Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1337/19.0T8STB-A.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
DISSOLUÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O âmbito de aplicação do art.º 1105.º do C. Civil está reservado para os casos em que a casa de morada de família foi dada de arrendamento a qualquer um dos unidos de facto, podendo, em caso de dissolução da união de facto, a transmissão do arrendamento ser decidida por acordo, sendo que na ausência dele cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes (seu n.º 2).
2. Na atribuição do uso da casa de morada de família deverá considerar-se “as necessidades dos cônjuges” (no caso, dos membros da união) e o “interesse dos filhos”, entre outros fatores ou razões atendíveis, visto não serem taxativos os critérios aí elencados, atenta a expressão usada “e outros fatores relevantes” - art.º 1105.º/2 do C. Civil.
3. O fator principal ou mais preponderante para a sua atribuição a um dos unidos de facto será a avaliação da “premência da necessidade” da casa, a do unido de facto que dela mais precisa, supondo que ambos dela necessitam, e nessa avaliação contará, também, o interesse dos filhos, a situação económica de cada um dos unidos de facto, as razões que o levaram a deixar a casa de morada de família, o seu estado de saúde, a sua idade, a capacidade profissional de cada um deles, como outros fatores relevantes.
4. Justifica-se a transmissão do contrato de arrendamento sobre a casa de morada de família à companheira, nos termos do art.º 1105.º, n.º2, do C. Civil, por ter sido obrigada a abandonar a casa de morada de família, por ser vítima de violência doméstica, e arrendar outra casa, onde vive com os filhos de 20 e 21 anos de idade respetivamente, dela dependentes economicamente, suportando uma renda mensal de € 240,00, ter um vencimento mensal de € 580,00, socorrendo-se da ajuda de familiares e amigos para suportar algumas das suas despesas, e o requerido sobrevive de um rendimento mensal de cerca de € 500,00 por mês e habita sozinho a casa de morada de família, com uma renda social de € 73,00 mensais. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório.
A…, residente na Praça …, Setúbal, intentou a presente ação especial para atribuição da casa de morada de família contra F…, residente na Rua …, Setúbal, pedindo:
a) Seja reconhecida a união de facto entre a requerente e o requerido desde meados do ano de 1998 até finais do mês de outubro do ano de 1998 até finais do mês de outubro do ano transato;
b) Se declare dissolvida a união de facto, com efeitos retroativos a outubro de 2018;
c) Seja transferido o direito ao arrendamento do imóvel, ou seja, a casa de morada de família, à requerente, condenando o requerido a sair daquela casa entregando-a à requerente para que esta a possa habitar com os filhos de ambos, deixando na casa todos os utensílios domésticos e móveis e em bom estado;
d) Se tais utensílios e móveis não se encontrarem em condições de uso ou o requerido deles se tenha desfeito, condenar o mesmo a indemnizar a requerente na quantia de € 3000.00 (três mil euros);
Para o efeito alegou, em síntese, que viveu em união de facto com o requerido durante cerca de 20 anos, até outubro de 2018, altura em que o requerido a expulsou de casa, na sequência de mais um episódio de violência, tendo dessa união nascido dois filhos, necessitando que lhe seja atribuída a casa de morada de família, pois teve que arrendar outra casa para viver com os dois filhos, da qual paga uma renda de € 240,00, acrescida das despesas da água, luz, gás, telecomunicações e alimentação, o que perfaz o valor total do seu vencimento, que é insuficiente para fazer face a todas as suas obrigações, vivendo com a ajuda de familiares e amigos, sendo que o requerido não contribui para o sustento dos filhos, que estão a cargo da requerente, encontrando-se pendente processo de violência doméstica contra o requerido.
Realizada a tentativa de conciliação prevista no art.º 990º nº 2 do Código de Processo Civil, não foi possível estabelecer o acordo.
Notificado o requerido para contestar, não apresentou contestação.
Procedeu-se à inquirição da testemunha arrolada pela requerente, após o que foi proferida a competente sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente e provada a presente ação, declarando a dissolução da união de facto entre a requerente e o requerido e, em consequência, atribuo à requerente o direito de utilização da casa de morada de família, sita na Rua …, Setúbal, transferindo o direito ao arrendamento do referido imóvel para a requerente, condenando o requerido a sair daquela casa, entregando-a à requerente para que esta a possa habitar com os filhos de ambos, deixando na casa os utensílios domésticos e os móveis em bom estado, absolvendo-o do demais pedido.
