concluído que a mesma prestou declarações “de modo credível, isento e circunstanciado, referiu conhecer os arguidos AA e DD do bar …; frequentou o bar cerca de 3 ou 4 vezes, até à data em que foi inquirido na GNR; conhece estes arguidos por serem os “proprietários da casa” pois costumava falar com eles ao balcão.”.

147. Não obstante, não foi exactamente isso que esta testemunha OO referiu nas declarações que prestou no dia 03-11-2021.

148. Compulsado o depoimento da referida testemunha, ouvida na sessão de julgamento do dia 03-11-2021, referente à gravação 20211115141526_3629957_2871817, com início às 15:05:05 e fim em 14:23:36, aos minutos 00:02:02 a 00:03:37, como se está bom de ver, a testemunha nem sequer se recorda a data em que terá frequentado o bar, onde apenas esteve 3 ou 4 vezes e, com muita ajuda por parte da Sra. Procuradora que procurava induzir uma data, lá conseguiu referir 2018 “P’RAÍ”, isto é, pode ser ou não ser!

149. E pior, refere esta testemunha que conhecia os Recorrentes, como sendo os “co-proprietários da casa”.

É que, efectivamente os Recorrentes são e continuam a ser proprietários do imóvel.

150. Quer isto dizer que a testemunha não referiu, como do aresto recorrido parece resultar, que conhecia os Recorrentes como exploradores do bar, mas apenas e só que os conhecia os Recorrentes como proprietários do imóvel, no ano em que o frequentou pontualmente e que com muita ajuda, mas sem qualquer certeza, indicou como sendo 2018.

151. Acresce ainda que a testemunha não referiu a partir de quando passou a frequentar o bar …., ou seja, se já o fazia no período em que os aqui Recorrentes exploravam efectivamente o bar ainda do anterior processo crime.

152. Ora, mais uma vez, isto é apenas e só a mera percepção desta testemunha que muito pontualmente se deslocou ao bar …, em 3 ou 4 situações, sendo que nem sequer as conseguiu balizar temporalmente.

153. Por sua vez, ao tribunal compete, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, valorar livremente a prova testemunhal, balizado por vários limites, entre eles, as regras de experiência comum. E este processo cognitivo de decisão tem de ser perceptível e perfeitamente identificado na decisão, seja ela em que sentido for.

154. A fundamentação dos actos decisórios é, ademais, aquilo que os separa de uma posição de jus imperi, que não pode nem tem acolhimento na lei processual penal.

155. Fazendo agora apelo às regras de experiência comum, não pode perder-se de vista que, sobretudo quanto ao Recorrente AA, a sua actividade sempre esteve ligada à restauração e aos bares, razão pela qual é quase indissociável a associação das várias testemunhas aos imóveis que são propriedade sua há vários anos.

156. Da mesma forma que é absolutamente plausível que o Recorrente seja visto atrás do balcão de um imóvel que é propriedade sua, em situações pontuais nas quais, por exemplo, se deslocava ao imóvel para efectuar a reparação de alguma coisa que se estragava, o que aliás é sua obrigação enquanto senhorio.

157. É que, salvo o devido respeito, opera-se também aqui um salto lógico na decisão recorrida que não se consegue acompanhar, na medida em que o Tribunal a quo procura escudar-se numa extensão fáctica que não assenta na matéria probatória constante dos autos – pelo contrário!

158. Da prova abundantemente produzida em julgamento e aqui transcrita resulta amiúde que os Recorrentes eram, AFINAL, os donos do imóvel onde se encontra localizado o bar …, sendo que nada mais resulta a este respeito e muito menos resulta que estes Recorrentes tivessem alguma coisa que ver com as actividades lá desenvolvidas por quem explorava ou bar ou pelas suas trabalhadoras, e muito menos que nelas participassem ou fossem promotores.

159. A este respeito, e pese embora se trate de uma questão conexa com a exploração do bar, menos relevante para os aqui Recorrentes, uma vez que a questão impugnada reside a montante, concretamente, da não exploração do referido bar, não se pode deixar de, à cautela, se impugnar especificamente os factos n.º7, 27 e 28, na parte em que mencionam que os Recorrentes intervinham e controlavam a actividade de prostituição desenvolvida no bar …, dela beneficiando economicamente, como se explanará adiante, a propósito do crime de lenocínio pelo qual os Recorrentes se viram condenados.

160. Repristinando tudo quanto se disse acima a propósito do envolvimento dos Recorrentes nas actividades desenvolvidas naquele local, e na medida em que os Recorrentes NADA tinham que ver com a actividade propriamente dita do bar, e muito menos com a actividade de prostituição, cumpre ainda assim ressaltar que, também da prova produzida (por reporte às testemunhas que trabalhavam no bar) transparece que esta actividade era exercida de mote próprio pelas senhoras que trabalhavam no bar.

161. Isso mesmo resulta de todos os depoimentos das testemunhas, as alegadas senhoras que praticavam a prostituição de que os valores cobrados pelos actos sexuais era definido por cada uma das pessoas e que eram inteiramente para si, não sendo devido qualquer pagamento a quem explorava o bar.

162. Ora, desde logo resulta que a actividade de prostituição era, assim, absolutamente independente do trabalho realizado no bar, até porque não era controlada, supervisionada nem sequer fomentada por quem geria a actividade do bar Topázio, que se limitava a assumir o papel de arrendatário dos quartos utilizados.

163. Não existe qualquer prova recolhida nos autos, nem isso resultou da produção de prova em sede de julgamento que os Recorrentes beneficiassem economicamente das relações sexuais mantidas pelas mulheres no piso superior ao do bar …, ou tão pouco que tivessem conhecimento disso.

164. Os Recorrentes não tinham conhecimento daquilo que era ou não feito nos quartos e se as mulheres recebiam ou não uma quantia monetária pela atividade sexual e se o recebiam quanto era o valor recebido pelas mesmas.

165. Por outro lado, importa concatenar esta questão com as declarações da testemunha QQ, que prestou declarações no dia 02-11-2019, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início em 13:54:10 e fim em 14:43:57, nas passagens dos minutos 00:23:45 a 00:24:00, e que confirmou que no decorrer da investigação resultou claro que as senhoras que praticavam actos sexuais o faziam por livre e espontânea vontade, inexistindo qualquer exploração de uma situação de carência económica ou social.

166. De tudo isto resulta evidente que não existia por parte dos Recorrentes, ou de quem quer que seja, qualquer espécie de facilitismo, auxílio ou domínio sobre a actividade desenvolvida nos quartos alugados pelas trabalhadoras do bar …. E, assim sendo, também fica absolutamente demonstrado que os Recorrentes não recebiam quaisquer benefícios decorrentes dessa actividade ali desenvolvida.

167. Assim, não existindo qualquer prova de favorecimento ou facilitismo do exercício da prostituição nem, bem assim, que houvesse um benefício económico directo ou sequer indirecto (por conta do aumento de clientela no bar …), devem tais factos provados n.º 7, 27 e 28, no que concerne ao trecho assinalado nos termos acima referidos, ser dado como não provado.

168. Por último, um pequeno excurso à valoração que é feita na sentença recorrida aos vários autos de intercepção e gravação de escutas telefónicas, referentes a conversações nas quais o Tribunal Recorrido considerou que se tratava da Arguida DD, tendo daí concluído que “a arguida encetou/recebeu contactos de clientes do bar … ou de colaboradoras, designadamente no sentido de saber se existia vaga disponível nos quartos”.

169. Ora, mais uma vez INEXISTE qualquer prova da associação entre os números de telefone ali identificados e escutados e a Recorrente DD.

170. E tanto assim é, que basta atentar no auto de busca e apreensão de fls. 1190, no qual a visada foi a Recorrente DD, para se concluir que o único telemóvel que foi apreendido diz respeito a um equipamento de marca …, cujo cartão SIM corresponde ao número …. NENHUM OUTRO telemóvel ou cartão sim foram apreendidos à aqui Arguida.

171. Esta questão da associação de números de telefone aos Recorrentes sem qualquer base probatória foi inclusivamente aludida em sede de audiência de julgamento, a propósito da inquirição da testemunha QQ, ouvida na sessão de julgamento do dia 02-11-2021, respeitante à gravação 20211102135408_3629957_2871817, com início às 13:54:10 e fim 14:43:57, aos minutos 00:09:36 a 00:16:20.

172. O Tribunal Recorrido, perante a questão suscitada no decorrer da prova produzida, comprometeu-se a “aferir de quem é efectivamente aquele número o tribunal obviamente irá analisar os elementos que tem no processo para quem é o número”.

173. Não só não o fez, como sem qualquer análise crítica, entendeu que ambos os números de telemóvel pertenciam à Arguida DD, o que não corresponde à verdade.

174. Por outro lado, também foi o próprio Ministério Público que acaba por concluir que não fará referência às escutas telefónicas dos Recorrentes AA e DD para não levantar ilegalidades!!

175. E fá-lo bem sabendo da ilegalidade destes autos de intercepção telefónica, de onde resultam associações de números de telefone aos Arguidos, sem que tais conclusões repousem em quaisquer provas trazidas aos autos, bastando-se aqui pela “intuição” dos OPC que ouviram estas escutas e dali deduziram que a Recorrente DD era titular de um determinado número de telemóvel – que, recorde-se, não lhe foi apreendido!

176. O que resta por dizer que, mais uma vez, o Tribunal Recorrido, ao arrepio de toda e qualquer base probatória que lhe permita extrair essa convicção, conclui que um determinado número de telemóvel que nunca foi apreendido à Arguida, de cujas conversações interceptadas NUNCA surge o nome da Arguida, mas uma tal “HH!!!

177. Face a tudo quanto a toda a factualidade unitariamente impugnada, da qual ressalta que os Recorrentes exploravam o bar … no período temporal entre, pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até 04 de junho de 2019, por existência de manifesta prova em sentido contrário, não poderiam ser dados como provados na medida em que o foram, pelo que dos mesmos deverão V. Exas. expurgar todas as referências respeitantes ao facto de serem os Recorrentes quem explorava/geria o estabelecimento comercial bar ….

178. Pelo que, em face do exposto, devem os aqui Recorrentes ser ABSOLVIDOS, por ser de elementar JUSTIÇA!

179. Contudo, mesmo que não se entenda operar qualquer alteração à sentença recorrida, consideram os Arguidos Recorrentes que, do ponto de vista estritamente jurídico, estes sempre teriam de ser absolvidos, MESMO QUE TODA A FACTUALIDADE VIESSE A SER DADA COMO PROVADA, como veio a suceder.

180. Nesta parte, cumpre salientar, pese embora o Acórdão proferido por este T.R.E., em 13-10-2022 tenha conhecido da questão da inconstitucionalidade do crime de lenocínio suscitada pelos Recorrentes e decidido não considerar inconstitucional o tipo penal de lenocínio simples, p. e p. no artigo 169º, n.º 1do C.P, que foi proferido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2023, datado de 20-04-2023 no qual se decidiu “Julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.o 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, conjugadamente”.

181. Ora, os Arguidos recorrentes mantêm a sua posição, na esteira do entendimento dominante na doutrina, de que, com as alterações legislativas de 1998 e de 2007, o crime previsto no n.º 1 do art.º 169º do C.P. passou a tratar-se de um crime sem vítima, uma vez que não existe qualquer tipo de pressão ou coacção sobre a alegada vítima, o que conflitua com o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa na medida em que, inexistindo já ofensa ao bem jurídico da liberdade sexual, não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade enquanto direito necessariamente implicado na punição.

182. Face ao exposto, atenta a superveniência e atualidade deste novo Acórdão do T.C. que, necessariamente teve de ser sopesado na decisão recorrida, porquanto anterior a este, os Arguidos recorrentes ressuscitam a questão, colocando novamente à apreciação de V. Exas. a inconstitucionalidade material do crime de lenocínio, p. e p. no art.º 169º n.º 1 do C.P., por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1 da Constituição, a qual novamente invocam, na esteira dos fundamentos expendidos no Acórdão n.º 218/2023 do Tribunal Constitucional.

183. O crime de lenocínio que está aqui em causa, encontra-se tipificado no referido art.º 169.º do Código Penal, o qual normativo, no n.º 1, passou a consagrar o tipo legal fundamental de crime de lenocínio.

184. O bem jurídico aqui protegido, neste crime de lenocínio simples, é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição, ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa.

185. O tipo objectivo consiste no fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por outra pessoa, agindo o autor de modo profissional ou com intenção lucrativa.

186. O crime de lenocínio simples é um crime de execução livre, pois a colaboração do agente pode ser realizada por qualquer modo. Contudo, o agente deve actuar profissionalmente (isto é, esta deve ser a actividade habitual do agente, embora possa não ser a única, constituindo o seu modo de vida) ou mesmo através de uma acção pontual ou esporádica, distinta do seu modo de vida, desde que com intenção lucrativa. O tipo não exige, pois, a concretização de um lucro efectivo para o agente.

187. Quanto ao tipo subjectivo, o mesmo crime é doloso, podendo fundar-se em qualquer das modalidades do dolo nos termos do vertido no Art.º 14.º do C. Penal. Sabendo-se que quando o agente actua com intenção lucrativa esta implica o dolo na sua forma mais grave.

188. Para quem defende a constitucionalidade do crime de lenocínio simples considera que o descrito preceito incriminador protege, no fundo, um bem jurídico, de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, em conformidade com o art.º 1° da Constituição da República.

189. Assumindo-se esses preceitos como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e, protegida constitucionalmente pelo art.º 26°, n.º 2, da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual. Ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.

190. Mas mesmo neste posicionamento fica claro que é indispensável uma interpretação constitucional restritiva do tipo penal no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, mais consentânea com o parâmetro dos bens jurídico-constitucionais no âmbito da criminalidade sexual, é também mais conforme com a natureza pública do procedimento criminal (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do Código Penal).

191. Ora, ainda que se entenda que o crime de lenocínio não é inconstitucional, para a tal possível conformação constitucional, vem sendo defendido pelo T.C., esta prova adicional do elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta.

192. Neste conspecto, diga-se que este Tribunal da Relação de Évora é, nesta matéria, mais pragmático e aparentemente de acordo com o entendimento da inconstitucionalidade (Acórdão datado de 14-07-2020, processo nº 943/18.5T9LLE-B.E1, em que foi Relator o Juiz Desembargador MARTINHO CARDOSO).

193. De facto, o recorte fino desta questão que vem sendo efectuado pelos nossos Altos Tribunais exige, pelo menos, que um conjunto de factos atinentes à exploração da necessidade económica e social das pessoas prostituídas sejam dados como provados, de forma a se alcançar um mínimo de conforto constitucional.

194. Trata-se, no fundo, de um esforço interpretativo que concede ao legislador penal a ponderação de incriminação deste tipo de situações que traduzem um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à actividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem.

195. É neste quadro social e jurídico descrito que a Jurisprudência maioritária vem interpretando o art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, com a restrição acima ponderada – no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta – pois só assim, mesmo para esta Jurisprudência, não padecerá de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18.º, n.º 2, da C.R.P..

196. Ora, se analisarmos com objectividade e rigor o caso em apreço nestes autos, constata-se que na matéria de facto considerada provada não vamos decifrar este elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, tanto nos seus componentes objectivos como subjectivos.

197. Aliás, esse mesmo elemento típico não fazia parte da acusação apresentada pelo Mº.Pº., o que traria ao Tribunal Recorrido as maiores dificuldades em superar esse objecto do processo assim delimitado pelo acusatório e em face dos condicionamentos próprios de uma alteração substancial dos factos – assim, no art.º 359.º, n.º 1, do C.P.P..

198. Na verdade, nenhuma da factualidade provada, nem mesmo em sede de fundamentação – simplesmente o Tribunal Recorrido, na esteira da acusação esquece por completo este segmento –, tanto na dimensão objectiva como subjectiva, vem a concretizar qualquer relação de ascendente, ou mesmo de exploração de qualquer necessidade económica e social por parte das pessoas prostituídas.

199. Ora, mesmo que se viesse a aceitar como faz o Tribunal Recorrido – o que apenas por cautela de patrocínio se concebe – que os Arguidos Recorrentes fomentaram, favoreceram ou facilitaram a prática de actos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento bar … e de cuja actividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respectivos proventos (factos provados 28 e 29) –, a verdade é que a factualidade provada não demonstra ao nível objectivo e subjectivo a conduta dos arguidos tendente a retirar as indevidas vantagens relação de ascendente (intelectual, emocional, psicológico, físico, económico e até familiar) que levou a corromper a vontade e a liberdade daquelas mulheres.

200. Pelo que entendem os Recorrentes que ainda que a factualidade viesse a ser dada como provada nos exactos termos da acusação, sempre teriam de ser absolvidos prática do crime de lenocínio por falta de consubstanciação factual típica.

201. Acresce ainda que, o Tribunal Recorrido, mesmo dando como provado a intervenção dos Arguidos, não conseguiu sustentar sequer o necessário preenchimento do ilícito típico objectivo.

202. E se dúvidas existissem em relação ao enriquecimento ou procura dele por parte dos Arguidos em relação à actividade das mulheres, a sentença recorrida é bastante clara nos factos provados 17) e 22), donde decorre que em relação ao eventual ganho dos Arguidos este residiria na actividade/aliciamento da venda de bebidas no bar, das quais 50% era para quem conseguisse a venda e os outros 50% para a casa.

203. Assim, não se encontram preenchidos os pressupostos legais que permitam a condenação dos Recorrentes pela prática do crime de lenocínio, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 169.º do Código Penal, razão pela qual desde já se requer a ABSOLVIÇÃO dos Recorrentes.

204. Acresce ainda que, e ainda que se entenda dar como assente toda a factualidade provada, não obstante a impugnação supra aduzida, entendem os Arguidos recorrentes que não podem ser condenados pelo crime de lenocínio em trato sucessivo, mas sim na forma continuada (diferenciação que tem, e deve ter, os devidos reflexos em sede de dosimetria das penas a aplicar aos Arguidos).

205. O Tribunal recorrido excluiu a aplicação do n.º 2 do art.º 30º do C.P. (crime continuado) na medida em que o crime de lenocínio visa a proteção do bem jurídico “autodeterminação sexual”, logo, não reconduzível à figura do crime continuado (art.º 30º n.º 3 do C.P.).

206. Sucede, porém, que a sentença recorrida condena os Arguidos por via do n.º 1 do art.º 169º do C.P. e não do seu n.º 2, sendo que a doutrina tem entendido que só relativamente aos casos de condenação pelo n.º 2 do art.º169º do C.P. é que tem cabimento o art.º 30º n.º 3 do C.P., ou seja, desaplicando-se a forma continuada ao crime praticado, entendimento que seguimos de perto.

207. É também pacífica na jurisprudência a concepção de que no n.º 1 do artigo 169.º do C.P. não se tutela (após as reformas de 1998 e 2007) a liberdade sexual de alguém – único fundamento para a punição dos crimes contra a liberdade sexual, onde apenas deve estar em causa a liberdade e a autodeterminação de uma pessoa concreta e não qualquer opção moral sobre a vida sexual que cada um quer ter – nomeadamente de quem pratica a prostituição, mas sim que o que é tutelado no n.º 1 do citado preceito, como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que não se compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

208. Descendo ao caso dos presentes autos, quer isto significar que a qualificação do crime de lenocínio como trato sucessivo teria apenas lugar caso os Arguidos fossem condenados pelo n.º 2 do art.º 169º do C.P. – o que não se verifica.

209. Por outro lado, ao ter decidido condenar os Arguidos recorrentes pelo crime de lenocínio em trato sucessivo, o Tribunal a quo consignou na fundamentação em sede de medida concreta da pena (não na factualidade) uma série de considerações factuais sobre as quais não deixou os arguidos se defenderem, como bem assinalou este Alto Tribunal – agravando-a severamente em prejuízo dos Arguidos, ora Recorrentes, atentas as manifestas diferenças entre a figura do trato sucessivo e do crime continuado (considerações factuais transcritas e sindicadas no corpo da motivação do presente recurso).

210. O Tribunal recorrido não só efetuou uma alteração da qualificação jurídica dos factos sem a comunicar devidamente aos Arguidos, não só lhes coarctou a possibilidade de se defender dessa alteração, como agora, em sede de decisão condenatória, lhes agrava a dosimetria das penas com base em considerandos factuais que não resultam sequer da factualidade dada como provada!!!

211. Salvo o devido respeito, a qualificação do crime de lenocínio como trato sucessivo não pode resultar de considerandos ou “achamentos” que não resultam da prova produzida, logo, nem sequer dados como provados.

212. Face ao exposto, e concebendo-se por mera cautela de patrocínio e sem conceder que a matéria de facto assente se mantém inalterada, não obstante a impugnação supra, devem os Arguidos recorrentes ser condenados pela prática, cada um, de 1 crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, em coautoria material, na forma consumada e na forma continuada por via do n.º 2 do art.º 30º do C.P., sendo manifestamente inaplicável in casu o trato sucessivo, sempre com as devidas consequências em sede de determinação da medida concreta da pena.

213. Como se vem dizendo, mesmo que se admitisse que o Tribunal Recorrido ignorasse olimpicamente como ignorou todas estas questões e, a final, decidisse, como decidiu, condenar os Arguidos, impunha-se que, em face dos factos provados se fizesse uma distinção entre os Arguidos Recorrentes AA e DD, como levasse em consideração a sua alegada participação nos factos de acordo com o provado.

214. A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do artº. 71º do C.P., em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.

215. Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo.

216. Na esteira da acusação pública que padece de manifesto rigor técnico, o Tribunal a quo no facto provado 28) coloca todas as condutas no mesmo “saco” – facilitar/fomentar e favorecer – quando é mais desvaliosa a prática do lenocínio quando o agente fomenta tal actividade, sendo maior o grau de ilicitude e de censurabilidade, e não se limita apenas a favorecê-la ou a facilitá-la.

217. Ora o Tribunal Recorrido demitiu-se dessa análise e o mesmo se diga em relação às circunstâncias referidas no artº. 71º, nº 2 do C.P., não relevando, por exemplo, o lapso de tempo já decorrido desde os factos e sobretudo os actos concretos levados a cabo pelos Arguidos Recorrentes, consubstanciados numa actuação esporádica.

218. É que não obstante a conclusão espúria do Tribunal Recorrido quanto à alegada exploração do bar pelos Arguidos Recorrentes, os actos concretos considerados pelo Tribunal Recorrido, de resto elencados na motivação, concretamente nos referidos autos de vigilância, mostram que num período de um ano de alegada exploração (facto provado 1), o Arguido AA terá se deslocado ao referido bar cerca de 8 vezes e a Arguida DD 1 ou 2 vezes!!!

219. Ora nenhuma conduta posterior ao facto milita contra a Arguida DD!

220. Ademais, o Tribunal Recorrido consigna que não levou em consideração como antecedente a última condenação por crime da mesma natureza, “tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado”, o que não é verdade, pois aplica uma pena de prisão de 3 anos para cada Arguido, quando na tal anterior condenação, num período de tempo superior e em que de facto os Arguido Recorrentes exploravam de facto (de forma habitual e profissional) o referido bar, foram condenados numa pena de 1 ano e 11 meses de prisão.

