Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
347/20.0T8LAG.E1
Relator: ANA MARGARIDA CARVALHO PINHEIRO LEITE
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
QUESTÃO NOVA
NULIDADE
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Viola o princípio do contraditório a decisão de indeferimento de procedimento cautelar – com fundamento na falta de alegação no requerimento inicial de factualidade que preencha os requisitos de que depende o decretamento da providência requerida –, proferida após ter sido ordenada e efetivada a citação, bem como deduzida oposição e designada data para a inquirição de testemunhas, sem que tenha sido concedida às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a matéria da fundamentação tida em vista para tal indeferimento, assim constituindo uma decisão-surpresa;
II - Tal omissão, do convite às partes para emitirem pronúncia sobre a questão de direito oficiosamente suscitada pelo Tribunal, influiu na decisão da causa, considerando que o indeferimento do procedimento cautelar se baseou em regime jurídico relativamente ao qual não tomaram as partes posição, assim constituindo nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, do CPC;
III – Se a nulidade só se manifesta com a prolação da decisão, é de considerar tempestiva a arguição da nulidade nas alegações do recurso interposto da decisão;
IV – A nulidade importa a anulação da decisão recorrida, se influiu no sentido do decidido. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Juízo de Competência Genérica de Lagos
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

A… requereu a 05-06-2020, contra P…, Ltd, procedimento cautelar comum, pedindo, pelos fundamentos que expõe, se imponha à requerida que: a) proceda à remoção de todos os entulhos e terras que colocou no prédio da requerente; b) proceda à desobstrução da linha de água e do aqueduto sobre ela edificado e à remoção do portão metálico que dá acesso aos passeios pedonais em calçada que ligam à casa da requerente, ao Talefe da Luz, à Rocha Negra e à praia; c) proceda à remoção da câmara de vigilância colocada e direcionada para a via pública e para o terreno e a casa da requerente e à destruição de todas as gravações de imagens que tenha feito, nomeadamente onde conste imagens destas, das visitas de casa ou de hóspedes do seu alojamento local; d) em geral, que se abstenha de toda e qualquer conduta que perturbe o uso e posse do prédio da requerente. Mais requer se decrete a inversão do contencioso, com a consequente dispensa da propositura pelo requerente da ação principal, sustentando que a questão das estremas entre os prédios da requerida e da requerente foi já objeto da ação judicial n.º 421/07.8TBLGS em que ambas foram partes.
Por despacho de 24-06-2020, foi ordenada a citação da requerida.
Citada, a requerida deduziu oposição, na qual sustenta que a decisão proferida no processo invocado pela requerente não faz caso julgado, nem tem autoridade de caso julgado, nos presentes autos, acrescentando que as providências requeridas não se mostram adequadas à composição definitiva do litígio, pronunciando-se no sentido da rejeição da pretendida inversão do contencioso; mais invoca factualidade e antecedentes litigiosos que considera porem em causa o direito da requerente, defendendo a improcedência do procedimento cautelar e a consequente rejeição das providências requeridas.
Por despacho de 14-07-2020, foi decidido o seguinte:
Indefere-se as declarações de parte de W… pois a prestação de declarações nessa qualidade, em representação de uma pessoa coletiva, pressupõe que quem vai prestá-las possa vincular a empresa requerida, (vg. gerente/administrador) e tenha poderes para o acto, conforme a forma de obrigar, pressupostos estes que não se verificam no caso concreto quanto à pessoa indicada para esse efeito.
Notifique.
*
O Tribunal relega para momento posterior a apreciação do pedido de inspecção judicial ao local.
*
Notifique a requerida para que, até às 12h do dia 15 de Julho, informe aos autos se se compromete a apresentar as testemunhas residentes no estrangeiro (a partir do local da sua residência/local de trabalho) na data a designar, pois, caso contrário, impor-se-á a sua notificação o que implicará uma maior dilação temporal no agendamento da presente diligência, bem como fornecer, desde já, os seus correios electrónicos e os contactos telefónicos a fim de se poder estabelecer a ligação via Skype, conforme requerido.
Colhida a informação, abra conclusão a fim de se designar data para a inquirição das testemunhas
Notificada deste despacho, a requerida veio aos autos, a 15-07-2020, informar que se compromete a apresentar as testemunhas que identifica e requerer a substituição de uma testemunha.
