Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1661/20.0T9FAR.E1
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO
Data do Acordão: 11/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que não indica os meios de prova que impunham decisão diversa relativamente a cada um dos factos concretamente impugnados, não indica as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas, da prova documental ou pericial que fundamentam a falta de prova dos factos impugnados, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que o Tribunal de recurso deveria ouvir.
Os deveres impostos ao condenado, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, não podem representar obrigações cujo cumprimento não seja razoável exigir-lhe, nem violar os seus direitos fundamentais, designadamente o direito à sua subsistência, mas têm que implicar algum esforço e sacrifício, na medida em que a alternativa é o cumprimento de uma pena de prisão efectiva.

Uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1– Relatório

No processo nº 1661/20.0T9FAR do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … - Juiz …, por acórdão datado de 12/05/2025, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art.º 143º do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, na condição de proceder ao pagamento, à ordem dos autos, do montante de € 9.000,00 (nove mil euros), equivalente a metade do valor da indemnização fixada, o qual deverá ser pago tripartidamente, sendo € 3.000,00 nos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado do acórdão, € 3.000,00 nos cinco meses seguintes e os demais € 3.000,00 nos últimos cinco meses da suspensão da pena, tudo nos termos do disposto nos art.sº 50º, nºs 1 e 5 e 51º, nº 1, al. a) do Cód. Penal.

Foi ainda o arguido condenado a pagar a BB a quantia de € 18.000,00 (dezoito mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de 4%, contabilizados desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.

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Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor recurso, para o que formulou as seguintes conclusões:

“1. O Recorrente não se conforma com o douto Acórdão proferido em 12 de Maio de 2025, por considerar incorrectamente julgados os factos 3 e 5 da matéria de facto dada como provada, por ausência de prova directa e objectiva.

2. Nenhuma das testemunhas, incluindo os próprios pais do assistente, presenciou o momento em que alegadamente o arguido “virou-o de cabeça para baixo e empurrou-o contra o chão”, não podendo tal facto ser considerado provado com base em meras presunções ou impressões (“pareceu”).

3. O Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, ao dar como provados factos que não resultam inequivocamente da prova testemunhal gravada, pelo que se requer expressamente a audição e renovação da mesma, nos termos do artigo 430.º, n.os 3 a 5 do Código de Processo Penal.

4. A qualificação jurídica dos factos como dolosamente praticados, nomeadamente no que respeita às lesões graves na face do assistente, não encontra suporte nos elementos probatórios, sendo tais lesões mais consentâneas com uma consequência acidental de uma queda.

5. A acção do arguido, embora censurável, não revela intenção directa de provocar os danos concretos sofridos pelo assistente, nomeadamente a cicatriz na face — o que afasta a existência de dolo directo quanto a tais lesões.

6. A pena aplicada — 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão — apesar de admissível, foi condicionada a uma suspensão sujeita ao pagamento de €9.000,00, o que se revela manifestamente desproporcionado face à concreta situação económica do arguido.

7. O arguido aufere rendimentos mensais modestos, possui encargos com filhos menores, empréstimos e despesas fixas, não tendo condições reais de satisfazer a exigência imposta, sem grave prejuízo para o seu sustento e estabilidade familiar.

8. A condição estabelecida para a suspensão da pena viola os princípios da proporcionalidade e adequação, consagrados nos artigos 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e 71.º do Código Penal.

9. Propõe-se, porque nos parece da mais elementar Justiça, adequada e proporcional, em alternativa:

a) A substituição da condição pecuniária por regras de conduta de natureza não patrimonial, a fixar sob parecer da DGRSP;

b) A suspensão da pena por 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova;

c) Ou, caso subsista a exigência monetária, que esta seja reduzida para montantes exequíveis, como, por exemplo, €1.000 por trimestre, durante o período de suspensão.

d) No que respeita ao pedido de indemnização civil, entende o Recorrente que o valor de €18.000,00 fixado pelo Tribunal a quo é excessivo e desproporcionado, não reflectindo a jurisprudência dominante para casos análogos.

10. Propõe-se, com base nos critérios de equidade e na jurisprudência consolidada, a fixação da indemnização no montante global de €6.900,00, assim distribuídos: Dores imediatas: €900,00 Danos não patrimoniais gerais: €2.250,00 Dano estético (cicatriz): €3.750,00

12. Estes valores consideram a gravidade dos danos, o contributo do próprio assistente para o conflito, o tempo decorrido e a situação económica de ambas as partes, permitindo alcançar um equilíbrio entre reparação e justiça.

13. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se parcialmente o douto Acórdão recorrido:

a) Com reapreciação da matéria de facto (factos 3 e 5);

b) Com nova qualificação da modalidade do dolo;

c) Com fixação de condições de suspensão adequadas à realidade do arguido;

d) Com redução do montante da indemnização para €6.900,00.

14. Requer-se ainda a renovação da prova testemunhal nos termos legais.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção do acórdão recorrido, sem formular conclusões.

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O assistente também apresentou resposta ao recurso, pugnando pela manutenção integral da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:

“ 1. Por acórdão datado de 12-05-2025 o tribunal “a quo” decidiu:

“a) Por ser válida, não haver oposição do arguido e o crime assumir natureza semipública, homologar a desistência de queixa apresentada por CC e, em consequência, declarar extinto o procedimento criminal nestes autos pendente contra o arguido AA pela prática de um crime de dano, nos termos dos artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2 e 212.º, n.º 3 todos do Código Penal e 51.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão.

c) Suspender a execução da pena de prisão, por igual período de tempo, subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento, à ordem dos autos, do montante de € 9.000,00 (nove mil euros, o equivalente a metade do valor da indemnização fixada), o qual deverá ser pago tripartidamente, sendo € 3.000,00 nos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado do acórdão, € 3.000,00 nos cinco meses seguintes e os demais € 3.000,00 nos últimos cinco meses da suspensão da pena, tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e e 51.º, n.º 1, al.a) do Código Penal.

d) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB e, em consequência, condenar o demandado AA no pagamento da quantia de € 18.000,00 (dezoito mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa de 4%, contabilizados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento.

e) Absolver o demandado AA do demais peticionado.

f) Condenar o arguido nas custas do processo, na parte criminal, que de acordo com o disposto nos artigos 513.º, n.º 1 e 2, 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, 16.º e 17.º do Regulamento das Custas Processuais, se fixa em 3 UC’s, às quais acrescem as despesas a que a sua atividade deu lugar.

g) Condenar o demandante BB e o demandado AA, no pagamento das custas processuais cíveis, na proporção do respetivo decaimento, nos termos do artigo 527º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 523º, do Código de Processo Penal.”.

2. Inconformado o arguido aqui Recorrente apresentou recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora.

3. E motivou o recurso no erro notório na apreciação da prova, no erro da qualificação jurídica e na modalidade do dolo, reapreciação da matéria de facto (factos 3 e 5).

4. E peticionou o arguido/recorrente a revogação do Acórdão recorrido, substituindo-se por outro que adeque apropriada e proporcionalmente às condições pessoais e económicas do Recorrente bem como às supra apontadas relativas ao artigo 71.º do CP enunciadas em 16 supra. Quanto ao PIC, que se reduza o mesmo ao valor de 6900€, atenta a fundamentação supra e mais uma vez, e acordo com mais favoráveis critérios para o Recorrente tendo em conta os imperativos princípios da adequação e proporcionalidade. Quanto às condições de suspensão da pena de prisão, importa reduzir para condições cumpríveis que se adeqúem às concretas condições do arguido. Ou qualquer coisa como um pagamento ao Estado de 1000 euros por cada trimestre até completada o prazo da suspensão, ou mais acertadamente sempre seria suspender a pena de prisão para o máximo legal, ou seja, para 5 anos mesmo que a suspensão da pena fique sujeita a prova e cumprimento de regras de conduta de carácter não patrimonial. Esta última sim, a mais adequada e proporcional condição de suspensão da pena – 5 anos sujeita a prova e apertadas regras de boa conduta fixadas sob proposta da DGRSP e homologadas pelo Tribunal.

