Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/14.7JAPTM.E2
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
MAUS TRATOS A MENORES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
I - A figura jurídica do “crime de trato sucessivo” não se aplica aos abusos sexuais de criança, pois os tipos de crime não preveem a “multiplicidade de actos semelhantes” nem exigem um “comportamento reiterado”.

II - Na lógica de previsão da norma incriminadora em causa, não está pensada uma proliferação de actos praticados ao longo do tempo e em períodos extensos, não está considerada a probabilidade-regra do desdobramento da conduta criminosa em actos repetidos sobre uma mesma vítima em ocasiões diversas e ao longo do tempo.

III - Diferentemente do que ocorre com os crimes de maus-tratos, lenocínio ou tráfico de estupefacientes, a multiplicidade de actos repetidos por um agente sobre uma vítima em ocasiões diversas e ao longo do tempo não se encontra ponderado no tipo de crime abuso sexual de criança, e as dificuldades de determinação do número de actos concretamente praticados por um agente tem de resolver-se primeiro ao nível da factualidade e só depois ao nível da aplicação do direito.

IV - Tendo sido possível concluir factualmente, em concreto, que o arguido praticou por quatro vezes (em quatro ocasiões distintas) factos que realizam plenamente o crime abuso sexual de crianças agravado dos art.s 171º nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, e por doze vezes (em doze ocasiões distintas) factos que realizam o crime de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, pode concluir-se também que decidiu actuar como actuou de cada uma das vezes em que o fez

V - E tendo actuado imbuído de uma nova intenção ao procurar a vítima quando (e sempre) que decidiu fazê-lo, inexiste uma resolução criminosa única que abarque a multiplicidade de agressões sexuais perpetradas ao longo de quinze meses. Inexistindo a unidade de resolução (que, para Eduardo Correia, seria critério determinante da definição da unidade de infracção) e não sendo também descortinável a unidade de sentido da ilicitude (mas sim tantos os sentidos quantos os concretos episódios que tiveram lugar, critério decisivo na doutrina de Figueiredo Dias) deve o arguido ser punido como autor de dezasseis crimes em concurso efectivo. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No processo comum colectivo nº 12/14.7JAPTM, da Comarca de Faro, foi proferido acórdão em que se decidiu condenar o arguido JF, como autor de: 13 crimes de abuso sexual de crianças agravado, dos art.s 171º nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, nas penas de 5 anos de prisão por cada um deles; de 52 crimes de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, nas penas de 5 anos de prisão por cada um de 51 crimes e 6 anos de prisão pelo crime descrito em 10. dos factos provados (cópula oral); 1 crime de maus tratos do art. 152º-A, no 1, al. a) do CP, na pena de 2 anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 18 anos de prisão.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1. Condenou o douto Tribunal “a quo” o arguido, ora, recorrente, pela prática de 13 (treze) crimes de abuso sexual de criança, agravados, p.p. pelas disposições dos artigos 171º nº 1 e 177º/1 alínea a) do Código Penal, pela prática de 52 (cinquenta e dois) crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p.p. pelas disposições dos artigos 172º nº 1 e 177º nº 1 alínea a) do Código Penal e pela prática de 1 (um) crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1 alínea a), na pena única de 18 (dezoito anos de prisão).

2. Impugnam-se os pontos 5., 7., 8., 9., 10., 15., 20., 21., 23., 24. da matéria de facto provada.

3. Nos mencionados pontos da decisão de facto vem referido que a vítima era filha do arguido, no entanto, e conforme resulta do assento de nascimento de fls. 260 a 261 dos autos, a filiação foi apenas estabelecida por sentença proferida em 09 de Janeiro de 2015, ou seja, muito posteriormente à data dos últimos contactos entre arguido e ofendida.

4. A circunstância de que, a colheita das amostras biológicas, terem dado entrada no Gabinete Médico Legal de Portimão em 11.10.2012 não constitui presunção de que aquele, ao se sujeitar a tal exame, já concebesse a possibilidade de ser pai de AM.

5. Impõe, assim, a referida prova documental modificação da decisão de facto proferida, devendo ser eliminado, em qualquer um desses pontos, toda e qualquer referência ao vínculo de filiação entre arguido e vítima.

6. Impugnam-se os Pontos 5., 6. e 8. da Matéria de Facto Provada, na medida em que deu o Tribunal a quo como assente que os contactos sexuais entre recorrente e a vítima tiveram o seu início em Setembro de 2012.

7. A ponderação das declarações da ofendida, tomadas para Memória Futura e gravadas de 09:54:11 a 10:46:19, conjugadas com o teor do Relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal a fls. 185 a 187 dos autos e do relatório Médico-legal junto a fls. 212 a 218 dos autos impunham, necessariamente, decisão diversa.

8. Devem, pois, tais pontos da Matéria de Facto serem modificados, deles constando que os contactos de cariz sexual entre o recorrente e vítima tiveram o seu início em data não concretamente apurada mas sempre a partir de Jan. de 2013.

9. Impugna-se o ponto 6. da Matéria de Facto Provada, uma vez que as declarações da ofendida, nos excertos que se deixaram transcritos, gravadas de 09:54:11 a 10:46:19, conjugadas com o Relatório Médico-legal de fls. 212 a 218 dos autos, impunha decisão de facto diversa, apenas permitindo estabelecer que os contactos sexuais entre a vítima e o arguido ocorreram em número de vezes não concretamente apuradas.

10. Impugnam-se os pontos 13., 14., 16., 20. e 21. da decisão da Matéria de Facto Provada, uma vez que a correcta ponderação das declarações da ofendida nos excertos que se deixaram transcritos e que se encontram gravadas de 09:54:11 a 10:46:19, conjugadas com o relatório da Perícia De Natureza Sexual em direito Penal de fls. 185 a 188 dos autos e com o relatório Médico-legal de fls. 212 a 219 dos autos, impunham decisão de facto diversa.

11. Assim, impõe-se a modificação do Ponto 20. dos factos provados, do qual deverá ser eliminado “bem sabendo que a mesma não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos nela praticados”.

12. Impõe-se a modificação do ponto 21. dos Factos Provados, retirando-se deste a parte em que se estabelece “estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação e ainda assim aproveitando-se da sua superioridade física, ascendência e autoridade que exercia sobre a mesma”.

13. Existe contradição da sentença entre os Pontos 13., 14., 16., 20. e 21. dos factos Provados e os Pontos 9., 11. e 12. dos factos Provados e alínea d) dos Factos não provados.

14. Face ao alegado no presente Recurso, mais concretamente no Capítulo IV, alínea a) da impugnação da matéria de facto provada, não poderá operar a agravante prevista no artigo 177º, n.º 1 alínea a) do Código Penal, seja para os crime de Abuso sexual de crianças, seja para os crimes de abuso sexual de menores dependentes.

15. Face ao que se deixou dito neste recurso, mais concretamente no Capitulo IV, Alínea b) da impugnação da decisão de facto, não foi produzida prova segura e credível de terem ocorrido quaisquer contactos sexuais entre arguido e vítima antes de Janeiro de 2013, data em que esta teria já completado a idade de 14 anos.

16. Assim, e por não se encontrarem preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no artigo 171º nº 1 do Código Penal deve o arguido ser absolvido de todos os crimes de abuso sexual de crianças pelos quais foi condenado.

17. Face ao que se deixou alegado no presente recurso, mais concretamente no Capítulo IV, Alínea d) da impugnação da decisão de facto proferida, temos que, não foi produzida qualquer prova de que a vítima estivesse confiada para educação ou assistência ao arguido, sendo ainda pertinente evidenciar o que provado não ficou na alínea d) dos factos não provados.

18. A circunstância de a vítima residir conjuntamente com o arguido, não constitui presunção de que aquela estivesse confiada para educação e assistência deste.