Por despacho de 15-07-2020, foi decidido o seguinte:
Admito a substituição ao rol de testemunhas, devendo a testemunha ser apresentada (artigo 510º n.º 1 do CPC).
Notifique a parte contrária para, querendo, e em 5 dias, usar de igual faculdade.
*
Para inquirição de testemunhas designa-se o dia 31 de Julho de 2020, pelas 10h.
Notifique.
A requerida veio aos autos, a 20-07-2020, requerer a nomeação de intérprete, destinado à inquirição das testemunhas que identifica, o que foi deferido por despacho de 21-07-2020.
A requerente veio aos autos, a 22-07-2020, requerer a junção de um documento.
A requerente veio aos autos, a 27-07-2020, requerer a substituição de determinadas testemunhas, bem como lhe seja notificado o articulado de oposição e os documentos que tenham sido apresentados pela requerida, a fim de poder emitir pronúncia sobre os mesmos.
Por decisão de 28-07-2020, foi indeferido o procedimento cautelar e a requerente condenada nas respetivas custas, na sequência do que se considerou desnecessária a produção das provas requeridas e se deu sem efeito a inquirição de testemunhas agendada.
Notificada desta decisão, a requerente veio aos autos, a 28-07-2020, insistir pela notificação da oposição apresentada pela parte contrária e dos documentos que a acompanham.
A oposição e os documentos apresentados pela requerida foram notificados ao ilustre mandatário da requerente por transmissão eletrónica de dados efetuada através do Citius a 29-07-2020.
Inconformada, a requerente interpôs recurso da decisão de 28-07-2020, pugnando para que seja revogada, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«1. A proviência cautelar submetida a juízo pela recorrente foi objecto de despacho liminar a mandar a requerente a juntar comprovativa da sua legitimidade e poderes de representação de W…, na sequência da sua junção foi a providência cautelar liminarmente admitida e ordenada a citação da requerida, apresentado esta o seu articulado de oposição, documentos e rol de testemunhas, após o que foram proferidos vários despachos judiciais, designadamente os relativos à alteração dos respectivos róis e, bem assim, a marcar a audiência de julgamento para o dia 31 de Julho de 2020, pelas 9:30 horas e a ordenar a notificação das testemunhas arroladas, tendo tais despachos transitado em julgado.
2. Razão por que, salvo melhor entendimento, a prolação da sentença recorrida, que indeferiu a providência cautelar sem realização da audiência de julgamento com inquirição das testemunhas arrolada, constitui uma violação da estabilidade processual coberta por caso julgado, o que constitui nulidade não sanada (com a consequente inibição da prova testemunhal admitida e notificada e bem assim o exercício do direito ao contraditório (artºs 3º, 628º e 195º, do C. P. Civil.
3. Além das razões constantes das conclusões precedentes, aconteceu, também, o facto de a requerente não ter sido notificada para os termos da oposição da requerida de modo a, em tempo oportuno – antes da sentença – se poder pronunciar sobre o teor da mesma e dos documentos a ela juntos, tendo tal notificação, após insistência da recorrente, ocorrido já depois da notificação da douta sentença recorrida.
4. Daí que, a omissão da notificação à requerente do douto articulado de oposição constitua uma nulidade processual não sanada por violação do princípio do contraditório e do da igualdade de partes e (artºs 3º, 4º e 195º, do C. P. Civil)
5. Ao que acresce o facto de a douta sentença recorrida constituir uma “decisão surpresa”, dado contrariar aos actos judiciais e a marcha do processo já estabilizada com a marcação da audiência de audiência de discussão e julgamento, sendo a recorrente surpreendida por uma decisão de desmarcação do julgamento e por uma sentença totalmente inesperada antes da realização desse julgamento e sob o pretexto da falta do pressuposto processual do periculum in mora, nunca antes questionado.
6. Nesta parte, independentemente das demais razões acima invocadas, não podia nem devia o Mtº Juiz a quo tomar a decisão de proferir a sentença recorrida sem a realização do julgamento, prescindindo da inquirição de testemunhas, da inspecção e de qualquer outro tipo de prova, sem antes ouvir as partes que para ele estavam concocadas e espectantes da sua realização.