5. O Assistente ora Recorrido não se conforma com o recurso apresentado pelo arguido ora Recorrente.

6. Em primeiro lugar porquanto consideramos que não assiste razão ao ora recorrente.

7. E em segundo lugar porquanto o acórdão recorrido encontra-se particularmente bem elaborado, bem fundamentado e a decisão não é suscetível de merecer qualquer reparo.

8. O arguido/Recorrente impugna a matéria de facto dada como provada, designadamente os factos assentes nos pontos 3 a 5. 3.

9. E alega que a prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento é insuficiente para considerar como provados esses factos elencados na matéria de facto dada como provada.

10. Sumariamente, alega a inexistência de depoimentos de testemunhas presenciais que corroborassem essa factualidade.

11. Deste modo, no entendimento do ora recorrente, o Tribunal “a quo” analisou e apreciou, erroneamente, os elementos probatórios em que se fundou para considerar provado esses factos descritos nos pontos 3 a 5 do aresto em crise.

12. Ao arrepio daquele que é o entendimento do arguido/recorrente o acórdão recorrido realiza um correto encadeamento da dinâmica factual trazido pelos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável o supra aludido ponto da matéria de facto dado como assente.

13. Desde logo, o apuramento da factualidade descrita nos aludidos pontos da matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica e conjugada dos diversos elementos probatórios, os quais foram considerados pelo Tribunal “a quo” de forma correta, em função das regras da experiência comum, assumindo grande relevância para o apuramento da verdade material.

14. Com efeito, o Tribunal “a quo” valorou, assertiva e fundadamente, as declarações do próprio arguido, ora recorrente, conjugando com os depoimentos do assistente e das testemunhas DD e EE e, ainda, a reportagem fotográfica às lesões do assistente, cuja valoração contextual permitiu reconstituir com suficiente verosimilhança a realidade histórica ocorrida no dia 22 de Maio de 2020, pelas 22H30.

15. Por conseguinte, ao valorar assertivamente os elementos de prova constantes dos autos e bem assim aqueloutros produzidos no decurso da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal “a quo” fixou, naturalmente, a factualidade que ora é colocada em crise pelo ora recorrente, fundamentando a sua convicção de forma exaustiva, objetiva e consentânea com as mais elementares regras da experiência comum.

16. Em suma, pugna-se pela inexistência de qualquer erro na apreciação e na valoração da prova pelo Tribunal “a quo”, não havendo qualquer reparo a fazer nessa matéria nem, tão pouco, quaisquer vicissitudes ao nível da indicação dos meios de prova valorados ou no estabelecimento de nexo lógico entre os meios de prova e os factos dados como provados.

17. Em sede de ponderação sobre a medida da pena, nomeadamente no estabelecimento da condição de que dependeu o acionamento do instituto da suspensão da pena (pagamento da quantia de 9000€ ao assistente em modo tripartido), o Tribunal “a quo” respeitou, integralmente, as condições económicas do arguido, ora recorrente, tendo considerado, convenientemente, a circunstância de gerir um estabelecimento com colaboradores ao seu serviço, auferindo 1000€ após encargos com esse mesmo estabelecimento, designadamente quanto ao espaço comercial e salários, bem como aos seus encargos bancários.

18. Em face de todo o supra exposto, concluímos não terem sido violadas as normas invocadas pelo arguido/Recorrente e, por conseguinte, consideramos que o acórdão recorrido não padece de nenhum dos apontados vícios.

19. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pelo arguido ora Recorrente, mantendo-se o acórdão recorrido na íntegra.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:

“(…) II - Do Mérito do Recurso.

1. DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA

«Conforme resulta do estatuído no nº2 do art.410º, do CPP, os vícios previstos nas alíneas a), b) e c), têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.

Trata-se de vícios intrínsecos da decisão, não sendo lícito afirmar-se a sua existência recorrendo a elementos que lhe sejam exteriores, designadamente de depoimentos e declarações prestados, quer durante o inquérito, instrução, quer até na audiência de julgamento.» Ac. da RE, de 03.07.2012, Proc. nº 846/09.4PBSTR.E1

E mais adiante o mesmo Acórdão explícita:

«A este respeito, dos arestos do STJ publicados, respigam-se os trechos de maior relevo: «Se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida, não se verifica qualquer dos vícios indicados no art. 410º- 2 a) e c), do CPP.» (Ac. de 19.3.98, no BMJ 475-261). (…)

Quando o recorrente pretende contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal teve sobre os mesmos factos, livremente apreciados segundo as regras da experiência, está a confundir insuficiência da matéria de facto com a insuficiência da prova para decidir, sendo a sua convicção irrelevante.» (Ac. de 9.12.98, no BMJ 482-68).

Não se devem confundir, como parece ser o caso do recorrente, os alegados vícios do nº2 do art.410º do CPP com o erro de julgamento, enquanto forma de impugnação ampla da matéria de facto. Com efeito, constituem duas formas distintas de “atacar” a matéria de facto, estando por isso sujeitas a regimes processuais diferentes.

Especificamente, o vício de erro notório na apreciação da prova, há-de resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado

«que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325).

No caso dos autos o arguido AA pugna pela verificação desse vício mas em momento algum indica quais os factos julgados provados sobre os quais incide esse alegado erro que, na sua perspectiva, é evidente.

Limita-se a uma impugnação genérica de parte da factualidade julgada provada coma indicação da apreciação que faz da prova produzida.

Como se constata, a argumentação invocada pelo arguido para fundamentar o vício de erro notório na apreciação da prova é contrária à jurisprudência acima indicada pois não sustenta a sua alegação no texto do Acórdão, ainda que conjugado com as regras da experiência comum, pelo que este vício não se verifica.

2. DO ERRO DE JULGAMENTO E O PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO REO”

Como se extrai das conclusões apresentadas pelo arguido este invoca a existência de erro de julgamento, tal como este se encontra previsto no artº 412º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, com fundamento na circunstância de que não se provou que o arguido “virou-o de cabeça para baixo e empurrou-o contra o chão”.

O Recorrente pretende, pois, fazer valer a sua apreciação da prova produzida, contra o que considera uma errada valoração do tribunal na apreciação da prova e na aplicação do direito sem, contudo, dar cumprimento às obrigações impostas no nº 3, do artº 412º, do, Cód. Penal, pois em momento algum indica, ainda que de forma genérica, as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa sobre a matéria de facto julgada provada.

Compreende-se porque o arguido assim procede.

Pela singela razão de que os factos julgados provados constituem a efectiva expressão da prova produzida em julgamento.

Nenhuma das provas produzidas impõem que o tribunal “ad quem” julgue não provado algum dos factos que o tribunal «a quo» julgou assentes.

Essa omissão não constitui um mero incumprimento dos deveres impostos nos nºs. 3 e 4 do artº 412º, do C.P.P. mas antes a confissão da bondade da decisão do Tribunal recorrido quanto à factualidade julgada provada.

Nessa conformidade, deve essa matéria ser mantida nos exactos termos em que se encontra descrita no Acórdão.

3. DAS CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA

O Tribunal Colectivo decidiu condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, que o arguido não contesta.