Custas pelo requerido (artº 527º nºs 1 e 2 do C.P.C.)”.
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Inconformado veio a requerido interpor o presente recurso, concluindo, após alegações, nos seguintes termos:
1. O Recorrente não se conformando com à atribuição da casa de morada de família à Requerente/Recorrida para nela viver com os filhos de ambos, veio interpor recurso da decisão, considerando que o Tribunal a quo ao não o ter notificado atempadamente para a diligência de dia 04-02-2020 e não estando este representado por advogado, o que teve como consequência a sua ausência, entende que os atos praticados são nulos.
2. A falta de notificação tinha acontecido em duas vezes anteriores, mas as diligencias foram remarcadas, o que não acontece nesta última.
3. Andou mal o Tribunal a quo ao ter notificado o Recorrente já depois do inicio da diligência e a sua ausência não ter de imediato desencadeado mecanismos de pesquisa de objetos no site dos CTT para saber se a carta andava em circulação ou se tinha sido entregue ou se ainda estava dentro do prazo para ser reclamada.
4. Não foi o que aconteceu e o Recorrente só teve conhecimento da sua falta e da decisão final ao ser notificado da sentença enviada em 11-05- 2020.
5. Pelo que requer a nulidade dos atos praticados nos termos do art.º 195.º/1 do CPC e a repetição das diligências.
6 - A Meritíssima Juíza a quo considerou ter sido feito prova suficiente para tomar a decisão de entregar da casa de morada de família à Recorrida, não ouvindo os principais interessados, os filhos de ambos, um já maior de idade e a filha ainda menor à data.
7. Fundamentou a sua decisão na P.I. apresentada e não contestada, recibos de vencimento da Recorrida e informações da SS sobre os rendimentos do Recorrente, certidão da acusação do processo crime n.º90/19.2PBSTB, documentos constantes no processo de Regulação das Responsabilidades parentais e declarações de uma testemunha apresentada pela Requerente aqui Recorrida.
8. Considerou a prova mais fácil de obter omitindo a audição dos filhos, os maiores interessados, e importantíssima segundo os fatos articulados na P.I, já que o Recorrente não praticou quaisquer atos pelos quais se encontrava indiciado em crime os quais contribuíram desfavoravelmente para a decisão, acabando esta por lhe ser desfavorável.
9. O Tribunal a quo criou a convicção e tomou a decisão com a qual o Recorrente não concorda nem aceita, dado não ter diligenciado pelo apuramento da certeza se o Recorrente tinha ou não sido notificado à semelhança das diligências anteriores em que não tinha estado presente por falta de notificação e ter aceite que este estava ausente por sua vontade.
10. O Tribunal a quo também julgou incorretamente a matéria de fato que teve por base os documentos juntos aos autos, toda a matéria vertida na petição, assim como depoimento da testemunha que nada esclareceu quanto a aspetos fundamentais como seria o caso se a Recorrida/Requerente estava a conseguir andar com a sua vida para a frente ao viver na casa que arrendou ou se sabia se estava muito limitada financeiramente e de qual os dois estava ou passava a viver no limiar da pobreza ao ser atribuída a casa à Recorrida/Requerente ou ao Recorrente.
11 - Aplicando mal os critérios de equidade, razoabilidade e justeza jurídica que se socorreu.
12 - Por tudo o que supra se mencionou deverá ser anulada a douta sentença, por violação dos:
a) Art.188.º, n.º 1 do C. P. Civil.
b) Art.º 990.º do CPC.
c) Art.º 987.º do CPC.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, anulada a douta sentença que atribuiu a casa de morada de família à Recorrida.
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A requerente contra-alegou, pugnando pela rejeição do conhecimento do recurso quanto à impugnação da matéria de facto por incumprimento do ónus de especificação previsto no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do CPC, e concluiu pela improcedência do recurso e manutenção da sentença.
A Senhora Juíza conheceu da invocada nulidade processual, indeferindo-a, e admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor-, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Nulidade processual.
b) Alteração da matéria de facto;
c) Manutenção, ou não, da decisão de atribuição da casa de morada de família.