7. Sem conceder, mesmo que faltasse o pressuposto processual do periculum in mora mencionado na douta sentença recorrida - o que se não concebe – impendia sobre o Mtº Juiz a quo o dever de ouvir a parte requerente e de a convidar a, se fosse o caso, a suprir essa falta (artº 6º nº 2, do C. P. Civil), constituindo tal omissão uma nulidade não sanada.
8. Por conseguinte, essa tomada de decisão sem prévia audição das partes para sobre elas se pronunciarem constitui uma situação de “decisão surpresa”, o que constituí uma violação artº 3º, e 6º do C. P. Civil e artº 20º da C. R. Portuguesa), que determina que não deve ser proferida “nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, a possibilidade de sobre ela se pronunciar”. Consequentemente, qualquer das omissões em apreço constitui nulidade não sanada (artº 195º ex vi artºs 3º e 6º do C. P. Civil.
9. Devendo, face às nulidades antes invocadas, ser anulados todos os actos processuais praticados após a marcação da audiência de discussão e julgamento com todas as consequências legais (artº 195º nº 2, do C. P. Civil)
10. Por outro lado, salvo melhor entendimento, ao contrário do douto entendimento do Mtrº Juiz a quo não existem as razões formais e materiais apontadas na sentença recorrida para fundamentar a improcedência da providência cautelar requerida, as quais se estribam na falta de preenchimento do pressuposto processual do periculum in mora.
11. Como se fundamentou no capítulo II desta alegação, a requerente alegou factualidade bastante para sustentar o perigo de lesão grave e de difícil ou impossível reparação.
12. Começando por se alegar que a requerida colocou cadeados num portão de acesso às suas casas e aos jardins e demais terreno de logradouro, bem como procedeu e continua a proceder à colocação de entulhos que bloqueiam o acesso ao logradouro que serve de lugar de estacionamento dos automóveis pessoais, dos seus familiares de dos hóspedes do seu alojamento local no edifício chamado G….
13. O que constitui uma continuada coacção e grave violação do seu direito de propriedade, e, mais grave ainda, uma conduta que afecta a liberdade de movimentos e de circulação da recorrente, dos seus familiares, dos seus trabalhadores e dos hóspedes do dito alojamento local, nomeadamente, por impedirem o referido estacionamento e a liberdade de circulação pelos “passeios pedonais em calçada que foram construídos há 15, 20. e mais anos, ficando uma parte situada no terreno e logradouro que hoje é dos réus [aqui requente] e outra parte no terreno que com ela confronta do seu lado sul (propriedade da autora)”
14. A continuada obstrução dos acessos à sua casa, jardins e demais logradouros pelo dito portão e pelos ditos “passeios pedonais em calçada” é uma intolerável ingerência na sua liberdade pessoal de circulação e de fruição do direito e de propriedade, o que constitui, por si só, uma grave e irreparável lesão à sua liberdade de circulação e ao seu direito de propriedade (artºs 1305º, 1314º do C. Civil e artºs 26º, 27º da C. R. Portuguesa, os quais, uma vez coartados, são insusceptíveis de reintegração.
15. A conduta da requerida é igualmente intolerável e muito grave e de difícil reparação são os danos decorrentes da colocação de entulhos e pedras a obstruir a linha de água/ribeira, incluindo total tapagem do aqueduto que passa sobre ela situado junto à rua e da estrema sul do terreno da requerente, sendo que, é por aí que, “Pela inclinação do terreno a água é conduzida pela linha de água, na quota mais baixa do terreno, paralela à Rua da Praia, vinda de nascente para poente e de norte para sul em direcção ao mar.”
16. Do que resulta o perigo, iminente ou a breve trecho, de ocorrerem inundações das casas da requerente, do jardins e demais logradouros, por ter aterrado o logradouro destinado a estacionamento e tapando a linha de água que conduz as enxurradas das águas pluviais da encosta do Talefe da Luz e da Rocha Negra para o mar.” (artº 12.)
17. “Tapando, inclusive, o aqueduto existente sobre a dita linha de água, situada junto à rua, impedindo a passagem dessas águas, com o risco de graves inundações, nomeadamente das caves e garagens da requerente.” (artº 12.)
18. Não colhendo, por isso. a tese do Mtº Juiz de que não foi alegada nenhuma situação de perigo de lesão grave e de difícil ou impossível reparação por se estar no verão e a viver um período de seca no Algarve.