Antes se insurge contra a condição fixada à suspensão da execução daquela pena: o arguido proceder ao pagamento, à ordem dos autos, do montante de € 9.000,00 (nove mil euros, o equivalente a metade do valor da indemnização fixada), o qual deverá ser pago tripartidamente, sendo € 3.000,00 nos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado do acórdão, € 3.000,00 nos cinco meses seguintes e os demais € 3.000,00 nos últimos cinco meses da suspensão da pena, tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e e 51.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

O Acórdão funda essa decisão do seguinte modo:

“(…) considerando que o arguido se encontra a trabalhar, considerando os rendimentos que aufere – gere um estabelecimento, tem empregados ao seu serviço, e vive em casa própria sem encargos bancários - e, considerando que se afigura fundamental que se consciencialize da gravidade do seu comportamento, designadamente dos prejuízos que causou ao ofendido, deverá a suspensão da pena ficar sujeita ao pagamento de um terço [metade] do montante que se fixar em sede de indemnização ao ofendido, até ao termo da suspensão da execução da pena que se fixa por igual período de tempo, tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e 51.º, n.º 1, al.a) do Código Penal. Assim,

Como condição da suspensão da pena deverá o arguido pagar nos autos, metade da indemnização a fixar ao ofendido [e que para este deverá reverter através do Tribunal] nos seguintes termos:

- um terço desse montante até ao final dos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado;

- um terço até ao final do segundo período de cinco meses;

- um terço até ao termo do período da suspensão.

Deste modo, sujeita à condição de pagamento supra estipulada, considera-se que as finalidades da pena serão atingidas com a suspensão da execução da pena de prisão.”

O arguido considera desproporcionada essa condição face à sua situação económica.

Dispõe o nº 1, do artº 51º, do Cód. Penal que “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;”

Como resulta, inequivocamente da letra do próprio preceito “I. A exigibilidade de tais deveres e regras deve ser apreciada tendo em conta a sua adequação e proporcionalidade em relação com o fim preventivo visado.” [Ac. da RP, de 01.07.2015, proferido no proc. nº 129/14.8GAVLC.P1]

No que respeita às condições económicas e pessoais do arguido o Tribunal Colectivo julgou provado o seguinte:

“19. O arguido explora um estabelecimento de snack bar e aufere em média cerca de € 1000,00 por mês, após o pagamento da renda do espaço, no montante de € 525,00 e de dois ordenados mínimos aos empregados que tem ao seu serviço.

20. Vive em casa própria com um filho, de … anos, sendo que tem a guarda alternada de um outro filho, atualmente com … anos.

21. Tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade e ingressou o mercado de trabalho com aproximadamente 18 anos.

22. Para além das despesas com água, luz e alimentação, o arguido paga mensalmente um empréstimo bancário no valor de € 427,00 que contraiu para aquisição de um carro.”

Face aos apontados rendimentos e despesas afigura-se que a condição fixada mostra-se algo desproporcionada, por excesso, exigindo uma economia mensal de €600,00 ao arguido para lograr satisfazer essa condição, pelo que se preconiza a fixação da quantia a entregar trimestralmente pelo arguido ao queixoso em dois mil euros (€2.000,00), mantendo- -se, no mais, o decidido.”

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre decidir:

- Erro notório na apreciação da prova;

- Erro de julgamento;

- Condições da suspensão da execução da pena de prisão;

- Montante indemnizatório.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“1. Factos Provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a decisão da mesma:

Da acusação

1. No dia 22 de maio de 2020, a hora não determinada, mas anterior às 22h30, na Rua …, junto ao Café …, em …, o assistente BB e o arguido AA envolveram-se numa discussão.

2. A determinada altura, porque BB o apelidou de “filho da puta”, o arguido agarrou nele e atirou-o contra o veículo de matrícula …, provocando uma amolgadela na porta traseira do lado esquerdo, cuja reparação foi orçamentada em € 284,65.

3. De seguida, o arguido puxou BB pela t-shirt que este vestia, virouo de cabeça para baixo e empurrou-o contra o chão.

4. Ao cair BB bateu com a cabeça na calçada e perdeu momentaneamente os sentidos.

5. De seguida, com o BB prostrado no chão, o arguido desferiu-lhe vários pontapés que o atingiram em diversas partes do corpo, designadamente nas costas e pernas.

6. Em resultado direto e necessário da conduta do arguido, BB sofreu ferida no frontal e lábio superior, feridas inciso-contusas da face, bem como hematomas no tronco e membros inferiores, que lhe demandaram doze dias de doença, sendo sete com incapacidade para o trabalho.

7. Em consequência da conduta do arguido, o assistente ficou com uma cicatriz estrelada na região mediana frontal, com 5 por 6 cm, permanente e visível a dois metros.

8. O arguido atuou com o intuito de molestar fisicamente o ofendido, o que conseguiu, admitindo como possível que ao atirar o mesmo contra o veículo supra identificado lhe poderia provocar estragos, tendo-se conformado com essa possibilidade.

9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, mesmo assim, não se absteve de as concretizar.

10. O arguido e o assistente eram amigos de longa data e encontravam-se ambos alcoolizados à data e hora em que os factos ocorreram.

Do pedido de indemnização civil

11. Em consequência da conduta do arguido, quando recuperou os sentidos, BB teve dores intensas na cabeça.

12. Em consequência da conduta do arguido, BB sofreu dores de cabeça durantes vários meses, teve dores nas costelas durante aproximadamente dois meses, sentiu dificuldade em respirar durante duas a três semanas, ficou com uma cicatriz na cara e teve de usar pomadas durante cerca de dois anos

13. Em consequência da conduta do arguido, BB sentiu vergonha, e sentiu-se vexado pelas lesões serem na cara e serem muito visíveis e a pela agressão ter ocorrido em frente a várias pessoas.

14. Em consequência da conduta do arguido BB ficou com receio do arguido, sentiu-se injustiçado e magoado com o arguido, e passou a evitar os locais onde o poderia encontrar, sendo que ainda hoje recorda o sucedido.

15. Em consequência da conduta do arguido BB tornou-se uma pessoa mais reservada e angustiada e deixou de sair à noite e frequentar cafés com a mesma frequência que fazia anteriormente e, durante cerca de dois anos deixou de ir à praia por causa do sol na cicatriz.

16. O assistente explora uma empresa de compra e venda de frutos secos e aufere cerca de € 900,00 aproximadamente, por mês.

17. Vive em casa arrendada, com a namorada, pela qual pagam € 600,00 de renda, sendo que a namorada aufere € 35,00 a € 40,00 por dia do seu trabalho.

18. Em data próxima começara a pagar um crédito no montante de € 350,00 que contraiu para aquisição de casa própria.

Das condições pessoais e antecedentes criminais do arguido

19. O arguido explora um estabelecimento de snack bar e aufere em média cerca de € 1000,00 por mês, após o pagamento da renda do espaço, no montante de € 525,00 e de dois ordenados mínimos aos empregados que tem ao seu serviço.

20. Vive em casa própria com um filho, de … anos, sendo que tem a guarda alternada de um outro filho, atualmente com … anos.

21. Tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade e ingressou o mercado de trabalho com aproximadamente 18 anos.

22. Para além das despesas com água, luz e alimentação, o arguido paga mensalmente um empréstimo bancário no valor de € 427,00 que contraiu para aquisição de um carro.

23. O arguido não tem antecedentes criminais.

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2. Factos Não Provados

Não se provou:

1. Que os factos ocorreram no dia 23 de março de 2020 pelas 21h00.

2. Que o proprietário do veículo de matrícula … despendeu € 284,65 com a reparação do seu veículo.

3. Que no momento da agressão BB receou pela sua integridade física e pela sua vida.

4. Que no momento da agressão BB pensou que ia morrer.

5. Que BB passou dias a chorar.

6. Que BB passou a viver atemorizado, com receio de sair à noite, de sair sozinho na rua e até de ir tomar um café.

7. Que BB ainda tenha dores físicas na atualidade.

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Todos os factos constantes da acusação ou do pedido de indemnização civil que não constam da matéria de facto provada e não provada, foram deliberadamente omitidos por conterem matéria conclusiva, conceitos de direito ou sem relevância para a boa decisão da causa. Designadamente, foram omitidas as expressões “energicamente” (segundo parágrafo da acusação) “muito abalado emocionalmente”, “repercutir-se ao nível da saúde e equilíbrio emocional”, “psicologicamente muito afetado” (constantes do pedido de indemnização civil).