19. Assim, e por não preenchimento dos elementos do tipo de ilícito previsto no artigo 172 nº 1 do Código Penal, deve o arguido ser absolvido dos crimes de abuso sexual de menor dependente pelos quais foi condenado.

20. Não se provou que a ofendida estivesse ao cuidado do arguido, à sua guarda, sob a sua responsabilidade e educação, pelo que, e por não preenchimento dos elementos do tipo previsto no artigo 152º -A, nº 1 alínea a) do C.P, deve o arguido ser absolvido do crime de maus tratos pelo qual foi condenado.

21. Caso o supra exposto não seja atendido, o que apenas se concede a título de cautela de patrocínio, deveria o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de trato sucessivo, fazendo-se a respectiva punição pelo ilícito mais grave.

22. Caso assim não se entenda, mais se dirá que, atendendo ao acervo de factos provados e à prova carreada para os autos, deverá, à cautela de patrocínio considerar-se que os contactos sexuais entre a vítima e o arguido tiveram o seu início em data não apurada de Janeiro de 2013, findando em data não apurada, mas sempre antes do dia 23 de Dezembro de 2013, estabelecendo-se uma média nunca superior a um contacto sexual por cada mês.

23. Quanto à pena concreta a determinar, considerando a moldura penal abstracta respectiva, o facto do arguido não registar antecedentes criminais e as suas circunstâncias de vida, nomeadamente as estabelecidas no ponto 29. dos factos provados, deveria o arguido ter sido condenado em pena que se situasse perto do limite mínimo da moldura penal.

24. Ao assim não decidir, não fez o Tribunal a quo, com o devido respeito, a aplicação do disposto nos artigos 71º, 72º e 50º do Código Penal. Por todo o exposto, e pelo mais que Vªs. Exas, doutamente, suprirão, deverá ser revogado o acórdão recorrido e em sua substituição proferir-se outro que decida nos moldes reclamados nas conclusões do presente recurso.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt,Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

3- São assim, as conclusões quem fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- Não contém a douta decisão impugnada qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que a inquine.

5- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.

6- O arguido não tem antecedentes criminais.

7- O Tribunal “a quo” baseou a sua decisão na prova produzida e analisada em audiência de julgamento, e, também nas regras da experiência, aliás como o impõe o art.127º, do Código de Processo Penal.

8- As provas foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu conjunto e não foram violados quaisquer dispositivos legais, porém teve o Tribunal uma leitura distinta do recorrente, mas que se baseia numa análise global e sensata da prova.

9- No que concerne ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que o arguido invoca, sabe-se que este “ se refere à insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a solução de direito e não à insuficiência da prova produzida e examinada em audiência para alicerçar a decisão sobre a matéria de facto proferida, tendo de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.

10- Não ocorreram nos autos quaisquer elementos que tivessem de ser indagados e não foram, necessários para se formular um juízo de condenação ou absolvição dos arguidos e não se vislumbra no Douto Acórdão o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sendo perfeitamente legal, sensato, adequado e comum, atribuir-se mais credibilidade a uns depoimentos que a outros, tudo dependendo das circunstâncias em que eles são prestados, como são prestados e como são avaliados, embora se compreenda que os recorrentes possam ter opiniões distintas.

11- Ao contrário do que afirma o recorrente, analisado o Douto Acórdão recorrido de um modo lógico, afigura-se-nos que não contém qualquer contradição entre os factos provados, não é insuficiente, nem deveria ter uma decisão distinta.

12- No que respeita ao "erro notório na apreciação da prova”, também invocado pelo recorrente, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias”. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova. E, não se confunda este alegado vício com a discordância acerca da forma como o tribunal fixou a matéria de facto pois, no campo da apreciação das provas, é livre a forma como o Tribunal forma a sua convicção.

13- O Tribunal “a quo” fez um exame crítico da prova, explicando de modo detalhado as provas que considerou, como e porquê as valorou, não procedendo os argumentos do recorrente.

14- Não tinha o Tribunal “a quo” de aplicar o princípio do “in dubio pro reo”, uma vez que não se suscitaram dúvidas fundadas, sérias, relevantes, no que concerne à prática pelo arguido dos factos dados como provados. Sabe-se que o aludido princípio se situa ao nível da apreciação da prova e valoração da matéria de facto e é corolário do princípio da presunção da inocência e só a dúvida sobre a realidade de um facto é que deve ser decidida a favor do arguido.

15- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo, em www.dgsi.pt, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-3-2009”.

16- Não teve o Tribunal “a quo” dúvidas sobre a ocorrência dos factos dados como provados, e por isso não tinha de ser aplicado o princípio do “in dubio pro reo”.

17- O arguido questiona a medida da pena: diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.

18- Sopesado o Douto Acórdão extrai-se que foram ponderadas todas as circunstâncias que pesavam a favor e contra o arguido e que o Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida da pena aplicada ao arguido todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º e 71º do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena única de 18 anos de prisão, em sintonia com a culpa do arguido.

19- Deve o Douto Acórdão recorrido manter-se na íntegra.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto, em desenvolvido parecer, pronunciou-se no sentido da absolvição, por considerar, agora em síntese, que a matéria de facto provada não se encontra “fundamentada em elementos de prova que afastem dúvidas legítimas essenciais sobre a sua veracidade”. O recorrente respondeu ao parecer, dizendo acompanhar a posição expressa.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. Em Fevereiro de 1998, o Arguido manteve um relacionamento amoroso com AF, à data com 14 anos, da qual nasceu, em 23.12.1998, AM.

2. Anos depois, o Arguido reaproximou-se de AF e, em data não concretamente apurada de 2011, passaram a viver juntos, como se de marido e mulher se tratassem, no Bairro Municipal de Porches…, Lagoa, passando assim a integrar o agregado familiar da menor AM, até ao dia 24.01.2014, data em que o casal de separou.

3. Desse segundo período de relacionamento, em 29.03.2012, nasceu outro filho, T.

4. Desde o início do ano lectivo de 2012, que ocorreu entre 10 e 14 de Setembro, que AM não tinha aulas nas quartas-feiras à tarde, pelo que o Arguido, que estava desempregado, a ia buscar à escola.

5. Numa quarta-feira à tarde, em data não concretamente apurada mas ocorrida na segunda quinzena de Setembro de 2012, tinha AM 13 anos de idade, o Arguido, aproveitando-se do facto de estar sozinho em casa com a filha, chamou-a ao quarto que partilhava com a companheira, despiu-se, despiu a filha, deitou-a de costas na cama e começou a beijá-la e apalpá-la mas mamas e vagina e, com o pénis erecto, roçou-o na vagina da filha para a frente e para trás, sem o introduzir no seu interior, até ejacular para cima da barriga desta.

6. A partir desse dia até finais Dezembro de 2013, em número de vezes não concretamente apuradas, mas que aconteceram quase semanalmente, por vezes mais do que uma vez por semana, em regra às quartas-feiras à tarde, o Arguido, aproveitando o facto de a companheira não estar em casa, chamava AM para o quarto do casal, tirava-lhe a roupa, deitava-a na cama, beijava e apalpava-lhe as mamas, lambia-lhe a vagina e roçava o seu pénis ereto, para a frente e para trás na vagina e ânus da menor, sem, contudo, o introduzir no seu interior, até ejacular em cima barriga ou costas da mesma.

7. O que chegou a acontecer na presença do filho T.

8. Designadamente, durante a noite, em datas não concretamente apuradas, entre Setembro de 2012 e Dezembro de 2013, o Arguido, aproveitando-se do facto da companheira estar a dormir, entrou no quarto da filha, deitou-se na cama dela, despiu-a, apalpou-lhe e beijou-lhe as mamas, lambeu-lhe a vagina, roçando o seu pénis erecto na vagina e ânus, sem o introduzir no seu interior, até ejacular para a barriga ou costas da mesma, o que aconteceu em 3 ocasiões.

