Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1055/22.2T8FAR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Sumário: - Se a Ré, aqui recorrente, pretende impugnar a matéria de facto, mas não cumpre o ónus que lhe é imposto pelo artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, alínea b), do C.P.C., o prazo para a interposição do recurso é de (apenas) 30 dias, face ao disposto no artigo 638.º, n.º 1, do C.P.C., não podendo ela beneficiar do acréscimo de 10 dias a tal prazo (30+10), a que se refere o n.º 7 do citado preceito legal.
- Por isso, considerando-se a Ré notificada da sentença em 16/10/2023 e tendo dado entrada em juízo do requerimento de interposição de recurso e respectivas alegações apenas em 30/11/2023, forçoso é concluir que tal recurso é extemporâneo e, como tal, não pode, nem deve ser admitido, não se tomando conhecimento, por isso, do seu objecto.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1055/22.2T8FAR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra (…), Unipessoal, Lda., pedindo que:
1) A Ré seja condenada a realizar todos os trabalhos de reparação e eliminação dos defeitos de obra existentes no imóvel da Autora, descritos no artigo 75º da petição inicial, bem como dos vícios ocultos que se venham a manifestar, dentro do prazo que vier a ser judicialmente fixado, a contar da data do trânsito em julgado da sentença condenatória;
2) Seja fixada uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por dia, pelo atraso na realização dos trabalhos de reparação e eliminação dos defeitos de obra e vícios ocultos, no prazo fixado para o efeito; Ou, em alternativa,
3) A Ré seja condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos patrimoniais, correspondente à contratação de terceiros prestadores de serviços para realizar todos os trabalhos de reparação e eliminação dos defeitos verificados no imóvel da Autora, descritos no artigo 75º da petição inicial, bem como dos vícios ocultos que se venham a manifestar, em quantia a liquidar em execução de sentença, deduzida da quantia retida pela Autora, a título de garantia, correspondente a € 46.778,17; E, em qualquer caso,
4) A Ré seja condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos patrimoniais, correspondente:
a) Aos honorários dos seus mandatários judiciais, em quantia a liquidar em execução de sentença;
b) Aos honorários do Eng.º (…), na quantia de € 1.476,00;
c) Aos custos com o abastecimento de água e respetivas taxas de saneamento, na quantia de € 1.403,52;
d) Aos produtos para tratamento da água da piscina, na quantia de € 437,88.
5) A Ré seja condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos não patrimoniais, a qual deverá ser fixada mediante recurso a juízo de equidade, em quantia nunca inferior a € 50.000,00;
6) A Ré seja condenada a pagar à Autora os juros de mora vencidos, aplicados sobre a quantia em que venha a ser efetivamente condenada, à taxa legal, contados desde a data da citação da Ré até efetivo e integral pagamento.
Fundamenta a sua pretensão no facto de ter acordado com a Ré a construção duma moradia e que o trabalho realizado apresenta defeitos que impedem a sua normal utilização, estando há anos aguardando que a Ré faça a reparação dos mesmos de forma definitiva, provocando-lhe toda esta situação danos patrimoniais e morais.
Devidamente citada para o efeito veio a Ré apresentar a sua contestação, na qual impugna parcialmente a existência de defeitos decorrentes dos trabalhos por si realizados, havendo também problemas pela escolha de materiais efectuados e ainda por decisões de execução que não foram da sua autoria. Assim, admite eliminar os defeitos de construção, pagar as quantias peticionadas a titulo de custos com o abastecimento de água e respetivas taxas de saneamento, bem como com os produtos para tratamento da água da piscina, devendo ser absolvida dos demais pedidos mas, caso se reconheça o direito da Autora a uma indemnização por danos não patrimoniais, deve a essa indemnização ser deduzido o valor retido para efeitos de garantia nos termos da cláusula vigésima primeira do contrato de empreitada celebrado.
Oportunamente veio a ser proferido despacho saneador, que fixou o valor da acção e o objecto do litígio, bem como os temas da prova.
De seguida foi realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença pela M.ma Juiz a quo, na qual a presente acção veio a ser julgada parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, foi decidido:
a) Condenar a Ré (…), Unipessoal, Lda. a reparar os defeitos da obra de construção realizada no prédio urbano denominado por Lote 5, situado na Urbanização (…), (…), freguesia de Santa Bárbara de Nexe, concelho de Faro, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…) da mesma freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro, sob o n.º (…), descritos em 54) dos factos provados, no prazo de 120 dias ou, em alternativa, condenar a Ré (…), Unipessoal, Lda. a pagar à Autora (…) a quantia de € 143.221,83 a título de indemnização para eliminação dos defeitos da obra (após dedução do valor retido a título de garantia), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros comerciais;
b) Condenar a Ré (…), Unipessoal, Lda. a pagar à Autora (…) a quantia total de € 26.841,40, sendo € 1.841,40 por danos patrimoniais e € 25.000,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à data da prolação da sentença até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros comerciais, com exceção dos danos emergentes no valor de € 1.841,40, cujos juros de mora são devidos desde a citação;
c) Absolver a Ré do demais peticionado.