As alterações factuais constantes da factualidade provada não carecem de qualquer comunicação –designadamente quanto à data – porquanto os factos em si dizem respeito ao pedaço de vida identificado pelo arguido e sobre o qual este pode exercer a sua defesa, sendo que os demais são concretizações de factos que se encontravam genericamente descritos na acusação e no pedido de indemnização civil.

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3. Motivação da decisão quanto à matéria de facto

A convicção do Tribunal acerca da matéria de facto dada como provada e não provada assentou no conjunto da prova produzida em audiência recorrendo às regras de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Foram consideradas as declarações do arguido [prestadas no final da audiência], as declarações do assistente/demandante e os depoimentos das testemunhas, os quais apenas foram positivamente valorados na medida em que os respetivos declarantes demonstraram ter conhecimento direto e pessoal sobre os factos e os depoimentos se revelaram claros, precisos e isentos de contradições.

No que concerne à prova documental, todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos de que o tribunal se serviu para fundar a sua convicção. A este propósito cumpre esclarecer que é entendimento deste tribunal que os documentos juntos aos autos antes do julgamento não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida, pois tais provas podem ser submetidas ao contraditório sem necessidade de serem lidas na audiência, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo – neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional nº87/99, DR, II Série de 1-07-1999 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de abril de 2007, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

No que concerne à dinâmica dos factos, a convicção do Tribunal alicerçou-se na conjugação das declarações do assistente - que descreveu as circunstâncias e a forma como foi agredido - as declarações do arguido - que assumiu a agressão, esclarecendo apenas quanto às suas motivações [pelo facto de o assistente o ter apelidado de “filho da puta”, o que o magoou profundamente, dado o óbito da sua mãe, facto conhecido do assistente] e afirmando não ter tido a intenção de provocar as lesões que se vieram a verificar na face do assistente – e o depoimento das testemunhas DD – que não tendo visto como o assistente caiu ao chão, quando se aproximou viu-o caído no chão, com sangue na cabeça e o arguido por cima dele, como que a imobilizá-lo, tendo ficado em crer que lhe deu um pontapé, e que confirmou que o arguido “se passou” quando o assistente lhe chamou “filho da puta”, sendo que se encontravam todos alcoolizados -, EE, mãe do assistente, que reside por cima do estabelecimento onde os factos ocorreram e que alertada pelo barulho foi à janela, onde viu um indivíduo com outro por baixo da axila a bater-lhe, sendo que foi chamar o marido e ao regressar viu esse segundo indivíduo que reconheceu como sendo o seu filho, deitado no chão em decúbito ventral, a levar pontapés do primeiro, ao que desceu e percebeu que era o arguido que ainda lhe berrou quando tentou travá-lo.

Relativamente à data em que os factos ocorreram, às circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram, aos intervenientes e ao estado em que se encontravam, foi tido em consideração o teor do auto de notícia de fls. 28 a 30 dos autos.

Foram ainda valorado o depoimento da testemunha FF, pai do assistente que confirmou a relação de amizade entre o arguido e o assistente – aliás como os próprios e as demais testemunhas – e que confirmou o estado de alcoolemia em que o assistente se encontrava [descrevendo o seu comportamento no hospital] o que confirmou o depoimento da testemunha DD – segundo o qual todos os intervenientes estavam alcoolizados.

No que concerne às lesões, foram tidos em consideração o relatório fotográfico de fls. 32 (frente e verso) obtido aquando da elaboração do auto de notícia, o relatório do episódio de urgência de fls. 49 [donde resulta que o assistente apresentava uma ferida no frontal e no lábio superior, que se encontrava agitado, agressivo e pouco colaborante, não tendo sido possível suturar ou fazer o penso e qua abandonou a sala de pequena cirurgia, que se encontrava etilizado, que se comportou até que a GNR se ausentou e que recusou ser tratado e fugiu da urgência], o relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 80 e 81 [donde resulta que dos registos do Hospital de … e das … que foram exibidos consta que o assistente se apresentava com “ferida no frontal e lábio superior …. agressividade….doente etilizado….feridas inciso contusa da face” e que à data do exame – 7 de setembro de 2021 – apresentava uma cicatriz estrelada na região mediana frontal, visível a dois metros com 5 por 6 cm, cicatriz de carácter permanente e com impacto estético] complementado a fls. 112 e 113, bem como as fotografias constantes a fls. 20 a 25 do apenso 114/20.0 GDFAR, e juntas aos autos no decurso da audiência de julgamento.

Pese embora nas suas declarações o assistente tenha descrito danos com uma dimensão superior à descrita na acusação, a verdade é que a apenas ao próprio se deve a ausência de prova documental de tais lesões e extensão das mesmas, durabilidade e necessidades específicas de tratamento. Com efeito, o que resulta do auto de notícia, do relatório de urgência do Hospital de … e dos depoimentos das testemunha DD e FF é que o assistente se encontrava alcoolizado, agressivo, pouco colaborante, foi desagradável para os bombeiros que se deslocaram ao local e o transportaram ao hospital, recusou o tratamento no hospital de … e abandonou este hospital sem que fosse tratado. As testemunhas EE e FF confirmaram que o assistente, a conselho da então namorada foi para o Hospital das …, sendo que, apenas da perícia de avaliação de dano corporal consta que foram exibidos os registos clínicos desse hospital (eventualmente apresentados pelo assistente no dia do exame) mas que não constam dos autos. Como não consta dos autos qualquer registo clínico de lesão na mão esquerda, embora a ela se faça menção no auto de notícia – fls. 30 verso e resulte das fotografias de fls. 24 do apenso 114/20 e junta como foto 3 em audiência de julgamento, nem qualquer registo de tratamento, consultas ou necessidades medicamentosas especiais. O que apenas ao assistente se deve e, por conseguinte, tratando-se de matéria subtraída ao conhecimento técnico do Tribunal, no que concerne às lesões sofridas e à extensão das mesmas, o Tribunal cingiu-se ao que consta dos elementos clínicos e da prova pericial junta aos autos.

No que diz respeito aos danos provocados no veículo o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha CC, que a descreveu, desconhecendo em que circunstâncias foi feita, em conjugação com o orçamento de fls. 30 do apenso 115/20, sendo que a testemunha referiu ainda não ter efetuado a reparação, mas tão só solicitado o orçamento de reparação.

Relativamente ao conhecimento e vontade do arguido, é manifesto que o mesmo resulta do comportamento objetivo do próprio. A intenção que preside a uma determinada conduta deduz-se sempre do comportamento objetivamente observado, analisado à luz das regras da experiência comum. Estas, na lição do Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.), «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.».

Com efeito, o arguido admitiu que sacudiu o assistente, pegou nele e atirou-o para o chão, sendo que ele bateu com a cabeça no chão, tendo-se provado ainda que lhe deu pontapés quando aquele estava prostrado no chão. Ora, quem pontapeia outrem no corpo quer causar-lhe lesões físicas, e quem atira outrem contra o chão, sabendo que o corpo vai embater no solo, quer causar lesões físicas. Quem atira outrem ao chão com a cabeça virada para baixo, como se provou ter acontecido, não pode deixar de admitir que o visado vai bater com a cabeça no solo e poderá ter lesões na cabeça em virtude desse embate. A factualidade provada relativamente ao comportamento objetivo do arguido permite concluir que o arguido quis atirar o BB para o chão, pontapeá-lo e causar-lhe lesões no corpo, que admitiu que aquele batesse com a cabeça no chão, face à posição em que foi atirado, e que aceitou que daí resultassem lesões na cabeça, independentemente da sua extensão. Do mesmo modo no que concerne ao dano no veículo, na medida em que quem atira o corpo de outra pessoa para cima de um veículo não pode deixar de admitir e aceitar que poderá causar estragos no mesmo.