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III. Fundamentação fáctico-jurídica.
A) Factos Provados.
Na decisão recorrida foi considerada a seguinte factualidade, que se mantém.
1. A Requerente viveu em união de facto com o Requerido durante aproximadamente 20 anos.
2. Desta união nasceram dois filhos: A…, nascida a 13/12/2001 e L…, nascido a 30/08/2000.
3. A requerente e o requerido encontram-se separados desde outubro de 2018.
4. Altura em que a requerida se sentiu obrigada a sair de casa, na sequência de episódio de violência por parte do requerido.
5. Mantendo-se o requerido a residir na casa de morada de família.
6. A requerente atualmente vive com os dois filhos, em casa arrendada, com uma renda de €240,00 mensais.
7. A Requerente trabalha como auxiliar na Associação Cristã da Mocidade (ACM), auferindo uma retribuição líquida de aproximadamente € 580,00 por mês.
8. Tem como principais despesas, além da renda da casa, a alimentação e os consumos domésticos de água, eletricidade e gás e telecomunicações, de valor não apurado em concreto.
9. Socorrendo-se da ajuda de familiares e amigos para suportar algumas das suas despesas.
10. A filha A… ainda se encontra a estudar e o L… está desempregado, sem rendimentos.
11. O requerido não tem contribuído para o sustento dos filhos.
12. O Requerido em fevereiro de 2019 auferia um salário de € 680,50 por mês.
13. Tendo depois ficado desempregado, beneficiando de subsídio de desemprego de cerca de €470 mensais.
14. Desconhecendo-se se atualmente tem trabalho certo e o valor da respetiva retribuição.
15. O imóvel que constitui a casa de morada de família é da propriedade da Câmara Municipal de Setúbal, tendo sido atribuída ao requerido, ainda antes de este viver com a requerente, pagando o mesmo uma renda de cerca de €73,00 por mês.
16. Mas a Câmara Municipal de Setúbal foi informada, após o início da união de facto, de que a ora requerente fazia parte do agregado familiar do requerido, como sua companheira.
17. No decurso do tempo em que a requerente viveu na casa de morada de família, foram realizadas obras de beneficiação do imóvel, designadamente a remodelação da cozinha, com colocação de móveis novos e fecho da varanda, transformando-a em “marquise”.
18. A requerente suportou pelo menos parte das despesas com tais benfeitorias e com a aquisição de móveis e utensílios que se encontram no imóvel.
19. No Proc. nº 90/19.2PBSTB foi deduzida acusação contra o aqui requerido pela prática de um crime de violência doméstica agravado na pessoa da requerente.
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B) O direito.
1. Nulidade processual.
Diz o recorrente que não foi notificado atempadamente para a diligência do dia 04/02/2020, e não estando representado por advogado a sua ausência acarreta a nulidade dos atos praticados, nos termos do art.º 195.º/1 do CPC, sendo que só teve conhecimento da sua falta de notificação quando foi notificado da decisão final enviada em 11/05/2020.
A Senhora Juíza pronunciou-se sobre a apontada nulidade nos seguintes termos:
“Alegou o recorrente a nulidade do processado por, alegadamente, não ter sido notificado da data designada para a realização da audiência de inquirição de testemunhas/ julgamento, o que determinou a sua não comparência àquela diligência e que era impeditivo do tribunal a realizar e de proferir a sentença.
A recorrida veio responder a tal arguição de nulidade, pugnando pela sua improcedência, uma vez que o recorrente havia sido oportunamente notificado.
Vejamos:
A inquirição das testemunhas arroladas pela requerente foi primeiramente designada para o dia 09/12/2019, pelas 14,00 horas, tendo nessa data sido adiada para o dia 04/02/2020, pelas 09,30 horas, pelo facto de nenhuma das partes se mostrar notificada para comparecer à diligência em causa (cfr. ata de 09/12/2019).
No dia 13/12/2019 foi remetida carta registada para o requerido, ora recorrente, convocando-o para a aludida diligência, designada para o dia 04/02/2020, pelas 09,30 horas (refª 89516099).
O ora recorrente, no entanto, não levantou a carta de notificação, tendo a mesma sido devolvida ao Tribunal no dia 03 de janeiro de 2020, com a indicação de “objeto não reclamado” (refª 4841055).