Inconformado com tal decisão dela apelou a Ré, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo andou mal ao ter decidido condenar a Ré, ora Recorrente, no pagamento de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) à Autora, a título de danos não patrimoniais.
B. Com o devido respeito pelo douto tribunal de 1ª instância, não pode o Recorrente concordar com o entendimento sufragado, razão pela qual não se conformando com o decidido, dele vem interpor o presente Recurso de Apelação.
C. Verifica-se, no entanto, que o recurso à equidade conforme previsto no n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil não foi devidamente aplicado nem ponderado.
D. Consequentemente, a condenação da Recorrente quanto aos danos não patrimoniais enferma de nulidade e ilegalidade, uma vez que a decisão em crise se encontra apartada do que prevê e dispõe a lei para a aplicação e cálculo de indemnização por danos não patrimoniais.
E. Ao abrigo do princípio da equidade, não foi considerado o grau de culpabilidade da Recorrente.
F. A Recorrente é responsável pela reparação dos danos na obra, o que tentou fazer ao longo dos últimos anos e nunca foi negada a reparação dos mesmos.
G. Não só a dependência da Ré para com os seus subempreiteiros para executarem obras de reparação ao abrigo de prazos de garantia – ou seja, não remunerados – bem como a difícil conciliação de agendas entre as várias partes (Autora, Ré, subempreiteiros), é possível aferir que a Ré sempre teve boas intenções e boa fé no sentido de executar as obras de reparação, que sabia necessárias.
H. O que resulta inequivocamente claro da prova gravada e transcrita no presente articulado.
I. Da prova gravada resulta que se trata de uma obra complexa e que a Recorrente sempre se mostrou disponível e com intenção de reparação dos danos, tendo reparado vários deles, mais do que uma vez.
J. E não obstante a dificuldade de conciliação de agendas, a verdade é que a Recorrente, seja por si, seja pelos seus subempreiteiros, dirigiu-se, vezes sem conta, nos últimos 5 anos, à casa da Recorrida e efetivamente reparou muitos danos existentes.
K. Ora, os danos que se mantêm, tendo a Recorrido assumido desde sempre a sua reparação, não poderão relevar – nunca – para efeitos de aferência do grau de culpabilidade da Recorrente.
L. E muito menos servirá para concluir – a contrario dos factos dados como provados – que a Recorrente não fez um esforço sério para resolver definitivamente o problema dos defeitos ao longo dos anos.
M. Ora, não se afigura outra razão que não o esforço sério, para a Recorrente se ter dirigido inúmeras vezes à casa da Recorrida, ter reparado o mesmo dano duas e três vezes, ter feito infinitos testes para descobrir a origem de outros, ter direcionado responsáveis de obra e/ou arquitetos para acompanharem as reparações levadas a cabo por subempreiteiros…
N. Pois mesmo quando os subempreiteiros não apareciam sem pré-aviso, a Recorrida encontrava-se acompanhada de representante da Recorrente.
O. Pelo que, atenta a prova gravada, tal afirmação de que o tribunal se serviu para justificar a fixação de montante a título de danos não patrimoniais – não havendo esforço sério por parte da Recorrente – trata-se de uma afirmação conclusiva sem qualquer sustentação nos factos provados, não merecendo qualquer colhimento.
P. Consequentemente, enferma a decisão recorrida de nulidade conforme previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Q. Ainda quanto à aplicação do princípio da equidade para fixação de indemnização por danos não patrimoniais, não se encontra sequer contemplada ou mencionada a situação económica da Recorrente e Recorrida.
R. A decisão em crise contempla uma condenação dupla – reparação dos danos ou pagamento em montante correspondente, e pagamento de danos patrimoniais e não patrimoniais.
S. No total de € 170.063,23 (cento e setenta mil e sessenta e três euros e vinte e três cêntimos), a qual terá de ser suportada, única e exclusivamente, pela Recorrente, seja através da reparação efetiva dos danos, seja através de pagamento do montante respetivo.
T. Importa não desconsiderar os 5 (cinco) anos (2017-2022) de trabalhos de execução e reparação de obras ao abrigo do prazo de garantia da obra que já foram executados à total responsabilidade e expensas da Ré, ainda que, infortunadamente, os danos não tenham sido reparados na totalidade, ou tenham ressurgido.