No que respeita à relação de amizade entre o arguido e o assistente e ao facto de ambos se encontrarem alcoolizados no momento da prática dos factos, para além do depoimento de todas as testemunhas, das declarações do arguido e do assistente e dos documentos já supra mencionados (auto de notícia e relatório de episódio de urgência), foram ainda valoradas as fotografias juntas aos autos pelo assistente em audiência de julgamento em que os mesmos são vistos juntos em diversas circunstâncias da vida e em tom amistoso.

Relativamente aos factos alegados no pedido de indemnização civil, às consequências que dos factos resultaram para o assistente e às suas condições pessoais, o Tribunal teve em consideração as declarações do próprio, e das testemunhas DD e EE.

No que concerne às condições pessoais do arguido e à ausência de antecedentes criminais foram tidos em consideração as declarações do próprio e o certificado de registo criminal de fls. 188.

Por fim, e no que concerne aos factos não provados, foram assim valorados porquanto: a) do auto de notícia e do registo de episódio de urgência no Hospital de … consta data diferente da que consta na acusação, sendo que das declarações do arguido e do assistente e dos depoimentos das testemunhas não houve outra situação a que pudessem reportar-se tais eventos, pelo que cremos ter-se tratado de lapso na acusação;

b) do depoimento de CC decorreu que o veículo não foi reparado;

c) não resultou das declarações do assistente nem dos depoimentos das testemunhas. (…)”

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3.2.- Mérito do recurso

A) Vício previsto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal

Nas suas conclusões de recurso invoca o recorrente o vício do erro notório na apreciação da prova, mas sem aludir a tal matéria na motivação do recurso e apenas alegando que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova ao dar como provados factos que não resultam inequivocamente da prova testemunhal gravada.

Ora, dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».

Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).

Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)”

No caso dos presentes autos, o recorrente invoca o vício do erro notório, mas não concretiza em que partes da decisão é que o mesmo se verifica, nem fundamenta a ocorrência do vício em qualquer argumentação.

Analisada a decisão recorrida, constata-se que os factos imputados ao recorrente estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida e nos factos apurados, estando em conformidade com os mesmos.

Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelo recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.

B) Erro de julgamento

Vem também o recorrente impugnar de forma ampla a matéria de facto, no que concerne aos factos provados sob os nºs 3 e 5, por absoluta falta de prova, dado que, no seu entendimento, nenhuma das testemunhas depôs no sentido da ocorrência daqueles factos.

Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.

Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que o recorrente não cumpriu todas as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, pois pese embora tenha indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, não indicou quais os meios de prova que impunham decisão diversa relativamente a cada um dos factos concretamente impugnados, não indicou as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas, da prova documental ou pericial que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos impugnados, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir.

Verificamos, assim, que o que resulta da argumentação do recorrente é que não concorda com a matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido nos pontos 3 e 5 dos factos provados, limitando-se a pôr em causa a credibilidade das provas em que o Tribunal a quo fundou a sua convicção quanto a essa factualidade, convocando, designadamente, para tal os depoimentos dos pais do assistente, mas sem apresentar provas concretas que impusessem decisão diferente da recorrida.

Sucede que, analisada a motivação de facto da decisão recorrida, constatamos que a matéria de facto provada resultou da análise crítica e conjugada de todos os elementos probatórios acima discriminados, os quais o Tribunal a quo apreciou livremente e de acordo com juízos de experiência comum e de normalidade social, tendo o mesmo articulado os depoimentos do arguido, do assistente, da testemunha DD e da mãe do assistente, conjugados com os restantes meios de prova, designadamente documental e pericial, e com as regras da lógica e da experiência comum.

Como ficou supra transcrito, o Tribunal a quo conferiu credibilidade ao depoimento da mãe do assistente quando a mesma referiu que viu alguém caído no solo a levar pontapés de outra pessoa, momento em que se apercebeu de que a vítima era o seu próprio filho.

Pelo contrário, o recorrente não apresentou, nem aludiu a qualquer outro meio de prova de onde se pudesse concluir o inverso.

A este respeito, alega ainda o recorrente que:

“4. A qualificação jurídica dos factos como dolosamente praticados, nomeadamente no que respeita às lesões graves na face do assistente, não encontra suporte nos elementos probatórios, sendo tais lesões mais consentâneas com uma consequência acidental de uma queda.

5. A acção do arguido, embora censurável, não revela intenção directa de provocar os danos concretos sofridos pelo assistente, nomeadamente a cicatriz na face — o que afasta a existência de dolo directo quanto a tais lesões.”

Ainda que de forma imperfeitamente expressa, o que o recorrente pretende com estas alegações é questionar o preenchimento do elemento subjectivo do crime de ofensa corporal, ou seja o preenchimento do dolo directo com que o Tribunal a quo considerou que o mesmo agiu.

Sucede, porém, que para além dos meios de prova directos, igualmente relevantes são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

A noção de presunção, como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, consta do art.º 349º do Cód. Civil, onde se pode ler que: “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais mais não são do que o produto das regras de experiência, mediante as quais o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

Como refere Vaz Serra, in "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112, pág. 190: “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência”.

Segundo Carlos Maluf, in "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes», pelo que: «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar».

A presunção permite, deste modo, que perante os factos, ou um facto preciso, conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.

No valor da credibilidade do id quod e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e, na medida desse valor, está o rigor da presunção.

Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido, nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

Foi o que sucedeu no caso dos autos.

Uma vez que o recorrente não confessou a integralidade dos factos apurados, o Tribunal a quo chegou à prova do elemento subjectivo do tipo legal do crime em apreço, conhecimento e vontade do arguido de atentar contra a integridade física do assistente, com recurso à prova indirecta nos moldes supra transcritos e que não nos merecem qualquer reparo.

Relativamente a esta matéria, o recorrente limitou-se novamente a pôr em causa a convicção do Tribunal recorrido, mas sem apresentar ou aludir a qualquer meio de prova que impusesse decisão contrária, pelo que as suas alegações são apenas meras opiniões infundadas.

Uma vez que o recorrente não efectuou correctamente a impugnação da matéria de facto, não há quaisquer alterações a fazer aos factos apurados na decisão recorrida, os quais são idóneos ao preenchimento de todos os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado, pelo que improcede também nesta parte o recurso.

C) Condição da suspensão da execução da pena de prisão

O recorrente não vem questionar a opção do Tribunal a quo pela pena de prisão, a dosimetria concreta da pena que lhe foi aplicada, nem a suspensão da sua execução, com o que se conformou. Insurge-se, no entanto, contra as condições da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foram impostas, entendendo que as suas condições pessoais e económicas não lhe permitem o pagamento de uma quantia de 9.000 euros, ainda que de forma tripartida, a cada 5 meses. Pretende, antes, que a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada fique condicionada, em alternativa, a: a) substituição da condição pecuniária por regras de conduta de natureza não patrimonial, a fixar sob parecer da DGRSP; b) suspensão da pena por 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova; c) caso subsista a exigência monetária, que esta seja reduzida para montantes exequíveis, como, por exemplo, €1.000 por trimestre, durante o período de suspensão.

Como se viu, a decisão recorrida condenou o arguido numa pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento, à ordem dos autos, do montante de € 9.000,00 (nove mil euros), equivalente a metade do valor da indemnização fixada, a pagar de forma tripartida, sendo € 3.000,00 nos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado do acórdão, € 3.000,00 nos cinco meses seguintes e os demais € 3.000,00 nos últimos cinco meses da suspensão da pena. Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que:

“ 1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 – O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”

Prevê-se no art.º 51º do Cód. Penal que:

“1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente. 2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir. 3 - Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.

4 - O tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos.”