9. De igual modo o Arguido tentava introduzir o pénis erecto na vagina e no ânus da sua filha AM, dizendo que queria que a mesma perdesse a virgindade com ele, que não lhe iria doer e que iria gostar, o que esta recusou.

10. Numa ocasião, em data não concretamente apurada de Setembro de 2013, o Arguido colocou o pénis erecto dentro da boca de AM e, com a mão, empurrou-lhe a cabeça para baixo e para cima, friccionando assim o pénis até ejacular para fora da boca da filha.

11. Sempre que o Arguido agia da forma descrita em 5. a 10., a menor dizia que não queria, pedindo-lhe que o fizesse com a mãe ou com outras pessoas, ao que o Arguido lhe respondia que se gostava dele tinha de o fazer, bem como lhe prometia que seria a última vez.

12. De igual modo, do Arguido justificava a sua conduta com o facto da companheira, mãe da AM, se recusar a manter consigo relações sexuais.

13. O Arguido, sempre que AM o recusava e obstava aos seus intentos, mostrava-se aborrecido e brigava com ela e com a mãe.

14. Quando a menor dizia que ia contar à mãe o Arguido dizia-lhe em tom sério “experimenta contar à mãe, vais ver o que te acontece”, causando-lhe medo, conseguindo assim evitar que a mesma contasse o que ele lhe fazia.

15. Em data não concretamente apurada de Dezembro de 2013, durante a noite e enquanto AM dormia, o Arguido entrou no quarto da mesma, baixou os boxer que trazia vestidos até ao joelho, baixou as calças do pijama e cuecas da filha até ao joelho e roçou o pénis erecto no ânus daquela, que entretanto acordou e o empurrou.

16. Uma vez que desde finais Dezembro de 2013 que AM passou a recusar e obstar os contactos sexuais do Arguido com maior intensidade, logrando evitar os mesmos, este começou a ralhar com a mesma com mais frequência.

17. No dia 23.01.2014, em hora não concretamente apurada, quando se encontravam em casa, o Arguido desferiu chapadas na cara da menor.

18. Também no dia 24.01.2014, em hora não concretamente apurada, no interior do quarto da AM, o Arguido desferiu-lhe pontapés e socos pelo corpo, encostou-a à secretária e deu-lhe chapadas na face, o que fez diante do filho T que, assustado, começou a chorar.

19. Como consequência directa e necessária dos pontapés, murros e chapadas que o Arguido lhe desferiu, AM sofreu dores e escoriação periorbital esquerda e no nariz, o que lhe determinou 5 dias de doença, sem afectação da capacidade escolar.

20. Ao agir da forma descrita, o Arguido quis e representou praticar actos sexuais de relevo com AM, sua filha, entre os 13 e 14 anos de idade daquela, com o propósito conseguido de satisfazer a sua lascívia, bem sabendo que mesma não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos nela praticados.

21. Sabia o Arguido que a menor, enquanto sua filha, estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação, e ainda assim, aproveitando-se da sua superioridade física, ascendência e autoridade que exercia sobre a mesma, quis e representou, mediante os actos sexuais de relevo que praticou nela, obter prazer sexual, o que conseguiu, ciente da incapacidade de AM para se lhe opor.

22. Sabia o Arguido que os factos que praticou com a menor, cuja idade conhecia, prejudicavam um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela e bem assim afectavam a sua autodeterminação sexual, o que não o demoveu da sua conduta.

23. De igual modo, o Arguido ao dirigir-se à filha nos sobreditos termos e ao desferir-lhe socos, pontapés, murros e chapadas, agiu com o propósito conseguido de a maltratar, subjugando-a à sua vontade, o que fez no interior da casa de morada de família e diante do filho menor de idade, bem sabendo que a mesma era menor e estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação.

24. Ao agir como agiu, o Arguido quis e representou exercer violência sobre o corpo da filha, ofendendo-a na sua saúde, bem como atingi-la na sua honra, consideração e dignidade como pessoa, humilhando-a, causando-lhe medo e inquietação e dessa forma provocar-lhe sofrimento físico e psicológico, o que conseguiu.

25. O Arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade de se motivar e determinar de acordo com esse conhecimento.

26. AA desde que se separou da última companheira, coincidentemente com a data da acusação em apreço, há dois anos atrás, tem vivido basicamente sozinho, à excepção de alguns períodos, como o presente em que tem consigo um irmão, de 51 anos, com problemas de saúde mental e alcoolismo. Aparentemente é um indivíduo com recursos para uma vida auto-suficiente, assegurando razoáveis condições pela via do trabalho, ainda que se releve uma situação de emprego instável, ligado à prestação de serviços diversos de construção civil, por conta própria. No presente vive num apartamento arrendado na Urbª Quinta das Oliveiras… Portimão.

27. Nos dois anos anteriores à data da acusação manteve vida em comum com AF. Com uma diferença de idades de 14 anos, o casal havia tido um curto período de relacionamentos íntimos na adolescência de AF, sem significativo envolvimento afectivo, do qual resultou a gravidez e nascimento da menor AM, sem que disso o Arguido tivesse tido informação na altura, porque se afastaram. Sequer esta jovem teve conhecimento desta realidade, tendo evoluído com a identificação de outro pai, até ao ressurgimento de AA nesta dinâmica relacional e esclarecimento oficial da ascendência biológica. O casal constituiu família na casa onde AF já vivia com a filha, no Bº Municipal de Porches, vindo nesta altura a ocorrer o nascimento de mais um filho, T, actualmente com 3 anos de idade.

28. Depois da separação, o Arguido vê-se impedido de se relacionar com os filhos, mesmo o T, ao qual apenas cumpre o dever de alimentos, contactando apenas esporadicamente via telefone. Está ainda por regular o regime da participação educativa, além da contribuição pecuniária, dependendo do desfecho do presente processo.

29. AA provém de uma família numerosa, de fracas condições sócio-económicas, agravadas por um mau ambiente afectivo, atribuído à violência conjugal e alcoolismo por parte do pai, obrigando à separação do casal progenitor. Embora nascido na região de Lisboa, com poucos anos regressou com a mãe e os irmãos para a ilha da Madeira, donde eram oriundos. Faz menção a uma vida sacrificada e experiências de vitimização, com o sentimento de ter passado uma infância infeliz. Refere que se viu obrigado a uma precoce autonomização e entrada no mundo do trabalho e dos adultos, sem ter prosseguido a escola além do 6º ano. Foi mantendo actividade laboral basicamente ligada à construção civil. Há vários anos trabalha por conta própria na prestação de obras de remodelação/ manutenção a particulares.

30. Da vida afectiva-relacional há menção a múltiplas experiências de namoro/vida marital, quase sempre com um envolvimento pobre e o sentimento de ser enganado ou não ser devidamente reconhecido. Fruto da primeira relação foi pai de um filho, que conta agora 22 anos e que não foi criado consigo. Teve outras relações com mulheres que já tinham filhos, que não eram seus. Só voltou a ter a própria descendência com os dois filhos nascidos da relação com AF.

31. A ligação com a vítima identificada, até se ter reaproximado da mãe desta, volvidos 13 anos, era nula.

32. Da vida quotidiana familiar, designadamente por parte da companheira, AF, não resultavam sinais de preocupação e aparentemente não se alteraria a situação, não fora a detecção por parte de elementos externos de possíveis factos a fundamentar o presente processo. Em todo o caso, percepcionava-se uma relação pobre, com fraco conhecimento mútuo do casal e falta de intimidade, para além de uma notória falta de satisfação ao nível sexual, aceite e não desencadeadora de conflitos de maior.

33. Tem sido grande o impacto da acusação na sua vida, principalmente por ter sido determinante da separação e sobretudo impeditivo de uma normal relação com o filho mais novo. Face à vítima identificada, revela dificuldades em avaliar o dano na mesma, de quem apresenta uma visão pouco realista.