19. Posto que, como é do conhecimento geral e das regras de experiência comum, o nosso clima é o “clima mediterrânico”, em que as chuvas se concentram no período de inverno, muitas vezes torrenciais, e que, face à obstrução da sua passagem por entulhamento e entupimento do leito da ribeira e do aqueduto por onde fazem o seu curso normal, causam graves e inevitáveis inundações.
20. O que, além de destrutivo para as casas e para os equipamentos, móveis e obras de arte que constituem o seu recheio, será igualmente destrutivo, para os veículos automóveis estacionados no terreno de logradouro e na cave que serve onde existem, também, as instalações de apoio (rouparia, lavandaria, etc.) e equipamentos técnicos da piscina e do alojamento local.
21. Sendo que, atenta a orografia local que conduz todas as águas pluviais da ravina do Talefe da Luz para essa linha de água situada na sua base, junto às casas e muro de contensão que as protege e aos seus jardins, garagens e terrenos de logradouro, o que se pode tornar mais destrutivo e trágico se verificarem algumas chuvadas mais intensas ou chuvas mais duradouras que levem à ocorrência de enxurradas e deslizamentos de terras e pedras que provoquem o aluimento de terras e o desmoronamento do mencionado muro de contenção, o que pode atingir, não só os bens patrimoniais, mas haver, também, real perigo – mesmo de vida - para as pessoas que estejam ou circulem no local num desses bem previsíveis momentos de infortúnio.
22. Esta é outra das situações invocadas em que é manifesto o perigo de lesões graves e de difícil ou de impossível reparação, posto que, pela gravidade das destruições em causa e pela natureza e qualidade dos bens atingidos não são estes susceptíveis de reintegração ou reconstituição.
23. Outra das situações invocadas de lesão grave e de difícil ou de impossível reparação prende-se com a instalação de uma câmara de vigilância “orientada para captar imagens e filmar acontecimentos que ocorram na via pública e no interior do prédio da requerente … captando e registando imagens de tudo quanto se passa na via pública que lhe dá acesso e no seu interior atentando contra a privacidade e intimidade de todos que estejam no seu alcance.” (artº 17.)
24. Com efeito, uma câmara de filmar instalada nas condições em apreço, que a recorrida confessa e reconhece que instalou e mantém em funcionamento, também é causa de lesão grave e de difícil ou de impossível reparação, pois a sua violação é insusceptível de avaliação em dinheiro e de reintegração.
25. Na realidade, é fonte de violação grave ao direito à reserva da vida privada e da intimidade pessoal da requerente e demais pessoas acima mencionadas, o que carece, ainda, de mais forte e efectiva protecção, pois a sua lesão é qualitativamente muito mais grave do que a violação de quaisquer direitos direitos de natureza patrimonial, por se tratar de direitos humanos fundamentais protegidos legal e constitucionalmente pelo direito interno e pelo Direito Internacional supra-nacional, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem que a todos vinculam.
26. Quanto a este aspecto, conforme decorre da douta sentença, a requerida, na sua oposição, confessa o facto relevante que é a existência dessa câmara de filmar, integrada num “sistema de vigilância”, tendo a incrível desfaçatez de afirmar que “a recorrente, os seus familiares, amigos funcionários e hóspedes não serão captados, se se abstiverem de devassar a propriedade privada da Requerida”.
27. Concebendo ter perturbado e ir continuar a perturbar impunemente tais direitos usando a dita câmara como um instrumento de coacção ilegal e ilegítimo sobre a requerente e demais pessoas mencionadas, violentando, continuadamente, a sua liberdade pessoal de estarem como querem no espaço privado das suas casas e logradouros e à preservação da vida privada, da sua intimidade pessoal e da sua imagem sem que as autoridades policiais e os tribunais lhe o impeçam.
28. Com todo o respeito pela posição do Mtº Juiz a quo, para nós, só por absurdo se concebe que a existência e a continuação dessa câmara de filmar em actividade possa justificar-se pelo facto das suas imagens poderem constituir prova de possíveis crimes, o que se não concebe.
29. Independentemente do que se possa dizer sobre a natureza, legalidade e validade da prova feita por captação de imagem feita pela requerida nas circunstâncias em apreço, a destruição das imagens já captadas e as que esta continua ilegal e ilegitimamente a captar, ao contrário do que afirma o Mtº Juiz a quo não implicam a sua destruição:
30. - Por um lado, porque uma parte delas já foi junta ao(s) processo(s) de inquérito criminal em curso, encontrando-se, por isso, preservadas e seguras.