A decisão recorrida considerou ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido nas seguintes condições:

“(…) O arguido e o ofendido eram amigos de longa data e encontravam-se ambos alcoolizados à data dos factos, sendo que o que despoleta a agressão foi o ofendido ter chamado “filho da puta” ao arguido. Decorreram cerca de cinco anos desde a prática dos factos e, não obstante a gravidade das lesões – já ponderadas aquando da fixação da medida da pena – o arguido não tem antecedentes criminais e está social e profissionalmente inserido, não havendo notícia de qualquer contacto posterior com o ofendido, o que permite fazer um prognóstico favorável quanto ao seu comportamento futuro. Por conseguinte, considera-se que a pena deverá ser suspensa.

Não obstante, considerando que o arguido se encontra a trabalhar, considerando os rendimentos que aufere – gere um estabelecimento, tem empregados ao seu serviço, e vive em casa própria sem encargos bancários - e, considerando que se afigura fundamental que se consciencialize da gravidade do seu comportamento, designadamente dos prejuízos que causou ao ofendido, deverá a suspensão da pena ficar sujeita ao pagamento de um terço do montante que se fixar em sede de indemnização ao ofendido, até ao termo da suspensão da execução da pena que se fixa por igual período de tempo, tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e 51.º, n.º 1, al.a) do Código Penal. Assim, como condição da suspensão da pena deverá o arguido pagar nos autos, metade da indemnização a fixar ao ofendido [e que para este deverá reverter através do Tribunal] nos seguintes termos:

- um terço desse montante até ao final dos primeiros cinco meses após o trânsito em julgado;

- um terço até ao final do segundo período de cinco meses;

- um terço até ao termo do período da suspensão.

Deste modo, sujeita à condição de pagamento supra estipulada, considera-se que as finalidades da pena serão atingidas com a suspensão da execução da pena de prisão. (…)”.

Quanto às condições socio-económicas do arguido, apurou-se na decisão recorrida que:

- o arguido explora um estabelecimento de snack bar e aufere em média cerca de € 1000,00 por mês, após o pagamento da renda do espaço, no montante de € 525,00 e de dois ordenados mínimos aos empregados que tem ao seu serviço;

- vive em casa própria com um filho, de … anos, sendo que tem a guarda alternada de um outro filho, atualmente com … anos.

- para além das despesas com água, luz e alimentação, o arguido paga mensalmente um empréstimo bancário no valor de € 427,00 que contraiu para aquisição de um carro.

Ora, atento o disposto no art.º 51º, nº 2 do Cód. Penal, se por um lado os deveres impostos ao condenado, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, não podem em caso algum representar obrigações cujo cumprimento não seja razoável exigir-lhe, o certo é que se lhe foi concedida uma oportunidade para permanecer em liberdade, a mesma tem que implicar algum esforço e sacrifício, na medida em que se trata de uma alternativa ao cumprimento de uma pena de prisão efectiva.

No caso em concreto, a suspensão da execução da pena de prisão implica que o recorrente deposite à ordem dos autos a quantia de 3 mil euros, por três vezes, a cada 5 meses, o que implica o depósito de 600,00 euros por mês.

O recorrente declarou que auferia a quantia de mil euros por mês, pela exploração de um estabelecimento de snack bar, com a qual faz frente às despesas com água, luz, alimentação e com o pagamento de um empréstimo bancário no valor de € 427,00 que contraiu para aquisição de um carro.

Na verdade, de acordo com os factos apurados, que neste tocante não foram impugnados, não sobra muito dinheiro por mês ao recorrente para conseguir satisfazer a condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.

O pagamento da indemnização tem que implicar um esforço ou um sacrifício para o arguido, para reparar as consequências danosas da sua conduta.

Porém, pese embora a gravidade dos factos pelo mesmo praticados, os deveres impostos não podem violar os seus direitos fundamentais, designadamente que o mesmo possa contar com o mínimo necessário para a sua subsistência.

Manter a decisão recorrida neste tocante equivaleria à condenação do recorrente no cumprimento efectivo da pena de prisão em que foi condenado, o que não foi o pretendido pelo Tribunal recorrido.

No entanto, tendo em conta as finalidades de ressocialização subjacentes à suspensão da execução da pena de prisão, entendemos que não se mostra suficiente a substituição da condição pecuniária por regras de conduta de natureza não patrimonial, conforme requerido pelo recorrente.

Assim sendo, face à gravidade dos factos praticados, entende-se que também não é de diminuir o valor da quantia a pagar pelo recorrente como condição de suspensão da execução da pena de prisão, equivalente a metade do valor da indemnização a pagar ao ofendido, mas antes de prolongar para dois anos o período de suspensão da execução da pena, o que ainda cabe no âmbito do recurso e implicará para o condenado o depósito da quantia de 375,00 euros por mês, em vez dos 600,00 euros previstos na decisão recorrida.

Impõe-se, assim, julgar parcialmente procedente o recurso quanto a esta matéria e alterar a decisão recorrida em conformidade.

D) Impugnação do quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais

Por último, entende o recorrente que a condenação no pagamento de €18.000,00 (dezoito mil euros), a título de indemnização civil é manifestamente desproporcional, face às lesões sofridas pelo assistente, considerando justa a redução da indemnização para o valor de 6.900,00 euros.

Vejamos se lhe assiste razão.

De acordo com o disposto no art.º 129º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.

Quanto à responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõem os arts.º 483º, nº 1, 486º e 563º do Cód. Civil que tem a mesma os seguintes pressupostos:

a) o facto ilícito, enquanto acção voluntária, ou omissão, violadora de bens jurídicos patrimoniais ou pessoais de terceiros;

b) o nexo de imputação do facto ao lesante;

c) a existência de um dano ou prejuízo causado pelo facto ilícito;

d) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.

Segundo o disposto no art.º 496º, nº 1 do mesmo diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve-se atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Ainda segundo o previsto no art.º 562º do Cód. Civil, a obrigação de indemnizar tem em vista a reconstituição da situação que existiria na esfera patrimonial do lesado se não tivesse ocorrido o facto causador da lesão.

A indemnização por danos morais, visando uma compensação do lesado pelo sofrimento, é fixada segundo critérios de equidade, nos termos previstos nos arts.º 496º, nº 4 e 566º, nº 3 do Cód. Civil, e actualizada ao momento do julgamento ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 14/3/91, in BMJ 405, pág. 443 ).

Importa, no entanto, determinar quais são os danos não patrimoniais indemnizáveis.

Conforme é hoje unanimemente entendido, a gravidade do dano não patrimonial mede-se por um padrão objetivo, consoante as circunstâncias do caso concreto, devendo ser afastados fatores suscetíveis de traduzir uma sensibilidade exacerbada ou requintada do lesado (cf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 499, nota 1).

O dano indemnizável deve ser assim um dano de tal modo grave que mereça a tutela do direito e justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado, não relevando para efeitos de indemnização os simples incómodos ou contrariedades (cf., neste sentido, Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª Edição, pág. 606).

A gravidade do dano deve, pois, aferir-se com recurso a critérios objectivos, como sejam a dignidade e o valor intrínseco do bem ou interesse jurídico violado.

Não é, no entanto, possível estabelecer um paralelismo absoluto entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico violado, havendo outros factores que podem conferir gravidade ao dano, como por exemplo a intensidade da lesão, quer em termos temporais, quer em termos de afectação do bem ou interesse em causa, e a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos critérios da dignidade e da intensidade poderia ficar sem protecção.

Na determinação dos danos não patrimoniais indemnizáveis cabem ainda os decorrentes de uma especial sensibilidade do lesado, como sejam a doença, a idade e a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais.

Não são, no entanto, atendíveis os meros incómodos e pequenas contrariedades, que na perspectiva do lesado mereceriam a tutela do direito, mas que não passam no crivo de uma avaliação objectiva ou de mero bom senso.

Quanto à definição de quais sejam os danos não patrimoniais indemnizáveis, destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, ou seja, a humilhação, a angústia, a vergonha e a ansiedade, nele se incluindo também a própria dor, que no direito português abrange quer a dor física, quer o sofrimento moral.