A secretaria do Tribunal realizou uma pesquisa às bases de dados do I.S.S., a fim de consultar a morada do requerido, resultando confirmado que a mesma se mantinha a mesma para onde havia sido remetida a notificação (refª 89603243).
Nos termos do disposto no art.º 249º do C.P.C., “Se a parte não tiver constituído mandatário, as notificações são efetuadas (…) por carta registada, dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se, nestes casos, feita no terceiro dia posterior ao do registo da carta ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.” (nº 1).
“A notificação efetuada por carta registada não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a residência ou a sede da parte ou para o domicílio escolhido para o efeito de a receber; nesse caso, ou no de a carta não ter sido entregue por ausência do destinatário, juntar-se-á ao processo o sobrescrito, presumindo-se a notificação feita no dia a que se refere a parte final do número anterior.” (nº 2).
Conclui-se, assim, que o requerido, ora recorrente, foi regularmente notificado para a diligência de inquirição de testemunhas realizada no dia 04/02/2020, pelas 09,30 horas, sendo que o facto de a carta registada para a sua notificação ter sido devolvida pelos CTT, por não ter sido reclamada pelo requerido, não obsta a que tal notificação produza os legais efeitos, considerando-se o recorrente devidamente notificado, nos termos do disposto no art.º 249º nº 2 do C.P.C.
Ainda assim, o Tribunal remeteu segunda notificação para a referida diligência (a nosso ver desnecessariamente), vindo também esta segunda carta devolvida por “não reclamada”, embora já depois da realização da diligência, com a inquirição da testemunha arrolada pela requerente (refªs 89772544 e 4943897).
Conclui-se, assim, que não assiste razão ao recorrente, já que o mesmo se considera regularmente notificado para a diligência de inquirição de testemunhas realizada no dia 04/02/2020, não existindo qualquer irregularidade processual, que implique a nulidade do processado.
Improcede, por isso, a invocação de nulidade apresentada pelo recorrente”.
Ora, não podemos deixar se subscrever in toto a interpretação seguida pela Senhora Juíza, face aos factos descritos, e comprovados, e normas processuais invocadas.
Com efeito, por carta registada com A/R, expedida para a sua residência na Rua …, Setúbal, o recorrente foi devidamente citado para a tentativa de conciliação que teve lugar em 4 de junho de 2019, tendo assinado o aviso de receção, o qual foi junto nos autos em 28/05/2019.
E esteve presente nessa diligência, na qual não houve acordo, tendo aí sido notificado para, em 10 dias, apresentar, querendo, contestação, nos termos do art.º 990.º/2 do CPC, tendo-lhe sido entregue cópia da petição inicial.
O recorrente não apresentou contestação, pelo que foi notificado, por carta expedida para a sua residência (sita na Rua …, Setúbal), de que havia sido “designado o dia 04-02-2020, às 09:30 horas, para inquirição da testemunha arrolada pela Requerente”.
A carta veio devolvida com a indicação “Objeto não reclamado”
Em 30 de janeiro de 2020, após consulta da base de dados da segurança social ter confirmado essa morada, foi-lhe remetida nova notificação, a qual voltou a ser devolvida em 18/02/2020 com a mesma indicação de “Objeto não reclamado”.
O recorrente não esteve presente na inquirição da referida testemunha que teve lugar em 4 de fevereiro de 2020.
Ora, como flui expressamente do n.º1 do art.º 249.º do CPC, se a parte não tiver constituído mandatário, como era o caso, as notificações serão feitas por carta registada dirigida para a sua residência, presumindo-se feita no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.
E a notificação efetuada nestes termos não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que haja sido remetida para a sua residência.
O recorrente foi devidamente citado, na sua residência, para intervir nos autos. E a notificação para a inquirição da testemunha foi enviada para a mesma residência, sendo que o recorrente não comunicou qualquer outra após a sua citação.
Donde, se não levantou a notificação sibi imputet.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
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2. Reapreciação da matéria de facto.
1. O recorrente parece ter querido impugnar a matéria de facto.
Todavia, facilmente se deteta que não cumpriu com o ónus processual exigido para que este Tribunal a possa reapreciar e inscrito no art.º 640.º do C. P. Civil, tal como sublinha a recorrida.