34. Já numa fase relativamente tardia da sua vida, com início de há 10 anos a esta parte, veio a manifestar tendência aditivas de abuso de cocaína, com períodos de abstinência e recurso a terapia especializada junto do DICAD. Refere que durante o tempo de vida em comum com AF não consumiu, mas depois da última separação e acusação tem tido recaída.

35. O Arguido apresenta um pensamento auto-centrado e atitudes apelativas, imaturidade/ isolamento relacional, fraca vinculação nas relações sociais em geral, baixo sentido empático, em particular para com a vítima identificada e baixa resistência à frustração.

36. Do seu Certificado de Registo Criminal nada consta.”

Foram considerados como não provados os factos seguintes:

“a) Nas circunstâncias referidas em 6. o Arguido mandava a filha tocar-lhe com as mãos no pénis.

b) O Arguido tentava ainda meter os dedos dentro da vagina da menor, o que esta recusou.

c)Nas circunstâncias referidas em 16. o Arguido chamava a menor AM de monstro, bem como lhe dava chapadas na cara.

d) Nas circunstâncias referidas em 23., o Arguido sabia que AM era particularmente indefesa em razão da idade e que estava na sua dependência económica.”

A motivação da matéria de facto foi a que segue:

“A convicção do Tribunal quanto à matéria dada como provada assenta no conjunto de prova produzida, apreciada criticamente e com recurso às regras da experiência comum.

Assim e tendo o Arguido, no uso do direito que lhe cabe, recusado a prestar declarações, foi determinante o depoimento da menor AM (ouvida em declarações para memória futura), que, depondo de forma sincera, relatou as circunstâncias e os factos praticados pelo Arguido.

Designadamente, AM refere nunca ter havido penetração, descrevendo as situações em que o Arguido roçava o seu pénis na sua vagina e ânus, apalpava-lhe os seios, lambia-lhe a vagina e como tentava convencê-la a perder a virgindade consigo. Embora não consiga precisar as datas e o número de vezes em que tal terá ocorrido (o que é natural, atendendo à idade que tinha à data dos factos, ao número de vezes em que os mesmos se verificaram, o tempo entretanto já decorrido desde o seu início e o bloqueio decorrente da vergonha e embaraço que situações como as de que foi vítima provocam), AM esclarece que os factos em apreço verificavam-se uma ou duas vezes por semana, podendo haver semanas em que nada acontecia. Afirma ainda, de forma peremptória, que o episódio em que o Arguido introduziu o seu pénis erecto dentro da sua boca, empurrando-lhe a cabeça para baixo e para cima até ejacular para fora, ocorreu em Setembro de 2013, explicando os motivos porque se recorda de tal data.

E se dúvidas subsistissem sobre a credibilidade desta menor, as mesmas seriam arredadas pela Avaliação Psicológica realizada e cujo relatório consta de fls. 212 e ss.

AF, mãe de AM, limitando-se a descrever os factos de que tem conhecimento directo e revelando-se credível, confirma o modo como veio a ter conhecimento dos factos e o estado de perturbação em que aquela menor se encontrava.

Por seu turno, C, psicóloga na escola frequentada pela menor, explicou como abordou AM devido à agressão de que havia sido vítima e como, com o desenrolar da conversa e com muita dificuldade e vergonha, esta acabou por lhe relatar os abusos sexuais.

De resto e não obstante apenas em 09.01.2015 ter sido proferida sentença que declarou que o Arguido é pai de AM (fls. 260/261), o Relatório de Perícia de Investigação Biológica de Paternidade que conclui por uma “paternidade praticamente provada”, data de 03.01.2013 (vide fls. 162 a 165).

Sendo certo que a circunstância da filiação ter sido juridicamente reconhecida após a data dos factos em causa não significa necessariamente que o Arguido desconhecesse que AM era sua filha antes do respectivo registo, resulta do referido Relatório de Perícia que a colheita das amostras biológicas (nomeadamente, do Arguido) foram recebidas no Gabinete Médico Legal de Portimão em 11.10.2012. Isto é, foram seguramente colhidas em data anterior, o que é bastante demonstrativo que, ao se sujeitar a tal exame, o Arguido já concebia, pelo menos, a possibilidade de ser pai de AM.

Temos, pois, como certo que, ao praticar os factos dados como provados em 5. a 18. o Arguido sabia, ou pelo menos representava, que o fazia sobre a sua filha.

Deste modo, da conjugação da prova supra referida, com o Relatório de Avaliação Psicológica, os elementos clínicos de fls. 46 a 50, cópia da sentença proferida na Acção de Impugnação e Reconhecimento de Paternidade de fls. 169 a 171, o Relatório de Perícia de fls. 185 a 187, as certidões dos Assentos de Nascimento de fls. 206/207 e 260/261, bem como com as regras da normalidade da vida, não subsistem a este Tribunal Colectivo quaisquer dúvidas quanto aos factos que se dão como provados em 1. a 25..

Os factos relativos à situação pessoal do Arguido assentaram no Relatório Social junto aos autos.

O Tribunal atentou, por fim, nos demais documentos juntos aos autos, designadamente, a informação da CPCJ de fls. 46 e 47, a cópia do Relatório de Perícia de fls. 161 a 165, a informação sobre o calendário escolar de fls. 229 e o Certificado de Registo Criminal do Arguido.

Quanto aos factos dados como não provados, não se logrou fazer qualquer prova ou prova suficiente quanto à sua verificação.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam (a) à impugnação da matéria de facto, (b) ao erro de subsunção e (c) à medida da pena.

3. a. Da impugnação da matéria de facto
Começa o recorrente por impugnar a matéria de facto.

Insurge-se contra a decisão de facto na parte referente ao conhecimento, por parte do arguido, do parentesco que o unia à ofendida; na parte referente à data de início dos contactos sexuais com a menor; na parte referente ao número de vezes em que os contactos sexuais terão tido lugar; na parte relativa à ausência de capacidade da menor para querer e entender o significado dos actos, e à circunstância de se encontrar entregue aos cuidados, protecção e educação do arguido que se aproveitou da superioridade física, ascendência e autoridade sobre aquela.

Invoca ainda uma contradição entre os pontos 9., 11., e 12., 13., 14., 16., 20. e 21. de factos provados e a alínea d) de factos não provados.

Consigna-se que do contraditório do recurso nada de útil resulta para a decisão, pois o Ministério Público absteve-se de responder materialmente ao recurso. Nada concretizou na resposta relativamente a nenhum dos pontos de facto trazidos à sindicância da Relação, limitando-se a tecer considerações absolutamente gerais e abstractas sobre vícios do art. 410º, nº 2 do CPP.

As considerações que desenvolve são aplicáveis a qualquer caso e a qualquer processo, mas não ao presente, já que o recorrente impugnou a matéria de facto, não através da arguição de vícios de texto, mas pela via ampla prevista no art. 412º, nºs 3 a 6, do CPP.

A consignação desta particularidade no exercício do contraditório – exercício de um contraditório formal, com omissão de um exercício material, que seria o único com utilidade para o recurso – justifica-se como explicação da ausência de referências à resposta do Ministério Público, no presente acórdão da Relação.

Já a posição expressa pelo Senhor Procurador-geral Adjunto no parecer será objecto de apreciação em nota final (em 3.a. d).

No questionamento da factualidade, o recorrente procede à impugnação da matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, ou seja, por via do recurso amplo.

Individualiza os pontos de facto que considera incorrectamente julgados - e que são os pontos constantes dos factos provados do acórdão nos números 5., 6., 7., 8., 9., 10., 13., 14., 15., 16., 20., 21., 23., e 24. – e procede à indicação das provas em que funda a impugnação, fazendo referência à prova gravada que transcreve nas partes que mais interessam ao recurso (os excertos das declarações da ofendida).

