Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
188/16.9GAVRS.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
EXTINÇÃO
PROCESSOS PENDENTES
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para decidir pela revogação ou pela extinção, ou não, da suspensão da execução da pena, o não averbamento de condenações anteriores é irrelevante, pois do que se trata é de saber se se deve, ou não, aguardar por desfecho de processo pendente, para, então, e só então, se decidir pela revogação ou pela extinção, ou não, da suspensão da execução da pena.
Não haver notícia de qualquer incumprimento das condições também é irrelevante, pois, neste momento não se está a cuidar de eventual revogação da suspensão da pena, mas sim de se aguardar, ou não, pelo desfecho de outro processo pendente contra o arguido por factos praticados no decurso da suspensão da execução da pena.

A constatação plasmada na decisão recorrida de que no momento do cumprimento da pena não tinha quaisquer processos em curso não é correcta, no sentido em que se deve entender “processo em curso”.

O processo inicia-se quando se inicia o inquérito e não quando é deduzida a acusação. O artº 57º, nº 2, do Cód. Penal refere-se a processo pendente e não a processo no qual tenha sido deduzida acusação.

O que é relevante é a data dos factos e não a data da acusação. A prática pelo arguido de factos no decurso da suspensão da execução da pena pode revelar que as finalidades da suspensão não foram alcançadas, nos termos do artº 56º, nº 1, al. b), do Cód. Penal. E tal apreciação não pode ficar dependente da data em que for formulada a acusação, ou ocorrer a pronúncia, ou for proferida a sentença. Havendo notícia, como houve neste processo, de que contra o arguido existia processo pendente por factos praticados no decurso da suspensão da pena, há que aguardar pelo seu desfecho.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUIZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

Por sentença de 4/10/2018, foi o arguido AA condenado na pena de 26 meses de prisão, pena essa substituída pela pena de suspensão de execução da mesma, por igual período.

Tal sentença transitou em julgado em 12/11/2018.

Em 14/12/2022 foi junta aos autos cópia da acusação de 12/12/2022, formulada contra o arguido no âmbito do processo 252/20.0..., relativamente a factos praticados em 21/10/2020.

Em 19/12/2022 o Ministério Público promoveu que se aguardasse pelo desfecho do referido processo.

Em 17/1/2023, no seguimento da referida promoção, foi proferido o seguinte despacho:

“O arguido foi condenado nos presentes autos em pena de 26 meses de prisão, substituída por pena suspensa na sua execução por igual período.

A sentença condenatória transitou em julgado a 12/11/2018.

O cumprimento total da pena terá ocorrido em 12/01/2021.

Foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido em 12/12/2022.

Há, pois, que tomar posição nos autos relativamente ao eventual cumprimento da pena, designadamente em função do disposto nos artºs. 55º a 57º do CP.

Assim, notifique-se Ministério Público e arguido para, em 10 dias, tomarem posição nos autos em conformidade, querendo.”

Nesse seguimento, o MºPº renovou a anterior promoção e o arguido nada disse.

Então, em 25/2/2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Como se exarou em anterior despacho, o arguido foi condenado nos presentes autos em pena de 26 meses de prisão, substituída por pena suspensa na sua execução por igual período.

Os factos subjacentes à sentença foram praticados em Junho de 2016.

A sentença foi proferida em 04/10/2018.

A sentença condenatória transitou em julgado a 12/11/2018.

O cumprimento total da pena terá ocorrido em 12/01/2021.

Com efeito, como resulta da lei, o início da suspensão da execução da pena de prisão (a sua execução, o decurso do prazo de suspensão) constitui efeito imediato da condenação transitada; analisa-se apenas no decurso do prazo que se inicia ipso facto com o trânsito em julgado da condenação (cfr. artºs. 467º, nº.1 e 494º nº.3 do CPP), sem mais (não são oponíveis exigências adicionais ao início da execução da pena). Pelo que, obviamente, a aplicação do regime de prova ou a imposição de deveres/regras de conduta são elementos acidentais e não essenciais (não integram a essência da pena mas as suas circunstâncias acidentais e particulares - podem não existir sequer) e a sua executoriedade (ou não) não condiciona por isso o início da execução da pena de suspensão da execução da pena de prisão. Logo, as condições de cumprimento da pena suspensa reflectem-se na forma de execução, não no início da execução; por isso a prisão apenas pode eventualmente integrar um incumprimento culposo (em certos casos, se assente em facto ocorrido no decurso da suspensão), que dá lugar à revogação (ou até prorrogação) da suspensão da execução da pena e não à sua suspensão (a prisão pode reflectir-se na suspensão da execução da pena de prisão através do seu facto gerador - crime cometido no decurso da suspensão - mas com efeitos sobre os termos da pena suspensa, não sobre a sua eficácia).

A circunstância de ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido em 12/12/2022 é absolutamente inócua para o caso dos autos, uma vez que tal dedução ocorreu já depois do cumprimento da pena.

Aquilo que haveria que aferir seria de, no momento do cumprimento da pena, existência de processos ou de incidentes que levassem a uma prorrogação de prazo ou até à sua revogação. O que nunca foi sequer requerido.

No compulso dos autos é possível constatar que no momento do cumprimento da pena o arguido não tinha quaisquer processos em curso; não tinha averbadas quaisquer condenações posteriores; e não havia noticia de qualquer incumprimento das condições.

Assim sendo, entendemos que, salvo o devido respeito, não assiste razão ao Ministério Público. Não se vislumbra qualquer motivo para revogação ou prorrogação à data de cumprimento da pena.

Concomitantemente, declara-se extinta, pelo seu cumprimento integral, a pena aplicada ao arguido nestes autos.

Notifique.

*

Após trânsito, remeta boletins.”