Com efeito, se o recurso envolver a impugnação da matéria de facto, o recorrente, sob pena de rejeição, deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, enunciá-los na motivação de recurso e sintetiza-los nas conclusões, bem como os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizado impunham decisão diversa da adotada quanto aos factos impugnados, indicando as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição – Art.º 640.º/1 e 2 do C. P. C. (Cf. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Ed., Almedina, pág.153 e Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, dos Recursos, Quid Juris, Pág. 253 e segs).
Na verdade, como sublinham Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, ob. Cit. Pág. 253 e 254, “(…) o recorrente que impugne a matéria de facto deve procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a produção de razões ou fundamentos que, no seu modo de ver, tornam patente tal erro “(…). “(…) não parece excessivo exigir ao apelante que, no curso da alegação, exponha, explique e desenvolva os fundamentos que mostram que o decisor de 1.ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, exposição e explicação que deve consistir na apreciação do meio de prova que justifica a decisão diversa da impugnada, o que pressupõe, naturalmente, a indicação do conteúdo desse meio de prova, a determinação da sua relevância e a sua valoração. Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente …, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor, caso contrário, a impugnação da matéria de facto banaliza-se numa mera manifestação inconsequente de inconformismo.” – No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, ob. cit. E Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, pág. 80.
Com efeito, determina o art.º 640º, n.º1, do C. P. Civil, que o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de gravação, que impunham decisão diversa da recorrida;
c) A decisão, que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos da matéria de facto que impugna.
E acrescenta o seu n.º2 que, no caso previsto na alínea b) do seu n.º1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de, se assim o entender, poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Assim, para se modificar a decisão da 1.ª instância, em caso de erro de julgamento, é necessário que, sob pena de rejeição, para além da especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, que o recorrente fundamente a respetiva discordância, alegando as respetivas razões, concretizando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, isto é, torna-se necessário que o recorrente delimite efetivamente o objeto do recurso, e fundamente as razões da despectiva discordância, motivando a sua alegação.
Com esta exigência legal visa-se circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, já que a Relação, no exercício deste poder de reapreciação da matéria de facto, não pode proceder a um verdadeiro segundo julgamento de toda a matéria de facto, com a reapreciação de todos os meios de prova, devendo rejeitar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto - Cf. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª Edição, pág. 161, e Ac. STJ de 09-02-2012, proferido no processo n.º 1858/06.5TBMFR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Como se refere neste aresto, não bastar alegar, “de forma genérica, uma série de pontos de facto cuja alteração pretendia e a invocar depoimentos testemunhais e documentos sem uma efetiva apreciação crítica. Exige-se igualmente a especificação (e apreciação crítica) dos concretos meios de prova constantes do processo ou que nele foram registados determinantes de uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados, exigência que, relativamente aos meios de prova gravados, deve ainda ser acompanhada da indicação do local onde se encontra a gravação”.
Orientação que o STJ tendo vindo a reafirmar, nomeadamente no seu Acórdão 19/02/2015, processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt., ao sublinhar que «não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado. (…) O incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objeto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respetivo conhecimento».
Como refere Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4.ª edição, pág. 155, “Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos”.
Não procedendo a estas obrigatórias especificações o recurso sobre a matéria de facto será rejeitado, nos termos do art.º 640.º/1, do C. P. C., sendo que se não indicar com exatidão as passagens da gravação ou transcrever os excetos que considere relevantes dos depoimentos em que funda o seu recurso, será rejeitado o recurso nesta parte – n.º2, al. a), do citado preceito legal.
Não basta, pois, discordar da convicção, alicerçada nos meios de prova produzidos, formulada pelo Senhor Juiz quanto à demonstração de determinada realidade, no que tange à valorização que foi dada a uns meios de prova em detrimento de outros, é necessário que se identifiquem, além do mais, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a especificação (e apreciação crítica) dos concretos meios de prova e a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, enunciá-los na motivação de recurso e sintetiza-los nas conclusões.
Ora, lendo e relendo as conclusões, verifica-se que o recorrente não identifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E também omite totalmente, nas suas alegações, bem como nas conclusões, os concretos meios de prova que justificam decisão diversa da proposta para os factos impugnados, nem identifica com exatidão as passagens da gravação, nem transcreveu os excetos que considera relevantes dos depoimentos.