31. - Por outro lado, porque, se as mesmas tivessem essa relevância para efeitos de prova em processo penal, não deixaria o Tribunal, nomeadamente ao abrigo do dever de gestão processual (artº 6º do C. P. Civil), de poder decidir de modo a, em respeito pelos princípios da adequação e da proporcionalidade, preservar essas imagens para efeitos de prova.
32. - O que não pode o Tribunal a quo é, sob esse pretexto, continuar permitir a continuação de uma actividade criminosa em si mesma, por estar virada e a captar imagens de pessoas dentro de casa e em terreno propriedade da requerente – e perfunctóriamente assim considerada - o que além de ilegal e intolerável, integra a prática continuada de ilícitos criminais.
33. Na realidade, havendo nisso interesse, as imagens captadas podem ser preservadas, mas impedindo a possibilidade de permanecerem nas mãos da requerida e prevenindo a sua eventual difusão e divulgação.
34. Por conseguinte, também nesta parte, o pedido de providência cautelar é perfeitamente adequado a afastar a grave lesão de direitos que, pela sua natureza e qualidade, são de difícil ou de impossível reparação, não colidindo de modo desproporcional com qualquer hipotético direito e interesse da requerida, nem colidindo com qualquer interesse de preservação da prova.
35. Sendo, pelo contrário, uma solução que impede a continuidade de uma actividade e de uma conduta inegavelmente ilícita, seja de natureza civil, seja de natureza criminal. (Ex.: artºs 70º, 79º e 80º, do C. Civil e artºs 190º, 191º, 192º e 199º, do C. Penal).
36. Na verdade, Os direitos de personalidade e patrimoniais aqui em causa integram e são direitos estruturais e fundamentais da nossa sociedade e do nosso Estado de Direito e os factos praticados pela requerida são lesões quantitativa e qualitativamente muito graves e de difícil ou impossível reparação aos referidos direitos, que excedem, em muito, o limite perturbação e da ingerência tolerada e tolerável na esfera jurídica alheia sem que se convoque a imediata ou, pelo menos a mais célere entrada em acção dos meios preventivos e coercivos concebidos para evitar ou repor ordem jurídica do Estado de Direito quando a mesma é violada.
37. Concluímos pois, nesta parte. que a providência cautelar requerida observou todos os requisitos relativos à matéria de facto relativa à causa de pedir e aos pressupostos que servem de fundamento para que a mesma seja levada a julgamento para realização da prova e apreciação dos factos alegados pela requerente e discussão de todos os aspectos jurídicos da causa.
38. Factos esses, que sendo considerados provados, conduzem à procedência do pedido nela formulado, por resultarem na demonstração da existência do direito, da gravidade das lesões sofridas e das suas muito graves consequências ou agravamento, e de que resulta a sua difícil ou mesmo impossível reparação, sendo a protecção de qualquer hipotético e abstrato direito da requerida – que não se concebe – completamente desproporcional face à grave e intolerável ingerência desta na esfera jurídica protegida relativa aos direitos de personalidade e patrimoniais da recorrente, sendo a providência requerida, pela razões aludidas, a adequada para impedir a continuação e agravamento das lesões e abolutamento proporcional face aos interesses de uma e outra das suas partes.
39. Devendo, pelas razões antes apontadas e com todo o respeito por diversa e melhor opinião, ser revogada a douta decisão recorrida, substituindo-se por outra em que sejam reparadas as nulidades invocadas e, bem assim, que considere insubsistente a invocada falta do pressuposto processual relativo ao “periculum in mora”, o que deu causa à improcedência da providência cautelar requerida.
40. Ou, caso assim se não considere, seja proferida decisão ao abrigo do dever de gestão processual (artº 6º, do C. P. Civil) que convide a requerente a suprir qualquer omissão de alegação relativa a esse pressuposto processual.