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Inconformado com o referido despacho de 25/2/2023, dele recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. O despacho recorrido declarou extinta a pena de prisão em que o arguido AA tinha sido condenado no âmbito destes autos, e cuja execução tinha sido suspensa.

2. À data de tal despacho, tal como hoje acontece, está pendente um outro processo, em fase de julgamento, em que o arguido está acusado da prática de um crime da mesma natureza durante o prazo da suspensão da execução de tal pena.

3. Tal situação enquadra-se na previsão do art.º 57º, nº 2 do C.P., que dispõe que não se pode determinar a extinção da pena enquanto se encontrar pendente processo relativo à prática de crime que possa determinar a revogação ou prorrogação da suspensão.

4. Deveria, assim, o M.mo Juiz ter determinado que os autos aguardassem o desfecho de tal processo antes de decidir a eventual extinção da pena.

5. O despacho recorrido violou, assim, tal preceito legal.

6. Deve ser substituído por outro no sentido pugnado em 4 em obediência ao art.º 57º, nº 2 do C.P., assim se fazendo JUSTIÇA.”

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O arguido não respondeu ao recurso.

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

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APRECIAÇÃO

A questão a apreciar nos presentes autos é a de saber se se pode considerar, ou não, que para efeitos do nº 2 do artº 57º do Cód. Penal, existia processo pendente, cujo desfecho tem que se aguardar.

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Tudo está em saber qual é o momento relevante para efeitos do artº 57º, nº 2, do Cód. Penal.

No despacho recorrido entendeu-se que pese embora a apreciação para efeitos do artº 57º, nº 2, do Cód. Penal, esteja a ocorrer já depois de decorrido o prazo da suspensão da execução da pena, o que é certo é que à data do fim desse período (12/1/2021), ou seja, depois de cumprida a pena, não havia notícia de qualquer processo pendente contra o arguido, nem tinha sido deduzida a acusação no referido processo 252/20.0....

Por outro lado, o recorrente entende que existindo nesta data processo pendente relativamente a factos ocorridos no período da suspensão da execução da pena, há que aguardar pelo seu desfecho.

Ora, o que resulta dos autos, tal como refere o recorrente, é que logo em 4/12/2020 foi comunicada a pendência do processo 252/20.0..., em ofício, aliás, dirigido ao Juiz, dando conta da data da prática dos factos.

Ou seja: ainda antes do fim do período do fim da suspensão da execução da pena já havia notícia de que estava pendente outro processo contra o arguido por factos praticados no decurso da mesma.

No despacho recorrido refere-se:

“No compulso dos autos é possível constatar que no momento do cumprimento da pena o arguido não tinha quaisquer processos em curso; não tinha averbadas quaisquer condenações posteriores; e não havia noticia de qualquer incumprimento das condições.”

O não averbamento de condenações anteriores é irrelevante, pois do que se trata é de saber se se deve, ou não, aguardar por desfecho de processo pendente, para, então, e só então, se decidir pela revogação, ou não, da suspensão da execução da pena.

Não haver notícia de qualquer incumprimento das condições também é irrelevante, pois, repete-se, neste momento não se está a cuidar de eventual revogação da suspensão da pena, mas sim de se aguardar, ou não, pelo desfecho de outro processo pendente contra o arguido por factos praticados no decurso da suspensão da execução da pena.

A constatação de que no momento do cumprimento da pena não tinha quaisquer processos em curso não é correcta, no sentido em que se deve entender “processo em curso”.

Com efeito, parece resultar do despacho recorrido que é a data da acusação que releva para se considerar existir pendência de outro processo.

Ora, não é assim. O processo inicia-se quando se inicia o inquérito e não quando é deduzida a acusação. O artº 57º, nº 2, do Cód. Penal refere-se a processo pendente e não a processo no qual tenha sido deduzida acusação.

Parece-nos absolutamente certo este nosso entendimento, pois o que é relevante é a data dos factos e não a data da acusação. A prática pelo arguido de factos no decurso da suspensão da execução da pena pode revelar que as finalidades da suspensão não foram alcançadas, nos termos do artº 56º, nº 1, al. b), do Cód. Penal. E tal apreciação não pode ficar dependente da data em que for formulada a acusação, ou ocorrer a pronúncia, ou for proferida a sentença. Havendo notícia, como houve neste processo, de que contra o arguido existia processo pendente por factos praticados no decurso da suspensão da pena, há que aguardar pelo seu desfecho.

Poderia discutir-se se a notícia da pendência do outro processo só ocorresse já depois de findo o período da suspensão da execução da pena, ainda assim, haveria que aguardar pelo seu desfecho.

Isto é: se a apreciação tivesse ocorrido logo que findo o período da suspensão da execução da pena, não havendo então ainda notícia de qualquer processo pendente, a pena seria declarada extinta.

Se, por outro lado, por qualquer razão a apreciação demorasse mais tempo e, entretanto, houvesse notícia da pendência de outro processo, teria que se aguardar na mesma pelo desfecho deste?

Conforme a opção por um entendimento ou por outro, o arguido poderia ser beneficiado ou prejudicado, ficando dependente da celeridade com o que o processo fosse submetido a despacho judicial.

Poderá ser uma questão interessante, mas para o caso concreto é completamente inconsequente e, por isso, não se envereda pela sua análise. É que, como já se referiu, à data do fim do período da suspensão da execução da pena já havia notícia da pendência de outro processo susceptível de conduzir à revogação dessa suspensão.

O despacho recorrido não pode, assim, subsistir, sendo o recurso procedente.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine que se aguarde o desfecho do processo pendente contra o arguido com o nº 252/20.0....

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Sem tributação.

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Évora, 9 de Janeiro de 2024

Nuno Garcia

Maria Clara Figueiredo

J.F. Moreira das Neves