Sendo de considerar cumpridos os ónus legais de especificação na impugnação da matéria de facto, procedeu a Relação não só à análise dos excertos de prova transcritos no recurso, como também à audição integral das declarações da ofendida, o que fez ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 6 do CPP, dada a relevância que estas assumiram na formação da convicção do colectivo de juízes e na decisão

Tendo-se, depois, procedido à sindicância do “acórdão de facto” (consistente nos factos provados, factos não provados e exame crítico das provas) no confronto das razões da discordância do recorrente sustentadas nas concretas provas que suportaram a sua argumentação, adianta-se ser de concluir que a justificação da convicção do colectivo de juízes, permanece compreensível e suficientemente justificada relativamente a todos os pontos mencionados, à excepção de um deles, pelas razões que se exporão em 3.a.b..

3.a. a. Do conhecimento do laço de parentesco por parte do arguido

O acórdão recorrido foi proferido na sequência de uma decisão anterior desta Relação, que anulara o anterior acórdão de 1ª instância com base numa insuficiência de fundamentação da matéria de facto, que então se considerou existir. Essa insuficiência situou-se na ausência de explicação do ponto de facto que agora se analisa, por ser de novo impugnado. O arguido renova os argumentos expostos no primeiro recurso que interpôs, desenvolvendo:

“Em todos os identificados pontos da matéria de facto provada é feita referência à ofendida AM como sendo filha, à data dos factos, do arguido, aqui recorrente.

Consta de fls. 260 a 261 dos autos o assento de nascimento nº 4340, do ano de 2007 de AM, no qual, no que respeita ao estabelecimento da filiação, encontra-se averbado, como pai, BC.

Em tal assento foi, em 06-06-2014, feito um averbamento nos seguintes termos “Por sentença de 27 de Março de 2014, transitada em 22 de Maio de 2014, proferida pelo Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, no 2º Juízo, foi declarado que a registada não é filha de BC. Altera o nome para AM…, por efeito de impugnação da paternidade. – doc. 1969, maço nº 2, ano 2014” – ex vi fls. 260-261 dos autos.

Em 26-01-2015, foi exarado no mencionado assento de nascimento, o averbamento nº 2 do qual consta que “O pai é AA, de 44 anos de idade, solteiro, natural da freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, filho de…, residente no Bairro Municipal de Porches, Porches…, nos termos da sentença de 09 de Janeiro de 2015, proferida pela Comarca de Faro- Ministério Público de Portimão – Procuradoria Instância Central de Família e Menores – Doc. ---, Maço n. 2, ano de 2015 da Conservatória do Registo Civil de Lisboa” - ex vi fls. 260-261 dos autos.

Da análise de tal documento resulta, assim, que o estabelecimento da filiação entre o arguido e a ofendida ocorreu muito posteriormente à data da prática do último dos factos imputados ao arguido.

Face ao sobredito, não poderia o tribunal a quo se referir a tal vínculo de filiação como estando estabelecido à data dos factos retratados nos autos.

A este respeito, no douto acórdão recorrido refere o Tribunal a quo que “ De resto e não obstante apenas em 09.01.2015 ter sido proferido sentença que declarou que o arguido é pai de AM (fls. 260/261), o Relatório de Perícia de Investigação Biológica de Paternidade, que conclui por uma “ paternidade praticamente provada”, data de 03.01.2013 (vide fls. 162 a 165).

Sendo certo que a circunstância da filiação ter sido juridicamente reconhecida após a data dos factos em causa não significa necessariamente que o Arguido desconhecesse que AM era sua filha antes do respectivo registo, resulta do referido Relatório de Perícia que a colheita das amostras biológicas (nomeadamente do Arguido) foram recebidas no Gabinete Médico Legal de Portimão em 11.10.2012. Isto é, forma seguramente colhidas em data anterior, o que é bastante demonstrativo que, ao se sujeitar a tal exame, o arguido já concebia, pelo menos, a possibilidade de ser pai de AM.

Temos, pois, como certo que, ao praticar os factos dados como provados em 5. a 18. o arguido sabia, ou pelo menos representava, que o fazia sobre a sua filha “.

Ora, entende o recorrente que, o facto da colheita das amostras biológicas, terem dado entrada no Gabinete Médico Legal de Portimão em 11.10.2012 (e que terão sido recolhidas em data anterior), não constitui presunção de que, ao se sujeitar a tal exame, já concebesse a possibilidade de ser pai de AM, nem tal se encontra provado nos autos.

Mais se diga que, pese embora o Relatório de Perícia de Investigação Biológica de Paternidade (que conclui por uma “paternidade praticamente provada”), date de 03.01.2013, desconhece-se em que data o arguido tomou conhecimento do conteúdo de tal Relatório.

Temos, pois, que tais elementos probatórios, conjugados com o princípio in dúbio pro reo impunham, ao invés, que nos pontos de facto ora em apreço se considerasse não assente o vínculo de filiação entre o arguido e AM.

Pelo exposto, e salvo o devido respeito, a análise atenta e ponderada do assento de nascimento da menor (que de resto consubstancia um dos elementos probatórios relevados pelo tribunal a quo), bem como do Relatório de Perícia de Investigação Biológica de Paternidade impunham decisão de facto diversa, impondo tais documentos a modificação de tal decisão, qual seja, a eliminação, em todos os referidos pontos da matéria de facto e quaisquer outros onde tal ocorra, do vínculo de filiação entre o arguido e a ofendida.”

Disse-se no anterior acórdão desta Relação, e reitera-se aqui pois inexiste razão para entender diferentemente, que o ponto de facto que ora se analisa é juridicamente relevante, uma vez que o arguido está condenado como autor dos tipos de crime na forma agravada prevista no art. 177º, nº 1, al. a), do CP, ou seja, na qualidade de agente pai da vítima.

Para se poder concluir pela punição do agente pelo tipo qualificado, os factos que realizam a circunstância qualificativa especial têm de resultar provados, tanto na vertente objectiva, como subjectiva.Ou seja, a vítima tem de ser descendente do arguido e este tem de saber que assim acontece, pois o dolo exige sempre o “querer” e o “saber”, de todos os elementos típicos objectivos.

Nos factos provados do acórdão refere-se que a menor é filha do arguido. Mas dos factos provados retira-se também que o tribunal considerou demonstrado que o arguido “representou” que a ofendida era sua filha (“representou praticar actos sexuais de relevo com AM, sua filha”)

Para haver punição pela forma agravada do(s) crime(s) necessário se torna, não apenas a comprovação duma relação de filiação, mas a comprovação do conhecimento dessa relação por parte do agente do crime, no momento em que actua sobre a vítima. Assim o exigem os tipos dolosos em apreciação.

É certo que a vítima é filha do arguido, e sendo-o, é-o desde sempre. Mas das particularidades do caso em apreciação não decorre que a certeza se estenda necessariamente ao conhecimento do facto por parte do arguido.

A circunstância de a filiação ter sido juridicamente estabelecida já após a data da prática de todos os factos delituosos não impede o preenchimento da qualificativa em causa. Pois sendo a ofendida filha do arguido, não resultaria impossível que o arguido já o soubesse aquando da prática dos factos, e independentemente da verdade registal.

Ou seja, ambas as hipóteses se apresentariam, à partida, como possíveis.

Atento os precisos contornos da hipótese em apreciação, impunha-se, por isso, a explicação acrescida, no exame crítico da prova, da demonstração dos factos do dolo do tipo qualificado, dados como provados. Essa explicação não se encontrava na motivação da matéria de facto do primeiro acórdão proferido em 1ª instância, que em momento algum se lhe referia não explicando como concluíra o tribunal que o arguido sabia que a ofendida era sua filha quando praticou os factos. Explicação que tinha (e tem) de ser dada, atendendo a que ao tempo do delito a paternidade registada era diversa, e atendendo ainda a outros factos dados como provados. Como sejam os seguintes: “Nos dois anos anteriores à data da acusação o arguido manteve vida em comum com AF. Com uma diferença de idades de 14 anos, o casal havia tido um curto período de relacionamentos íntimos na adolescência de AF, sem significativo envolvimento afectivo, do qual resultou a gravidez e nascimento da menor AM, sem que disso o Arguido tivesse tido informação na altura, porque se afastaram. Sequer esta jovem teve conhecimento desta realidade, tendo evoluído com a identificação de outro pai, até ao ressurgimento de AA nesta dinâmica relacional e esclarecimento oficial da ascendência biológica. O casal constituiu família na casa onde AF já vivia com a filha, no Bº Municipal de Porches, vindo nesta altura a ocorrer o nascimento de mais um filho, T, actualmente com 3 anos de idade.”