41. Assim se fazendo, e contando com o douto suprimento deste Venerando Tribunal da Relação, será feito o que é de Justiça»
A requerida apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- nulidade processual;
- preenchimento, pela factualidade alegada pela requerente, dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Com interesse para a apreciação das questões suscitadas, extraem-se dos autos os elementos indicados no relatório supra.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Está em causa, nos presentes autos, o decretamento de providência cautelar que imponha à requerida a obrigação de remover os entulhos e as terras que colocou num prédio pertencente à requerente, de desobstruir uma linha de água e o aqueduto sobre esta edificado, de remover um portão metálico e uma câmara de vigilância, de destruir as gravações de determinadas imagens e de se abster de qualquer conduta que perturbe o uso e a posse do prédio da requerente, o que foi rejeitado pela decisão recorrida, que concluiu não se encontrarem preenchidos os requisitos de que depende o deferimento do pedido formulado.
Considerou a decisão recorrida que, ainda que resulte da matéria de facto alegada no requerimento inicial a probabilidade da existência do direito invocado pela requerente e tido por ameaçado, não se extrai de tal factualidade um fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação ao aludido direito, motivo pelo qual se concluiu não se encontrar preenchido um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar.
Na apelação, a recorrente alega que a decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa, arguindo a existência de nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório.
Sustenta a apelante que o procedimento cautelar foi liminarmente admitido, tendo sido proferido despacho a ordenar a citação, após o que foi apresentado articulado de oposição, acompanhado por documentos e rol de testemunhas, e foram proferidos diversos despachos, designadamente relativos à alteração dos róis de testemunhas, à designação de data para a inquirição de testemunhas e à notificação das testemunhas arroladas, os quais transitaram em julgado; acrescenta que a decisão recorrida, ao indeferir a providência requerida e desmarcar a audiência final designada, sem que os meios de prova requeridos pelas partes tenham sido produzidos nos termos determinados nos despachos anteriores e sem ter sido dado contraditório às partes, que aguardavam a realização da inquirição de testemunhas agendada, violou a estabilidade processual coberta pelo caso julgado, constituindo uma decisão totalmente inesperada, sendo que nunca foi questionada a falta de alegação de factos que preencham o aludido pressuposto processual.
Cumpre apreciar se a decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa.
Conforme se extrai do relatório supra, no despacho liminar foi ordenada a citação da requerida, o que foi cumprido, na sequência do que foi deduzida oposição, após o que foram proferidos despachos destinados a programar os atos a realizar na audiência final e a apreciar alterações requeridas pelas partes aos respetivos róis de testemunhas, tendo sido designado o dia 31-07-2020, pelas 10h, para a inquirição de testemunhas; na presente apelação está em causa a decisão de 28-07-2020, que indeferiu o procedimento cautelar e condenou a requerente nas respetivas custas, na sequência do que deu sem efeito a inquirição de testemunhas agendada.
Compulsados os autos, verifica-se que a falta de alegação de factos que preencham os requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida, e respetivas consequências, configura questão que não foi colocada no despacho liminar, no qual se ordenou a citação da requerida. De igual modo, tal questão, e a eventual desnecessidade da produção das provas requeridas, não foi colocada em qualquer outro dos despachos que antecederam a decisão recorrida, antes tendo sido designada data para a inquirição das testemunhas arroladas.
Assim sendo, quando se considerou, na decisão recorrida, não resultar da matéria de facto alegada no requerimento inicial um fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação ao direito invocado pela requerente e, por esse motivo, se concluiu não se encontrar preenchido um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar, o que constituiu fundamento do indeferimento do procedimento cautelar, com a consequente condenação da requerente nas custas e o cancelamento da diligência de inquirição de testemunhas agendada, dúvidas não há de que foi apreciada e decidida questão de direito não anteriormente colocada nos autos.
É certo que o fundamento que determinou o indeferimento do procedimento cautelar – a falta de alegação no requerimento inicial de factos que preencham um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar –, a verificar-se, pode conduzir à desnecessidade da produção de prova sobre os factos alegados, por se mostrar a pretensão deduzida manifestamente improcedente.
Efetivamente, se não decorrer da factualidade alegada pela requerente o preenchimento de um dos requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida, é de concluir que a pretensão deduzida se mostra manifestamente improcedente, por não permitir a factualidade alegada extrair o efeito jurídico pretendido, pelo que, conforme afirma José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 183), “é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido”.