É ainda possível a ofensa de bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico e insuscetíveis de avaliação pecuniária, como sejam a integridade física, a saúde, a correcção estética, a liberdade, a honra ou a reputação.

A ofensa objectiva destes bens tem, em regra, um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou moral ( cf. neste sentido, Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 6ª Edição, Coimbra Editora, 1989, pág. 375).

Também Antunes Varela identifica os danos não patrimoniais com os prejuízos, como as dores físicas, os desgosto morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação e os complexos de ordem estética, que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome, pelo que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados pecuniariamente (in “Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, 2003, pág. 602 e seguintes).

Na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem-se vindo também a autonomizar do dano moral em sentido estrito, o dano não patrimonial derivado da lesão da dignidade humana, decorrendo esta autonomização do reconhecimento de que os actos atentatórias da dignidade humana provocam angústia, amargura e desespero ( cf. neste sentido “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, FDUC, Vol. III, Direito das Obrigações, 2007, págs. 505 a 512). No entanto, como sustenta Vaz Serra, in BMJ, vol. 83º, pág. 85: “ (…) a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão; trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de avaliação”.

Assim sendo, uma vez que o ressarcimento dos danos não patrimoniais deriva da violação de direitos fundamentais, deve-se abandonar um critério miserabilista no que respeita à fixação dos respetivos montantes indemnizatórios.

Feito este enquadramento legal e doutrinário, voltemos ao caso concreto.

A decisão recorrida pronunciou-se quanto ao valor indemnizatório a pagar pelo arguido ao ofendido pela seguinte forma:

“(…) Revertendo ao caso concreto, dúvidas não restam que os requisitos da responsabilidade civil por atos ilícitos se mostram verificados no caso concreto, dado que se provou que o demandado AA cometeu um crime de ofensa à integridade física na pessoa de BB, o que corresponde à prática de facto dominável pela sua vontade, ilícito, culposo e produtor de danos, pois que tal crime atentou contra direitos absolutos daquele, nomeadamente atingiu a sua integridade física e saúde, a qual se mostra protegida pelo artigo 70º, n.º 1, do CC, causando dessa forma danos não patrimoniais ao lesado por cuja reparação o demandado é responsável.

Deste modo, face à factualidade apurada, e à apreciação que dela foi feita no tocante à responsabilidade criminal, resulta que se mostram preenchidos os pressupostos, da responsabilidade por factos ilícitos, constituindo-se o demandando na obrigação de indemnizar pelos danos causados, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.

O demandante pede apenas a condenação do demandado no pagamento de danos não patrimoniais, designadamente pelo facto de as agressões terem sido num espaço público, pelas dores sofridas no momento da agressão e por ter pensado que ia morrer, pelas marcas com que ficou na cabeça, tronco e membros inferiores, pelo medo e pânico vividos, pela humilhação, vergonha e vexação pública por ter sido agredido em frente aos seus amigos, pela perturbação da sua vida social e pelo stress pós traumático que ainda hoje vivencia.

Atento o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Os danos não patrimoniais traduzem prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens como a vida, a saúde, a liberdade, a beleza, a dor, o afeto etc. A sua ressarcibilidade visa proporcionar ao lesado os meios económicos que de alguma maneira o compensem da lesão sofrida, trata-se assim de uma reparação indireta.

Os danos morais só indiretamente são computados através do cálculo da soma de dinheiro, suscetíveis de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados (cfr. GaIvão Telles, «Direito das Obrigações», 6a de p 375 a 385).

Neles se incluem as dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.

A gravidade do dano há de medir-se por um padrão objetivo (essa apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias do caso concreto), devendo abstrair-se dos fatores subjetivos (“de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada” - neste sentido, ANTUNES VARELA, Obrigações em geral, Vol. I, pág. 576, 7ª Ed..

Tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve terse, por regra, como consubstanciada. Com efeito, é irrecusável que toda a pessoa titula um fundamental direito à integridade pessoal, que abrange as duas componentes fundamentais da sua pessoa: a integridade física e a integridade moral (artigo 25º nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Assim, qualquer facto que atente contra essa integridade pessoal deve ser considerado um dano, não constituindo obstáculo a essa consideração a circunstância de, no tocante à reparação da violação do corpo humano, a restitutio in integrum se mostrar impossível – neste sentido, LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo (A Relevância da Vontade na Configuração do Seu Regime), FDUP, Coimbra Editora, 2004, págs. 436 e ss.

Quanto aos critérios para fixação do montante da indemnização, referem Antunes Varela Varela e Pires de Lima, in Código Civil anotado, I vol., 4a de p 501, que “O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda e às demais circunstâncias do caso e deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida».

Dispõe o n.º 4 do artigo 496.º que a “indemnização” por danos não patrimoniais é calculada de acordo com os seguintes critérios: a) Equidade; b) Grau de culpabilidade do agente; c) Situação económica do agente; d) Situação económica do lesado; e) Demais circunstâncias do caso.

O parâmetro representado pela culpa do agente – melhor se diria a forma dolosa ou negligente da imputação - mostra a permeabilidade da lei à ideia de que a indemnização do dano não patrimonial reveste uma certa função punitiva ou sancionatória, à semelhança, de resto, de qualquer indemnização. O critério relativo à situação económica do lesante e do lesado pode, com vantagem, ser reconduzido a uma ideia de proporcionalidade, funcionado como fator da correção da extensão indemnizatória que se mostre concretamente desproporcionada em face da situação patrimonial dos sujeitos, passivo e ativo, da indemnização. No caso de existir seguro da responsabilidade, maxime, tratando-se de seguro obrigatório, fica, no entanto, sem sentido a consideração da situação económica do lesante. Entre as outras circunstâncias do caso, devem indicar-se o carácter do bem jurídico atingido e a natureza e a intensidade do dano causado, o género e a idade da vítima, etc. Em qualquer hipótese, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação, deve ocorrer sob o signo estrito do princípio regulativo da proporcionalidade – de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa – e numa perspetiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adotados para casos análogos (artº 8 nº 3 do Código Civil).

Na esteira do decidido Acórdão do S.T.J. de 29.4.2004, disponível em texto integral em www.dgsi.pt, há que ter presente que "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada: por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”. Tal caráter punitivo assume no caso concreto especial relevância, atenta a culpa exclusiva do lesante. É hoje reconhecido que os Tribunais Superiores têm vindo a aumentar tais compensações, mas a diversidade das situações e, sobretudo, não sendo comparáveis a intensidade dos danos e o grau de culpa dos lesantes, que só casuisticamente podem ser avaliados, não é legítimo invocar as compensações que são arbitradas, por exemplo, em casos de lesão mortal, com aqueloutras que afetam distintos direitos de personalidade (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.7.2007, publicado em www.dgsi.pt).

Assim sendo, o juízo equitativo é critério primordial e sempre corretor de outros critérios, devendo o tribunal decidir de acordo com “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.

Com efeito, há que ter em conta, como é entendimento praticamente unânime, que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios.

Como se dizia no acórdão do STJ, de 16-12-1993, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 181 «É mais que tempo, conforme jurisprudência que hoje vai prevalecendo, de se acabar com miserabilismos indemnizatórios. A indemnização por danos patrimoniais deve ser correta e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efetivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isto, neste âmbito, já ninguém nem nada consegue! Mas – et pour cause – a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo, e não meramente simbólico.

No caso resultou provado que:

- em resultado direto e necessário da conduta do arguido, BB sofreu ferida no frontal e lábio superior, feridas inciso-contusas da face, bem como hematomas no tronco e membros inferiores, que lhe demandaram doze dias de doença, sendo sete com incapacidade para o trabalho;

- em consequência da conduta do arguido, o assistente ficou com uma cicatriz estrelada na região mediana frontal, com 5 por 6 cm, permanente e visível a dois metros.