221. Ora, bem se vê a enorme discrepância de julgados em sede de condenação dos Arguidos Recorrentes.

222. Assim, violou o Tribunal recorrido a medida da culpa dos Recorrentes (artº. 40º nºs 1 e 2 do C.P.), sendo manifesta a desproporcionalidade da pena aplicada (artº. 71º nº 1 e 2 do C.P.), entre os próprios Arguidos em face do grau de participação que o próprio Tribunal recorrido escalpeliza em sede de fundamentação e que é diferenciado, como também a referida pena se acha desadequada em relação aos concretos factos cometidos.”

Terminam pedindo:

- Se declare nula a sentença recorrida considerando a falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica, por violação do disposto no artigo 358º nº1 e 3 do C.P.P., com revogação da decisão e determinação de notificação dos arguidos nos termos da referida norma, ou, subsidiariamente,

- Se declare nula a sentença recorrida porque fundada em prova proibida e, consequentemente, nula, nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 188º, nºs 7 e 9, alínea a), 190º, 355.º a 357.º todos do CPP e ainda do disposto no artigo 32º, nº 8 da C.R.P., ordenando-se a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.

- Se determine o reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do artigo 426º nº 1 do C.P.P., por verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º nº 2 al. c) do C.P.P., revogando-se a decisão recorrida.

- Se determine a condução dos factos provados nºs 1, 4, 5, 7 a 9, 12 a 14, 19, 21, 27 a 30 aos factos não provados, por verificação de erro de julgamento quanto à matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, com a consequente absolvição dos recorrentes.

- Em qualquer caso, se declare a inconstitucionalidade material do artigo 169.º, n.º 1, do CP, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1 da Constituição e, em consequência, se absolvam os arguidos da prática do crime de lenocínio, ou, não se declarando a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, se absolvam os recorrentes por impossibilidade legal de subsunção dos factos tidos por provados a tal ilícito penal ou, pelo menos, por impossibilidade de subsunção ao crime de lenocínio praticado em trato sucessivo;

- Se altere a sentença recorrida quanto à medida das penas impostas aos recorrentes, aplicando-se-lhes penas próximas dos limites mínimos, com especial atenuação para a recorrente DD.

*

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da sentença recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. A presente resposta é atinente ao recurso interposto pelos arguidos/recorrentes AA e DD, no que concerne à douta sentença depositada no dia 21-04-2023, que os condenou pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo Artº. 169º, nº.1, do Código Penal.

2. Entendemos que não assiste razão aos arguidos;

3. Não se verifica qualquer tipo de nulidade da sentença, por falta de comunicação da alteração da qualificação jurídica, por violação do disposto no Artº. 358º nº1 e 3 do Código de Processo Penal;

4. Também não enferma tal sentença de qualquer nulidade, por força da valoração de meios de prova nulos;

5. E, muito menos, se descortina um erro notório na apreciação da prova;

6. Pelo que, todos os factos dados como provados estão estribados em meios de prova válidos, devidamente analisados pelo Tribunal, não existindo qualquer tipo de incoerência na decisão alcançada;

7. Também inexiste qualquer inconstitucionalidade material do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, em violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, como, aliás, os Venerandos Juízes Desembargadores já decidiram, bem como, por foça de vastíssima jurisprudência e doutrina;

8. Também não existe qualquer irregularidade quando o Tribunal, no âmbito da aplicação do Artº. 340º do Código de Processo Penal indeferiu a inquirição de mais duas testemunhas indicadas pelos arguidos;

9. De facto, o Tribunal deve fazer a ponderação da necessidade de tais meios de prova, o que fez, logo, estão cumpridos os pressupostos para o respectivo indeferimento.

10. Pelo que, não assiste razão aos arguidos e, como tal, deve o recurso a que agora se responde improceder, mantendo-se a decisão nos seus exactos termos.”

*

A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação teve vista do processo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 416º, nº 2 do CPP.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e tendo sido realizada a audiência, com observância dos requisitos legais previstos no artigo 423º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes da respetiva motivação, as questões a apreciar e a decidir, são as que de seguida se enunciarão.

A) No âmbito dos recursos interlocutórios:

a) Determinar se na comunicação da alteração da qualificação jurídica efetuada nos termos do artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, em cumprimento do anterior acórdão desta Relação, o tribunal recorrido deveria ter indicado as provas nas quais se baseou a alteração comunicada;

b) Determinar se na situação dos autos deveria ter sido deferido o pedido de inquirição de duas testemunhas formulado pelos recorrentes no âmbito da defesa que decidiram apresentar no decurso do prazo que para tal lhes foi concedido ao abrigo do disposto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP.

B) No âmbito do recurso interposto da sentença condenatória:

a) Determinar se a sentença recorrida é nula:

- Nos termos do artigo 379º nº 1 al. b) do CPP, por violação do disposto no artigo 358º nº 1 e 3 do CPP, atenta a falta de comunicação adequada da alteração da qualificação jurídica;

- Por insuficiência do exame crítico da prova, nos termos do artigo 379º nº 1 al. a) por remissão para o artigo 374º, nº 2 do CPP;

- E ainda porque fundada em prova proibida e, consequentemente, também ela própria nula.

b) Determinar se a decisão recorrida enferma do vício de erro notório na apreciação da prova consagrado na alínea c) do no nº 2 do artigo 410º do CPP.

c) Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP.

d) Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos em virtude de: - O crime de lenocínio ser materialmente inconstitucional. - A factualidade apurada não se subsumir ao tipo legal de lenocínio. - A determinação das medidas das penas não ter respeitado os princípios da legalidade e da adequação.

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:

“1) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos AA e DD, com o auxílio dos arguidos MM, JJ e PP, exploram o estabelecimento comercial denominado “Bar …”, sito na Rua …, lote …, na …; pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até ao dia 18 de março de 2019, o arguido GG auxiliou na exploração do referido bar.

2) A arguida DD e o arguido AA são companheiros, coabitando desde data não concretamente apurada, mas seguramente situada antes de maio de 2018.

3) No âmbito do processo n.º … que correu termos no Juízo Local de Competência Genérica de …, foram os arguidos AA e DD condenados, por sentença proferida a 31 de janeiro de 2018 e transitada em julgado a 27 de novembro de 2019, pela prática, cada um deles, em coautoria material, de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de um ano e onze meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova em termos a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, relativamente a factos ocorridos no período compreendido entre novembro de 2014 e 10 de outubro de 2015 e relacionados com a exploração do estabelecimento denominado “Bar …”, sito na Rua …, lote …, na ….

4) Face a tal condenação, os arguidos DD e AA, no âmbito de um acordo alcançado entre eles e o arguido MM, passaram a dirigir a atividade do “Bar …” também através do arguido MM, sendo que este último passou a constar como responsável pela exploração do bar … e do estabelecimento de “alojamento local” sito no piso superior do aludido bar nos registos que foram efetuados na “Plataforma Digital”, com os números de registo “…” datado de 17-08-2018 e “…” datado de 21-08-2018.

5) No entanto, apesar de o arguido MM figurar como explorador dos aludidos estabelecimentos, eram os arguidos DD e AA que, efetivamente, pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, continuavam a angariar as mulheres para trabalhar no “Bar …” e explicar às mesmas o funcionamento do bar, bem como a receber o dinheiro entregue pelas mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição.

6) Para além disso, no período compreendido, pelo menos, desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos JJ, PP e GG, este último até ao dia 18 de março de 2019, trabalhavam no aludido “bar” como empregados de balcão e, simultaneamente, fazendo o controlo das “subidas e descidas” das mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição aos quartos situados no segundo andar e no sótão do edifício onde o bar “…” funcionava, bem como o controlo do pagamento, por parte dessas mulheres, dos valores cobrados pelos arguidos pela utilização dos referidos quartos.

7) Para controlar a atividade de prostituição desenvolvida no aludido bar, os arguidos DD e AA, para além de beneficiarem do auxílio dos arguidos MM, JJ, PP e GG, utilizavam os seus telemóveis e cartões telefónicos para, não apenas, contactar com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, como trocavam mensagens e efetuavam contactos telefónicos com as várias mulheres que ali exerciam ou pretendiam vir a exercer a atividade de prostituição, explicando as condições e informando se existia ou não vaga no estabelecimento, para além de, em diversas ocasiões, ali se deslocarem pessoalmente, com vista a controlar “in loco” a atividade do bar e dos quartos sitos nos andares superiores do edifício.

8) O arguido AA utilizava os cartões telefónicos com os números …, contactando com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

9) Quanto à arguida DD, esta utilizava, entre outros, os cartões telefónicos com os números … e … para trocar mensagens e efetuar contactos telefónicos com as várias mulheres e com os demais arguidos, angariando as mulheres para trabalhar no “Bar …”, explicando as condições e informando se existia ou não vaga, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

10)O arguido MM utilizava o cartão telefónico com o número …, efetuando contactos com os demais arguidos, nos quais recebia e dava instruções acerca do funcionamento do bar, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019.

11)Os arguidos JJ e PP trabalharam no referido estabelecimento comercial no período compreendido entre maio de 2018 e junho de 2019, cabendo-lhes servir bebidas aos clientes, bem como receber as quantias entregues pelas mulheres na ausência dos demais arguidos; o arguido GG trabalhou nos mesmos moldes até, pelo menos, ao dia 18 de março de 2019.

12) O arguido GG utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.

13) O arguido JJ utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.

14) O arguido PP utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido.

15)O referido estabelecimento “Bar …”, que, no período compreendido de maio de 2018 a 4 de junho de 2019, funcionava de segunda-feira a domingo, entre as 14.30 horas e as 02.00 horas, era (e é) constituído por um salão, com um balcão, várias mesas e sofás.

16)No piso superior do imóvel onde funcionava o estabelecimento comercial denominado “Bar …” existiam vários quartos mobilados, sendo que o acesso a tais quartos era efetuado por uma entrada existente no logradouro do imóvel, junto à entrada do bar.

17)No referido estabelecimento, pelo menos no período compreendido entre maio de 2018 e 4.06.2019, trabalhavam várias mulheres, a maioria das quais de nacionalidade brasileira, cuja atividade consistia em aliciar os clientes a consumir bebidas alcoólicas e bem assim a acompanhá-los aos quartos existentes no piso superior onde mantinham com os mesmos relações sexuais a troco de dinheiro.

18)Para o efeito, tinham ao seu dispor, no interior dos quartos, preservativos, toalhitas humedecidas e rolos de papel higiénico e de papel de cozinha.

19)O acesso aos quartos era autorizado pelos arguidos AA e DD, ou na sua ausência, pelos arguidos MM, JJ, PP e GG.

20)Algumas mulheres pernoitavam nos quartos existentes no piso superior, enquanto outras apenas utilizavam os quartos para a prática das relações sexuais, não pernoitando naqueles. 21)O valor da diária pela utilização dos referidos quartos era de €30 (trinta euros) para cada mulher, sendo tal valor entregue, diariamente, aos arguidos MM, JJ, PP e GG que, por seu turno, os entregavam aos arguidos AA e DD.

22)As mulheres recebiam ainda 50% das quantias respeitantes às bebidas que lhes fossem pagas pelos clientes.

23)No dia 04.06.2019, pelas 15h35m, encontravam-se no interior do “Bar …”, sete mulheres, designadamente: FFF, TT, GGG, KK, HHH, UU e III, as quais desempenhavam as funções descritas em 17) a 20).

24)Bem como cinco clientes, designadamente: JJJ, KKK, LLL, MMM e OO; todos eles conhecedores da atividade ali praticada pelas mulheres e que ali se deslocavam com o intuito de ter relações sexuais com as mesmas, pagando para o efeito quantias que variavam entre os €30 (trinta euros) e os €40 (quarenta euros) por ato sexual.

25)Nessas circunstâncias de tempo e lugar, UU encontrava-se no piso superior e no interior de um dos quartos, na companhia de OO, encontrando-se em pleno ato sexual, tendo OO, em momento anterior, pago a quantia de €30 (trinta euros) a UU, em troca de serviços sexuais. 26)Na data indicada em 23), na sequência de busca realizada ao estabelecimento comercial denominado “Bar …” no âmbito do presente processo, foram encontrados: NA ÁREA DO BALCÃO Ø A1_A1 - Um (01) documento manuscrito com o nome de diversas mulheres; Ø A1_A2 – Um (01) disco de gravação CCTV com o n.º de série …, respectiva TV da marca … modelo … com o n.º …; Ø A1_A3 – Um (01) documento de aquisição de bebidas passado em nome do explorador do estabelecimento “BAR … – MM”; Ø A1_A4 – Um (01) telemóvel de marca … modelo … com os IMEI’s … e …; NA ÁREA DA COPA Ø A1_B1 – Diversos talões manuscritos e duas (2) notas de cinco euros (5€) que se encontrava dentro de uma caneca; Ø A1_B2 – Cento e cinquenta euros (150€) em moedas do valor de 0.50€, 1€ e 2€, que se encontrava num saco no interior de um armário; Ø A1_B3 – Diversos documentos manuscritos tipo canhoto, que se encontravam no interior de uma lata de bebida “…”; Ø A1_B4 – Uma (01) caixa contendo diversos preservativos;

Ø A1_B5 – Uma (01) caixa contendo diversos blocos numerados; NO QUARTO EXISTENTE NAS TRASEIRAS DO ESTABELECIMENTO Ø A1_C1 – Três (03) caixas contendo preservativos; Ø OUTROS QUARTOS Ø CORREDOR DOS CACIFOS – A.2.A: Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 2 - UTILIZADO PELA COLABORADORA FFF Ø (213) Preservativos masculinos variados; Ø (38) Embalagens de lubrificantes individuais; Ø (2) Rolos de papel de cozinha; Ø (1) Embalagem de toalhitas; Ø (1) Lençol de cama. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 14 - UTILIZADO PELA COLABORADORA GGG Ø (17) Preservativos masculinos variados; Ø (1) Preservativo feminino; Ø (1) Embalagem de lubrificante; Ø (1) Rolo de papel de cozinha; Ø (1) Embalagem de toalhitas; Ø (1) Lençol de cama. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 17 - UTILIZADO PELA COLABORADORA HHH Ø (18) Preservativos masculinos variados; Ø (1) Embalagem de lubrificante; Ø (1) Rolo de papel de cozinha; Ø (1) Embalagem de toalhitas; Ø (2) Lençóis de cama; Ø (1) Toalha de banho. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 11 - UTILIZADO PELA COLABORADORA KK Ø (124) Preservativos masculinos variados; Ø (2) Rolos de papel de cozinha; Ø (1) Embalagem de toalhitas; Ø (2) Lençóis de cama. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 10 - UTILIZADO PELA COLABORADORA TT Ø (83) Preservativos masculinos variados; Ø (8) Preservativos femininos; Ø (5) Embalagens individuais de lubrificante; Ø (2) Rolos de papel de cozinha; Ø (3) Embalagens de toalhitas; Ø (3) Lençóis de cama; Ø (2) Embalagens de lubrificante. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 1 - UTILIZADO PELA COLABORADORA III Ø (25) Preservativos masculinos variados; Ø (1) Rolo de papel de cozinha; Ø (1) Lençol de cama; Ø (1) Toalha de banho. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 7 – DESCONHECIDO Ø Diversos Preservativos masculinos variados; Ø (1) Rolo de papel de cozinha; Ø (1) Lençol de cama; Ø (1) Embalagem de toalhitas. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 15 – DESCONHECIDO Ø Diversos Preservativos masculinos variados; Ø (1) Rolo de papel de cozinha; Ø (2) Lençóis de cama; Ø (1) Embalagem de toalhitas. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 16 - DESCONHECIDO Ø Diversos Preservativos masculinos variados; Ø Gel lubrificante; Ø (2) Lençóis de cama; Ø (1) Embalagem de toalhitas.Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 19 - DESCONHECIDO Ø Diversos Preservativos masculinos variados; Ø (1) Embalagem de toalhitas. Ø NO INTERIOR DO CACIFO Nº 20 – DESCONHECIDO Ø (1) Lençol de cama; Ø (1) Rolo de papel de cozinha. Ø NO INTERIOR DE CACIFO INDEFERENCIADO Ø Contrato de Arrendamento em nome de AA e de MM e outros documentos; Ø (1) Bloco de faturas em nome de MM. Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 2 - UTILIZADO PELA COLABORADORA GGG Ø (01) Rolo de papel de cozinha que se encontrava na gaveta da mesa de cabeceira; A2_B1 Ø (04) Preservativos e (2) embalagens individuais de lubrificante; A2_B2 Ø (1) Rolo de papel de cozinha que se encontrava no roupeiro; A2_B3 Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 1 - UTILIZADO PELA COLABORADORA HHH Ø (88) Preservativos masculinos variados e (1) vibrador em forma de pénis que se encontravam numa bolsa dentro do armário; A2_C1 Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 6 - UTILIZADO PELA COLABORADORA KK Ø (2.000) Euros que se encontravam numa carteira dentro de uma mala, estando a mesma num armário; A2_D1 Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 8 - UTILIZADO PELA COLABORADORA TT Ø (1) Contrato da … em nome de TT com a morada Avenida …, Lote …, …, que se encontrava dentro de uma mala na cómoda; A2_E1 Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 5 - UTILIZADO PELA COLABORADORA III Ø (425) Preservativos masculinos variados, (145) embalagens individuais de lubrificantes e (19) preservativos femininos que se encontravam dentro do armário; A2_F1Ø (96) Preservativos masculinos variados que se encontravam dentro de uma mala; A2_F2 Ø NO INTERIOR DO QUARTO Nº 4 - UTILIZADO PELA COLABORADORA UU Ø (29) Preservativos masculinos variados, (6) preservativos femininos, (11) embalagens individuais de lubrificante, (1) rolo de papel de cozinha, (1) embalagem de gel de massagem que se encontravam ao lado da cama e (1) lençol que se estava a ser utilizado em cima da cama; A2_G1 Ø (1) Preservativos masculinos aberto pronto a ser usado que se encontrava em cima da cama; A2_G2 Ø (1) Embalagem individual de gel lubrificante aberto e pronto a ser usado que se encontrava na gaveta da mesa de cabeceira; A2_G3 Ø NO INTERIOR DA MARQUISE: Ø (1) Papel manuscrito com a distribuição dos cacifos das colaboradoras que se encontrava dentro de uma lata em cima da máquina de lavar; A2_H1 Ø Diversos preservativos que se encontravam dentro de uma mala; A2_H2 Ø (1) Sistema de Vigilância e Gravação de CCTV com respetivo ecrã que se encontrava numa prateleira; A2_H3

27) Os arguidos MM, JJ, PP e GG prestavam auxílio à exploração pelos arguidos AA e DD do mencionado estabelecimento comercial, quer exercendo no mesmo atividade de empregados de bar, quer facilitando (nos termos acima descritos) o exercício pelos demais arguidos da atividade descrita e da qual também obtiveram os respetivos proventos.

28) Os arguidos AA e DD agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de atos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento "Bar …" e nos pisos superiores do edifício onde tal bar se situa, reunindo no mesmo condições para tal, beneficiando direta e economicamente das relações sexuais ali mantidas, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que ali se deslocavam com o intuito de manterem relações sexuais e que acabavam também por consumir as bebidas ali comercializadas.

29)Por seu turno, os arguidos MM, JJ, PP e GG, ao colaborarem com os demais arguidos, prestando àqueles auxílio, nos moldes descritos, recebendo das mulheres que ali se prostituíam quantias em dinheiro e controlando as deslocações das mesmas aos quartos com os clientes, bem como o tempo que ali permaneciam, durante o tempo em que trabalharam para os arguidos AA e DD no “Bar …”, atuaram com a vontade livre e a perfeita consciência de que, ao adotarem tal conduta, facilitavam o exercício da prostituição por aquelas mulheres e de cuja atividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respetivos proventos.

30)Todos os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente e com o mesmo propósito, durante o período temporal referido, e pelo menos entre maio de 2018 e 18 de março de 2019 quanto ao arguido GG e pelo menos entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019 quanto aos demais arguidos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Da contestação apresentada pelo arguido MM

31) Através de documento intitulado “Contrato de Locação de Estabelecimento”, datado de 16.08.2018, foi estabelecido que o arguido AA, na qualidade de proprietário, concederia a exploração do estabelecimento comercial denominado …, sito na Rua …, lote …. ao arguido MM.

32) Através de documento intitulado “Contrato de Arrendamento para Habitação”, datado de 16.08.2018, o arguido AA, na qualidade de proprietário, arrendou ao arguido MM a fração autónoma destinada a habitação sita na Rua …, lote …, … andar.

Das condições pessoais do arguido AA

33) Consta registado na Segurança Social como trabalhador independente, com última remuneração em novembro de 2021, no valor de € 1.043,51. 34) Explora um estabelecimento comercial denominado …café.

35) Consta registado como proprietário de um veículo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula ….

36)Consta registado como proprietário de dois imóveis.

Dos antecedentes criminais do arguido AA

37)Uma condenação no âmbito do processo n.º 3/05.9…, do Tribunal Judicial de …, de 22.09.2006, transitada em julgado a 09.10.2006, pela prática, em 20.01.2005, de 1 crime de jogo fraudulento, p. e p. pelo Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 4,50, num total de € 450,00. Tal pena foi declarada extinta em 15.05.2007.

38)Uma condenação no âmbito do processo n.º 173/09.7…, do Tribunal Judicial de …, de 04.06.2010, transitada em julgado a 05.07.2010, pela prática, em 25.03.2009, de 1 crime de jogo fraudulento, p. e p. pelo Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, na pena de 135 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE 6,50, QUE PERFAZ O TOTAL DE 877,50 EUROS. Tal pena foi declarada extinta em 26.12.2013.

39)Uma condenação no âmbito do processo n.º 552/10.7…, do Tribunal Judicial de …, de 31.05.2011, transitada em julgado a 11.07.2011, pela prática, em 13.10.2020, de 1 CRIMES(S) DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CÔNJUGE OU ANÁLOGOS NORMA, P.P. PELO ART.º 152º, Nº 1, AL. A), DO C. PENAL e 1 CRIMES(S) DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, P. e P. pelo ARTº 86º, Nº 1 AL. D) DA LEI 5/2006, na pena de única de 3 ANOS e 2 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 3 ANOS E 2 MESES, CONDICIONADA AO PAGAMENTO DA QUANTIA DE € 750,00 À APAV, NO PRAZO DE 2 MESES. Tal pena foi declarada extinta em 24.03.2015.

40)Uma condenação no âmbito do processo n.º 754/14.7…, do TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE …, … - JUÍZO C. GENÉRICA -JUIZ …, de 31.01.2018, transitada em julgado a 27.11.2019, pela prática, em 11.2014, de 1 crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ANO e 11 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 1 ANOS e 11 MESES, com regime de prova.

Das condições pessoais da arguida DD

41)Consta registada na Segurança Social como trabalhadora independente, com última remuneração em novembro de 2021, no valor de € 175,00.

42)Explora um estabelecimento comercial denominado … café.

43)Não consta registada como proprietária de veículos automóveis.

44) Não consta registada como proprietária de bens imóveis.