U. Assim como, e por se tratarem de factos notórios e por isso não constituírem factos novos para efeitos da presente apelação, a reparação dos danos pela Recorrente não depende exclusivamente desta, e por isso os fatores externos, imprevisíveis e incontroláveis, como a pandemia mundial originada pelos vírus COVID-19, as consequentes faltas de mão de obra, seja por quarentenas, seja pela geral crise de trabalhadores no ramo da construção civil, bem como a falta e aumento exponencial do preço dos materiais, devido aos acontecimento bélicos de 2022, terão contribuíram para os insucessos na reparação dos danos existentes.
V. Constata-se, assim, que dada toda a envolvência dos acontecimentos dos últimos (negros) anos, aos quais se junta ora a inflação derivada de todas as crises nacionais económicas, políticas e sociais, a condenação da Recorrente no pagamento do montante de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, sem aferência do grau de culpabilidade nem da situação económica da Recorrente e Recorrida, culminará no desfecho infeliz de incapacidade económica da empresa Recorrente.
W. Desrespeitando por completo o princípio da equidade e fundamentação que se encontra previsto no n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil.
X. Acresce o facto de a decisão recorrida, na parte quanto aos danos não patrimoniais, atentar a factos e elementos subjetivos de acordo com as declarações da Recorrida.
Y. Afastando a atribuição e fixação de um montante a título de danos não patrimoniais com base em padrões sedimentados na experiência comum, o que culminou num valor irracional e desproporcional face a todo o supra exposto.
Z. Pelo que se requer a V. Exas. seja a decisão proferida revogada quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, por apartada da lei, e seja a mesma substituída por outra que, com enquadramento e fundamento no princípio da equidade, seja a Ré dispensada do pagamento à Autora a título de danos não patrimoniais, tendo em conta a decisão in totum.
AA. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se alvitra, requer-se a V. Exas. seja a decisão proferida revogada quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, por apartada da lei, e seja a mesma substituída por outra que, com enquadramento e fundamento no princípio da equidade e com o recurso aos factos provados e objetivos, seja a Ré condenada a pagar à Autora, a titulo de danos não patrimoniais, montante, razoável e racional, nunca superior a € 5.000,00 (cinco mil euros).
BB. Nestes termos, e nos demais de direito, cujo douto suprimento de Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, expressamente se requer que seja admitido o presente recurso e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, seja a decisão proferida revogada quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, por apartada da lei, e seja a mesma substituída por outra que, com enquadramento e fundamento no princípio da equidade, seja a Ré dispensada do pagamento à Autora a título de danos não patrimoniais, tendo em conta a decisão e condenação in totum.
CC. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela d patrocínio se alvitra, requer-se a V. Exas. seja a decisão proferida revogada quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais, por apartada da lei, e seja a mesma substituída por outra que, com enquadramento e fundamento no princípio da equidade e com o recurso aos actos provados e objetivos, seja a Ré condenada a pagar à Autora, a titulo de danos não patrimoniais, montante, razoável e racional, nunca superior a € 5.000,00 (cinco mil euros).
Pela Autora foram apresentadas contra alegações, nas quais pugna que o recurso em causa é extemporâneo e, como tal, deverá ser rejeitado, mas, se assim não se entender, sustenta que a decisão recorrida deverá ser confirmada.
A Ré foi notificada para se pronunciar sobre a extemporaneidade do recurso, nos termos do disposto no artigo 655.º, n.º 2, do C.P.C., tendo concluído que o recurso deverá ser apreciado nesta Relação.


Foram colhidos os vistos junto das Ex.mas Juízes Adjuntas – cfr. artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela Ré., aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se é sentença é nula, face ao disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil;
2º) Saber se não estão verificados os requisitos para a Ré ser condenada a pagar à Autora, a título de danos não patrimoniais, uma indemnização de € 25.000,00 mas, se porventura assim não for entendido, sempre tal indemnização deverá ser reduzida para o montante de € 5.000,00.
No entanto – e não obstante as questões supra referidas suscitadas pela Ré – impõe-se apreciar, desde já, como questão prévia, o de saber se o recurso interposto pela Ré devia ter sido rejeitado por ser o mesmo extemporâneo.
Ora, analisando a apelação interposta pela Ré constata-se que veio esta afirmar, no essencial, nas suas alegações de recurso, que o tribunal a quo fez uma errónea apreciação da matéria de facto e do Direito aplicável, pelo que a decisão deve ser alterada nessa parte, já que, face aos factos tidos por assentes e da prova produzida, impõe-se uma decisão no sentido da mesma vir a ser absolvida do pedido contra si formulado, nomeadamente no que respeita à sua condenação ao pagamento à A de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 25.000,00.