Assim, é fácil constatar que não cumpriu com o apontado ónus processual, mencionado no n.º 1 do art.º 640.º do CPC, no que respeita á (não) identificação dos concretos pontos de facto que impugna, que se desconhecem, das razões dessa discordância, quais os concretos meios de prova em que fundamenta cada um dos factos que impunham decisão diversa, nem mencionou a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, não identificou com exatidão as passagens da gravação nem transcreveu os excetos dos depoimentos tidos por relevantes.
E assim sendo, rejeita-se o seu conhecimento, mantendo-se inalterada a factualidade assente.
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3. O direito.
A questão essencial a decidir consiste em saber se deve, ou não, manter-se a atribuição à requerente do arrendamento da casa de morada de família.
Na sentença recorrida exarou-se:
Estabelece o nº 1 do artº 1793º do Código Civil que “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
O referido artº 1793º nº 1 do Código Civil indica como fatores, não taxativos, a atender para a atribuição da casa de morada de família, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos, sendo esses os fatores primordiais a atender, devendo o tribunal atribuir o uso da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, “necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efetivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens” (v. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in “Curso de Direito da Família”, vol. I, 3ª ed., p. 721, cit. no Ac. RP de 21/12/2006 in Col. V-197 e da RL de 27/09/2018 in www.dgsi.pt).
Por sua vez, de acordo com o disposto no artº 1105º do Código Civil, incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, na falta de acordo sobre o seu destino, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, “cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes” (nº 2).
“A transferência ou a concentração acordadas e homologadas pelo juiz ou pelo conservador do registo civil ou a decisão judicial a elas relativa são notificadas oficiosamente ao senhorio” (nº 3).
No caso sub judice as partes não foram casadas uma com a outra, tendo vivido em união de facto durante cerca de 20 anos.
Para estas situações estabelece o artº 4º da Lei 7/2001 de 11/05, na redação introduzida pela Lei 23/2010 de 30/08, que “o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de rutura da união de facto.”
No caso dos autos, verifica-se que a casa de morada de família é um imóvel arrendado pela Câmara Municipal de Setúbal ao requerido, para sua habitação e seu agregado familiar, de que fazia parte a ora requerente, enquanto sua companheira, conforme oportunamente foi comunicado àquela entidade, tendo o requerido continuado a habitar a referida casa após a separação do casal.
Por sua vez, a requerente teve de arrendar uma outra casa, para aí viver com os dois filhos, ambos ainda a seu cargo, pagando uma renda de € 240,00, não dispondo de qualquer outra casa para habitar e tem um ordenado mensal de € 580,00.
O requerido tem rendimentos que se situam em aproximadamente € 500,00 por mês, caso ainda permaneça na situação de desemprego, ou um pouco mais se, entretanto, já tiver retomado a atividade profissional, e habita sozinho a casa de morada de família, com uma renda social de € 73,00 mensais.
Os filhos do casal vivem com a mãe, aqui requerente, estando ambos dependentes desta, já que a filha mais nova ainda está a estudar e o mais velho encontra-se desempregado, sem rendimentos, não estando o requerido a contribuir para o sustento dos filhos.
Além disso, a Requerente sentiu-se obrigada a sair de casa, em outubro de 2018, na sequência de episódio de violência por parte do requerido, estando este acusado no Proc. nº 90/19.2PBSTB do J3 do Juízo Local Criminal de Setúbal, pela prática de um crime de violência doméstica agravado na pessoa da requerente, também pelo episódio em questão.
Os factos apurados levam a concluir pela necessidade da requerente em poder beneficiar da atribuição da casa que foi a de morada de família, atentas as suas reduzidas capacidades económicas e as despesas que tem a cargo, designadamente com a renda da casa que atualmente está a habitar (€ 240,00/mês) e que foi obrigada a arrendar pelo facto de ter de sair da casa onde vivia com o requerido, nas circunstâncias acima referidas, tendo ainda a cargo todas as outras despesas domésticas e do seu agregado familiar (composto pela própria e por dois filhos), sendo certo que os dois filhos ainda são dependentes da mãe, ora requerente, e o requerido não tem contribuído para o sustento dos mesmos.