O arguido teve, pois, um curto relacionamento com a mãe da vítima, desse relacionamento nasceu depois uma filha que cresceu e evoluiu identificada com outro pai sem que o arguido soubesse da existência dela. Ficou também provado que “a ligação com a vítima era nula até se ter reaproximado da mãe desta, volvidos 13 anos.”

Na matéria de facto provada do acórdão, nos factos do tipo subjectivo referentes à qualificativa em causa, pode ler-se:Ao agir da forma descrita, o Arguido quis e representou praticar actos sexuais de relevo com AM, sua filha…”, “Sabia o Arguido que a menor, enquanto sua filha…”, “Ao agir como agiu, o Arguido quis e representou exercer violência sobre o corpo da filha…”.

Retirando-se da prova documental especificada pelo recorrente, e dos próprios excertos da matéria de facto já reproduzidos, que à data dos factos a filiação da menor se encontrava estabelecida com outra pessoa, com quem a menor se identificava até como filha, o tribunal tem de explicar, no exame crítico de provas, como chegou à demonstração dos factos do dolo respeitante à circunstância qualificativa.

Nenhuma justificação se descortinava na motivação da matéria de facto do primeiro acórdão de 1ª instância, aquela decisão era absolutamente omissa quanto à explicação do facto provado em crise. E já em sede de enquadramento jurídico dos factos provados dizia-se depois que “o arguido é pai da vítima e, como tal, a circunstância qualificativa opera”. Esta afirmação, pelas razões que se avançaram, não estava então correcta, por inacabada.

Mas o tribunal colectivo completou agora a motivação da sua decisão de facto, fazendo-o de modo integral relativamente ao ponto em apreciação.

A convicção encontra-se agora explicitada de forma suficientemente objectivada e perceptível no que respeita à prova do facto do dolo referente à qualificativa em apreciação.

Ou seja, da prova produzida e do exame crítico da prova plasmado no acórdão resulta poder (e, logo, dever) considerar-se como suficientemente demonstrado em julgamento que o arguido, pelo menos, não podia ter deixado de prever a possibilidade da vítima ser sua filha e, mesmo assim, actuou conformando-se com essa possibilidade. E a justificação desta conclusão, a enunciar como “representação com conformação”, encontra-se agora bem patente no acórdão, onde se pode agora ler:

De resto e não obstante apenas 09.01.2015 ter sido proferida sentença que declarou que o Arguido é pai de AM (fls. 260/261), o Relatório de Perícia de Investigação Biológica de Paternidade que conclui por uma “paternidade praticamente provada”, data de 03.01.2013 (vide fls. 162 a 165).

Sendo certo que a circunstância da filiação ter sido juridicamente reconhecida após a data dos factos em causa não significa necessariamente que o Arguido desconhecesse que AM era sua filha antes do respectivo registo, resulta do referido Relatório de Perícia que a colheita das amostras biológicas (nomeadamente, do Arguido) foram recebidas no Gabinete Médico Legal de Portimão em 11.10.2012. Isto é, foram seguramente colhidas em data anterior, o que é bastante demonstrativo que, ao se sujeitar a tal exame, o Arguido já concebia, pelo menos, a possibilidade de ser pai de AM.

Temos, pois, como certo que, ao praticar os factos dados como provados em 5. a 18. o Arguido sabia, ou pelo menos representava, que o fazia sobre a sua filha.”

Como se concretiza no acórdão, tendo a colheita de amostras biológicas tido lugar em data anterior a 11.10.2012, a partir desta data o arguido não podia deixar de representar a possibilidade de ser o pai da menor. É, pois, de considerar como suficientemente demonstrado que, ao praticar os factos dados como provados em 5. a 18., o arguido representou essa possibilidade (representou que agia sobre a pessoa da sua filha), conformando-se com ela.

Também da prova por declarações da menor (a cuja audição se procedeu na Relação, como se disse) resulta o reforço da demonstração dos factos do dolo. Assim se constata, por exemplo, na passagem em que a menor, referindo-se ao arguido, menciona que este “ficava chateado quando eu ia para o B (BC) pois ele (arguido) sabia que era o meu pai”.

3.a. b. Da data do início e do número de vezes em que os contactos sexuais tiveram lugar

O recorrente defende que os elementos probatórios, conjugados com o princípio do in dubio pro reo, impunham que se considerasse assente que os contactos sexuais do recorrente sobre a pessoa da vítima tiveram o seu início em data concreta não apurada mas sempre a partir de Janeiro de 2013.

Considera não ter sido produzida prova segura de terem ocorrido quaisquer contactos sexuais entre o arguido e a vítima antes de Janeiro de 2013, data em que esta já completara os catorze anos de idade.

Defende, por último, não poder estabelecer-se uma média superior a um contacto sexual por mês, contactos iniciados em Janeiro de 2013 e finalizados antes do dia 23 de Dezembro de 2013.

Do acórdão e das provas produzidas em julgamento - das especificadas e das restantes também avaliadas pelo colectivo de juízes - transparece a dificuldade de concretização e localização dos factos no tempo.

Dada a frequência com que sobrevém, esta complexidade na concretização de factualidade juridicamente tão relevante, como a agora impugnada, é de aceitar como natural em processos que têm por objecto crimes com vítimas crianças, vítimas de menor idade, e cujas declarações constituem também um meio de prova muito importante.

A ausência de resposta precisa a perguntas como “quando” ocorreram os factos e “quantas vezes” actuou o agente do crime, repercute-se na definição da factualidade, na determinação do número de vezes em que os factos ocorrem e, depois, na decisão sobre a unidade e pluralidade de facto e sobre a unidade e pluralidade de infracção.

No caso presente, e à semelhança do que sucede em muitos processos relativos a crimes que ocorrem na maior intimidade e privacidade, as declarações da ofendida (prestadas aqui para memória futura, como a lei determina – art. 271º, nº 2 do CPP) assumiram um importante papel no contexto da prova e do julgamento da matéria de facto.

A audição a que se procedeu na Relação permitiu constatar que os factos provados encontram uma correspondência quase total (mais precisamente uma correspondência total à excepção do ponto que se particularizará) com as declarações da menor vítima, e que estas se mostram prestadas de uma forma a não suscitar reserva quanto à credibilidade que o tribunal de julgamento lhes atribuiu.

Assim, o tribunal, que não dispôs de nenhuma outra versão dos factos já que o arguido optou por permanecer em silêncio, retirou das declarações da ofendida os factos que considerou provados (pois estas, pelas razões que o tribunal também explica, mostraram-se verosímeis). Mas não exclusivamente delas.

Se bem que, quanto à maioria dos factos principais, a prova tenha realmente assentado fortemente nessas declarações, outras provas directas relativas a factos circunstanciais ou instrumentais, mas importantes na definição dos factos principais, foram produzidas. Como seja, a constatação, por terceiros, de que a menor apresentava lesão física visível (o que deu origem ao início do inquérito), o estado geral da menor, observado pela mãe, a avaliação da menor, devidamente fundamentada, feita pela psicóloga.

Tudo isto resulta da prova e se encontra no exame crítico do acórdão, como se constata nas passagens seguintes:

“Assim e tendo o Arguido, no uso do direito que lhe cabe, recusado a prestar declarações, foi determinante o depoimento da menor AM (ouvida em declarações para memória futura), que, depondo de forma sincera, relatou as circunstâncias e os factos praticados pelo Arguido.