Dos antecedentes criminais da arguida DD

45)Uma condenação no âmbito do processo n.º 754/14.7…, do TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE …, … - JUÍZO C. GENÉRICA -JUIZ …, de 31.01.2018, transitada em julgado a 27.11.2019, pela prática, em 18.08.2014, de 1 crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ANO e 11 MESES DE PRISÃO, SUSPENSA POR 1 ANOS e 11 MESES, com regime de prova. (…)

2.2. Factos não provados com relevância para a decisão da causa

Da acusação

a) Que o valor referido em 21) fosse entregue, direta e diariamente, pelas mulheres que desenvolviam a atividade de prostituição, aos arguidos AA e DD.

b) Que os arguidos AA e DD não desempenhassem, nem desempenhem, qualquer outra atividade profissional remunerada, vivendo exclusivamente da exploração do mencionado estabelecimento comercial, de onde lhes advinham (e advêm) todos os seus rendimentos.

Da contestação do arguido MM

c) Que o arguido MM apenas se deslocasse ao bar … pela manhã, com o intuito de verificar as contas e retirar o dinheiro deixado pelos empregados, a fim de proceder ao seu depósito.

d) Que o arguido MM nunca tivesse contactado qualquer mulher que frequentava o bar ….

e) Que, até 31.07.2018, o bar … e o piso superior tivessem sido explorados por NNN, data em que entregou tais espaços ao arguido AA.

Inexistem outros factos não provados com relevância para a decisão da causa.

* Na contestação apresentada pelos arguidos AA e DD é invocada a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal e, quanto à factualidade, foi relegada a discussão para a audiência de julgamento, pelo que inexistem quaisquer factos que cumpra elencar.

Na contestação apresentada pelo arguido PP é oferecido o merecimento dos autos, pelo que inexistem quaisquer factos que cumpra elencar. Os restantes factos são conclusivos, respeitantes a matéria de direito ou repetidos, pelo que não foram elencados. Os demais factos alegados na contestação do arguido MM consubstanciam negação da factualidade considerada assente, motivo pelo qual não foram elencados.”

*** II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A-Dos recursos interlocutórios

B-Nota prévia: Considerando a estreita relação e parcial similitude entre a argumentação recursiva apresentada pelos recorrentes nos dois recursos interlocutórios que constituem objeto da nossa análise, trataremos conjuntamente das questões aí colocadas. a) Da não concretização das provas aquando da comunicação da alteração da qualificação jurídica efetuada nos termos do artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP e da não admissão da inquirição de testemunhas solicitada. B) Afirmam os recorrentes nas motivações dos dois recursos interlocutórios – concretamente o recurso interposto em 24.03.2023 relativamente ao despacho proferido em 27.02.2023 (que indeferiu a concretização das provas solicitada pelos arguidos e que não admitiu o rol de testemunhas por aqueles apresentado) e o recurso interposto em 17.05.2023 relativamente ao despacho proferido em 21.04.2023 (que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 27.02.2023) – e nas conclusões que das mesmas extraíram, que o tribunal a quo ao ter decidido, no despacho proferido em 27.02.2023, não concretizar os meios de prova que sustentaram a alteração da qualificação jurídica e ao ter indeferido o pedido de inquirição das testemunhas indicadas pelos recorrentes, gerou uma nulidade, por preterição do cumprimento do anterior acórdão desta Relação proferido por este Tribunal Superior e por violação do estipulado nos preceitos legais aplicáveis, nomeadamente, dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do C.P.P. Mas não tem, a nosso ver, razão. Vejamos. É sabido que – numa evolução histórica que damos por conhecida e que, por isso, nos dispensamos explicitar – para a alteração da dimensão normativa dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ou seja, para a alteração da qualificação jurídica, o legislador convocou, no atual n.º 3 do artigo 358.º CPP, o regime previsto para a alteração não substancial prevista no nº 1 do mesmo preceito.

Porém, ao contrário do que propugnam os recorrentes, o entendimento de que “cabe ao Tribunal proceder à comunicação da alteração mas também fazer a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta, in casu, a alteração da qualificação jurídica que pretende operar” (1) está longe de ser pacífico! Na verdade, tal posição, a mais de controversa, apresenta-se como claramente minoritária na jurisprudência dos tribunais superiores e, ainda assim, surge associada a situações em que a comunicação da alteração não substancial efetuada se reporta a factos (2) e não à sua qualificação jurídica. Com efeito, é de primordial importância para a questão que apreciamos não confundir duas realidades normativas substancialmente distintas – a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos – cuidando, com respeito de tal premissa, de não aplicar a cada uma delas as particularidades do regime previsto no artigo 358º, nº 1 do CPP que se não adequem à sua natureza específica ou que até contrariem a sua própria lógica. Embora já anteriormente se não discutisse que o tribunal poderia dar aos factos imputados ao arguido na acusação um enquadramento diferente do aí consignado, é sabido que o nº 3 do artigo 358º do CPP (3) veio conferir tutela legal à ideia de que a liberdade de qualificação jurídica dos factos atribuída ao tribunal, deverá ser compatibilizada com a adequada garantia do direito de defesa do arguido. O que se pretendeu com tal alteração legislativa, foi, pois, garantir que o arguido não fosse confrontado na sentença com uma convolação surpresa, sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de reorganizar a sua defesa em função do novo enquadramento jurídico que o tribunal entendera dar aos factos que lhe vinham imputados no processo. E é nesta concreta perspetiva que deve ser entendida a remissão efetuada no nº 3 do artigo 358º do CPP para o nº 1 do mesmo preceito. Trata-se da consagração da tutela efetiva do direito de defesa do arguido que o legislador decidiu estender também às situações em que, mantendo-se intocados os factos, o tribunal entende que lhe corresponde um diferente enquadramento jurídico. E o critério utilizado foi o da remissão para um procedimento que já se encontrava previsto paras as alterações dos próprios factos, ainda que não substanciais. Ora, tal como bastas vezes sucede quando se opta pela técnica legislativa da remissão, também aqui a transposição do regime deverá ser feita com as cautelas que o respeito pela distinta natureza das duas realidades em presença impõe. Assim, temos que: em caso de alteração de factos, comunicam-se factos; em caso de alteração da qualificação jurídica dos factos, comunica-se a diferente qualificação jurídica, nada mais havendo a comunicar por nada mais se pretender alterar. Mesmo nas situações em que o tribunal entende dever realizar uma alteração não substancial de factos, o objeto da sua comunicação não abrange a indicação das provas em que entendeu suportar-se para fazer operar a alteração, devendo, outrossim, restringir-se à enunciação aos factos novos, prevenindo o arguido da sua decisão quanto aos mesmos e viabilizando desse modo que aquele apresente a sua defesa relativamente a tais factos. A imposição legal de referência às provas não se reporta ao momento processual em que o tribunal deverá comunicar a alteração de factos, desde logo porquanto em tal momento inexiste ainda qualquer juízo probatório realizado que cumpra motivar, o que existe é tão somente a suscetibilidade de resultarem provados factos que constituem uma alteração não substancial dos descritos na acusação. (4) Temos assim por seguro que aquando da comunicação da alteração de factos realizada nos termos do n.º 1 do artigo 358.º do CPP, a lei não impõe a indicação dos meios de prova (5), posição que, aliás, foi já objeto de apreciação no TC, que veio a decidir no acórdão n.º 216/2019, de 02.04.2019 “não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta”. Ora, se nas situações em que o tribunal comunica uma alteração de factos, tal comunicação não deverá ser acompanhada da indicação das provas em que sustenta a alteração, relegando-se tal indicação para a sua sede própria, ou seja para a sentença, menos ainda tal indicação deverá ocorrer quando o que se comunica é apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Não se compreende, aliás, o raciocínio a este propósito expendido pelos recorrentes, pois que, se não se comunicam factos novos, como poderia o tribunal indicar as provas em que sustentou a alteração anunciada como vem defendido no recurso? Como sabemos, as provas sustentam factos em sentido naturalístico e não a sua dimensão normativa ou qualquer tipo de perspetiva jurídica associada aos mesmos.

Daqui decorre, como se antevê, que, sendo diferente o conteúdo da comunicação nas duas realidades a que vimos aludindo – a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos – diferente será também a natureza da defesa que o arguido poderá exercer no prazo que lhe for concedido, defendendo-se relativamente aos novos factos que lhe tenham sido comunicados (nos termos do nº 1 do artigo 358º do CPP) ou defendendo-se apenas no que tange à nova perspetiva jurídica que o tribunal passou a atribuir aos factos que lhe estavam já imputados nos autos (nos termos do nº 3 do artigo 358º do CPP). Ora, se é evidente que a defesa relativamente a novos factos poderá incluir a produção de prova testemunhal, é também incontornável que tal tipo de prova se não adequa à defesa relativamente a matéria estritamente jurídica, pois que, como sabemos, as testemunhas depõem sobre factos, não lhes cabendo pronunciar-se sobre o enquadramento jurídico dos mesmos ou sobre qualquer tipo de questão de direito. Não obstante ter sido estabelecido um paralelismo entre a alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica dos factos, na transposição do regime não poderemos deixar de fazer ajustes que respeitem as idiossincrasias de cada uma de tais realidades. Na verdade, o que se pretende garantir com o regime previsto para a alteração da qualificação jurídica é que o arguido seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica e que, depois advertido, lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função da nova visão normativa dos factos que já constituíam o objeto do processo. Porém, tal defesa deverá conter-se no âmbito da alteração comunicada, ou seja, num plano estritamente jurídico, não comportando a apresentação de meios probatórios que visem provar ou infirmar factos, conquanto ao nível factual nada foi comunicado por nada se pretender alterar. Pressupondo este tipo de alteração uma manutenção absoluta dos factos –sendo certo que só se falará de uma alteração de qualificação jurídica quando os factos imputados persistam – àquela será alheia qualquer tipo de atividade probatória, quer como pressuposto da comunicação a que alude o artigo 358º. nº 3 do CPP, quer em consequência da mesma, ou seja no âmbito da defesa que o arguido venha a apresentar. Como sabemos, na fase de julgamento, por respeito ao princípio da vinculação temática, o tribunal circunscreve-se aos factos imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia, o que não é afetado por uma possível requalificação jurídica desses factos, que, por isso mesmo, é legalmente autorizada. (6) É o que se passa no presente caso. A circunstância de o tribunal ter considerado que os factos imputados aos arguidos poderiam fazê-los incorrer numa condenação por um crime de lenocínio praticado em trato sucessivo e não num crime de lenocínio praticado na forma continuada, nenhum reflexo tem no objeto do processo, que permaneceu o mesmo, e nenhum prejuízo acarreta para a posição processual dos arguidos, não vulnerando o respeito pela natureza acusatória do processo e pelo princípio da vinculação temática, pois os factos que poderão fundar a sua responsabilidade penal foram introduzidos no processo não pelo tribunal, mas pelo Ministério Público no exercício da na sua função de acusador. A obrigação legal de indicação das disposições legais aplicáveis aos factos descritos na acusação não se reporta à delimitação do objeto do processo, mas antes a uma dimensão informativa que a acusação também deve prosseguir, pois que o enquadramento jurídico é importante para o exercício do direito de defesa, integrando-se este dever de informação no domínio mais amplo do direito fundamental de audiência e contraditório (7). Daí que a intenção do tribunal de requalificar juridicamente deva ser comunicada ao arguido para que este possa reestruturar a sua defesa e exercer o seu contraditório em conformidade. Mas tal contraditório cinge-se ao aspeto jurídico. Ou seja, o arguido, no prazo que lhe for concedido, poderá trazer aos autos, por requerimento para tal efeito elaborado, a sua posição sobre a leitura jurídica dos factos comunicada pelo tribunal. E não mais do que isso. Estas as razões pelas quais entendemos não procederem os argumentos esgrimidos pelos recorrentes para solicitarem, quer a concretização das provas que alegam encontrarem-se subjacentes à alteração da qualificação jurídica comunicada, quer a inquirição das duas testemunhas que indicaram no âmbito do exercício do seu direito de defesa, não merecendo reparo o despacho que indeferiu tais pretensões, nem o subsequente despacho que indeferiu o pedido de declaração de nulidade do primeiro. Improcede, pois, totalmente, a fundamentação apresentada nos recursos interlocutórios – concretamente o recurso interposto em 24.03.2023 relativamente ao despacho proferido em 27.02.2023 (que indeferiu a concretização das provas solicitada pelos arguidos e que não admitiu o rol de testemunhas por aqueles apresentado) e o recurso interposto em 17.05.2023 relativamente ao despacho proferido em 21.04.2023 (que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de 27.02.2023) – pelo que os mesmos improcederão, mantendo-se integralmente os aludidos despachos.

*** B) Do recurso interposto da sentença condenatória.

a) Da invocada nulidade da sentença recorrida decorrente, quer da falta de comunicação adequada da alteração da qualificação jurídica nos termos previstos no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP, quer da insuficiência do exame crítico da prova, quer da valoração de provas proibidas. A decisão que antecede relativamente às questões colocadas nos recursos interlocutórios, faz, obviamente, improceder a primeira das nulidades da sentença arguidas pelos recorrentes – consubstanciada na falta de comunicação adequada da alteração da qualificação jurídica nos termos previstos no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP – conquanto a fundamentação da mesma se ancora na argumentação apresentada no aludidos recursos interlocutórios que, como já vimos, não obteve procedência.

*

Sendo arguida alguma nulidade da sentença no recurso, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 414.º, nº 4 do CPP, incumbe ao tribunal que a proferiu pronunciar-se sobre ela e supri-la, antes de mandar subir o recurso. O tribunal a quo nada referiu sobre esta matéria, silêncio que não podemos deixar de atribuir ao entendimento de que nenhuma nulidade realmente existe. E é este também o entendimento que perfilhamos. De acordo com a lei processual penal, concretamente nos termos do artigo 379.º CPP, sentença nula é aquela que se encontra inquinada por vícios decorrentes ou do seu conteúdo ou da sua elaboração. Tal nulidade, ainda que não arguida em recurso, é de conhecimento oficioso, conforme decorre do nº 2 do mesmo artigo. No que tange às nulidades sentença decorrentes da alegada insuficiência do exame crítico das provas e da valoração de provas proibidas, nenhuma razão assiste também aos recorrentes.

Com efeito, e no que concretamente diz respeito ao exame crítico, a análise da motivação da convicção probatória constante da sentença não só revela que o julgador valorou todos os documentos juntos aos autos, todas as declarações e todos os depoimentos produzidos em audiência – o que lhe permitiu formar convicção segura relativamente ao acervo factológico tido por provado – mas também que a alegação do vício de nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, concretamente por insuficiência do exame crítico da prova é totalmente insustentada.

A nulidade da sentença prevista no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP, ocorre nos casos em que a decisão não contenha a fundamentação que inclua o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da convicção probatória realizada com o exame crítico das provas e, bem assim, os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão. Na situação que agora nos ocupa, os recorrentes invocam uma situação que, a verificar-se, seria geradora da nulidade da sentença, conquanto afirmam que nela se não contém, de modo suficiente e inteligível, a apreciação crítica da prova, desse modo tornando impossível reconstituir o modo como se formou a convicção do julgador relativamente aos factos constitutivos do objeto do processo. Alegam os recorrentes quanto a este fundamento do recurso, que:

“(…) 40. Ora, nos presentes autos, as testemunhas de acusação dividiram-se, no essencial, por um lado, entre as senhoras que alegadamente frequentavam o espaço praticando actos sexuais e, por outro lado, os alegados clientes de tais serviços.

41. Compulsadas as súmulas dos vários depoimentos prestados pelas testemunhas, e não obstante a prova arrasadora que aí ressalta no que concerne à total ausência de participação nos factos pelos Arguidos Recorrentes, não se alcança quais os fundamentos que no entender do Tribunal Recorrido conferem credibilidade a determinadas provas e não a outras.

(…)

43. É consabido que na apreciação do depoimento das testemunhas atribui-se sobretudo relevância aos aspectos verbais, embora se possa também atribuir importância a uma série de circunstâncias na prestação do próprio depoimento, cabendo ao Tribunal fazer um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

44. Porém, cabe ao Tribunal Recorrido ancorar os fundamentos da sua decisão na motivação e explicação racional em atribuir coerência, fiabilidade e espontaneidade a um determinado depoimento que pode não atribuir a outro.

(…)

47. Na decisão sobre a matéria de facto, para além da indicação do que se considera provado e não provado, exigia-se que o Tribunal Recorrido explicasse o seu processo de formação da convicção, procedendo quer à enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, quer dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, quer dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor dos documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da sua convicção.(…)”.

Na fundamentação da sentença deverão, efetivamente, concretizar-se as razões que estruturaram a convicção do julgador, convicção que se traduziu na seleção factual que o mesmo fez constar do elenco dos factos provados e não provados, com base na valoração dos meios de prova disponíveis. O exame crítico de tais provas exige, não apenas que se indiquem as mesmas, mas também que se explicitem os raciocínios que, de acordo com as regras da lógica e da expediência comum, foram racionalmente seguidos e que conduziram à convicção do tribunal. Tal explicitação deverá ser feita de forma a possibilitar aos destinatários da decisão realizarem a reconstrução do percurso mental efetuado pelo julgador e que se apresenta como sustentador do juízo probatório, permitindo-lhes, ademais, verificar que a decisão tomada não foi arbitrária. (8)

Atentemos, pois na fundamentação da sentença recorrida na parte relativa à motivação da decisão de facto, optando-se por se não transcreverem as considerações de natureza exclusivamente teóricas:

“(…) 2.3. Motivação da matéria de facto

Serviram de base para formar a convicção do tribunal a análise crítica e conjugada dos elementos probatórios que a seguir serão enunciados, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. (…)

Feitas estas considerações, cumpre referir que o tribunal formou a sua convicção através da análise dos seguintes meios de prova:

A) Declarações dos arguidos AA e PP (prestadas a final);

B) Depoimentos das testemunhas;

C) Prova Documental

- Sentença proferida no âmbito do processo n.º 754/14.7… que correu termos no Juízo Local de Competência Genérica de …;

- Relatório de serviço datado de 12.06.2018, fls. 4, onde se refere que, no dia 12.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna …;

- Relatório de serviço datado de 11.06.2018, fls. 9 e 10, onde se refere que, no dia 10.06.2018, foi recebida uma chamada telefónica a relatar a existência de atividades ilícitas no estabelecimento de diversão noturna …;

- Informação da Câmara Municipal de … de fls. 27 e ss. – comunicação de alojamento local, com registo em 06.04.2018, referente à Rua …, porta …, andar …, …, sendo requerente de tal pedido NNN;

- Informação da Câmara Municipal de … de fls. 41 e ss. – comunicação de instalação / modificação de estabelecimento –restauração e bebidas, com registo em 17.08.2018, referente à Rua …, porta …, andar…, …, sendo requerente MM;

- Informação da Câmara Municipal de … de fls. 47 e ss. – comunicação de alojamento local, com registo em 21.08.2018, referente à Rua …, porta …, andar …, …, sendo requerente de tal pedido MM;

- Contrato de arrendamento para habitação datado de 16.08.2018, onde consta como senhorio o arguido AA e como arrendatário o arguido MM, fls. 52 a 54;

- Documento comprovativo de alteração de atividade referente a MM, datado de 20.08.2018, fls. 56 a 58;

- Relatório Intercalar datado de 13.09.2018 (fls. 59 a 71);

- Autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 112 e ss.; 115 e ss.; 143 e ss.; 146; 148 e ss.; 223 e ss.; 251 e ss.; 254; 304 e ss.; 342 e ss.; 372 e ss.; 381 e ss.; 451 e ss.; 454 e ss.; 545 e ss.; 578 e ss.; 581 e ss.; 634 e ss.; 706 e ss.; 710 e ss.; 783 e ss.; 788 e ss.; 791 e ss.; 795 e ss.; 829 e ss.; 832 e ss.; 835 e ss.; 898; 902; 904 e ss.; 907 e ss.; 947 e ss.; 956 e ss.; 960 e ss.; 1049; 1053 e ss.; 1056; 1060; 1109 e ss.; 1369 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 15.10.2018, fls. 120 a 123;

- Relatório intercalar datado de 24.10.2018, fls. 135 a 142;

- Relatório de diligência externa datado de 17.10.2018, fls. 152 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 18.10.2018, fls. 160 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 20.10.2018, fls. 168 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 06.11.2018, fls. 206 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 26.10.2018, fls. 209 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 02.11.2018, fls. 247 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 19.11.2018, fls. 264 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 29.11.2018, fls. 289 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 15.11.2018, fls. 298 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 12.12.2018, fls. 332 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 20.12.2018, fls. 376 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 10.12.2018, fls. 392 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 19.12.2018, fls. 405 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 03.01.2019, fls. 431 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 16.01.2019, fls. 444 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 02.01.2018, fls. 464 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 21.01.2019, fls. 489 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 27.01.2019, fls. 540 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 07.02.2019, fls. 565 e ss.;

- Relatório de diligência externa datado de 01.02.2019, fls. 569 e ss.;

- Auto de diligência externa datado de 13.02.2019, fls. 613 e ss.;

- Fotogramas de fls. 617 a 633;

- Relatório intercalar datado de 20.02.2019, fls. 657 e ss.;

- Auto de diligência externa datado de 20.02.2019, fls. 685 e ss.;

- Fotogramas de fls. 688 a 698;

- Auto de diligência externa datado de 01.03.2019, fls. 699 e ss.;

- Auto de diligência externa datado de 01.03.2019, fls. 702 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 06.03.2019, fls. 728 e ss.;

- Auto de diligência externa datado de 02.03.2019, fls. 753 e ss.;

- Fotogramas de fls. 758 a 778;

- Relatório intercalar datado de 19.03.2019, fls. 798 e ss.;

- Auto de diligência externa datado de 21.03.2019, fls. 815 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 01.04.2019, fls. 848 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 15.04.2019, fls. 848 e ss.;

- Informações da Segurança Social de fls. 872 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 29.04.2019, fls. 941 a 944;

- Relatório intercalar datado de 13.05.2019, fls. 989 a 1022;

- Auto de diligência externa datado de 09.05.2019, fls. 1039 e ss.;

- Relatório intercalar datado de 27.05.2019, fls. 1107 e 1108;

- Relatório intercalar datado de 06.06.2019, fls. 1140 e ss.;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1157 a 1162 e relatório fotográfico de fls. 1163 a 1175;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1190 e ss. e relatório fotográfico anexo de fls. 1192 a 1194;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1211 e relatório fotográfico anexo de fls. 1212 e ss.;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1230 e ss. e relatório fotográfico anexo de fls. 1232 e ss.;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1247 e ss. e relatório fotográfico anexo de fls. 1248 e ss.;

- Auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1261 e relatório fotográfico anexo de fls. 1262;

- Relatório Intercalar datado de 18.06.2019 (fls. 1559 e ss.);

- Relatório final datado de 13.11.2019, fls. 1913 e ss.;

- Contrato de locação de estabelecimento de fls. 2217 vs. e ss.;

- Resultados das pesquisas efetuadas junto das bases de dados da Segurança Social, registo automóvel e registo predial em 10.01.2022;

- Certificados de registo criminal datados de 03.02.2022;

- Apensos de escutas telefónicas;

- Apensos de buscas.