Ainda que assim não fosse, concluindo-se que as necessidades do requerido e da requerente seriam equiparadas, não se poderia deixar de ter em consideração as circunstâncias que determinaram que a requerente tivesse de sair da casa de morada de família e que, ao que tudo indica, se deveu a situação de violência doméstica por parte do requerido sobre aquela, o que terá de ser valorado negativamente, em desfavor do requerido, fator relevante para efeitos do disposto no n.º 2 do citado artigo 1105º do Código Civil.
Posto isto, e estando demonstrada a cessação da união de facto (cfr. artº 8.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 da Lei 7/2001 de 11/05), deve ser atribuído o direito à utilização da casa de morada de família à requerente”.
Acompanhamos a fundamentação supra exarada e pouco mais nos resta acrescentar.
Na verdade, no caso concreto, é aplicável o regime prescrito na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, que adota medidas de proteção das uniões de facto, estatuindo o seu Artigo 4.º, que “O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de rutura da união de facto”.
Por sua vez, o seu artigo 8.º dispõe:
«1 - Para efeitos da presente lei, a união de facto dissolve-se:
a) Com o falecimento de um dos membros;
b) Por vontade de um dos seus membros;
c) Com o casamento de um dos membros.
2 - A dissolução prevista na alínea b) do número anterior apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela.
3 - A declaração judicial de dissolução da união de facto deve ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes da dissolução da união de facto, ou em ação que siga o regime processual das ações de estado.
Assim, é manifesto que a lei consagra a possibilidade de declaração judicial da dissolução da união de facto em sede de apreciação de pretensões judicialmente exercidas que dessa dissolução dependam: como pressuposto da declaração desses direitos, o tribunal declara a dissolução da união de facto.
E tem sido entendido que o pedido de declaração judicial da dissolução não é obrigatório no caso de improcedência de pretensão dela dependente, por não ter autonomia que permita a sua apreciação e decisão [1].
O regime previsto no art.º 1793º do C. Civil aplica-se apenas aos casos em que casa de morada de família pertence a um ou a ambos os conviventes.
O âmbito de aplicação do art.º 1105.º do C. Civil está reservado para os casos em que a casa de morada de família foi dada de arrendamento a qualquer um dos unidos de facto, podendo, em caso de dissolução da união de facto, a transmissão do arrendamento ser decidida por acordo, sendo que na ausência dele cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes (seu n.º 2).
Com efeito, prescreve o n.º 1 do art.º 1105.º do C. Civil: “Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial e pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles”.
E adianta o seu n.º 2: “Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”.
E tem o seu regime processual previsto no art.º 990.º do C. P. Civil (art.º 1413.º do pretérito CPC), que estabelece, no seu n.º 1, “Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito”.
Trata-se, pois, de um processo de jurisdição voluntária, pelo que tem sido unânime o entendimento de que a decisão a proferir sobre essa questão não está sujeita a critérios de legalidade estrita, mas a critérios de conveniência e oportunidade (art.ºs 986.º a 988.º do CPC), podendo o tribunal investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias.
Portanto, na atribuição do uso da casa de morada de família deverá considerar-se “as necessidades dos cônjuges” (no caso, dos unidos de facto) e o “interesse dos filhos”, entre outros fatores ou razões atendíveis, visto não serem taxativos os critérios aí elencados, atenta a expressão usada “e outros fatores relevantes” - art.º 1105.º/2 do C. Civil.
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 3.ª Edição, pág.726, propondo-se encontrar, neste domínio, um critério geral, referem, entre outras coisas, o seguinte:
«O objetivo da lei, ... não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada de família, em qualquer caso, o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. A necessidade da casa (ou a premência, como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria; a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o fator principal a atender (...)
Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos ... Trata-se, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; no que se refere ao “interesse dos filhos” há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores ... e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem foram confiados. Mas o juízo sobre a necessidade ou premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis”: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e de outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência etc.
Quando possa concluir-se, em face destes elementos, que a necessidade ou a premência da necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, julgamos que o tribunal deve atribuir o direito ... àquele que mais precise dela... Só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a “culpa” que possa ser ou tenha efetivamente sido imputada a um ou outro na sentença de divórcio ...»
Destarte, dois são os critérios essenciais para a atribuição da casa de morada de família: as necessidades da casa por um dos unidos de facto; e o interesse dos filhos. Depois, haverá que recorrer a outros fatores relevantes, em caso de dúvida ou em situação de igualdade entre os membros da união (ou cônjuges).