Designadamente, AM refere (…).
E se dúvidas subsistissem sobre a credibilidade desta menor, as mesmas seriam arredadas pela Avaliação Psicológica realizada e cujo relatório consta de fls. 212 e ss.

AF, mãe de AM, limitando-se a descrever os factos de que tem conhecimento directo e revelando-se credível, confirma o modo como veio a ter conhecimento dos factos e o estado de perturbação em que aquela menor se encontrava.

Por seu turno, C, psicóloga na escola frequentada pela menor, explicou como abordou AM devido à agressão de que havia sido vítima e como, com o desenrolar da conversa e com muita dificuldade e vergonha, esta acabou por lhe relatar os abusos sexuais.

Deste modo, da conjugação da prova supra referida, com o Relatório de Avaliação Psicológica, os elementos clínicos de fls. 46 a 50, cópia da sentença proferida na Acção de Impugnação e Reconhecimento de Paternidade de fls. 169 a 171, o Relatório de Perícia de fls. 185 a 187, as certidões dos Assentos de Nascimento de fls. 206/207 e 260/261, bem como com as regras da normalidade da vida, não subsistem a este Tribunal Colectivo quaisquer dúvidas quanto aos factos que se dão como provados em 1. a 25..”

Sendo os recursos remédios jurídicos que visam a detecção e reparação de erros de julgamento, e não sendo nunca repetições do julgamento de 1ª instância, facilmente se conclui que o acórdão não evidencia erro de facto, à excepção do ponto a abordar de seguida.

Assim, se é certo que das declarações da menor resulta suficientemente demonstrado que os contactos sexuais do arguido sobre a sua pessoa se iniciaram, pelo menos, em Setembro de 2012 - pois a declarante refere (e de modo a não oferecer dúvida, como se disse já) que “começaram no verão”, “eu tinha treze anos e não catorze”, “quando foi a festa dos catorze as coisas já estavam a acontecer”, “sei que acabaram ainda aos catorze e depois fiz quinze e ele nunca mais o fez” – já não se apresenta como suficientemente justificada a conclusão do tribunal sobre a comprovação da frequência semanal desses contactos durante todo o período de tempo referido.

Ou seja, aceita-se que a prova permite concluir, com a necessária segurança, que os factos delituosos ocorreram de Setembro de 2012 a Dezembro de 2013. Mas perante uma incapacidade de concretização mais clara, por parte da ofendida, quanto ao número de vezes em que terão sucedido, fica por justificar a conclusão de que essa frequência seria inequivocamente e sempre semanal.

Nas suas declarações, a cuja audição procedemos, AM referiu “não consigo dizer o número de vezes”, “às vezes era uma vez por semana”, “podia ser duas”, “havia semanas em que podia não acontecer”.

Nenhuma outra prova contribui para o esclarecimento deste facto.

Assim, é de acolher a argumentação do recorrente na parte em que defende que “da prova produzida não pode estabelecer-se uma média superior a um contacto sexual por mês”. E assim concluindo agora (concluindo que esses contactos ocorreram, seguramente, mensalmente) procede-se à reparação do erro detectado na decisão sobre a matéria de facto.

O ponto 6. dos factos provados passará a ter a seguinte redacção:

“6. A partir desse dia até finais Dezembro de 2013, em número de vezes não concretamente apurado mas no mínimo uma vez por mês, normalmente numa quarta-feira à tarde, o Arguido, aproveitando o facto de a companheira não estar em casa, chamava AM para o quarto do casal, tirava-lhe a roupa, deitava-a na cama, beijava e apalpava-lhe as mamas, lambia-lhe a vagina e roçava o seu pénis ereto, para a frente e para trás na vagina e ânus da menor, sem, contudo, o introduzir no seu interior, até ejacular em cima barriga ou costas da mesma.”

3.a. c. Da incapacidade da menor para entender o significado dos actos praticados sobre ela; da entrega da menor aos cuidados, protecção e educação do arguido; do aproveitamento, pelo arguido, da sua superioridade física, ascendência e autoridade sobre a menor.

Insurge-se o recorrente contra a resposta de “provado” que mereceram todos estes factos também impugnados, argumentando que a correcta ponderação das declarações da ofendida, do relatório da Perícia de natureza sexual e do relatório médico-legal, impõem uma decisão de facto diversa da tomada.

Sempre na sua argumentação, dos excertos que especifica, das declarações e das passagens dos relatórios que enuncia, resultaria que a menor manifestou oposição às pretensões do arguido, obstou a que este concretizasse a penetração vaginal, anal e oral, como o agressor pretendia, desconhecendo-se até se a menor ainda seria virgem, e de tudo resultaria não estar comprovada a aludida “incapacidade” da menor.

Daqui retira o recorrente que deve ser eliminado dos factos provados que “o arguido sabia que a menor não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos nela praticados”.

E idêntica conclusão formula, por fim, quanto ao facto provado “a menor estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação e ainda assim aproveitando-se da sua superioridade física, ascendência e autoridade que exercia sobre a mesma”, considerando não ter sido produzida qualquer prova deste facto.

Mas fá-lo sempre sem razão.

Relativamente à primeira situação, cumpre desde logo destacar que ela não interessa à realização de nenhum dos tipos de crime imputados, pelo que, mesmo a proceder, a pretensão formulada nada alteraria no consequente juízo de subsunção jurídica dos factos à norma. Nenhum dos tipos da condenação exige o abuso da inexperiência ou a prova duma especial imaturidade ou incapacidade da vítima para compreender o sentido social dos actos sobre a mesma praticados.

Assim, até aos catorze anos de idade, a protecção (penal) do livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança na esfera sexual (o bem jurídico protegido) pressupõe precisamente (ou presume) que esse desenvolvimento não está completo. Logo, a ofendida, enquanto menor de catorze anos, beneficiaria sempre dessa protecção, da protecção do desenvolvimento duma personalidade ainda não formada. A relevar juridicamente, a argumentação do arguido (de que a “penetração” não ocorrera apenas em virtude duma oposição da vítima, o que, aliás, se retira dos factos provados) funcionaria até contra ele, pois dela resultaria afinal, ainda a demonstração da prática de actos de execução de um crime mais grave do que o da condenação - o do nº 2 do art. 171º, nº 2, do CP (o que não pode ser agora ponderado por força da regra da proibição da reformatio in pejus).

Também relativamente à segunda situação, que interessa agora para o crime do art. 172º, nº 1, do CP, a argumentação não colhe.

Demonstrado está que, à data da prática dos factos, o arguido era o pai da ofendida, que esta vivia com ambos os progenitores (ou seja, em família), que decorria o processo de “regularização” da verdade registal sobre a sua paternidade, paternidade que o arguido conhecia nos moldes já expostos, é legítimo concluir factualmente, como se fez no acórdão, que “a menor estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação”, não exclusivamente do arguido, é certo, mas também do arguido.

De referir, por último, que o tipo do art. 172º do CP contempla precisamente a entrega ou confiança a progenitor no exercício das responsabilidades parentais, “encontrando-se nesta situação o menor que tenha sido confiado de facto ao agente para educação ou assistência” (cf. Maria João Antunes, Comentário Conimbricense ao CP, Org. Fig. Dias, I, 2ªed. P. 848).

Quanto à demonstração duma “superioridade física, ascendência e autoridade que o arguido exercia sobre a vítima”, ela retira-se naturalmente do episódio de vida em apreciação, das concretas circunstâncias globais apuradas, das regras de relacionamento, de vida e de um normal acontecer.

Não se detecta, pois, nesta parte, qualquer erro na decisão sobre a factualidade.