- em consequência da conduta do arguido, quando recuperou os sentidos, BB teve dores intensas na cabeça;

- em consequência da conduta do arguido, BB sofreu dores de cabeça durantes vários meses, teve dores nas costelas durante aproximadamente dois meses, sentiu dificuldade em respirar durante duas a três semanas, e teve de usar pomadas durante cerca de dois anos por causa da cicatriz na cara;

- em consequência da conduta do arguido, BB sentiu vergonha, e sentiu-se vexado pelas lesões serem na cara e serem muito visíveis e a pela agressão ter ocorrido em frente a várias pessoas;

- em consequência da conduta do arguido BB ficou com receio do arguido, sentiu-se injustiçado e magoado com o arguido, e passou a evitar os locais onde o poderia encontrar, sendo que ainda hoje recorda o sucedido;

- em consequência da conduta do arguido BB tornou-se uma pessoa mais reservada e angustiada e deixou de sair à noite e frequentar cafés com a mesma frequência que fazia anteriormente e, durante cerca de dois anos deixou de ir à praia por causa do sol na cicatriz.

Como dano estético pode ser considerado o dano corporal ou dano da integridade física, independentemente de qualquer repercussão funcional, laboral ou social, que afeta a beleza e a harmonia biológica da pessoa. Trata-se de um verdadeiro dano corporal, que deve ser reparado de per se, independentemente das concretas repercussões funcionais ou laborais que da sua verificação possam decorrer para o lesado.

Neste contexto, uma cicatriz, sequela de uma lesão corporal, é nitidamente um dano estético e, como tal, suscetível de compensação. Todavia, se a afirmação da ressarcibilidade do dano estético se impõe com facilidade, mais difícil é, naturalmente, a sua avaliação, quer dizer, a determinação do valor da compensação a que aquele dano deve dar lugar. Sem preocupação de exaustão, na avaliação do dano estético, devem ser ponderados, tanto elementos objetivos – v.g., a natureza da sequela, o lugar anatómico em que se situa e o seu carácter estático ou dinâmico – como aspetos subjetivos, por exemplo, a idade e o género do lesado, a sua personalidade, a profissão que exerce e a sua repercussão sócio-familiar e relacional. A valoração deste dano deve, porém, relevar fundamentalmente da aplicação de critérios objetivos – como, v.g., a localização, a dimensão e a característica da sequela - sem prejuízo, contudo, por exemplo, da ponderação da apreciação íntima e, portanto, subjetivizante do lesado, quanto à sua repercussão. Realmente o dano estético permanente deve ser avaliado tendo em conta as repercussões das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima, quer em relação a si própria, quer na relação com os outros.

Deste modo, considerando a idade do ofendido – atualmente com 38 anos – ser do género masculino, o facto de lesão ser na zona da testa, uma cicatriz permanente, com 5 por 6 cm e visível a cerca de dois metros, entende-se como adequada a fixação da indemnização em dez mil euros.

Relativamente às dores sentidas no momento da lesão, apenas se provou que quando recuperou os sentidos o demandante sofreu dores intensas na cabeça, não obstante revelou-se agressivo e não colaborante no hospital, recusou ser suturado ou fazer o penso, acabando por abandonar o serviço de urgência sem receber tratamento que terá vindo a receber noutra unidade hospitalar. Não se provou que tenha sentido receio pela sua vida ou integridade física nem que tenha pensado que ia morrer. Pelo que, pelas dores sofridas – e que face às características da lesão – não se duvida que tenham sido intensas, fixa-se a indemnização em dois mil euros.

No que concerne ao conjunto dos demais danos, não deixará de se considerar igualmente o contributo do lesado para o facto lesivo e o facto de se encontrar embriagado, pelo que se fixa a indemnização pelos demais danos não patrimoniais em seis mil euros.

Não restam dúvidas que todos os danos foram provocados pela conduta dolosa do arguido, sendo que na atualidade, quer o assistente quer o arguido se encontram a trabalhar e têm rendimentos próprios.

Deste modo, e considerando os critérios supra mencionados, considera o Tribunal, ser adequada às circunstâncias do caso e, sobretudo, aos danos sofridos pelo assistente, a fixação da indemnização, por danos não patrimoniais em € 18.000,00 (dezoito mil euros) na sua totalidade, improcedendo quanto ao demais.

A este valor deverão acrescer os juros de mora.

O demandante pediu juros de mora desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil.

O devedor entra em mora quando tarda, por causa que lhe seja imputável, no cumprimento da prestação a que está obrigado – artigo 804.º, n.º 2 do Código Civil – estabelecendo a lei, através da indemnização moratória, uma sanção para o seu não cumprimento tempestivo.

No que se refere ao momento da constituição em mora de responsabilidade por facto, a mesma tem lugar desde a citação (artigo 805.º, n.º 3 do Código Civil), correspondendo no processo penal à notificação do pedido de indemnização civil.

Porém, como fixado no Acórdão de Revista Ampliada n.º 4/2002, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República n.º 146, de 27 de junho de 2002: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e artigo 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”.

No caso, no que concerne aos danos não patrimoniais, a indemnização foi atualizadora, pelo que os juros são devidos não desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil, mas desde a data da prolação da presente decisão, à taxa de 4% ao ano (portaria n.º 291/03, de 8/4), improcedendo, assim, em parte, o pedido quanto aos juros.(…)”

Face a esta factualidade, verifica-se que no caso em apreço está verificada a prática de actos voluntários e ilícitos pelo arguido, actos estes que foram directamente causais de vários danos físicos e morais sofridos pelo assistente.

Constata-se, assim, que a conduta do arguido é muito grave, sobretudo porquanto o mesmo, dadas as relações de amizade que o uniam ao ofendido, tinha obrigação de controlar os seus impulsos e de não fazer uso da força e da violência, não obstante o ofendido lhe ter chamado “filho da puta”.

Não se discute a gravidade desta ofensa, porém, a resposta agressiva por parte do arguido foi totalmente despropositada e injustificada, tendo provocado no ofendido danos que persistem até hoje, designadamente de carácter estético e psicológico.

Os danos morais sofridos pelo ofendido, dada a sua duração e intensidade, são de tal modo graves que merecem, efectivamente, a tutela do direito, impondo-se atribuir-lhe uma indemnização compensatória pelo sofrimento dos mesmos. Uma vez que não existe a possibilidade de quantificar os danos morais, a sua ressarcibilidade tem que ser feita com recurso à equidade, ou seja, através de um critério de razoabilidade, ditado pelo bom senso. Face aos danos de natureza não patrimonial em apreço há que ter em conta que a indemnização deve ser significativa de modo a representar uma efetiva compensação pelos prejuízos sofridos, mas sem representar um enriquecimento injustificado do lesado à custa do lesante. A decisão recorrida, analisando a factualidade apurada, considerou justo e proporcional condenar o arguido a pagar ao ofendido a quantia de 18.000,00 euros. No caso concreto, face a tudo quanto antecede, à luz da equidade, entende-se que tal quantia é justa, adequada e proporcional, mostrando-se, de acordo com as especificidades do caso concreto, perfeitamente consentânea, com os valores atribuídos e os critérios seguidos pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores em casos que com este têm alguma similitude, sendo, por isso, de manter.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA e, em consequência:

A) Alteram a decisão recorrida, condenando o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art.º 143º do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de vinte e quatro meses, na condição de o mesmo proceder ao pagamento, à ordem dos autos, do montante de € 9.000,00 (nove mil euros), equivalente a metade do valor da indemnização fixada, o qual deverá ser pago trimestralmente, no valor de 1.125,00 euros (mil, cento e vinte e cinco euros), tudo nos termos do disposto nos arts.º 50º, nºs 1 e 5 e 51º, nº 1, al. a) do Cód. Penal;

B) No mais, confirmam a decisão recorrida.

Sem custas.

Évora, 25 de Novembro de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Maria Beatriz Marques Borges

Jorge Antunes

(Adjuntos)