Na verdade, para fundamentar essa sua pretensão, a Ré faz referência, nas suas alegações, às declarações de parte da Autora e aos depoimentos de algumas testemunhas prestados em audiência de julgamento, mas sem nunca indicar – quer nas alegações, quer nas respectivas conclusões – quais são os concretos pontos de facto (provados ou não provados) que considera incorrectamente julgados, nem tão pouco explicitando devidamente quais as respostas (positivas ou negativas) que deviam ter sido dadas aos referidos pontos de facto – cfr. artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do C.P.C..
Ora, sendo as conclusões de recurso uma sintetização do que foi explanado nas alegações – cfr. artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C. – resulta claro que é insuficiente indicar (em alguns casos, apenas nas alegações de recurso), alguns dos pontos da matéria de facto impugnados, mas sem expressamente mencionar quais são, afinal, os que devem ter respostas de “provados” ou “não provados”.
Deste modo, face ao acima exposto, torna-se evidente que a Ré não deu cumprimento, de todo, ao ónus que lhe era imposto expressamente pelas alíneas a) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º.
Nesse sentido, aliás, pode ver-se Amâncio Ferreira que sustenta que a não satisfação dos ónus impostos pelo referido artigo 640.º a cargo do recorrente, implicam a rejeição imediata do recurso – cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 203.
No mesmo sentido se pronuncia Lopes do Rego ao afirmar que este preceito (referindo-se ao artigo 690.º-A do antigo C.P.C., cuja redacção é similar à do actual artigo 640.º) não previu o convite ao aperfeiçoamento quando o recurso versa sobre a matéria de facto que se pretende impugnar e que, desde logo, não satisfaça minimamente o estipulado nos n.º 1 e 2 pois, se isso acontecer, o recurso é logo liminarmente rejeitado – cfr. Comentário ao C.P.C., 1999, pág. 466.
Também a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem entendido que o recurso em que se impugna a matéria de facto deve ser rejeitado quando não levar às conclusões, não apenas a indicação precisa e concreta dos factos que considera incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido, como também daqueles que, de harmonia com os fundamentos apontados, reputa demonstrados. Ou seja, não basta ao recorrente, para obter em 2ª instância a reapreciação da prova produzida no tribunal a quo, quedar-se numa transcrição genérica de depoimentos prestados, pois, sobre ele, impende, ainda, o ónus de especificar – nas respectivas conclusões de recurso – quais os concretos pontos de facto que reputa indevidamente apreciados (com referência precisa aos aludidos depoimentos) – cfr., entre outros, os Acórdãos do S.T.J. de 10/12/2009, de 7/7/2016 e de 27/10/2016, in www.dgsi.pt, bem como os Acórdãos da R.C. de 25/5/99 e 24/10/2000, da R.L. de 2/11/2000 e de 12/2/2014 e da R.G. de 14/3/2013 in, respectivamente, B.M.J. 483.º, pág. 371, JTRC01137/ITIJ/Net e, restantes arestos, disponíveis in www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
E, a tal propósito, cita-se ainda o Ac. do STJ de 1/10/2015, também disponível in www.dgsi.pt, onde é afirmado o seguinte:
- No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
No mesmo sentido pode ver-se o recente aresto do STJ, datado de 16/11/2023, publicado in www.dgsi.pt, no qual se afirmou que “deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto quando, nas conclusões, o recorrente não concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.
E, em sentido idêntico ou similar aos arestos supra transcritos, vejam-se, ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 2/2/2022, 7/7/2021, 9/6/2016, 31/5/2016, 28/4/2016 e 11/4/2016, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Por isso, atentas as razões e fundamentos supra referidos, é nosso entendimento que, no caso em apreço, não tendo a Ré cumprido os requisitos a que, de forma expressa, alude o artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do C.P.C. – o que podia e devia ter feito – sempre o prazo para a interposição de recurso e apresentação das alegações e respectivas conclusões é de (apenas) 30 dias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 638.º do C.P.C., não beneficiando ela do acréscimo de 10 dias a que alude o n.º 7 do citado artigo 638.º.
Com efeito, é nosso entendimento que a Ré – após ter incumprido os ónus que sobre si recaíam e que se mostram estipulados no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do C.P.C. – não poderá prevalecer-se de um prazo mais alargado (10 dias) a respeito da impugnação recursiva em matéria de Direito e, por essa razão, deverá também ser rejeitado o recurso da dita Ré nessa parte.