Como refere Tomé d’Almeida Ramião, in “Divórcio e Questões Conexas” – Regime Jurídico Atual, 3.ª Edição, Quid Júris, pág. 137, “(…) parece que o fator principal ou mais preponderante será a avaliação da “premência da necessidade” da casa, a do cônjuge que mais precisa dela, supondo que ambos dela necessitam, e nessa avaliação contará, também, o interesse dos filhos, a situação económica de cada um dos cônjuges, o seu estado de saúde, a sua idade, a capacidade profissional de cada um deles, como outros fatores relevantes, já que afastada a questão da culpa no divórcio, outro elemento que era considerado e deixou de o ser”.
A mesma linha argumentativa foi seguida no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.11.2020, proc. n.º 16993/19.1T8PRT.P1 ( www.dgsi.pt), que em situação análoga à dos presentes autos (aplicável à união de facto) considerou: “I - O critério geral para atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família na sequência de ação de divórcio é no sentido de que esse direito deve ser atribuído ao cônjuge que mais dela necessite, pois o objetivo da lei é proteger o cônjuge que maior sacrifício fará para mudar de residência. II - O critério da necessidade de um dos cônjuges há de ser apurado em função dos concretos rendimentos e encargos de ambos os ex-cônjuges, de modo a ajuizar qual deles se encontra numa situação mais desfavorável, isto é, qual deles tem maior premência da necessidade da casa. III - Sendo as condições pessoais (idade, saúde e rendimentos) de cada um dos ex-cônjuges sensivelmente iguais, a circunstância de um deles viver sozinho e outro ter a seu cargo uma filha menor, que de si depende economicamente, mesmo não sendo filha em comum do ex-casal, constitui fator que depõe a favor deste último, devendo, por isso, por princípio, o direito ao arrendamento da casa de morada de família ser-lhe atribuído”.
Ora, no caso concreto, para a avaliação da premência da necessidade da mesma casa haverá que, entre outros, ter em conta a situação económica dos membros da união e o interesse dos filhos, designadamente na relevância em continuar a viver na casa com a requerente, com quem vivem depois desta ser obrigada a sair de casa.

Mas o critério da «necessidade de um dos membros da união» só poderá ser densificado se aferido em função dos rendimentos e encargos de ambos, para se poder concluir que a Requerente se encontra numa situação bem mais desfavorável que o Requerido, ou seja, de modo a detetar qual deles tem maior premência da necessidade da casa.

Neste caso compete ao unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais do que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso – cfr. Ac. desta Relação de 24/6/2010, Proc. n.º 461/09.2TBAMD.L1-6, www.dgsi.pt.
E o direito à atribuição da casa de morada de família adquire-se com a cessação da união de facto e reporta-se aos elementos existentes à data da separação para a decisão de atribuição ou não da casa de morada de família.
Ora, a verdade é que tendo conta os factos assentes a requerente demonstrou necessitar mais da casa do que o requerido, justificando-se a atribuição do arrendamento à requerente, tendo em conta os seus rendimentos e encargos, a situação dos filhos que consigo vivem, a qual foi forçada a sair de casa por ser vítima de violência doméstica, ou seja, por facto imputável ao requerido.
Por isso, a decisão recorrida não merece censura.
Improcede, pois, a apelação.
Vencido no recurso, suportará o recorrente as custas respetivas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.

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IV. Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo apelante.
Évora, 2021/03/11
Nos termos do art.º 15.º-A do Dec. Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do Dec. Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade do Exm.º Juiz Desembargador Francisco Xavier (1.º Adjunto) que não pode assinar.
O acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes Desembargadores:
Tomé Ramião (Relator)
Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunto)
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[1] ) Questão tratada, entre muitos, nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 20 de Maio de 2010 (processo 336/09.5 TVLSB.L1-8 – Catarina Arêlo Manso), de 4 de Junho de 2009 (processo 99/08.1 TBVFC.L1-2 – Nelson Borges Carneiro), de 3 de Julho de 2008 (processo 5443/2008-8 – Salazar Casanova) e de 26 de Outubro de 2006 (processo 7509/2006-2 – Ana Paula Boularot.