Consigna-se que para valoração positiva dos relatórios e autos de diligência externa foram expurgadas todas as considerações (subjetivas) efetuadas pelo órgão de polícia criminal.

*

Do elenco das provas enunciadas e da análise crítica das mesmas, no confronto das testemunhas e dos documentos juntos aos autos, concretizemos, embora de forma sucinta, em que precisos termos se formou a convicção do Tribunal relativamente aos factos submetidos a julgamento.

Foram inquiridas as testemunhas que infra se identificam e prestado depoimentos nos seguintes termos:

QQ, militar da GNR a exercer funções no Núcleo de Investigação Criminal de … relatou, essencialmente, que, na sequência de duas denúncias anónimas relacionadas com falsificação de documentos, atividade de prostituição e eventual tráfico de produtos estupefacientes, foram realizadas várias ações de vigilância externa ao bar …. Nessa sequência, constatou-se que o bar continuava a funcionar precisamente nos mesmos moldes em que funcionava no âmbito da ação de investigação anterior, na qual a testemunha também participou (que deu origem ao processo n.º …).

Encontrava-se registado como explorador do bar o arguido MM, mas através das vigilâncias externas foi possível visualizar os arguidos AA e DD (conhecida por HH) a entrar e sair do bar várias vezes, designadamente através do portão da garagem; no interior do bar costumavam estar os funcionários, que identificou como sendo os arguidos JJ e PP, com horários alternados das 14h às 20h e das 20h às 2h.

Concretizou que na parte de baixo, R/C, o espaço funciona como bar e no piso de cima eram os quartos; as senhoras que pernoitavam pagavam € 30,00 e, caso não pernoitassem, pagavam € 30,00 por cliente; o valor referente ao consumo de bebidas pelos clientes era dividido em percentagem de 50/50 e os funcionários que estavam a atender ao balcão apontavam os valores. Os funcionários do bar eram responsáveis por servir as bebidas, receber os valores e entregar as chaves dos quartos.

Na sequência das interceções telefónicas, constatou-se que a arguida DD recebeu contactos telefónicos por parte de mulheres que perguntavam se havia vaga no bar ….

Concretizou ainda esta testemunha que só foi ao interior do bar no dia das buscas, uma vez que já é conhecido no local em virtude das funções que exerce, pelo que a sua deslocação em momento anterior poderia comprometer a investigação.

RR, militar da GNR a exercer funções no Núcleo de Investigação Criminal de …, relatou que participou nas vigilâncias externas e nas buscas e deslocou-se ao interior do bar em data anterior, por duas vezes.

Verificou um fluxo anormal de pessoas a entrar e sair do bar à tarde e à noite; saíam do estabelecimento (bar) e iam para o piso superior.

No interior do estabelecimento, deslocou-se ao balcão onde estava o arguido GG; foi abordado por uma senhora, com sotaque brasileiro, que se identificou como CCC, pediu uma bebida e, nessa sequencia, foi entregue um papel à senhora que o abordou. Estavam cerca de 4/5 senhoras e 4/5 senhores no interior do bar; foi-lhe proposta a prática de relações sexuais no piso superior pelo valor de € 40,00.

Nessa mesma deslocação ao bar, viu os arguidos AA e DD a chegar com sacos, entraram no bar e dirigiram-se para uma porta com um sinal de sentido proibido ou stop.

SS, militar da GNR e chefe do Núcleo de Investigação Criminal de … desde 2016, referiu que participou em relatórios de diligência externa e nas buscas efetuadas ao bar e à residência do arguido MM.

No dia em que foram realizadas as buscas, mencionou que o bar tinha alguns clientes e senhoras que se identificaram como colaboradoras. Sabe que o arguido AA chegou ao bar depois, ainda no decorrer das buscas, mas desconhece quem o terá avisado e em que circunstâncias chegou.

Os depoimentos destas três testemunhas foram prestados de forma credível, isenta e circunstanciada, mostrando-se corroborados por prova documental junta aos autos, conforme adiante será explanado.

TT relatou, em suma, que conheceu o bar … através de uma amiga que lhe explicou que aí poderia consumir bebidas e ter relações sexuais; que teria de pagar a quantia diária de € 30,00 para utilização do quarto para a prática de atos sexuais – disse não se recordar de quem lhe explicou estas condições.

Concretizou que está em Portugal há cerca de 3 anos e, em datas que não soube precisar, passou a residir num dos quartos situado no piso superior do bar …; não conhece o dono do bar, mas sempre ouviu dizer que seria o arguido MM; utilizava o nome de OOO e costumava consumir bebidas com os clientes (recebia metade das quantias pagas por estes) e subia aos quartos para ter relações sexuais, pelas quais cobrava cerca de € 40,00 ou € 50,00 e pela utilização do quarto pagava € 30 /dia – entregava o valor a qualquer pessoa que estivesse no balcão; fazia as contas com os arguidos PP ou JJ ou GG, funcionários que estavam atrás do balcão do bar, pessoas a quem também entrega a quantia de € 30,00 pela utilização do quarto.

Mais referiu que deixou de residir no quarto supra referido no final do ano de 2019 e esteve lá cerca de um ano; exercia atividade no bar das 14h30m até às 2h e só algumas senhoras é que costumavam pernoitar lá.

Disse ainda não se recordar de ver o arguido MM no bar … e só conhece os arguidos AA e DD por serem donos de outro café.

O depoimento afigurou-se credível no que concerne ao modo de funcionamento do bar e do piso superior, assim como quanto à atividade aí exercida pela testemunha. No que tange à identificação dos responsáveis pelo bar …, o depoimento revelou-se titubeante, sendo patente que a testemunha pretendeu fazer crer que desconhecia quem seriam tais pessoas.

GGG referiu que só conhece o arguido PP; que conheceu o bar … através de uma amiga e aí permaneceu por apenas quatro dias (até à data em que ocorreram as buscas); tinha chegado do … há pouco tempo; trabalhava no bar com outro nome, de que não se recorda; quando chegou ao bar, o arguido PP entregou-lhe a chave do quarto; mais afirmou não se recordar do valor concreto que pagava pelo quarto, mas crê que seriam € 30,00 por dia; na parte de baixo funcionava o bar e das bebidas consumidas pelos clientes recebia 50%, valor que lhe era pago por quem estivesse ao balcão.

KK afirmou que conhece todos os arguidos do bar …; conheceu o bar através de colegas; na época passava 3 meses de férias em Portugal; tinha chegado do … há uma ou duas semanas e, como não tinha onde residir, foi para o bar …; falou com o arguido MM sobre as condições, tendo sido informada que teria de pagar a quantia de € 30,00 / dia pela utilização do quarto.

No que respeita à atividade que exerceu no bar, concretizou que consumia bebidas com os clientes e, por vezes, recebia alguns amigos no quarto – pessoas que já a conheciam por ter estado em Portugal anteriormente - alguns procuravam-na apenas para companhia e outros para a prática de atos sexuais; os clientes pagavam pelo ato sexual cerca de € 30 /€ 40. Quanto às bebidas consumidas pelos clientes, recebia uma percentagem de 50%, mas referiu não se recordar de quem lhe explicou essa divisão de valores, mas foi uma pessoa que costumava estar ao balcão do bar.

Quanto ao arguido MM conhece por ser a pessoa que “estava à frente do bar”, costumava estar lá sentado, fazia compras e resolvia assuntos dentro do bar; os arguidos AA e DD, por vezes, iam ao bar, bebiam uma bebida e saíam.

UU afirmou que veio do … para Portugal há cerca de 3 anos com o intuito de trabalhar; quando chegou a Portugal foi ao bar …, que conheceu através de 1 amiga, de nome …; conheceu o arguido MM por ser o dono do bar, pessoa com quem acordou as condições; ficou lá só 15 dias; pagava € 30,00 por dia e recebia 50% do valor das bebidas que os clientes que acompanhava consumissem; praticava atos sexuais nos quartos; às vezes davam-lhe 30€ ou 40€; no final da noite recebia a quantia das bebidas; para controlar os valores a receber, eram entregues papéis – tipo senha; os arguidos PP, JJ e GG, funcionários do bar, é que lhe entregavam as senhas e pagavam os valores; conhece a arguida DD por ir ao bar … vender comida ocasionalmente e o arguido AA por ir ao bar beber uma bebida, também ocasionalmente.

VV relatou que conhece o bar … há cerca de 5 anos e conhece os arguidos desse local; costumava frequentar o bar, consumia bebidas com clientes e pagava € 30,00 pela utilização do quarto, ao qual acedia com clientes do bar ou que já conhecesse anteriormente; disse não se recordar com quem falou sobre as condições; habitualmente, falava com quem estivesse no balcão; cobrava cerva de € 40 aos clientes pela prática de atos sexuais e recebia 50% do valor das bebidas consumidas por estes; costumavam estar no bar os arguidos PP, JJ ou GG, sendo o arguido MM a pessoa que reconhecia como o dono do bar; quem estivesse ao balcão dava as chaves do quarto e entregava a tais pessoas os € 30; afirmou conhecer os arguidos AA e DD por serem a antiga gerência, que não sabe até quando perdurou.

LL exerceu atividade no bar … desde 2018 até 2020 (altura em que teve início a pandemia por Covid-19); conhecia o bar por ser um local conhecido na zona; em data que não soube precisar, dirigiu-se ao balcão e perguntou se estavam a “aceitar pessoas” (sic) e disseram que sim; falou com um empregado, crê que foi com o arguido GG; sabe que o dono era o arguido MM, pessoa que costumava estar no bar todas as noites, sentado numa mesa; precisou ainda que era com os empregados que estavam no balcão do bar que costumava tratar dos assuntos relacionados com pagamentos: pagava € 30,00 diariamente pela utilização do quarto e recebia 50% do valor das bebidas consumidas pelos clientes que acompanhava.

Referiu ainda que o espaço funcionou anteriormente como restaurante e conhece os arguidos AA e DD por terem um café / restaurante perto do bar …, local onde costumava ir jantar.

XX afirmou que conhece todos os arguidos do bar …; chegou a Portugal no dia 23.02.2019 e exerceu atividade cerca de uma semana em tal bar; quando chegou a território nacional, começou por residir na casa da irmã, mas, por força de desentendimentos entre ambas, saiu da casa desta. No que concerne à forma como conheceu o bar …, mencionou, a este propósito, que foi através de uma pesquisa na internet que teve conhecimento do bar, que seria um local onde poderia pernoitar.

Concretizou que contactou o arguido MM e foi-lhe entregue a chave do quarto; conhece o arguido AA apenas por lhe ter sido dito pelo arguido MM que era o dono do bar; conhece a arguida DD por ser pessoa que, amiúde, frequentava o bar; quanto aos arguidos JJ, PP e GG, identificou-os como os empregados.

Mais relatou que pagava um valor diário de € 30,00 – a quem estivesse no balcão do bar; recebia metade do valor das bebidas consumidas pelos clientes e acompanhava-os aos quartos para a prática de atos sexuais, pelos quais estes pagavam cerca de € 30 / € 40.

NN, por sua vez, relatou que está em Portugal desde 2016 e que conhece os arguidos AA, JJ e PP do bar …. Exerceu atividade no bar cerca de seis meses, desde o final do ano de 2018; não pernoitava no bar; falou com o dono do bar – que indicou ser o arguido AA – pessoa que lhe explicou como funcionava o trabalho, o valor do quarto (€ 30,00 / dia), o modo de acesso aos quartos e o valor da comissão por bebidas consumidas com os clientes. Quanto a estes valores, disse que era feita uma anotação e, no final, faziam as contas – era-lhe dado um papel com essa anotação.

Relativamente à utilização dos quartos, mencionou que subia com os clientes para prática de atos sexuais, aos quais cobrava € 30 a € 40.

As testemunhas supra referidas prestaram depoimentos credíveis quando ao modo de funcionamento do bar … e à atividade de prostituição aí exercida e respetivos moldes, pese embora algumas, no início dos seus depoimentos, tenham demonstrado algum constrangimento em descrever tal atividade. Quanto à identificação dos responsáveis pela exploração do bar, considerou-se que os depoimentos de KK e LL foram credíveis quanto à intervenção do arguido MM e o depoimento de NN foi espontâneo e claro quanto à intervenção do arguido AA.

As testemunhas PPP, QQQ, ZZ, RRR, AAA, SSS, OO, TTT, UUU e VVV, pessoas que frequentam / frequentaram o bar …, em traços gerais, confirmaram o modo de funcionamento do bar e a abordagem que era efetuada pelas senhoras que lá se encontravam com vista à prática de atos sexuais no piso superior, pese embora algumas destas testemunhas (RRR, AAA e VVV) tivessem manifestado alguma relutância em concretizar a abordagem que era feita pelas senhoras que se encontravam no bar e o objetivo.

No que concerne ao conhecimento que têm dos arguidos, foi patente que algumas das testemunhas pretenderam fazer crer que alguns dos arguidos não tinham qualquer relação com o bar … no período aqui em apreço.

Assim, a testemunha QQQ afirmou ser amigo do arguido AA há cerca de 30 anos e conhecer a arguida DD há 7 anos. Referiu que o arguido AA é apenas o dono do edifício e teve um restaurante nesse local. No entanto, instado para esclarecer quais as diferenças no espaço por comparação à data em que aí funcionou um restaurante, não soube concretizar.

No mesmo sentido, prestaram depoimento as testemunhas ZZ, RRR, AAA, UUU (tendo esta testemunha referido o espaço funcionou como marisqueira anteriormente) e VVV (que referiu conhecer o arguido AA por ser habitual jogar snooker no bar … em 2018, quando aí se deslocava 1 a 2 vezes por semana para esse efeito).

Ora, nesta parte, os depoimentos destas testemunhas não mereceram a credibilidade do Tribunal.

Em sentido diverso, a testemunha OO, de modo credível, isento e circunstanciado, referiu que conhece os arguidos AA e DD do bar …; frequentou o bar cerca de 3 ou 4 vezes, até à data em que foi inquirido na GNR; conhece estes arguidos por serem os “proprietários da casa” (sic), pois costumava falar com eles ao balcão.

Note-se que este depoimento encontra-se corroborado por outros elementos probatórios, conforme será explanado adiante.

Relativamente às testemunhas arroladas nas contestações apresentadas, foi inquirido XXX, que conhece o arguido PP há cerca de oito anos; conhece-o por terem trabalhado juntos anteriormente numa empresa de manutenção de piscinas e por ser uma pessoa calma. Desconhece a factualidade aqui em dissídio.

A testemunha BBB, amigo do arguido AA há 30 anos e da arguida DD há cerca de 8 anos. Afirmou que conhece o bar … e que o arguido AA geriu um restaurante nesse espaço há cerca de 30 anos. O depoimento da testemunha foi pautado por imprecisões e incoerências: primeiramente referiu que só conheceu / frequentou o espaço como restaurante; adiante referiu que deixou de frequentar o espaço há cerca de 6/7 anos e já não havia restaurante, era um “café normal” (sic); instado para esclarecer como é conhecido o bar … na zona da … (uma vez que aí reside há 40 anos), afirmou que é conhecido como um café, um bar normal.

Ora, resulta dos depoimentos das testemunhas arroladas na acusação que o bar … é sobejamente conhecido na zona como um bar onde é praticada a atividade de prostituição.

ZZZ mencionou que conhece a arguida DD por ser sua esteticista já cerca de 7 anos e amiga e o arguido AA por ser o marido desta; que, em altura anterior ao confinamento, frequentou o restaurante destes arguidos (de nome …); não sabe quando este estabelecimento comercial foi aberto ao público e desconhece qual a atividade da arguida DD anteriormente. Destarte, a testemunha desconhece a factualidade aqui em apreço.

Quanto às testemunhas AAAA, sobrinho do arguido MM, e BBBB, amigo do arguido MM há cerca de 40 anos, descreveram este arguido como uma pessoa trabalhadora, cuja atividade profissional esteve sempre relacionada com o ramo da hotelaria. Nada relataram sobre a factualidade aqui em apreço.

Em face da prova produzida e junta aos autos, o Tribunal considera que existem três questões essenciais que cumpre aferir: i) qual a atividade exercida no bar … durante o período aqui em apreço; ii) se os arguidos tiveram intervenção no exercício de tal atividade; iii) em caso afirmativo, qual a intervenção de cada um dos arguidos.

No que concerne à atividade exercida no bar … desde, pelo menos, maio de 2018 e até ao dia 4 de junho de 2019, os depoimentos das testemunhas / colaboradoras do bar foram claros e consentâneos: acompanhavam / abordavam clientes que se dirigiam ao bar; do valor das bebidas consumidas pelos clientes recebiam uma percentagem de 50% e acompanhavam-nos aos quartos localizados no piso superior para a prática de atos sexuais pelos quais cobravam quantias monetárias; as chaves dos quartos eram entregues pelas pessoas que estavam a trabalhar ao balcão do bar; as colaboradoras pagavam € 30 por dia pela utilização dos quartos, quantia que entregavam também a estes funcionários; os valores das bebidas eram pagos às colaboradoras também por estes funcionários, no final da noite / do período em que lá estivessem.

Tais depoimentos encontram-se corroborados, nomeadamente, pelo auto de busca e apreensão junto aos autos.

Quanto ao envolvimento dos arguidos no funcionamento do bar …, a convicção do Tribunal alicerça-se, essencialmente, no seguinte:

Relativamente ao arguido AA, existem vários relatórios de vigilância externa e fotogramas que atestam a sua deslocação ao bar …: fls. 152, 160, 168, 209, 375, 392, 405, 431, 444, 464, 613, 659, 685, 753, 815 e 1039 e fotogramas de fls. 617 e ss. e 688.

Outrossim, foram analisados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas, designadamente os de fls. 304, 381, 454, 578, 657, 788 e 898, bem como os apensos de escutas telefónicas juntos aos autos.

Dos relatórios de vigilância externa é possível extrair que o arguido AA dirigiu-se ao interior ou saiu do bar … pelo menos nas seguintes datas: 17.10.2018, pelas 00h55m; 18.10.2018, pelas 17h20m; 20.10.2018, pelas 23h58m; 10.12.2018, pelas 16h25m; 13.02.2019, pelas 14h09m; 14.02.2019, pelas 17h05m; 25.02.2019, pelas 14h28m.

Noutras datas foi também constatado que os veículos de matrícula … e …, habitualmente utlizados pelos arguidos AA e DD, estavam estacionados em frente o bar …. No dia 09.05.2019, os arguidos AA e DD foram visualizados no interior do veículo automóvel de matrícula … a entrar na Rua …, onde fica localizado o bar … (fls. 1039).

Outrossim, foram também positivamente valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas supra referidos e apensos de escutas telefónicas. Destacam-se os autos de fls. 578, em que o arguido AA recebe uma chamada telefónica a propósito de uma obra que estaria a decorrer no bar … para partir uma parede e fazer mais um quarto; o auto de fls. 788, que atesta que o arguido recebeu uma chamada telefónica cujo assunto foi a deslocação de três funcionários da Câmara Municipal ao bar … para realização de uma fiscalização ao local.

Conjugados todos estes elementos de prova com o depoimento de NN, que não teve quaisquer dúvidas em afirmar que foi o arguido AA que lhe explicou as condições de exercício de atividade de prostituição no bar …, o Tribunal ficou absolutamente convencido da participação deste arguido nos factos, nos moldes que vêm descritos na acusação.

Não colhe a versão do arguido, apresentada no final da audiência de julgamento, no sentido de não ter qualquer envolvimento com o bar e a atividade aí exercida, tendo-se aí deslocado apenas por ser proprietário do edifício para resolver problemas relacionados, v.g., com a eletricidade. Note-se que, instado para esclarecer o momento a partir do qual terá deixado de ter qualquer ligação ao bar … (o que seria expectável atendendo à anterior condenação sofrida), não soube precisar.

No que diz respeito à arguida DD, existem relatórios de vigilância externa que atestam a sua deslocação ao bar …: fls. 160 e 291. Em 17.11.2018, numa ação de fiscalização levada a cabo pela GNR juntamente com os serviços do SEF, a arguida encontrava-se no bar … e identificou-se como colaboradora.

A testemunha RR, militar da GNR que se deslocou ao interior do bar … por duas vezes no âmbito das diligências de investigação, foi perentório ao afirmar que, numa dessas vezes, visualizou os arguidos AA e DD a entrar no interior do bar e, posteriormente, numa porta de acesso vedado ao público.

Por outro lado, foram também valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 115, 146, 304, 342, 372, 451, 657, 710, 795, 947, 1049, 1109 e 1369 e apensos de escutas telefónicas, sendo possível aferir que a arguida encetou/recebeu contactos de clientes do bar … ou de colaboradoras, designadamente no sentido de saber se existia vaga disponível nos quartos.

Em análise ao auto de fls. 904 é também possível constatar que o arguido GG refere-se à arguida DD como HH e ao arguido AA como II e identifica-os como proprietários / exploradores do bar.

Outrossim, resulta do auto de fls. 710 que a arguida discutiu os termos dos contratos de trabalho dos arguidos JJ e GG, enquanto trabalhadores do bar ….

No que tange à intervenção do arguido MM, o mesmo juntou aos autos documentação que atesta que, formalmente, desde 16.08.2018, passou a explorar o bar …. Relativamente ao seu envolvimento na atividade de prostituição desenvolvida no bar, foram analisados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 112, 143, 148 e ss., 223 e ss., 251, 254, 511, 516, 791, 832, 902, 1053 e 1369 e o auto de apreensão de fls. 1211.

Assim, são patentes os contactos telefónicos efetuados / rececionados atinentes ao funcionamento do bar, sendo certo que algumas das testemunhas inquiridas confirmaram que o arguido MM costumava estar no bar a controlar o funcionamento e explicou os termos de colaboração a algumas mulheres que aí foram exercer a atividade de prostituição.

Quanto aos arguidos PP, JJ e GG, dúvidas também não existem de que os mesmos colaboraram na atividade de prostituição exercida no bar …, fazendo-o também com fins lucrativos. Estas testemunhas eram funcionários de balcão, responsáveis por servir as bebidas aos clientes, entregar as senhas às colaboradoras atinentes ao valor que estas teriam a receber no final da noite por cada bebida consumida; entregar as chaves dos quartos às colaboradoras; receber a quantia de € 30,00, paga pelas colaboradoras para utilização dos quartos para a prática de atos sexuais pelos quais os clientes pagavam determinadas quantias monetárias.

Relativamente ao arguido GG, resulta dos autos que, à data das buscas, o mesmo já não exercia funções no bar … e, em conjugação com os autos de interceções telefónicas, foi possível aferir que o mesmo exerceu tal atividade, pelo menos, até ao dia 18 de março de 2019, pois nas escutas referentes a datas posteriores o arguido refere-se ao facto de ter sido despedido.

Quanto a estes arguidos foram analisados, nomeadamente, os seguintes autos de interceção e gravação de escutas telefónicas e os apensos de escutas telefónicas:

JJ: fls. 835, 907, 956 e 1058;

PP: fls. 960, 1058 e 1060;

GG: fls. 581, 634, 658, 706, 783, 829, 904 e 1056.