Na verdade, pugnando-se por entendimento diferente seria permitir às partes que pudessem gizar estratégias de (mera) aparência de impugnação da matéria de facto para, em sede de impugnação da matéria de Direito, virem a beneficiar de um prazo mais alargado de 10 dias (cfr. n.º 7 do artigo 638.º do C.P.C.), sendo certo que tais condutas sempre serão processualmente censuráveis e, como tal, não poderá admitir-se uma interpretação jurídica que lhes pudesse dar cobertura legal.
Neste sentido, pode ver-se, entre outros, o Ac. do STJ, de 30/6/2020 (relator Abrantes Geraldes), disponível in ECLI, Proc. n.º 310.17.8T8CBT.G1.S1, no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte:
- A extensão do prazo de 10 dias para a interposição de recurso de apelação prevista no n.º 7 do artigo 638.º do CPC pressupõe que no objeto do recurso sejam integradas questões atinentes à impugnação da decisão da matéria de facto com base em prova que tenha sido gravada.
- O objeto do recurso é definido essencialmente pelas conclusões do recurso, incluindo nos casos em que seja deduzida a impugnação da decisão da matéria de facto.
- Numa situação em que o recorrente, apesar de aludir na motivação do recurso de apelação aos depoimentos testemunhais que foram prestados, não suscita nas conclusões ou sequer na respetiva motivação a alteração de qualquer segmento da decisão da matéria de facto, não aproveita ao recorrente a extensão do prazo prevista no n.º 7 do artigo 638.º do CPC, sendo, por isso, extemporâneo o recurso que foi apresentado para além dos 30 dias previstos no n.º 1 do artigo 638.º.
Por isso, encontrando-se a aludida Ré notificada da sentença proferida pelo tribunal a quo em 16/10/2023, a interposição de recurso e respectivas alegações deveriam ter sido apresentadas em juízo até ao dia 15/11/2023, ou seja, 30 dias após a notificação supra referida, a que podiam acrescer os 3 dias úteis subsequentes ao termo do prazo em que o acto podia ser praticado mediante o pagamento de uma multa (artigo 139.º, n.º 5, do C.P.C.), isto é, até ao dia 20/11/2023.
No entanto, constata-se dos autos que a dita Ré apenas interpôs recurso e apresentou as suas alegações em juízo em 30/11/2023, ou seja, muito depois de ter expirado o respectivo prazo (aí se incluindo já os mencionados 3 dias úteis subsequentes ao termo do prazo em que o acto podia ser praticado mediante o pagamento de uma multa – cfr. artigo 139.º, n.º 5, do C.P.C.).
Nestes termos, entendemos que o recurso ora em análise, interposto pela Ré será, de todo, extemporâneo e, como tal, não poderá conhecer-se do seu objecto – devendo ser rejeitado – pelo que não devia, sequer, ter sido admitido na 1ª instância (muito embora tal admissão não vincule, de todo, este Tribunal Superior – cfr. artigo 641.º, n.º 5, do C.P.C.).
Assim sendo, atentas as razões e fundamentos supra explanados, forçoso é concluir que o recurso de apelação interposto pela Ré terá de ser rejeitado, o que aqui, desde já, se determina para os devidos e legais efeitos.
Em consequência, mostra-se prejudicada a apreciação das questões suscitadas pela Ré no recurso ora em análise, delas não podendo tomar conhecimento esta Relação.

***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

***

Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação em rejeitar o recurso de apelação interposto pela Ré, por ser o mesmo extemporâneo (cfr. artigos 638.°, n.º 1 e 641.º, n.º 2, alínea a), ambos do C.P.C.) e, por via disso, não se conhece do objecto de tal recurso (cfr. artigo 652.°, n.º 1, alínea h), do C.P.C.), face às razões e fundamentos supra referidos, determinando-se, em consequência, a devolução dos autos à lª instância.
Custas pela Ré, ora apelante.
Évora, 19 de Março de 2024
Rui Machado e Moura
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite (com declaração de voto)
Declaração de voto
Voto a decisão, divergindo parcialmente quanto à fundamentação, embora tal não conduza a resultado diverso, por entender o seguinte: não constando das conclusões das alegações a expressa impugnação da decisão de facto, a apelante não beneficia do invocado acréscimo de 10 dias ao prazo de interposição do recurso, por não se encontrar preenchida a previsão do artigo 638.º, n.º 7, do CPC, o que conduz à extemporaneidade da interposição do recurso e à consequente rejeição do mesmo, conforme decidido.
Ana Margarida Leite

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, págs. 286 e 299).