Porém, se o pedido se mostrar manifestamente improcedente, decorre do estatuído no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que tal vício conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial, o que não foi tido em conta no caso presente, em que se ordenou a citação da requerida no despacho liminar, com o consequente prosseguimento dos autos, tendo sido deduzida oposição e encontrando-se designada data para a inquirição de testemunhas; assim sendo, verifica-se que a decisão recorrida apreciou e decidiu questão de direito não anteriormente colocada nos autos, com base em fundamento com o qual não podiam as partes contar naquela fase processual, face ao prosseguimento dos autos determinado no despacho liminar, sendo certo que não foram ouvidas sobre tal questão, isto é, não lhes foi facultada a possibilidade de sobre ela se pronunciarem.
Dispõe o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, o seguinte: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Consagra este preceito o princípio do contraditório, proibindo a chamada decisão-surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 31), “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Esclarecem os autores (ob. cit., p. 32) que “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)”, acrescentando que “a omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos gerais do art. 195”.
É certo que a aplicação do direito constitui questão de conhecimento oficioso, conforme decorre do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, e que, em princípio, não implica a prévia auscultação das partes; porém, estando em causa, no caso presente, a prolação de decisão baseada em fundamento não apreciado no momento processual próprio, o qual conduziu a uma absoluta diferenciação entre o regime jurídico por estas equacionado na fase processual em causa, em que aguardavam a realização de diligência de produção de prova anteriormente designada, e aquele que veio a ser aplicado na decisão, baseado na manifesta improcedência da pretensão deduzida, mostrava-se necessário alertar as partes para a eventualidade de vir a decisão a ser proferida no âmbito deste quadro normativo, facultando-lhes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão de direito em causa, a fim de evitar a prolação de uma decisão-surpresa, pelo que deveriam ter sido convidadas a emitir pronúncia sobre a mesma.
Não tendo o tribunal auscultado previamente as partes, verifica-se que a decisão proferida constitui efetivamente uma decisão-surpresa, conforme alegado pela recorrente, em violação da proibição constante do citado artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Tal omissão, do convite às partes para emitirem pronúncia sobre a questão de direito oficiosamente suscitada pelo Tribunal, influiu na decisão da causa, considerando que o indeferimento do procedimento cautelar se baseou em regime jurídico relativamente ao qual não tomaram as partes posição, assim constituindo nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Não se tratando de nulidade principal, encontra-se a nulidade em causa sujeita ao regime de arguição fixado nos artigos 197.º e 199.º, do qual decorre, além do mais, a regra geral sobre o prazo de arguição das nulidades secundárias: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, dispõe para a arguição do prazo geral de 10 dias, contado desde o conhecimento de que foi cometida a nulidade. No entanto – conforme se entendeu em situações análogas nos acórdãos desta Relação de 25-09-2014 (relator: Francisco Xavier), proferido no processo n.º 380/12.5T2STC.E1, e de 19-05-2016 (relator: Bernardo Domingos), proferido no processo n.º 124/14.7T8ABT.E1, disponíveis em www.dgsi.pt –, considerando que a nulidade em causa se corporiza na decisão recorrida e só com a notificação desta se manifesta, verifica-se que a arguição da nulidade é incindível da impugnação da decisão, pelo que cumpre considerar tempestiva a respetiva arguição nas alegações do recurso interposto de tal decisão.
Nesta conformidade, considerando que a omissão da audição prévia das partes, em violação do dever imposto pelo artigo 3.º, n.º 3, do CPC, influiu na decisão recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do mesmo Código, há que anular tal decisão e determinar seja proferido o despacho omitido, isto é, o convite às partes para se pronunciaram, querendo, sobre a questão de direito nova supra indicada, alertando-as para a eventualidade de vir a decisão a ser proferida no âmbito do indicado quadro normativo.
Procede, assim, nesta parte, a apelação, em consequência do que se encontra prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela apelante.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, declarar nula a decisão recorrida, determinando que os autos voltem ao Tribunal de 1.ª instância para que aí seja dado cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, in fine, do CPC, assegurando-se o contraditório mediante a prolação de despacho que alerte as partes para a eventualidade de vir a ser proferida decisão no âmbito do quadro normativo supra indicado e as convide a pronunciar-se quanto à aludida questão de direito.

Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Évora, 24-09-2020
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Cristina Dá Mesquita
(1.ª Adjunta)
José António Moita
(2.º Adjunto)