Não mereceu acolhimento a versão do arguido PP, apresentada no final da audiência de julgamento, no sentido de desconhecer que o que se passava no bar seria ilícito, na medida em que é um cidadão com nacionalidade portuguesa e, de acordo com o auto de fls. 1058, resulta patente que, em 13.05.2019, contactou o arguido JJ no sentido de saber se a polícia teria ido ao bar … o que teria acontecido nessa sequência.

Outrossim, confirmou o arguido que entregava às colaboradoras do bar quantias referentes a 50% do valor de consumo dos clientes que aquelas acompanhavam.

Destaca-se também o facto de o arguido GG ter sido intercetado em conversação telefónica, através da qual afirmou que recebia a quantia de € 500,00 e “o resto era pago por fora” (sic), fls. 829.

Em sede de alegações orais, foi suscitada pelos arguidos a falsidade do auto de busca e apreensão datado de 04.06.2019, fls. 1157 a 1162, uma vez que pela testemunha SS, chefe do Núcleo de Investigação Criminal de …, foi referido que o arguido AA chegou em momento posterior ao início das buscas no bar … e desconhece quem o terá avisado e em que circunstâncias chegou.

Ora, em análise ao referido auto, verifica-se que aí foi feita a seguinte menção: “A busca foi realizada na presença do explorador do bar, AA, residente na Rua …, lote …, …, tendo neste ato sido entregue cópia do Mandado e cópia do despacho que a determinou (…)”

Entende-se que tal menção em nada contraria o afirmado pela testemunha, sendo certo que o arguido esteve no local, de acordo com a sua vontade (pois nem sequer nunca foi suscitada qualquer questão em sentido contrário). O modo como chegou ao local é desconhecido e entende-se que não releva para apuramento da factualidade aqui em dissídio.

Através da conjugação de todos os elementos de prova acima enunciados, o Tribunal ficou absolutamente convencido de que os factos ocorreram conforme vêm descritos na acusação.

*

Em relação às condições pessoais dos arguidos, o tribunal pôde formar a sua convicção através das pesquisas efetuadas junto das bases de dados da Segurança Social, registo automóvel e registo predial. Quanto aos factos elencados em , o Tribunal atendeu ao depoimento da testemunha ZZZ.

*

No que diz respeito aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal formou a sua convicção através da análise dos certificados do registo criminal juntos aos autos.

*

Relativamente aos factos não provados, os factos a) e e) resultam da absoluta inexistência de prova nesse sentido.

Quanto aos factos b), c) e d), os mesmos foram dados como não provados, uma vez que foi produzida prova em sentido contrário / diverso. Assim, não se considerou assente que os arguidos DD e AA não tivessem qualquer outra atividade profissional no período aqui em apreço, desde logo porque várias testemunhas referiram que é explorado outro estabelecimento comercial pelos mesmos, sendo que a testemunha ZZZ identificou tal estabelecimento como … café.

Outrossim, quanto à intervenção do arguido MM, inexiste prova no sentido de que o mesmo apenas se deslocasse ao bar … pela manhã para verificar as contas e que nunca tivesse contactado qualquer mulher que frequentasse o mencionado bar. (…)”

Ora, confrontando a fundamentação constante do excerto transcrito, contata-se que a sentença recorrida contém uma completa motivação do juízo probatório realizado com referência aos elementos de prova constantes dos autos e que sustentaram a seleção factológica provada e não provada. Nenhuma razão assiste, pois, aos recorrentes quando reclamam perante a forma como a sentença condenatória apresenta a motivação da decisão de facto, que consideram insuficiente. Ao contrário do que se afirma no recurso, a sentença expõe de forma clara, racional e perfeitamente compreensível os raciocínios lógico-dedutivos subjacentes à formação da convicção probatória relativamente a todos os factos tidos por provados e por não provados, tendo explicitado de forma minuciosa quais os fundamentos que, no seu entender, conferem credibilidade a determinadas provas e não a outras.

Os recorrentes poderão não concordar com o juízo probatório realizado na sentença – razão pela qual o questionaram nos termos previstos no artigo 412º do CPP – o que não poderão é afirmar que o mesmo se não encontra motivado. Tal afirmação é ostensiva e amplamente desmentida pelo confronto do excerto transcrito, não merecendo, pois, a questão em análise qualquer outro desenvolvimento e improcedendo totalmente a arguição de nulidade da sentença consubstanciada na falta de exame crítico da prova.

* Consideram ainda os recorrentes que a sentença enferma do vício de nulidade em virtude de ter valorado provas nulas. Para tanto, alegam nas conclusões do recurso, que:

“(…)17. Ora, o Tribunal Recorrido decidiu, pasme-se, indicar como prova documental que valorou para sustentar a sua convicção, todos os relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final de polícia!!!

18. Os relatórios de serviço, os intercalares ou o relatório final de polícia não constituem prova documental na medida em que as declarações que esses relatórios consubstanciam não são idóneos a provar qualquer facto juridicamente relevante – alínea a) do artigo 255.º do Código Penal – uma vez que, na sua essência, essas declarações não traduzem em qualquer conhecimento directo dos factos que constituem o objecto do processo por parte de quem os elaborou.

19. Julgava-se que este ensinamento pacífico na nossa jurisprudência e que está nos antípodas dos mais elementares princípios da valoração probatória em processo penal estivesse já perfeitamente adquirido na praxe do foro, contudo, para o Tribunal Recorrido assim não é, clamando por isso a necessária intervenção do Tribunal ad quem.

20. Acresce que, tratando-se de peças escritas de natureza valorativa que, têm por base declarações dos arguidos e de testemunhas, informações policiais, convicções, ilações e presunções também elas policiais, interpretações de intercepções telefónicas, relatórios de vigilâncias e/ou diligências externas, alguma observação pessoal, e sobretudo conclusões sobre as circunstâncias em que a investigação se desenvolve, não podem servir para formar a convicção do tribunal de julgamento nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal.

21. Já nos idos anos de 1995, ensinava o STJ que “o relatório final do agente da Polícia Judiciária instrutor do processo não pode ser considerado meio de prova e não deve ser indicado na fundamentação”.

22. Embora tais ensinamentos não sejam perfilhados pelo Tribunal Recorrido, à míngua de prova para condenar os Arguidos, entendeu (mal) valorar informações de polícia, as quais não constituem provam, nem podem ser valoradas.

23. Aliás, basta verificar que, por um lado, os ditos relatórios não foram, nem podiam, ser examinados em audiência por não constituírem prova válida e, como tal, não podem servir para formar a convicção do Tribunal recorrido e, por outro lado, tais relatórios foram também subscritos por militares da GNR que nem sequer foram ouvidos em audiência, o que invalidaria igualmente o respectivo contraditório.

(…)

24. Esta prova proibida foi essencial para a decisão a que o Tribunal recorrido chegou, o que é bastante evidente em sede de fundamentação onde o a decisão recorrida (deliberadamente) nunca consigna a respectiva razão de ciência e apreende determinados factos tendo por base os referidos relatórios e informações de polícia – v.g., entre outros, a seguinte passagem: “em 17.11.2018, numa ação de fiscalização levada a cabo pela GNR juntamente com os serviços do SEF, a arguida encontrava-se no bar … e identificou-se como colaboradora 13”.

25. Na sequência do elenco da prova documental considerada para a sua convicção o Tribunal Recorrido indicou ainda a seguinte: “- Autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 112 e ss.; 115 e ss.; 143 e ss.; 146; 148 e ss.; 223 e ss.; 251 e ss.; 254; 304 e ss.; 342 e ss.; 372 e ss.; 381 e ss.; 451 e ss.; 454 e ss.; 545 e ss.; 578 e ss.; 581 e ss.; 634 e ss.; 706 e ss.; 710 e ss.; 783 e ss.; 788 e ss.; 791 e ss.; 795 e ss.; 829 e ss.; 832 e ss.; 835 e ss.; 898; 902; 904 e ss.; 907 e ss.; 947 e ss.; 956 e ss.; 960 e ss.; 1049; 1053 e ss.; 1056; 1060; 1109 e ss.; 1369 e ss.”;

26. Com o devido respeito, também neste segmento o Tribunal Recorrido andou mal, pois não podia ancorar a sua convicção em autos de intercepção de escutas telefónicas constantes do inquérito.

27. O auto de intercepção telefónica documenta o acto do OPC, de quem procedeu à intercepção e gravação de um conjunto de comunicações que considera ter interesse para a investigação, através do qual sumaria e faz um conjunto de interpretações e deduções sobre tais conversações com vista a convencer o Mº.Pº. da necessidade de promover a respectiva transcrição – nº1 do artº. 188º do C.P.P..

28. Nesse sentido e nos termos do referido artº. 188º do C.P.P., durante o inquérito o Juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações, só podendo valer como prova as conversações e comunicações que o Ministério Público mandar transcrever ao órgão de polícia criminal que tiver efectuado a intercepção e gravação e indicar tais conversações ou comunicações como meios de prova – cfr. nºs 7 e 9, alínea a) do art. 188º do C.P.P.

29. Os requisitos são cumulativos e, portanto, as comunicações que o Ministério Público não mandar transcrever não podem valer como prova.

30. As transcrições consubstanciam a prova obtida das referidas intercepções já sem quaisquer filtros do OPC e que são depois livremente valoráveis pelo Tribunal ao abrigo do disposto no artº. 127º do C.P.P.

31. O que o Tribunal Recorrido não pode fazer é fundamentar a sua convicção em autos de polícia, por um lado, porque se desconhece se para todas as conversas aí interceptadas foi ordenada a sua transcrição e, por outro lado, porque o Tribunal a quo não pode também sustentar a sua convicção em interpretações, presunções e deduções policiais retiradas de conversas, ao invés de se basear nas referidas transcrições.

(…)

33. Ao formar a sua convicção com base nos referidos autos policiais de intercepção, pelos quais o OPC interpreta aquela que pensa ser o sentido de determinada comunicação, desconhecendo-se inclusivamente que trecho foi transcrito das respectivas sessões, cujas transcrições naquela data ainda nem sequer foram promovidas pelo Mº.Pº. e, consequentemente não foram autorizadas pelo Juiz de Instrução, o Tribunal Recorrido fundou a sua convicção num meio probatório que não pode servir como tal, que não é apto a servir como prova, que, do ponto de vista processual, penal e do ponto de vista probatório não existe.

34. A nulidade resultante da violação de proibições de prova é insanável, a qual expressamente se invoca, por violação do disposto no artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P.

35. Assim, devem V. Exas. declarar a nulidade da sentença recorrida, porque fundada em prova nula (a prova proibida que foi utilizada na fundamentação da decisão é também ela nula nos termos do artº. 122º, nº 1, do C.P.P.), quer pela valoração proibida de relatórios de serviço, relatórios intercalares e relatório final do OPC nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º, 128º, 129º, 130º 355.º a 357.º todos do Código de Processo Penal, quer pela valoração igualmente proibida de autos de intercepção telefónica nos termos do artº. 188º, nº 7 e nº 9, alínea a), por força das disposições dos artºs. 125º, 126º, nº 3 e 190º, todos do C.P.P., e ainda do disposto no artº. 32º, nº 8 da C.R.P., ordenando a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício. (…)”

Não acompanhamos, de todo, tal argumentação e consideramos absolutamente insustentada a crítica feroz que a mesma contém relativamente à valoração probatória realizada pelo tribunal recorrido. (9) Vejamos. O conhecimento da nulidade invocada pelos recorrentes, que agora constitui o objeto da nossa análise, demanda que convoquemos as normas legais que regulam a legalidade das provas, os métodos proibidos de prova, e, consequentemente, as provas nulas, culminando no conhecimento, em particular, da nulidade decorrente da valoração como meios de prova dos relatórios policiais e dos autos de interceções telefónicas e gravações. Como é sabido, a admissibilidade das provas deverá conformar-se, nos termos gerais, com o disposto nos artigos 125º e 126º do CPP e, no plano constitucional, com o preceituado pelo artigo 32º, nº 8 da CRP, que estabelecem da seguinte forma: “Artigo 125.º Legalidade da prova São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Artigo 126.º Métodos proibidos de prova 1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. 2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação; c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei; d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto; e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível. 3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular. 4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”

* Artigo 32.º (Garantias de processo criminal) (…) 8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”

Nas alegações e conclusões do recurso, os arguidos não põem em causa a validade das vigilâncias externas e das escutas e interceções telefónicas realizadas, sabendo-se que as mesmas ocorreram com absoluto respeito dos procedimentos legais, o que se não apresenta in casu como controverso. O que, na perspetiva dos recorrentes se não encontra de acordo com as regras é apenas a circunstância de, na motivação da convicção probatória, o tribunal se ter reportado aos relatórios de serviço, aos relatórios intercalares, ao relatório final do OPC e aos autos de interceção telefónica. Entendem os recorrentes que tais elementos não constituem prova documental na medida em que as declarações que consubstanciam não são idóneos a provar qualquer facto juridicamente relevante, uma vez que, “tratando-se de peças escritas de natureza valorativa que, têm por base declarações dos arguidos e de testemunhas, informações policiais, convicções, ilações e presunções também elas policiais, interpretações de interceções telefónicas, relatórios de vigilâncias e/ou diligências externas, alguma observação pessoal, e sobretudo conclusões sobre as circunstâncias em que a investigação se desenvolve”.

Mas não têm razão.

Com efeito, uma leitura atenta da sentença, realizada na sua globalidade, e não de forma sincopada, permitirá verificar, sem necessidade de qualquer esforço interpretativo acrescido, que o que na mesma foi valorado para suportar o juízo probatório, não foram os relatórios policiais enquanto meios de transmissão de avaliações, perceções ou qualquer tipo de registo pessoal aí consignado pelos seu autores, mas tão somente enquanto documentos que objetivamente permitem atestar as diligências probatórias realizadas e que, reafirmamos, não revestem a natureza de método proibido de prova. Aliás, se dúvidas persistissem quanto ao que na realidade se pretendeu valorar através da consideração dos aludidos documentos, as mesmas dissipar-se-iam com a consideração do registo expresso na sentença de que “Consigna-se que para valoração positiva dos relatórios e autos de diligência externa foram expurgadas todas as considerações (subjetivas) efetuadas pelo órgão de polícia criminal”. Nenhum sentido faz, pois, a nosso ver, a convocação no recurso a este propósito do regime previsto nos artigos 128º, 129º e 130º do CPP relativamente aos limites do depoimento, ao depoimento indireto e às convicções pessoais. (10)

O mesmo sucede no que tange aos autos de interceção telefónica, conquanto o que se constata é que o tribunal decidiu valorar os conteúdos das conversações e das comunicações resultantes das escutas e das interceções referenciadas nos autos em causa, que se encontram transcritas e que, como sabemos, foram realizadas de forma absolutamente lícita porque devidamente autorizadas pela autoridade judiciária competente. Neste sentido e com relevo para a questão que aqui apreciamos, se pronunciou o acórdão da relação do Porto de 03.03.2021 (11), em cujo sumário podemos ler:

“I - No seio da discussão sobre o relevo indiciário ou probatório das conversações telefónicas transcritas é deslocado convocar o conceito legal de meio de obtenção de prova, a não ser que se pretenda impugnar a validade do processo na obtenção das escutas telefónicas.

II – Assim, se as escutas telefónicas foram validamente obtidas, a partir daí apenas importará aferir o relevo probatório do meio de prova - conversações transcritas.

III - A interpretação do conteúdo das conversações telefónicas é estritamente norteada pelas regras da lógica, segundo as normas da experiência comum, numa abordagem marcadamente normativa e conservadora de aferição probatória, afastada de qualquer especulação (…), juízos normativos que são sempre norteados pela prudência do julgador.(…)”

A oposição feita no recurso ao uso que o tribunal fez dos relatórios periciais e dos autos de transcrição não tem qualquer consistência. As escutas não são ilegais e as vigilâncias não são inexistentes, sendo que os autos e relatórios respetivos mencionados na decisão apenas visam atestar a sua realização, abrindo caminho para a análise dos resultados de tais diligências, igualmente efetuado na sentença com respeito pelos requisitos legalmente estabelecidos, numa sequência de conexão lógica e sequenciada com outros meios de prova, e sempre com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127.º do CPP. Não procedem, portanto, as objeções deduzida ao uso da prova documental, não se verificando qualquer valoração de provas proibidas e, consequentemente nulas, por violação do disposto nos artigos 125º, 126º, nº 3 188º, nº 7 e nº 9, alínea a) e 190º, todos do C.P.P. e ainda do disposto no artigo 32º, nº 8 da C.R.P, nos termos invocados no recurso, improcedendo, pois totalmente a arguição de nulidade da sentença nos termos do artigo 122º, nº 1 do C.P.P.

*

b) Do invocado de erro notório na apreciação da prova consagrado na alínea c) do no nº 2 do artigo 410º do CPP.

Invocam os arguidos nas suas motivações de recurso e nas conclusões que da mesma extraíram, a existência de um dos vícios consagrados no nº 2 do artigo 410º do CPP. Importa ter presente que a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita, não se confunde com a invocação de um erro de julgamento, ou seja, com a impugnação da matéria de facto em sentido amplo com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida e a sua verificação pelo tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida e atém-se à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.

Analisemos, então, o vício da decisão, consubstanciado no erro notório na apreciação da prova, invocado pelos recorrentes.

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. De acordo com o disposto no artigo 410.º, nº 2, alínea c) do CPP, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito e desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o recurso pode ter como fundamento o erro notório na apreciação da prova. Este vício ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir ter-se verificado tal erro. O vício consubstanciado no erro notório na apreciação da prova assenta numa deficiência no apuramento da matéria de facto. Trata-se de um vício da decisão em si mesma e a sua verificação demanda a presença dos seguintes requisitos: a notoriedade do erro e que este resulte do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Notório, significa ostensivo, patente, percetível e identificável pela generalidade das pessoas e ocorre: - Quando as provas revelem claramente um sentido contrário ao que se firmou na decisão recorrida;

- Em virtude de o sentido firmado na decisão recorrida ser logicamente impossível;

- Por se ter incluído ou excluído da matéria de facto provada algum facto essencial;

- Ou quando determinado facto provado se mostra incompatível com outro também provado. A jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a caracterizar de forma convergente o vício em análise, no sentido que vimos de expor. (12). Assim, para conhecimento do vício convocado pelos recorrentes, importa atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à inclusão nos factos provados e não provados da matéria factual posta em causa no recurso. Ora, no que tange à motivação da convicção probatória, ajuizou a sentença nos termos acima transcritos e a análise de tal texto impõe a constatação de que o juízo probatório, realizado de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º CPP, não indicia o alegado erro.

Efetivamente, confrontando a decisão recorrida, nela não se descortina qualquer contradição lógica entre os factos provados e os não factos provados identificados pelos recorrentes, nem entre aqueles e a motivação da sua convicção probatória. Dito de outra forma, a conexão entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada e não provada, os meios de prova em que se baseou e a criteriosa valoração que fez dos mesmos, não se apresenta como logicamente inaceitável, nem manifestamente errada.

Acresce que, conforme resulta da acima motivação transcrita, não corresponde, de todo, à verdade a alegação dos recorrentes no sentido de que “(…) há um sentido praticamente unanime e coincidente em todas as testemunhas ouvidas mas o Tribunal Recorrido escolhe um outro sentido, ancorado numa única testemunha postergando todas as outras. (…). Ao invés, a convicção do tribunal arrimou-se na conjugação de vários elementos probatórios, entre os quais se incluem vários depoimentos que suportaram o sentido da decisão, tendo o tribunal tido o cuidado de explicitar as razões pelas quais entendeu que alguns depoimentos, ou partes deles, se revelaram credíveis e isentos e outros não. Não podemos, pois, subscrever a alegação de que “(…) não deixa se ser impressivo que o Tribunal Recorrido rejeite a quase totalidade dos mesmos em detrimento de um único, e aquilo que em sede de vício de erro notório é sindicável é tão-somente a ausência de justificação dessa opção. (…)”.

Acresce que, conforme resulta da motivação transcrita, ao tribunal recorrido não restaram dúvidas sobre os factos que teve por provados e por não provados, pelo que inexiste qualquer violação do princípio in dubio pro reo também invocada pelos recorrentes, sendo certo que apenas a subsistência da dúvida legitimaria a convocação de tal princípio, o que “in casu”, não sucede.

Nesta conformidade, não decorrendo das situações concretamente invocadas pelos recorrentes a sustentação de qualquer vício, mais não haverá do que concluir não se verificar o apontado erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410.º, nº 2.º, alínea c) do CPP.

* c) Do invocado erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP. Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, ao tribunal de recurso não cabe julgar novamente, devendo respeitar a liberdade de apreciação da prova que o legislador concedeu ao “juiz a quo”.

No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento.

Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:

“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c ) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Relativamente à satisfação dos requisitos aí previstos, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação à referida norma, no Comentário do Código de Processo Penal, que:

“[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.” (13)

Verificamos assim que, para a arguição de um erro de julgamento, não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.

Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso. (14)

E foi isso que os recorrentes fizeram, tendo assinalado os factos que, em concreto, consideram erradamente julgados e tendo indicado as provas em que sustentam o seu entendimento, provas que se consubstanciam, essencialmente, nas declarações dos arguidos e nos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento, declarações e depoimentos que os recorrentes identificam no sistema integrado de gravação digital, através da consignação dos minutos do seu início e do seu termo e que parcialmente transcrevem. Previamente à análise das provas concretas produzidas nos autos e que sustentaram a decisão recorrida, importa fazer uma breve referência ao princípio da livre apreciação da prova, que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP.

Assim, caberá reter que, segundo tal princípio processual penal, «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio.

Encontra-se a referenciada liberdade orientada para a objetividade, com vista a lograr obter a verdade validamente adquirida. A formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável. Como assinala Figueiredo Dias (15), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, capaz de se impor aos outros.

Deste modo, o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.

Os arguidos AA e DD, que nos presentes autos assume a qualidade de recorrentes, afirmam não ter sido produzida prova bastante demonstrativa da autoria dos factos atinentes ao crime de lenocínio pelo qual foram condenados. Pretendendo impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, os recorrentes observaram as exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas, pois que:

- Indicaram os pontos concretos da sua discordância, concretamente os factos constantes dos pontos 1, 4, 5, 7, 8, 9, 12, 13, 14, 19, 21, 27, 28, 29 e 30 da matéria de facto provada.

- Indicaram os pontos do suporte informático – com identificação dos minutos do início e do fim – em que se encontram as declarações e os depoimentos gravados de que se socorreram e que parcialmente transcreveram.

- E explicam as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.

Realizemos então a análise crítica das provas sobre as quais o recurso assentou o invocado erro de julgamento. Desde já se adianta que, pese embora tenhamos analisado cuidadosamente as considerações apresentadas pelos recorrentes para fundamentar a sua discordância quanto ao juízo probatório exposto na decisão recorrida, cremos que não lhes assiste razão, pois que a prova produzida nos autos permite, a nosso ver, confirmar os termos da fixação factológica daquela constante. Importa em primeiro lugar atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à parte que se impugna, o que foi feito nos termos acima transcritos e que se aqui se convocam. Na motivação transcrita, após anunciar que “(…) Serviram de base para formar a convicção do tribunal a análise crítica e conjugada dos elementos probatórios que a seguir serão enunciados, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal. (…)”, a julgadora deu conta de que, para formação da sua convicção probatória, atendeu a todos os meios de prova disponíveis – documentos, declarações e depoimentos – tendo nos parágrafos subsequentes cuidado de definir o valor probatório conferido a cada um deles, quer em termos absolutos, quer articuladamente na sua relação como os demais. E fê-lo, de forma clara, completa, com exposição dos raciocínios subjacentes ao seu processo de convencimento, em termos absolutamente percetíveis e que não nos merecem reparo.

Efetivamente, analisado o conjunto da prova produzida nos autos – registando-se que procedemos à audição integral de todas as sessões da audiência de julgamento – criámos convicção segura de que os factos impugnados deverão manter-se nos factos provados em virtude de se encontrarem suportados por prova bastante.

Começamos por registar que a motivação transcrita reflete, de forma fidedigna, o que foi relatado em audiência por cada um dos intervenientes processuais que aí foram ouvidos. Nenhum dos recorrentes assumiu a responsabilidade pela prática dos factos que lhes vêm imputados e que foram tidos por provados, pretendendo os mesmos atribuir relevância à circunstância de serem os demais arguidos quem mantinha uma presença constante no bar e quem estabelecia contactos com as mulheres que aí prestavam serviços, daí fazendo decorrer a conclusão de que inexiste prova cabal da prática de factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de lenocínio para sustentar a s suas condenações. Sucede, porém, que a análise atenta da prova produzida permitiu ao tribunal recorrido constatar, e permite-nos a nós confirmar, encontrar-se demonstrada a responsabilidade que os recorrentes insistem em rejeitar, sufragando-se totalmente a convicção probatória a tal propósito exposta na motivação da sentença recorrida.

As questões colocadas pelos recorrentes reportam-se à alegada inexistência de prova suficiente para se formar convicção probatória, total ou parcial, quanto aos factos constantes dos seguintes pontos dos factos provados: “1) Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, os arguidos AA e DD, com o auxílio dos arguidos MM, JJ e PP, exploram o estabelecimento comercial denominado “Bar …”, sito na Rua …, lote …, na …; pelo menos desde maio de 2018 e pelo menos até ao dia 18 de março de 2019, o arguido GG auxiliou na exploração do referido bar. (…) 4) Face a tal condenação, os arguidos DD e AA, no âmbito de um acordo alcançado entre eles e o arguido MM, passaram a dirigir a atividade do “Bar …” também através do arguido MM, sendo que este último passou a constar como responsável pela exploração do bar … e do estabelecimento de “alojamento local” sito no piso superior do aludido bar nos registos que foram efetuados na “Plataforma Digital”, com os números de registo “…” datado de 17-08-2018 e “…” datado de 21-08-2018. 5) No entanto, apesar de o arguido MM figurar como explorador dos aludidos estabelecimentos, eram os arguidos DD e AA que, efetivamente, pelo menos desde maio de 2018 e, pelo menos, até ao dia 4 de junho de 2019, continuavam a angariar as mulheres para trabalhar no “Bar …” e explicar às mesmas o funcionamento do bar, bem como a receber o dinheiro entregue pelas mulheres que ali desenvolviam a atividade de prostituição. (…) 7) Para controlar a atividade de prostituição desenvolvida no aludido bar, os arguidos DD e AA, para além de beneficiarem do auxílio dos arguidos MM, JJ, PP e GG, utilizavam os seus telemóveis e cartões telefónicos para, não apenas, contactar com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, como trocavam mensagens e efetuavam contactos telefónicos com as várias mulheres que ali exerciam ou pretendiam vir a exercer a atividade de prostituição, explicando as condições e informando se existia ou não vaga no estabelecimento, para além de, em diversas ocasiões, ali se deslocarem pessoalmente, com vista a controlar “in loco” a atividade do bar e dos quartos sitos nos andares superiores do edifício. 8) O arguido AA utilizava os cartões telefónicos com os números …, contactando com os demais arguidos, dando instruções e recebendo informações acerca da atividade do bar, nomeadamente, no período compreendido entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019. 9) Quanto à arguida DD, esta utilizava, entre outros, os cartões telefónicos com os números … e … para trocar mensagens e efetuar contactos telefónicos com as várias mulheres e com os demais arguidos, angariando as mulheres para trabalhar no “Bar …”, explicando as condições e informando se existia ou não vaga, o que fez, nomeadamente, entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019. (…) 12) O arguido GG utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido. 13) O arguido JJ utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido. 14) O arguido PP utilizava o cartão telefónico com o número …, no qual recebia e efetuava chamadas com os restantes arguidos, recebendo instruções e dando informações, sobretudo aos arguidos AA, DD e MM, acerca do funcionamento do bar, no período atrás referido. (…) 19)O acesso aos quartos era autorizado pelos arguidos AA e DD, ou na sua ausência, pelos arguidos MM, JJ, PP e GG. (…) 21)O valor da diária pela utilização dos referidos quartos era de €30 (trinta euros) para cada mulher, sendo tal valor entregue, diariamente, aos arguidos MM, JJ, PP e GG que, por seu turno, os entregavam aos arguidos AA e DD. (…) 27) Os arguidos MM, JJ, PP e GG prestavam auxílio à exploração pelos arguidos AA e DD do mencionado estabelecimento comercial, quer exercendo no mesmo atividade de empregados de bar, quer facilitando (nos termos acima descritos) o exercício pelos demais arguidos da atividade descrita e da qual também obtiveram os respetivos proventos. 28) Os arguidos AA e DD agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de atos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento "Bar …" e nos pisos superiores do edifício onde tal bar se situa, reunindo no mesmo condições para tal, beneficiando direta e economicamente das relações sexuais ali mantidas, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que ali se deslocavam com o intuito de manterem relações sexuais e que acabavam também por consumir as bebidas ali comercializadas. 29)Por seu turno, os arguidos MM, JJ, PP e GG, ao colaborarem com os demais arguidos, prestando àqueles auxílio, nos moldes descritos, recebendo das mulheres que ali se prostituíam quantias em dinheiro e controlando as deslocações das mesmas aos quartos com os clientes, bem como o tempo que ali permaneciam, durante o tempo em que trabalharam para os arguidos AA e DD no “Bar …”, atuaram com a vontade livre e a perfeita consciência de que, ao adotarem tal conduta, facilitavam o exercício da prostituição por aquelas mulheres e de cuja atividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respetivos proventos. 30)Todos os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente e com o mesmo propósito, durante o período temporal referido, e pelo menos entre maio de 2018 e 18 de março de 2019 quanto ao arguido GG e pelo menos entre maio de 2018 e 4 de junho de 2019 quanto aos demais arguidos, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”

Os recorrentes sustentam a invocação de erro de julgamento da matéria de facto na pretensa inexistência de prova demonstrativa da aludida factualidade ou na alegada existência de prova que a contraria. Mas não têm razão.

A leitura da sentença permite-nos apreender o que levou o tribunal a decidir no sentido da existência de prova bastante dos referidos factos, encontrando-se exposto o raciocínio racional e lógico-dedutivo subjacente a tal decisão. Aí se encontra explicado por que razão o tribunal recorrido, por referência à lógica e por apelo racional às regras de experiência comum, entendeu que o resultado das vigilâncias, o conteúdo das interceções e das escutas validadas nos autos e o teor da prova documental, concatenados com o teor das declarações dos arguidos e dos depoimentos das várias testemunhas ouvidas em julgamento, constituiu suporte adequado e suficiente para assentar no elenco factual agora posto em causa.

Ademais, não corresponde à verdade que “Compulsadas as súmulas dos vários depoimentos prestados pelas testemunhas, e não obstante a prova arrasadora que aí ressalta no que concerne à total ausência de participação nos factos pelos Arguidos Recorrentes, não se alcança quais os fundamentos que no entender do Tribunal Recorrido conferem credibilidade a determinadas provas e não a outras.”, ou que “a prova testemunhal produzida aponta de forma clara num sentido e o Tribunal Recorrido prefere ancorar a sua convicção num único depoimento, o qual interpreta em sentido oposto”, conforme os recorrentes nas suas alegações. Ao invés, e conforme se expõe no exame crítico da prova, não obstante algumas das testemunhas ouvidas em julgamento terem revelado relutância em confirmar o conhecimento que tinham relativamente à relação dos recorrentes com o bar … no período aqui em apreço, a verdade é que as testemunhas OO e NN afirmaram concretamente que conheciam o recorrente como sendo o dono do estabelecimento, em termos que o tribunal considerou fundadamente credíveis. Acresce que tais depoimentos se encontram corroborados quer pelos conteúdos das escutas, quer pelos resultados das vigilâncias externas atestados, entre o mais, com fotogramas. Importante se revelou ainda o depoimento da testemunha da RR, militar da GNR que se deslocou ao interior do bar … por duas vezes no âmbito das diligências de investigação e que foi foi perentório ao afirmar que, numa dessas vezes, visualizou os arguidos AA e DD a entrar no interior do bar e, posteriormente, numa porta de acesso vedado ao público, o que constitui indício importante do envolvimento dos recorrentes no funcionamento do bar.

Subscrevemos integralmente a linha argumentativa exposta no excerto da sentença contendo a motivação do juízo probatório, que acima transcrevemos – quer no que diz respeito à credibilidade dos depoimentos aí identificados, quer no que tange à inverosimilhança das versões dos recorrentes, mormente atendendo às explicações que as contrariam assinaladas na decisão – para formar convicção probatória segura relativamente à veracidade dos factos tidos por provados e que se encontram impugnados. Na verdade, ao contrário do que se defende no recurso, não resulta do conjunto da prova produzida qualquer dúvida razoável que legitime a convocação do princípio do “in dubio pro reo” relativamente à factualidade atinente à exploração e gerência, de facto, do estabelecimento comercial Bar … pelos recorrentes. Ficou claro, de outra sorte, que eram os recorrentes, como o auxílio dos demais arguidos, quem, efetivamente, continuava a angariar as mulheres para trabalharem no “Bar …”, a explicar às mesmas o funcionamento do bar e, bem assim, a receber o dinheiro obtido com a atividade de prostituição que aquelas ali desenvolviam.

É, quanto a nós, manifesta a prova de tais factos, pelas razões claramente expostas na sentença. E nem se diga, como afirmam os recorrentes para obstar a tal juízo probatório, que os depoimentos dos militares da GNR que apenas participaram em algumas das diligências externas – tal como sucedeu em particular com a testemunha QQ – constituem depoimentos indiretos que não poderiam ter sido valorados pelo tribunal, pois que, como está bom de perceber, para além de tais testemunhas terem podido atestar o que visualizaram nas vigilâncias em que participaram, puderam, obviamente, relatar a forma como os procedimentos se desenrolaram, a estratégia seguida e a articulação que estabeleceram entre si para que a mesma tivesse tido sucesso (16). A verdade é que, integrados que estavam na equipa que realizou as diligências investigatórias, os depoimentos dos militares da GNR, na perspetiva assim delineada, podiam e deveriam ter sido valorados, como foram, para enquadrar e credibilizar os resultados das mesmas, contidos quer nos relatórios das vigilâncias e respetivos fotogramas, quer nos conteúdos das escutas validados nos autos.

Igualmente irrelevante para efeitos de sustentação da convicção probatória do tribunal se nos afigura a circunstância de o recorrente se não encontrar no local no momento em que se iniciou a busca, tendo chegado durante a sua realização. Do mesmo modo, o facto de os veículos que se encontravam parados à porta do estabelecimento não se encontrarem registados em nome dos recorrentes não reveste importância para efeitos de sustentação do juízo probatório em relação aos factos impugnados, uma vez que o tribunal criou convicção segura de tais veículos eram habitualmente utilizados por aqueles.

Consideramos, pois, que, ao contrário do entendem os recorrentes, o tribunal a quo valorou, correta e cuidadosamente, os depoimentos das testemunhas identificadas na sentença que, aliás, corroboraram a factualidade que já resultara fortemente indiciada pelos resultados das vigilâncias e pelo conteúdo das escutas telefónicas validadas nos autos.

Finalmente, no que tange ao bloco de factos impugnados constantes dos pontos 7, 27 e 28 da matéria de facto provada, que os recorrentes autonomizaram no recurso, respeitantes ao controlo da atividade pelos recorrentes (pontos 7 e 27) e aos elementos subjetivos do tipo (ponto 28), a argumentação apresentada no recurso afigura-se-nos absolutamente destituída de razoabilidade. Com efeito, não corresponde de todo à verdade a alegação de que “a atividade de prostituição era, assim, absolutamente independente do trabalho realizado no bar, até porque não era controlada, supervisionada nem sequer fomentada por quem geria a atividade do bar …, que se limitava a assumir o papel de arrendatário dos quartos utilizados.

Por outro lado, daqui também se infere que qualquer dinheiro que era entregue pelas mulheres era única e exclusivamente o dinheiro pelo arrendamento dos quartos.

Por último, não existe qualquer prova recolhida nos autos, nem isso resultou da produção de prova em sede de julgamento que os Recorrentes beneficiassem economicamente das relações sexuais mantidas pelas mulheres no piso superior ao do bar …, ou tão pouco que tivessem conhecimento disso.

Os Recorrentes não tinham conhecimento daquilo que era ou não feito nos quartos e se as mulheres recebiam ou não uma quantia monetária pela atividade sexual e se o recebiam quanto era o valor recebido pelas mesmas”.

Sufragamos a este propósito, de outra sorte, o raciocínio lógico-dedutivo explicitado na sentença no que diz respeito às inferências realizadas no âmbito da valoração da prova, quer direta, quer por presunção, no que tange à atividade de prostituição desenvolvida no bar, em particular nos quartos, com controlo pelos arguidos recorrentes, atividade da qual, através da forma descrita dos factos provados, aqueles retiravam benefício económico. De facto, tal como se refere na sentença “(…) No que concerne à atividade exercida no bar … desde, pelo menos, maio de 2018 e até ao dia 4 de junho de 2019, os depoimentos das testemunhas / colaboradoras do bar foram claros e consentâneos: acompanhavam / abordavam clientes que se dirigiam ao bar; do valor das bebidas consumidas pelos clientes recebiam uma percentagem de 50% e acompanhavam-nos aos quartos localizados no piso superior para a prática de atos sexuais pelos quais cobravam quantias monetárias; as chaves dos quartos eram entregues pelas pessoas que estavam a trabalhar ao balcão do bar; as colaboradoras pagavam € 30 por dia pela utilização dos quartos, quantia que entregavam também a estes funcionários; os valores das bebidas eram pagos às colaboradoras também por estes funcionários, no final da noite / do período em que lá estivessem.

(…)

Quanto ao envolvimento dos arguidos no funcionamento do bar …, a convicção do Tribunal alicerça-se, essencialmente, no seguinte:

Relativamente ao arguido AA, existem vários relatórios de vigilância externa e fotogramas que atestam a sua deslocação ao bar …: fls. 152, 160, 168, 209, 375, 392, 405, 431, 444, 464, 613, 659, 685, 753, 815 e 1039 e fotogramas de fls. 617 e ss. e 688.

Outrossim, foram analisados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas, designadamente os de fls. 304, 381, 454, 578, 657, 788 e 898, bem como os apensos de escutas telefónicas juntos aos autos.

Dos relatórios de vigilância externa é possível extrair que o arguido AA dirigiu-se ao interior ou saiu do bar … pelo menos nas seguintes datas: 17.10.2018, pelas 00h55m; 18.10.2018, pelas 17h20m; 20.10.2018, pelas 23h58m; 10.12.2018, pelas 16h25m; 13.02.2019, pelas 14h09m; 14.02.2019, pelas 17h05m; 25.02.2019, pelas 14h28m.

Noutras datas foi também constatado que os veículos de matrícula … e …, habitualmente utlizados pelos arguidos AA e DD, estavam estacionados em frente o bar …. No dia 09.05.2019, os arguidos AA e DD foram visualizados no interior do veículo automóvel de matrícula … a entrar na Rua da …, onde fica localizado o bar … (fls. 1039).

Outrossim, foram também positivamente valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas supra referidos e apensos de escutas telefónicas. Destacam-se os autos de fls. 578, em que o arguido AA recebe uma chamada telefónica a propósito de uma obra que estaria a decorrer no bar … para partir uma parede e fazer mais um quarto; o auto de fls. 788, que atesta que o arguido recebeu uma chamada telefónica cujo assunto foi a deslocação de três funcionários da Câmara Municipal ao bar … para realização de uma fiscalização ao local.

Conjugados todos estes elementos de prova com o depoimento de NN, que não teve quaisquer dúvidas em afirmar que foi o arguido AA que lhe explicou as condições de exercício de atividade de prostituição no bar …, o Tribunal ficou absolutamente convencido da participação deste arguido nos factos, nos moldes que vêm descritos na acusação.

Não colhe a versão do arguido, apresentada no final da audiência de julgamento, no sentido de não ter qualquer envolvimento com o bar e a atividade aí exercida, tendo-se aí deslocado apenas por ser proprietário do edifício para resolver problemas relacionados, v.g., com a eletricidade. Note-se que, instado para esclarecer o momento a partir do qual terá deixado de ter qualquer ligação ao bar … (o que seria expectável atendendo à anterior condenação sofrida), não soube precisar.

No que diz respeito à arguida DD, existem relatórios de vigilância externa que atestam a sua deslocação ao bar …: fls. 160 e 291. Em 17.11.2018, numa ação de fiscalização levada a cabo pela GNR juntamente com os serviços do SEF, a arguida encontrava-se no bar … e identificou-se como colaboradora.

A testemunha RR, militar da GNR que se deslocou ao interior do bar … por duas vezes no âmbito das diligências de investigação, foi perentório ao afirmar que, numa dessas vezes, visualizou os arguidos AA e DD a entrar no interior do bar e, posteriormente, numa porta de acesso vedado ao público.

Por outro lado, foram também valorados os autos de interceção e gravação de escutas telefónicas de fls. 115, 146, 304, 342, 372, 451, 657, 710, 795, 947, 1049, 1109 e 1369 e apensos de escutas telefónicas, sendo possível aferir que a arguida encetou/recebeu contactos de clientes do bar … ou de colaboradoras, designadamente no sentido de saber se existia vaga disponível nos quartos.

Em análise ao auto de fls. 904 é também possível constatar que o arguido GG refere-se à arguida DD como HH e ao arguido AA como II e identifica-os como proprietários / exploradores do bar.

Outrossim, resulta do auto de fls. 710 que a arguida discutiu os termos dos contratos de trabalho dos arguidos JJ e GG, enquanto trabalhadores do bar ….”

Ou seja, o tribunal recorrido sustentou o seu juízo probatório relativo ao facto de serem os recorrentes quem, de facto, explorava o estabelecimento comercial “Bar …”, não no depoimento de uma única testemunha, mas sim na conjugação dos resultados das vigilâncias e das escutas e dos depoimentos das várias testemunhas ouvidas em julgamento que aportaram a tal propósito diferentes contributos. Com efeito, da conjugação de tais meios de prova resultaram apurados vários comportamentos dos recorrentes dos quais, compreensivelmente, e por recurso às regras da experiência comum, o tribunal fez decorrer a convicção de que a exploração do bar lhes pertencia. Comungamos, pois, da convicção exposta na sentença recorrida no sentido de entender que a prova documental e testemunhal produzida nos autos se revelou idónea e suficiente para sustentar a prova de todos os factos tidos por provados, restando concluir que as circunstâncias de facto reveladas pela prova existente no processo e enunciadas na decisão permitem estabelecer que os recorrentes foram os autores das atuações ilícitas ali descritas, improcedendo totalmente a tese propugnada no recurso.

São tais as razões que justificam que os factos constantes dos pontos 1, 4, 5, 7, 8, 9, 12, 13, 14, 19, 21, 27, 28, 29 e 30 impugnados pelos recorrentes sejam mantidos nos factos provados, nenhuma censura nos merecendo o juízo probatório realizado pelo tribunal “a quo”, nada havendo a alterar a tal respeito.

*** d) Do invocado erro de julgamento da matéria de direito.

- Por errada qualificação jurídica dos factos, considerando ser o crime de lenocínio materialmente inconstitucional e em virtude de a factualidade apurada não se subsumir ao tipo legal de lenocínio. Da invocada inconstitucionalidade material do crime de lenocínio. A este propósito, defende o arguido nas conclusões do seu recurso que: “(…) O Acórdão proferido por este T.R.E., em 13-10-2022, além de ter declarado nula a sentença datada de 07-03-2022 nos termos supra referidos, conheceu também e apreciou a questão de inconstitucionalidade material do crime de lenocínio suscitada no recurso dos Arguidos recorrentes. Nesse tocante, o T.R.E. entendeu “não considerar inconstitucional o tipo penal de lenocínio simples, p. e p. no artigo 169º, n.º 1 do C.P.”, tendo ancorado a sua decisão nos fundamentos expendidos no Acórdão n.º 72/2021 do Tribunal Constitucional no qual se decidiu igualmente “Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal;”.

Sucede, porém, que o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2023, datado de 20 de abril de 2023 no qual foi relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro, resolveu em sentido diametralmente contrário, decidindo “Julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, conjugadamente”. Acresce que a sentença recorrida data, precisamente, do dia seguinte àquele em que foi prolatado o referido Acórdão do TC, tendo-se pronunciado ainda assim, “ipsis verbis”, nos mesmos termos, isto é, que a norma ínsita no art.º 169º n.º 1 do C.P não é materialmente inconstitucional. Ora, os Arguidos recorrentes mantêm a sua posição, na esteira do entendimento dominante na doutrina, de que, com as alterações legislativas de 1998 e de 2007, o crime previsto no n.º 1 do art.º 169º do C.P. passou a tratar-se de um crime sem vítima, uma vez que não existe qualquer tipo de pressão ou coacção sobre a alegada vítima. Pois que, não existindo sequer quaisquer condicionantes sociais de exploração de situações de abandono ou de necessidade económica da alegada vítima e sendo o exercício da prostituição de execução livre, naturalmente que não existe nenhuma lesão efectiva de um bem jurídico, mesmo na equação de o bem jurídico ser a “liberdade sexual”, o que conflitua com o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa na medida em que, inexistindo já ofensa ao bem jurídico da liberdade sexual, não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direito à liberdade enquanto direito necessariamente implicado na punição. De resto, acrescenta o referido Acórdão n.º 218/2023 do TC: “Estas considerações reiteram a ideia, já decorrente de anteriores decisões do Tribunal, de que há uma associação frequente entre proxenetismo e violação da liberdade sexual – ideia que, de resto, o Acórdão n.º 134/2020 não negou –, mas continuam a não permitir estabelecer a perigosidade típica necessária à viabilidade constitucional de um crime de perigo abstrato: os crimes de perigo abstrato constituem verdadeiras presunções inilidíveis, o que, em direito penal, só se compreende e tolera quando a sua base empírica permita afirmar que a conduta tem um intrínseco potencial de lesão ou de perigo concreto para o bem jurídico. Em contraste, a única forma possível de ainda relacionar minimamente a conduta típica aqui em causa com o bem jurídico que poderia justificar a sua punição é a de estabelecer uma sequência de presunções em que se começa por presumir que fomentar, favorecer ou facilitar a prostituição de modo profissional ou com intuito lucrativo tem um potencial intrínseco de exploração de quem se prostitui. No entanto, é inegável que a natureza profissional ou o intuito lucrativo da atuação nada tem de intrínseco que obste ao estabelecimento de relações sinalagmáticas com quem se prostitui, como inegável é que a decisão de uma pessoa de se prostituir pode constituir uma expressão ainda plena da sua liberdade sexual (cf. o ponto 10 do mesmo Acórdão). Aquela conduta não está apenas distante, mas deslocada da ofensa ao bem jurídico que legitimaria a sua punição, dificultando ainda, em certos casos, o exercício do correspondente direito por parte de quem se prostitui.”

Face ao exposto, atenta a superveniência e atualidade deste novo Acórdão do T.C. que, necessariamente teve de ser sopesado na decisão recorrida, porquanto anterior a este, os Arguidos recorrentes ressuscitam a questão, colocando novamente à apreciação de V. Exas. a inconstitucionalidade material do crime de lenocínio, p. e p. no art.º 169º n.º 1 do C.P., por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1 da Constituição, o que novamente invocam, na esteira dos fundamentos expendidos no Acórdão n.º 218/2023 do Tribunal Constitucional.(…)” *** Conforme se refere na alegação transcrita, a questão da inconstitucionalidade do tipo de lenocínio mereceu já a nossa apreciação no anterior acórdão proferido nestes autos, mantendo, a nosso ver, total atualidade o aí decidido a tal respeito, conquanto os argumentos nos quais se sustenta a declaração de inconstitucionalidade do tipo penal de lenocínio constantes do mais recente acórdão do TC (à semelhança de outros que o antecederam) a que se reportam os recorrentes – Acórdão n.º 218/2023 de 03.03.2020, proferido, é certo, em data subsequente ao nosso primitivo acórdão – nada aportam de verdadeiramente novo relativamente ao argumentário anteriormente apresentado pelos defensores da teste da inconstitucionalidade. De resto, constatamos que o aresto no qual os recorrentes agora essencialmente fazem ancorar o renascimento da arguição da inconstitucionalidade do artigo 169º, nº 1 do CP – Acórdão n.º 218/2023 de 20.04.2023 (17) – foi relatado pelo Exmº Juiz Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro, que também relatara o acórdão nº 134/2020 de 03.03.2020 – tendo ambos sido prolatados na 3º secção do TC – acórdão que, como sabemos, veio a ser revogado pelo Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro. A reiteração, neste mais recente aresto, da argumentação que já havia sido exposta no acórdão nº 134/2020 de 03.03.2020 é, pois, evidente e natural, atendendo à identidade do relator e da secção na qual ambos foram proferidos. Porém, como está bom de ver, as razões aí apresentadas foram já objeto de proficiente análise e rebate no aludido Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro a cuja fundamentação aderimos no anterior acórdão proferido nos presentes autos nesta Relação. Passamos, pois, a transcrever a parte respetiva da fundamentação do aludido acórdão desta Relação proferido nos presentes autos com data de 13.10.2022, que agora se reitera: “(…) Não subscrevemos, porém, tal entendimento [o defendido pelos recorrentes no recurso que se encontrava em análise], nem o acórdão do TC invocado pelos recorrentes – Ac. nº 134/2020 – se encontra já em vigor, por ter sido expressamente revogado pelo Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro a que infra aludiremos. Conforme o tribunal recorrido teve já oportunidade de referir na sentença sob recurso, a questão da conformidade constitucional do crime de lenocínio tem vindo a ser discutida no Tribunal Constitucional, tendo-se este tribunal pronunciado múltiplas vezes pela não inconstitucionalidade do tipo penal em análise. Recentemente, vieram, porém, a ser proferidas algumas decisões com votos de vencidos pugnando pela inconstitucionalidade do crime de lenocínio, tendo chegado a ser proferido o acórdão nº 134/2020 invocado pelos recorrentes. Precisamente com vista a superar a divergência de pronunciamentos decisórios – num recurso interposto pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto para o Plenário do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1 da Lei do TC, na sequência da prolação pela 3.ª Secção do Acórdão n.º 134/2020 (acórdão invocado pelos arguidos nos recursos), que, divergindo de múltiplas decisões anteriores do TC, julgou inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição – foi publicado o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional nº 72/2021, de 27 de janeiro, proferido no âmbito do processo n.º 1458/2017 e relatado pelo Conselheiro José António Teles Pereira, no qual se decidiu: “a) Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal; b) Revogar o Acórdão n.º 134/2020 (18), proferido nos presentes autos; e, consequentemente, c) Julgar improcedente o recurso originariamente interposto.” (19) Uma vez que subscrevemos inteiramente a linha argumentativa eloquentemente exposta em tal aresto, por se nos afigurar de inquestionável utilidade à compreensão dos fundamentos que suportam o juízo de não inconstitucionalidade da norma penal em causa, passamos a transcrever parcialmente – nas partes que entendemos mais relevantes – a sua fundamentação: “(…) Em suma, as posições no sentido da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal têm assentado na afirmação da perda de conexão com um bem jurídico suficientemente definido, a partir das alterações introduzidas na norma incriminadora pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro. Ao eliminar-se o elemento típico de exploração duma situação de abandono ou necessidade, já não estaria em causa a proteção da liberdade sexual e, por outro lado, a dignidade da pessoa humana seria mobilizável em termos vagos, não oferecendo suporte bastante à incriminação. Não se afigurando viável considerar uma interpretação do preceito mais restritiva do que a sua letra consente, restaria apenas, então, a injustificada criminalização da mera atividade de proxenetismo, a tutela por via penal de interesses morais ou de bons costumes, a evitação “do pecado”, que poderia manifestar-se até com sinal contrário ao da liberdade individual das pessoas que a norma visou proteger. Os possíveis comportamentos atentatórios da dignidade humana estariam fora do tipo, sem poderem considerar-se necessária ou mesmo razoavelmente pressupostos na ação expressamente proibida, o que, especialmente estando em causa um comportamento passível de acordo, não consentiria uma construção constitucionalmente conforme de um crime de perigo abstrato, já de si particularmente exigente. Não é esta, todavia, a única perspetiva a partir da qual pode ser olhada a norma sub judice. 2.3. Como é sabido, outras decisões do Tribunal Constitucional, em expressiva maioria, têm adotado uma orientação no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judice. Atravessa este entendimento uma ideia – a sua ideia fulcral – de que “[…] a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui” [Acórdão n.º 641/2016)]. Existe, em tais casos – e corresponde ao entendimento deste Tribunal desde a decisão de 2004 –, uma genérica e preponderante apetência da ação descrita no tipo para o desencadear de eventos ou criar situações cujo desvalor (cuja danosidade), causalmente conexionado, imediata ou mediatamente, com o exercício da prostituição, o legislador quis antagonizar, através do instrumento de atuação do Estado correspondente à perseguição criminal, sendo certo que a opção por essa via ocorre num quadro racionalmente compreensível de valoração das potencialidades desvaliosas da realidade social envolvida (precursora, desencadeada ou propiciada) no conjunto de situações correspondentes ao fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição, por parte de alguém, que não o próprio agente do crime, num quadro de atividade profissional ou de um exercício com intenção lucrativa. E vale esta opção na intencionalidade que lhe subjaz, independentemente do tratamento legal conferido na nossa Ordem Jurídica aos atos de prostituição, em si mesmos considerados, concretamente à subtração destes a qualquer tipo de perseguição sancionatória, através de uma política usualmente qualificada – e que corresponde à realidade portuguesa – como abolicionista, por oposição a uma política proibicionista ou a um enquadramento legal de tolerância regulamentadora (v. a caraterização destas opções legais, nas suas diversas gradações, em Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 28/30). (…) No contexto geral da opção abolicionista, emprega-se o expressão abolição permissiva (permissive abolition, em contraposição a impermissive abolition, que sinaliza a perseguição sancionatória do cliente, Peter Marneffe, Liberalism and Prostitution, cit, p. 29) para referenciar, no quadro geral de uma política abolicionista, a opção por políticas públicas de não repressão sancionatória ou criminalização, tanto da oferta como da aquisição e procura de serviços sexuais (a prostituição que só envolve o par individualizado formado pelo agente da oferta e o agente da procura), criminalizando-se, todavia, no conjunto de políticas designadas como abolição permissiva, as atividades intimamente relacionadas com o aproveitamento económico por terceiros do negócio da prostituição, como paradigmaticamente o são a gestão de bordéis, os negócios do tipo clubes ou bares de alterne, que comportem ligação à atividade de prostituição, e mesmo a simples intermediação, com o objetivo de lucro, no negócio da prostituição travada entre os polos originários (quem se prostitui e o cliente).

2.3.1. Não estando, manifestamente, em causa “[…] saber se a incriminação do lenocínio, nos moldes em que se se encontra prevista, traduz a melhor opção ao nível da política criminal” (disse-se no Acórdão n.º 421/2017, retomando uma asserção já presente no Acórdão n.º 144/2004, cfr. o respetivo item 8) – constitui tal incriminação uma opção de quem está democraticamente legitimado para efeito da tomada dessas opções –, importa notar que “[…] o critério da necessidade de tutela penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, foi sempre apreciado pela jurisprudência constitucional proferida sobre a incriminação do lenocínio”, o que não impediu que se concluísse pela “[…] legitimação material da norma incriminadora constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, à luz do princípio da proporcionalidade” (Acórdão n.º 694/2017). (…) De onde resulta, em suma, uma liberdade, com amplitude muito considerável, do legislador – desde sempre sublinhada, neste exato contexto, pelo Tribunal (de novo remetemos para o item 8 do Acórdão n.º 144/2004) – em punir ou não punir os comportamentos, neste âmbito, com o que nisso vai implicado em termos de não proibição constitucional da solução adotada. Por outras palavras, “[d]ecidir se o risco implicado para a autonomia do agente que se prostitui deve ser considerado como um perigo a prevenir pela via da incriminação da exploração profissional ou com fins lucrativos da pessoa que se prostitui, é […] uma opção que cabe dentro do poder de definição da política criminal que pertence ao legislador” (Acórdão n.º 421/2017). 2.4. É que existe uma diferença substancial entre a mera atividade de prostituição (não punida), e a (outra) atividade que a fomenta, favorece ou facilita, deslocando a segunda do campo da mera liberdade individual para uma constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas das circunstâncias referenciáveis à individualização do ato de prostituição, que é inevitavelmente próxima – demasiado próxima – de movimentos, nacional e internacionalmente organizados, cujo resultado (aqui referimo-nos ao resultado da atividade dos referidos movimentos organizados num plano superior ao de cada “empresário”), quase invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade comercial”. Com tal proximidade se gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário – como o de qualquer outro negócio – tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (criando redes ou procurando redes já estabelecidas, que lhe propiciem economias de escala, maximizando o controlo da atividade – insiste-se – fora de mecanismos de controlo efetivo, que pura e simplesmente não existem no nosso país), objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se prostituem. Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a provar in concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal. 2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reiterada, pelo Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cumpre, em oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.(…)”. A argumentação expendida pelos recorrentes carece, pois, em nosso entender, de sustentação, pelo que, seguindo de perto a posição maioritariamente defendida no Tribunal Constitucional e recentemente reafirmada no acórdão do Plenário nº 72/2021, de 27 de janeiro que acabámos de transcrever, somos a concluir pela inexistência da invocada inconstitucionalidade do tipo penal de lenocínio p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP.

* Da não subsunção dos factos provados ao crime de lenocínio simples p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP. Nas suas alegações de recurso, relativamente ao erro em matéria de direito, alegam ainda os recorrentes subsidiariamente, que, ainda que se não conclua pela inconstitucionalidade material do tipo de lenocínio simples p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP, sempre se deverá concluir pela não subsunção dos factos provados a tal crime, ou, pelo menos, em nova alegação subsidiária, pela prática de tal ilícito penal pelos arguidos em regime de trato sucessivo nos termos constantes da condenação. Vejamos cada uma de tais questões. No que diz respeito à primeira, alegam os recorrentes nas suas conclusões que: “(…) 83. O crime de lenocínio que está aqui em causa, encontra-se tipificado no referido art.º 169.º do Código Penal, o qual normativo, no n.º 1, passou a consagrar o tipo legal fundamental de crime de lenocínio. 184. O bem jurídico aqui protegido, neste crime de lenocínio simples, é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição, ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa. 185. O tipo objectivo consiste no fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição por outra pessoa, agindo o autor de modo profissional ou com intenção lucrativa. 186. O crime de lenocínio simples é um crime de execução livre, pois a colaboração do agente pode ser realizada por qualquer modo. Contudo, o agente deve actuar profissionalmente (isto é, esta deve ser a actividade habitual do agente, embora possa não ser a única, constituindo o seu modo de vida) ou mesmo através de uma acção pontual ou esporádica, distinta do seu modo de vida, desde que com intenção lucrativa. O tipo não exige, pois, a concretização de um lucro efectivo para o agente. 187. Quanto ao tipo subjectivo, o mesmo crime é doloso, podendo fundar-se em qualquer das modalidades do dolo nos termos do vertido no Art.º 14.º do C. Penal. Sabendo-se que quando o agente actua com intenção lucrativa esta implica o dolo na sua forma mais grave. 188. Para quem defende a constitucionalidade do crime de lenocínio simples considera que o descrito preceito incriminador protege, no fundo, um bem jurídico, de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, em conformidade com o art.º 1° da Constituição da República. 189. Assumindo-se esses preceitos como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e, protegida constitucionalmente pelo art.º 26°, n.º 2, da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual. Ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem. 190. Mas mesmo neste posicionamento fica claro que é indispensável uma interpretação constitucional restritiva do tipo penal no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, mais consentânea com o parâmetro dos bens jurídico-constitucionais no âmbito da criminalidade sexual, é também mais conforme com a natureza pública do procedimento criminal (cfr. art.º 178.º, n.º 1, do Código Penal). 191. Ora, ainda que se entenda que o crime de lenocínio não é inconstitucional, para a tal possível conformação constitucional, vem sendo defendido pelo T.C., esta prova adicional do elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta. (…) 193. De facto, o recorte fino desta questão que vem sendo efectuado pelos nossos Altos Tribunais exige, pelo menos, que um conjunto de factos atinentes à exploração da necessidade económica e social das pessoas prostituídas sejam dados como provados, de forma a se alcançar um mínimo de conforto constitucional. 194. Trata-se, no fundo, de um esforço interpretativo que concede ao legislador penal a ponderação de incriminação deste tipo de situações que traduzem um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que prestam um consentimento meramente formal à actividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e pelo abandono desde uma idade muito jovem. 195. É neste quadro social e jurídico descrito que a Jurisprudência maioritária vem interpretando o art.º 169.º, n.º 1, do Código Penal, com a restrição acima ponderada – no sentido de exigir a prova adicional de elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta – pois só assim, mesmo para esta Jurisprudência, não padecerá de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18.º, n.º 2, da C.R.P.. 196. Ora, se analisarmos com objectividade e rigor o caso em apreço nestes autos, constata-se que na matéria de facto considerada provada não vamos decifrar este elemento típico implícito da “exploração da necessidade económica e social” da vítima prostituta, tanto nos seus componentes objectivos como subjectivos. 197. Aliás, esse mesmo elemento típico não fazia parte da acusação apresentada pelo Mº.Pº., o que traria ao Tribunal Recorrido as maiores dificuldades em superar esse objecto do processo assim delimitado pelo acusatório e em face dos condicionamentos próprios de uma alteração substancial dos factos – assim, no art.º 359.º, n.º 1, do C.P.P.. 198. Na verdade, nenhuma da factualidade provada, nem mesmo em sede de fundamentação – simplesmente o Tribunal Recorrido, na esteira da acusação esquece por completo este segmento –, tanto na dimensão objectiva como subjectiva, vem a concretizar qualquer relação de ascendente, ou mesmo de exploração de qualquer necessidade económica e social por parte das pessoas prostituídas. 199. Ora, mesmo que se viesse a aceitar como faz o Tribunal Recorrido – o que apenas por cautela de patrocínio se concebe – que os Arguidos Recorrentes fomentaram, favoreceram ou facilitaram a prática de actos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento bar … e de cuja actividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e dos quais recebiam os respectivos proventos (factos provados 28 e 29) –, a verdade é que a factualidade provada não demonstra ao nível objectivo e subjectivo a conduta dos arguidos tendente a retirar as indevidas vantagens materiais/pecuniárias de que se valeram numa apontada relação de ascendente (intelectual, emocional, psicológico, físico, económico e até familiar) que levou a corromper a vontade e a liberdade daquelas mulheres. 200. Pelo que entendem os Recorrentes que ainda que a factualidade viesse a ser dada como provada nos exactos termos da acusação, sempre teriam de ser absolvidos prática do crime de lenocínio por falta de consubstanciação factual típica. 201. Acresce ainda que, o Tribunal Recorrido, mesmo dando como provado a intervenção dos Arguidos, não conseguiu sustentar sequer o necessário preenchimento do ilícito típico objectivo. *

Não subscrevemos, de todo o entendimento exposto pelos recorrentes e no qual terá igualmente assentado o pronunciamento decisório no acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de janeiro de 2021 que aqueles optaram por transcrever na fundamentação do seu recurso. Com efeito, não se nos afigura possível proceder à interpretação restritiva do preceito em causa propugnada pelos recorrentes, quer porque o elemento histórico não aponta nesse sentido, quer porquanto a abrangência do seu teor literal o não permite, de todo. Como é sabido, a exigência da exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui para preenchimento do tipo do nº 1 do artigo 169º do CP foi expressa e intencionalmente retirada pelo legislador na alteração introduzida em tal preceito pela Lei n.º 59/2007 de 04/09. Atualmente, não só tal exigência não consta do tipo de lenocínio simples previsto na citada norma penal, como se encontra prevista na alínea d) do seu nº 2, para onde foi deslocada, pelo que, em nosso entender, e ressalvado o respeito por diverso entendimento, a interpretação restritiva do nº 1 do artigo 169º do CP defendida no recurso, a mais de não consentida pelos princípios gerais que deverão reger a interpretação da lei – que sempre deverá encontrar na sua letra um mínimo de correspondência verbal, nos termos previstos no artigo 9º, nº2 do CC – esvaziaria totalmente de conteúdo a previsão da citada agravação. Assim que, nos termos reconfigurados da norma penal que atualmente vigora, o aproveitamento de uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima – não sendo já necessário que tenha havido exploração – passou a constituir elemento qualificativo do crime. Quanto ao tipo base, quis o legislador que o seu preenchimento subsistisse sem tal exigência. E é precisamente esta a posição que se defendeu, de forma clarividente, no recente acórdão do TC de n.º 218/2023 de 20.04.2023 que os recorrentes convocaram para sustentar a sua posição do sentido da inconstitucionalidade do artigo 169º, nº 1 do CP. Aí se consignou a respeito da questão que nos ocupa que: “Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa conclusão numa interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a considerá-lo aplicável apenas a situações em que exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. É disso exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., 2015, p. 673. É também o caso de Inês Ferreira Leite, “A Tutela Penal da Liberdade Sexual”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 21, n.º 1 (2011), p. 82, para quem, «mais importante do que construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual». Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de considerações de índole sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo exigir que tenha havido exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi assumidamente retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito – ainda que em termos algo reconfigurados, visto bastar agora que tenha havido aproveitamento (não sendo já necessário que tenha havido exploração) de uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima –, passando portanto a constituir elemento qualificativo de um tipo legal de base que se pretendeu subsistisse sem ele. Pela impossibilidade de interpretar o tipo legal daquele modo restritivo conclui também, v.g., Augusto Silva Dias, op. cit., p. 124 s. Deste modo, não poderia acolher-se uma interpretação dessa natureza sem que isso representasse uma denegação da intencionalidade normativa imprimida a esse tipo legal de crime pelo legislador, aqui sim em iminente ingerência na sua liberdade de conformação. A jurisprudência deste Tribunal, de resto, tem sempre suposto uma interpretação deste tipo legal de crime no sentido de o seu âmbito não estar cingido a hipóteses em que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, tendo inclusivamente explicitado já que o mesmo abrange casos de exercício de prostituição por «pessoa auto determinada» (Acórdão n.º 294/2004). Simplesmente, tem concluído pela não inconstitucionalidade do tipo legal assim interpretado.(…)”

Nesta conformidade, atentando na factualidade apurada nos autos, com o recorte e a dimensão cristalizados nos factos provados, resulta evidente que a construção jurídica exposta no recurso não poderá deixar de soçobrar, subsumindo-se tal factualidade ao tipo legal de lenocínio simples p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP, conquanto resultou provado que os recorrentes, com o auxílio dos demais arguidos, exploravam o estabelecimento comercial denominado “Bar …”, no qual se desenvolvia a prática de prostituição, sendo que eram os recorrentes quem angariava as mulheres para aí trabalharem e lhes explicavam o funcionamento do bar, sendo também aqueles quem recebia o dinheiro que as referidas mulheres entregavam resultante da atividade de prostituição que ali desenvolviam. Mais se apurou que os recorrentes agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços, no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de atos de prostituição pelas referidas mulheres, no estabelecimento que exploravam, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. (ponto1 1, 5, 17 a 22 e 27 a 30). Nenhuma duvida poderá restar de que, face a tal factualidade, os recorrentes se constituíram como coautores do crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP, pelo qual foram condenados.

* Relativamente à segunda questão acima enunciada, qual seja a da prática do crime de lenocínio simples pelos arguidos em regime de trato sucessivo (20), revela-se útil revisitar as considerações a esse respeito tecidas no anterior acórdão desta Relação proferido nos autos em 11.10.2022 e relacioná-las com o bem jurídico protegido por tal tipo penal. Conforme aí referimos, apenas o crime continuado encontra consagração legal expressa no nosso ordenamento jurídico-penal, concretamente no artigo 30º, nº 2 do CP (21), sendo que o crime de “trato sucessivo” surge como uma construção teórica, doutrinária e jurisprudencial (22) que pretendeu responder à necessidade de encontrar uma resposta penal adequada para as situações em que não se revela possível apurar o número de crimes cometidos num determinado período de tempo e/ou nas quais se verifica um maior grau de culpa do agente face à reiteração de comportamentos integradores do crime e lesivos dos bens jurídicos protegidos. Ora, é precisamente este último elemento identificativo, o que se reporta à culpa do agente, que separa concetual e relevantemente as duas figuras em análise, pois que, enquanto no crime continuado o legislador pressupõe que a realização plúrima do mesmo tipo de crime ocorra no quadro da solicitação de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente – nos termos expressamente previstos no artigo 30º, nº 2 do CP – o crime de trato sucessivo, assentando embora também numa pluralidade de infrações, pressupõe, ao invés, que às mesmas, pela sua reiteração, se associe um juízo de censura acrescido, que deverá ser graduado em função da maior ou menor persistência da resolução criminosa, relevando, obviamente para a sua apreciação, o número de práticas delituosas que, ao longo do tempo, foram sendo executadas. Efetivamente, manifestando-se o crime de trato sucessivo pela prática de atos reiterados, que haverão de ser sucessivos, apresentar-se como homogéneos, ocorridos num mesmo contexto situacional e em proximidade temporal, aos quais preside uma unidade resolutiva, o dolo do agente abarca, desde o início da sua atuação, tal pluralidade de atos, sendo que a reiteração, reveladora de uma resolução persistente do agente, traduz uma culpa agravada (23).

Assentamos, pois, em que, ao contrário do crime continuado, no crime de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa do agente, mas, antes um seu progressivo agravamento proporcional à dimensão da reiteração das condutas. Neste sentido se pronunciou Cristina Almeida e Sousa no seu estudo sobre o “trato sucessivo” nos crimes sexuais, no qual refere que “As regras contidas no artigo 79.º do CP não podem, sob pena de violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade características do Direito Penal e dos postulados de clareza e segurança jurídica que lhes estão subjacentes, ser as mesmas, tão aptas e em igual medida, para punir o crime continuado que traduz uma pluralidade de infrações, interligadas por um tipo substancialmente atenuado de culpa e o crime de trato sucessivo, que assenta numa pluralidade de infrações, unificadas por um tipo agravado de culpa.” (24) (25) Aqui chegados e retomando a questão que concretamente nos ocupa, cabe perguntar se o crime de lenocínio simples, p. e p pelo artigo 169º, nº 1 do CP, pelo qual os arguidos foram condenados, comporta a sua prática em regime de “trato sucessivo” – nos termos constantes da condenação – e/ou na forma continuada, prevista no artigo 30º do CP – conforme pretendem os recorrentes. E não temos dúvida que tal questão encontra resposta positiva na conceção do tipo penal de lenocínio, que temos por adequada, e que distingue com clareza o bem jurídico protegido na sua forma simples, prevista e punida pelo nº 1 do artigo 169º do CP, e na sua forma agravada, prevista e punida pelo nº 2 do mesmo preceito.

Vejamos. Estabelece o artigo 30º do CP, que regula o concurso de crimes e o crime continuado, que: “Artigo 30.º Concurso de crimes e crime continuado 1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais. O Tribunal recorrido excluiu a aplicação da figura do crime continuado, prevista no n.º 2 do art.º 30º do C.P. que vimos de citar, o que fez com o fundamento de que o crime de lenocínio visa a proteção da “autodeterminação sexual”, não sendo, portanto compatível com a figura do crime continuado, atendendo à restrição estabelecida pelo n.º 3 do artigo 30º do C.P. Não subscrevemos, porém, tal entendimento que, a nosso ver, não cuidou de distinguir, ao nível do bem jurídico protegido, o crime de lenocínio na sua forma simples e na sua forma agravada. Com efeito, em nosso entender, (26) a exclusão da aplicação da figura do crime continuado operada pelo nº 3 do artigo 30º do CP só encontra aplicação nas situações de condenação pelo n.º 2 do artigo 69º do CP – ou seja, se o agente cometer o crime previsto no n.º 1 com recurso a violência ou ameaça grave, através de ardil ou manobra fraudulenta, com abuso de autoridade ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima – pois que apenas em tais situações se atenta contra um específico bem jurídico eminentemente pessoal, concretamente contra a autodeterminação sexual . De outra sorte, com a incriminação do lenocínio prevista no artigo 169º, nº 1 do CP, o legislador pretendeu tutelar antecipadamente a exploração de pessoas que exercem a prostituição, censurando-se a intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da tal atividade, inexistindo uma individualização precisa de um bem jurídico determinado. As identificadas dissemelhanças entre os tipos penais previstos no nos números 1 e 2 do CP conduzem-nos inevitavelmente à conclusão de que, diversamente do que sucede com o crime de lenocínio agravado, o crime de lenocínio simples, tutelando um bem jurídico de natureza não pessoal, poderá ser entendido como um único crime e praticado na forma continuada nos termos previstos no artigo 30º, nº 2 do CP (27). Para tanto, será, porém, necessário que se verifiquem os pressupostos expressamente previstos em tal norma penal, ou seja, “(…) a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.” Ora, como está bom de ver, não resultaram provados – nem constavam, aliás, da acusação – quaisquer factos dos quais pudéssemos retirar a existência quer de uma pluralidade de resoluções criminosas, quer de uma situação exterior que diminuísse consideravelmente a culpa dos agentes. É esta e não outra – designadamente a da aplicação do nº 3 do artigo 30º do CP – a razão pela qual os arguidos não poderiam ser condenados por um tipo substancialmente atenuado de culpa. Os factos que constituem o objeto do processo não o permitem.

Ao invés, não se tendo revelado possível determinar o número de crimes cometidos no período de tempo em causa nos autos, mas tendo-se apurado a existência, em tal período, de atos reiterados – sendo que a reiteração reveladora de uma resolução persistente dos agentes que traduz uma culpa agravada – sucessivos, homogéneos, ocorridos num mesmo contexto situacional e em proximidade temporal, aos quais presidiu uma unidade resolutiva, abarcando o dolo dos agentes, desde o início da sua atuação, tal pluralidade de atos, mostra-se absolutamente adequada o recurso à construção teórica, doutrinária e jurisprudencial do “trato sucessivo” e, consequentemente, a condenação dos recorrente por um único crime de lenocínio p. e p. no artigo 169º, nº 1 do CP, fazendo refletir a culpa agravada dos seus autores nas dosimetrias das penas, nos termos constantes da sentença recorrida. (28) E nem se diga, como dizem os recorrentes, que o tribunal condenou indevidamente os recorrentes por um crime de trato sucessivo porquanto “(…) consignou na fundamentação em sede de medida concreta da pena (não na factualidade) uma série de considerações factuais sobre as quais não deixou os arguidos se defenderem (…)”. Na verdade, todas as considerações tecidas na sentença, nas quais assentou a condenação por um tipo penal com juízo de censura agravado, com inevitáveis reflexos ao nível da medida concreta da pena, assentaram na factualidade já constante da acusação. Atentemos nos seus termos:“(…) cumpre destacar que o grau de ilicitude é elevado, tendo em consideração o período temporal em causa; o número de vítimas aqui em apreço, sendo que apenas algumas foram identificadas (no âmbito das buscas realizadas ao local); o modo de execução que implica premeditação – pois foi montada uma estrutura que permitia que clientes com o intuito de praticar atos sexuais mediante o pagamento de quantias monetárias se dirigissem ao local, fossem abordados por mulheres que aí exerciam atividade de prostituição e tivessem acesso a quartos para a prática de tais atos; destaca-se que, no que concerne aos arguidos AA, DD e MM o grau de ilicitude é mais elevado por comparação aos restantes arguidos, considerando que eram aqueles que exploravam (formalmente e/ou de facto) o bar aqui em apreço, enquanto os demais arguidos eram funcionários do bar e agiram para auxiliar aqueles;(…)” Como facilmente se retira do conteúdo do excerto transcrito, o tribunal fez relevar, a nosso ver, adequadamente, para a determinação das medidas das penas dos recorrentes os elementos caracterizadores dos crimes de trato sucessivo, concretamente a reiteração das condutas homogéneas, às quais presidiu uma unidade resolutiva, necessariamente associadas a um tipo agravado de culpa. Improcede, pois, também quanto a este a pretensão recursória.

*- Em virtude de a determinação das medidas das penas não ter respeitado os princípios da legalidade e da adequação.

Os recorrentes questionam o processo de determinação das medidas concretas das penas, alegando que o tribunal não distinguiu, como se impunha, as situações dos recorrentes e ainda que as penas aplicadas se acham desadequadas e desproporcionais em relação aos concretos factos cometidos. Referem ainda que o tribunal não relevou “o lapso de tempo já decorrido desde os factos e sobretudo os atos concretos levados a cabo pelos arguidos recorrentes, consubstanciados numa atuação esporádica” e que, pese embora tenha consignado que não levou em consideração como antecedente a última condenação por crime da mesma natureza – tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado – tal não corresponde à verdade, pois que aplicou uma pena de prisão de 3 anos a cada arguido, “quando na tal anterior condenação, num período de tempo superior e em que de facto os Arguidos Recorrentes exploravam de facto (de forma habitual e profissional) o referido bar, foram condenados numa pena de 1 ano e 11 meses de prisão”.

Analisemos então se lhe assiste razão.

Retenhamos que no caso dos recursos sobre a pena ou sobre a medida da pena, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria. E tão somente isso.

Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização do quantum exato de pena, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada.

Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa, o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.

Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de escolha e de determinação das penas concretas realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada.

Sendo o lenocínio simples, p. e p. pelo artigo 169º, nº 1 do CP, pelo qual os recorrentes foram condenados, punido apenas com pena de prisão e contendo-se a sua moldura abstrata entre os 6 (seis) meses e os 5 (cinco) anos, a sentença recorrida fixou as penas concretas em 3 (três) anos de prisão, suspensas na sua execução por idêntico período, acompanhadas de regime de prova, nos termos do art.º 50º e 53º do C.P. e sujeitas ao cumprimento da deveres e regras de conduta consubstanciados na obrigação de pagamento de determinadas quantias à APAV e na proibição de frequentar o bar … ou qualquer outro espaço associado à atividade da prostituição.

Pensamos, porém, que, ao contrário do que sustenta o recorrente, o fez com justificação bastante. Vejamos.

Devemos em primeiro lugar atentar na factualidade provada – que acima transcrevemos e para a qual remetemos – na qual se descrevem as atuações dos recorrentes, o período e contexto em que ocorreram, o propósito que visaram alcançar e as suas motivações e, bem assim, os elementos relativos às suas condições pessoais.

A este propósito, alegam os recorrentes que as penas que lhe foram aplicadas nos autos se revelam desajustadas por excessivas. Mas não têm razão.

Efetivamente, ao contrário do que os recorrentes pretendem fazer crer, todas as circunstâncias indicadas no artigo 71º do CP, foram tidas em conta na sentença, conforme se atesta pela leitura das considerações aí tecidas relativamente à determinação das medidas das penas, que passamos a transcrever:

“(…) Quanto às necessidades de prevenção especial, cumpre referir que:

- O arguido AA tem 61 anos de idade e tem quatro antecedentes criminais registados no seu certificado de registo criminal – três pela prática de três crimes de natureza diversa e um pela prática de crime da mesma natureza. No entanto, esta condenação apenas poderá ser considerada como uma conduta anterior censurável, tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado;

- A arguida DD tem 54 anos de idade e consta averbada no seu certificado de registo criminal uma condenação pela prática de crime da mesma natureza. No entanto, esta condenação apenas poderá ser considerada como uma conduta anterior censurável, tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado;

(…) De acordo com os critérios previstos no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, para definir a medida concreta da pena, há ainda que ponderar:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – cumpre destacar que o grau de ilicitude é elevado, tendo em consideração o período temporal em causa; o número de vítimas aqui em apreço, sendo que apenas algumas foram identificadas (no âmbito das buscas realizadas ao local); o modo de execução que implica premeditação – pois foi montada uma estrutura que permitia que clientes com o intuito de praticar atos sexuais mediante o pagamento de quantias monetárias se dirigissem ao local, fossem abordados por mulheres que aí exerciam atividade de prostituição e tivessem acessos a quartos para a prática de tais atos; destaca-se que, no que concerne aos arguidos AA, DD e MM o grau de ilicitude é mais elevado por comparação aos restantes arguidos, considerando que eram aqueles que exploravam (formalmente e/ou de facto) o bar aqui em apreço, enquanto os demais arguidos eram funcionários do bar e agiram para auxiliar aqueles;

- A atuação dos arguidos na modalidade de dolo direto, pois os mesmos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, praticaram os factos de acordo com a sua vontade;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram. A este respeito, menciona-se que a finalidade pretendida é a obtenção de proventos económicos;

- As condições pessoais dos arguidos e a sua situação económica encontram-se elencadas da factualidade provada e dão-se aqui por integralmente reproduzidas;

- Sobre a conduta anterior e posterior ao facto, cumpre apenas destacar que, em sede de declarações, os arguidos AA e PP não reconhecem a ilicitude das suas condutas, sendo certo que AA tentou fazer crer que foi completamente alheio à factualidade aqui em apreço, com explicações de fracos alicerces que não convenceram o Tribunal;

- Quanto à existência ou inexistência de preparação para manter uma conduta lícita, o tribunal pôde formar a sua convicção através dos certificados do registo criminal dos arguidos.

(…)

IV – Da suspensão da pena de prisão

(…) No caso concreto, encontra-se preenchido o pressuposto formal para aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, porquanto foi aplicada aos arguidos AA, DD e MM pena em medida não superior a cinco anos.

Relativamente ao pressuposto material, há a considerar que:

- O arguido AA tem 61 anos de idade e tem quatro antecedentes criminais registados no seu certificado de registo criminal – três pela prática de três crimes de natureza diversa e um pela prática de crime da mesma natureza. No entanto, esta condenação apenas poderá ser considerada como uma conduta anterior censurável, tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado;

- A arguida DD tem 54 anos de idade e consta averbada no seu certificado de registo criminal uma condenação pela prática de crime da mesma natureza. No entanto, esta condenação apenas poderá ser considerada como uma conduta anterior censurável, tendo em conta que, à data da prática dos factos aqui em apreço, aquela condenação ainda não havia transitado em julgado;

(…)

Assim, entende-se que estão ainda reunidos os pressupostos para considerar que a ameaça de cumprimento de pena de prisão efetiva é ainda suficiente para fazer com que os arguidos adotem uma conduta em conformidade com as regras do Direito, procedendo um juízo de prognose favorável à reinserção social dos mesmos em liberdade, pelo que se suspende as penas de prisão por iguais períodos.

A suspensão da execução da pena de prisão fica condicionada a regime de prova, conforme previsto no artigo 53.º do Código Penal e, por conseguinte, deverá o plano de reinserção social ser realizado pela Direção Geral dos Serviços Prisionais (DGRSP). (…)

Atendendo aos contornos do caso concreto, a suspensão das penas de prisão aplicadas aos arguidos fica condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres / regras de conduta:

- Pelo arguido AA a obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 5.000,00 (cinco mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros).

- Pelo arguido AA a proibição de frequentar o bar … ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição);

II) - Pela arguida DD a obrigação de entregar à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima a quantia total de € 3.000,00 (três mil euros) durante o período de suspensão, devendo entregar e comprovar nos autos:

- Durante o primeiro ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o segundo ano de suspensão da execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);

- Durante o terceiro ano de suspensão de execução da pena de prisão, a quantia de € 1.000,00 (mil euros).

- Pela arguida DD a proibição de frequentar o bar … ou qualquer outro espaço associado ao tipo de atividade aqui em apreço (prostituição). (…)”

Nenhum reparo nos merece a sentença recorrida também neste temário. Subscrevemos integralmente todas as considerações transcritas, que se nos afiguram acertadas e respeitadoras dos critérios legais. Assim, e ao contrário do que propugnam os recorrentes, a censurabilidade que nos merecem as suas condutas, nos termos acima consignados, associada à elevada ilicitude dos factos – que, como já vimos, integram a prática de um crime de lenocínio em trato sucessivo, ao qual corresponde um tipo agravado de culpa – e às necessidades de prevenção geral e especial, também corretamente avaliadas pelo tribunal a quo, sustenta totalmente a pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, acompanhada de regime de prova, nos termos do art.º 50º e 53º do C.P. e sujeita ao cumprimento dos deveres e regras de conduta que o tribunal decidiu aplicar.

À dosimetria das penas fixada na sentença não obsta a circunstância de na anterior condenação pela prática do mesmo tipo de crime terem sido aplicadas aos recorrentes penas de prisão mais reduzidas, pois que, a mais de os tribunais serem autónomos na sua apreciação, desconhecemos as particulares circunstâncias aí sopesadas. Não vemos igualmente justificação bastante para distinguir as medidas concretas das penas de prisão aplicadas a cada um dos recorrentes, sendo certo que nada nos autos aponta para diferentes tipos de participação na execução dos factos ou para diversos graus de culpa, sendo certo que as pequenas diferenças registadas relativamente às condições pessoais dos recorrentes – tais como as atinentes aos antecedentes criminais ou à posição adotada em julgamento relativamente aos factos – encontraram reflexo nas diferenças dos montantes estipulados relativamente às obrigações de pagamento à APAV (5 000,00 € para o recorrente e 3 000,00 € para a recorrente).

Sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, entendemos revelarem-se adequadas e proporcionais as penas aplicadas aos recorrentes, consignando-se o acerto no processo aplicativo desenvolvido na sentença, na qual avulta uma ponderação correta dos factos e uma adequada valoração dos mesmos à luz das regras e dos princípios que regem a determinação da medida concreta da pena acima enunciados, pelo que o recurso deverá improceder também quanto a este aspeto.

***

Nesta conformidade, somos a concluir pela improcedência dos recursos interpostos pelos arguidos, impondo-se decidir manter integralmente a sentença recorrida.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos apresentados pelos arguidos e, consequentemente, em manter integralmente a decisão recorrida.

*

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 23 de janeiro de 2024

Maria Clara Figueiredo

Laura Goulart Maurício

Maria Margarida Bacelar

João Amaro

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1 Conclusão nº10 do primeiro recurso interlocutório.

2 Tal como sucede no acórdão da Relação de Coimbra de 23.10.2019, relatado pelo Desembargador Luís Teixeira, disponível em www.dgsi.pt e citado pelos recorrentes para sustentarem a sua posição.

3 Que surgiu na sequência da decisão de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tomada pelo TC no acórdão n.º 445/97, disponível em www.tribunalconstitucional.

4 Se não fosse, ou seja, se o juízo probatório acerca dos factos comunicados nos termos do artigo 358º, nº 1 do CPC se encontrasse formulado, a produção de prova que subsequentemente viesse a ser realizada a solicitação do arguido revelar-se-ia inócua.

5 Neste sentido decidiram os acórdãos da Relação do Porto de 12.07.2022, relatado pelo Desembargador Paulo Guerra; da Relação de Guimarães de 10.07.2023, relatado pelo Desembargador Armando Azevedo e acórdãos da Relação de Évora de 28.02.2023 e de 28.03.2023, relatados pelo Desembargador Carlos de Campos Lobo.

6 O próprio CPP, no artigo 339.º, n.º 4, clarifica que a discussão da causa tem por objeto todas as soluções jurídicas pertinentes em face dos factos imputados ao arguido, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia.

7 Neste sentido cfr. acórdão da Relação do Porto de 07.06.2023, relatado pelo Desembargador Paulo Costa, disponível em www.dgsi.pt.

8 Cfr. a este propósito, entre outros, o Acórdão do STJ proferido no proc. nº 733/17.2JAPRT.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.

9 Mormente quando refere: “Julgava-se que este ensinamento pacífico na nossa jurisprudência e que está nos antípodas dos mais elementares princípios da valoração probatória em processo penal estivesse já perfeitamente adquirido na praxe do foro, contudo, para o Tribunal Recorrido assim não é, clamando por isso a necessária intervenção do Tribunal ad quem.”

10 No sentido da valoração como meios de prova dos relatórios de vigilância, cfr., entre outros, o acórdão da Relação do Porto de 28.05.2014, relatado pelo Desembargador Neto de Moura, disponível em www.dgsi.pt.

11 Acórdão da relação do Porto de 03.03.2021, relatado pelo Desembargador Nuno Pires Salpico, disponível em www.dgsi.pt.

12 Entre outros, citamos o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 21/5/2019, relatado pelo Desembargador Proença da Costa no proc. 61/15.8EAEVR.E1, no qual podemos ler relativamente ao erro notório na apreciação da prova, que o mesmo ocorre quando «… as provas revelam claramente num sentido e a decisão recorrida extrai ilações contrárias, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela algum elemento. Trata-se, assim, de uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se passou, provou ou não provou. Existe um tal erro quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis..»

13 3.ª edição, página 1121.

14 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.

15 Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 204 e ss.

16 No caso do militar QQ, pelo mesmo foi claramente explicado no seu depoimento que só foi uma vez ao bar com o propósito de não levantar suspeitas durante as investigações, pois que havia participado numa investigação anterior.

17 Registamos que neste próprio acórdão (n.º 218/2023 de 20.04.2023), com vista a justificar-se o sentido decisório contrário ao do pronunciamento do Plenário do TC no acórdão nº 72/2021 de 27 de janeiro, se consignou o seguinte: “Tendo decorrido quase dois anos sobre a prolação daquele Acórdão do Plenário, tendo a composição deste mudado significativamente desde então e verificando-se não haver estabilidade absoluta na jurisprudência dos tribunais judiciais quanto à constitucionalidade da norma em causa, considera-se estar a força daquela jurisprudência, no atual momento, suficientemente mitigada para se justificar nova decisão sobre a matéria.”

18 Sendo precisamente este o acórdão do TC que os recorrentes invocam e transcrevem para sustentar o juízo de inconstitucionalidade do tipo penal em análise.

19 Acórdão que os recorrentes omitem nas suas alegações de recurso.

20 Cabendo recordar que, conforme acima apreciado e decidido, a alteração da qualificação jurídica de crime continuado para crime de trato sucessivo foi corretamente efetuada pelo tribunal a quo, com respeito pelo regime previsto no artigo 358º do CPP e em cumprimento do decidido por este tribunal da Relação no acórdão proferido e 11.10.2022.

21 Encontrando-se expressamente excluída pelo nº 3 do mesmo preceito legal a sua aplicação aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

22 A figura do crime de trato sucessivo surge inicialmente aplicada ao tráfico de droga, tendo, posteriormente, sido transposta para os crimes sexuais, sendo que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afastado a sua aplicação aos crimes sexuais por considerar que à multiplicidade de atos ofensivos da vítima - quer se trate de uma única ou de várias - correspondem autónomas resoluções criminosas, a serem subsumíveis a uma pluralidade de crimes, individualmente considerados para efeitos de punição. (neste sentido, cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 12.05.2021, relatado pelo Conselheiro Sénio Alves, de 01.10.2021, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima e o acórdão de 27.11.2019, relatado pelo Conselheiro Augusto Matos, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

23 Cfr. a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.09.2015, proferido no processo n.º 2430/13.9JAPRT.S1, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível nos Sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça — Secções Criminais, 2015, p. 448 e ss, in www.stj.pt.

24 Cristina Almeida e Sousa in “A inconstitucionalidade da jurisprudência do “trato sucessivo” nos crimes sexuais” – Revista Julgar online, outubro de 2019.

25 Também a conselheira Helena Moniz, no seu estudo “Crime de trato sucessivo?”, publicado na Revista Julgar online, abril de 2018, defendeu a impossibilidade de punição dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo, aceitando, porém, que, ao contrário do crime continuado, aquela categoria de ilícitos, de construção dogmática, pressuponha um tipo agravado de culpa.

26 E na senda do que nos parece ser a posição maioritariamente defendida na doutrina e na jurisprudência portuguesa nesta matéria.

27 Neste preciso sentido cfr. José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in “Crimes Sexuais, Análise substantiva e Processual”, Almedina, 3ª edição, 2021, páginas 155 e 156.

28 Neste sentido, cfr. os acórdãos da Relação de Coimbra, de 10.07.2013, relatado pelo Desembargador Fernando Chaves e de 28.02.2018, relatado pela Desembargadora Isabel Valongo.