3.a. d. Da contradição entre os pontos 13., 14., 16., 20. e 21. dos factos provados e os pontos 9., 11. e 12. dos factos provados e a al. d) dos factos não provados

No acórdão consta como não provado o ponto seguinte:d) Nas circunstâncias referidas em 23., o Arguido sabia que Ana Marta era particularmente indefesa em razão da idade e que estava na sua dependência económica”. E o recorrente defende que ocorre uma contradição com os factos provados nos pontos 9., 11., 12., 13., 14., 16., 20. e 21. (já transcritos em 2.).

Mas a contradição inexiste.

A contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão, vício da decisão previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados. Consiste numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 71). No entender do recorrente, seria desta contradição entre os factos provados e os não provados que se trataria, o que, a verificar-se, exigiria que os mesmos se contradissessem entre si ou que se excluíssem mutuamente.

Mas essa exclusão não ocorre.

Na verdade, o facto não provado respeita-se apenas às circunstâncias referidas no facto provado 23., não aos outros pontos de facto que o recorrente nomeia em recurso - “d) Nas circunstâncias referidas em 23., o Arguido sabia…”).

E o ponto 23. de factos provados não revela qualquer oposição com o ponto de facto não provado em análise – “23. De igual modo, o Arguido ao dirigir-se à filha nos sobreditos termos e ao desferir-lhe socos, pontapés, murros e chapadas, agiu com o propósito conseguido de a maltratar, subjugando-a à sua vontade, o que fez no interior da casa de morada de família e diante do filho menor de idade, bem sabendo que a mesma era menor e estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação”.

Por um lado, estar entregue ao cuidado, protecção e educação não implica necessariamente encontrar-se na dependência económica da mesma pessoa, e, pelo outro, os factos referidos no ponto 23., diferentemente dos restantes, ocorreram quando a menor tinha já completado os quinze anos de idade, e é apenas quanto a estes factos derradeiros que se reporta o segmento não provado “particularmente indefesa em razão da idade”.

Não se detecta, por tudo, a aludida contradição, no acórdão.

3.a. e. Nota final a respeito da verosimilhança das declarações prestadas por AM e da credibilidade que mereceu.

Esta nota justifica-se face à posição expressa pelo Ministério Público na Relação.

No parecer, o Senhor Procurador-geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso do arguido e da absolvição. A presente nota visa, não justificar a credibilidade reconhecida no acórdão à ofendida - essa explicação encontra-se já na decisão da impugnação em matéria de facto -, mas justificar tão só o afastamento da dúvida levantada no parecer.

Entendeu o Senhor Procurador-geral Adjunto que as declarações da vítima seriam merecedoras de reserva, impondo-se por isso a absolvição, na medida em que não seria possível destrinçar onde e quando falara a verdade e onde e quando fantasiara.

Ancorou-se na circunstância de a menor ter supostamente relatado factos ocorridos enquanto dormia, o que revelaria efabulação. Invocou também o tempo decorrido entre os factos e a prestação de declarações para memória futura. Recorreu, por último, a um “fragmento do texto do livro A Ilusão da Memória, de Júlia Shaw”, que transcreveu.

Com todo o respeito, não se encontra justificação para a dúvida exposta pelo Ministério Público, a respeito da (in)correcção da decisão do tribunal colectivo na parte em que considerou credível a vítima, esta vítima, e verosímeis as declarações que prestou.

Note-se que o arguido não contraditou sequer que os actos de cariz sexual tenham ocorrido, limitando-se a impugnar outros factos, como sejam os relacionados com a situação dos factos no tempo, com a idade da vítima, com a relação familiar e educacional que mantinha com a vítima.

Acresce que, em recurso, e num sistema legal de recurso-remédio, tratar-se-ia sempre duma sindicância da decisão da matéria de facto do acórdão, e não de uma decisão de facto ex novo, como se inexistisse o julgamento em 1ª instância.

Sem prejuízo do mérito da reflexão desenvolvida na obra literária citada pelo Senhor Procurador-geral Adjunto, e do reconhecimento de que as preocupações enunciadas merecem sempre ponderação e interessam em casos e situações como a presente - daí a declarante ter sido também sujeita a legal avaliação psicológica, que influiu depois e foi determinante na decisão colegial do tribunal de julgamento -, o certo é que, em concreto, nada resulta do processo que justifique que o tribunal devesse, aqui, ter concluído no sentido da dúvida enunciada no parecer.

Na verdade, da audição integral das declarações da vítima (a que se procedeu na Relação, como se disse) não resulta que esta tenha narrado factos “ocorridos enquanto dormia”, como se menciona no parecer. Resulta, sim, que a menor referiu que o arguido, com vista a convencê-la a consentir na penetração anal, lhe dissera que “não doía”, que “já o tinha feito enquanto ela dormia” e que a menor “não se tinha queixado e até gostara”.

Ou seja, e sempre segundo as declarações da vítima, isto foi o que o arguido lhe disse ter feito, e não o que a menor disse que o arguido lhe fez. A menor não procedeu, assim, à revelação de factos ocorridos enquanto dormia.

Acresce que nem a penetração anal integra a matéria de facto provada (não fazia sequer parte dos factos da acusação), nem nenhum dos factos relatados pela menor como tendo realmente acontecido, estes sim dados como provados no acórdão, ocorreram enquanto a mesma dormia.

Por último, não se considera que tenha decorrido um lapso de tempo excessivo entre os últimos factos (de cariz sexual) praticados pelo arguido e a prestação de declarações para memória futura, de modo a fazer perigar a retenção dos factos na memória da declarante, como também sugere o Senhor Procurador-geral Adjunto no parecer.

Os últimos factos ocorreram em Dezembro de 2013 e as declarações para memória futura foram prestadas a 09.04.2014.

3.b. Do erro de subsunção
No recurso em matéria de direito, o recorrente invoca o erro de subsunção, fazendo-o em duas vertentes: considera que deve ser absolvido por não ter incorrido na prática de nenhum dos tipos de crime da condenação; assim não se entendendo, defende que deve ser condenado como autor de “um único crime de trato sucessivo”.

3.b a. Dos tipos de crime da condenação

Nesta primeira parte, o recurso em matéria de direito apresenta-se interposto e motivado na estrita decorrência da procedência do recurso em matéria de facto. Pois o recorrente defende que não cometeu os crimes por não ter praticado os factos.

Senão, revejam-se as conclusões, que são o resumo da motivação que desenvolveu:

“14. Face ao alegado no presente Recurso, mais concretamente no Capítulo IV, alínea a) da impugnação da matéria de facto provada, não poderá operar a agravante prevista no artigo 177º, n.º 1 alínea a) do Código Penal, seja para os crime de Abuso sexual de crianças, seja para os crimes de abuso sexual de menores dependentes.

15. Face ao que se deixou dito neste recurso, mais concretamente no Capitulo IV, Alínea b) da impugnação da decisão de facto, não foi produzida prova segura e credível de terem ocorrido quaisquer contactos sexuais entre arguido e vítima antes de Janeiro de 2013, data em que esta teria já completado a idade de 14 anos.

16. Assim, e por não se encontrarem preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no artigo 171º nº 1 do Código Penal deve o arguido ser absolvido de todos os crimes de abuso sexual de crianças pelos quais foi condenado.

17. Face ao que se deixou alegado no presente recurso, mais concretamente no Capítulo IV, Alínea d) da impugnação da decisão de facto proferida, temos que, não foi produzida qualquer prova de que a vítima estivesse confiada para educação ou assistência ao arguido, sendo ainda pertinente evidenciar o que provado não ficou na alínea d) dos factos não provados.

19. Assim, e por não preenchimento dos elementos do tipo de ilícito previsto no artigo 172 nº 1 do Código Penal, deve o arguido ser absolvido dos crimes de abuso sexual de menor dependente pelos quais foi condenado.

20. Não se provou que a ofendida estivesse ao cuidado do arguido, à sua guarda, sob a sua responsabilidade e educação, pelo que, e por não preenchimento dos elementos do tipo previsto no artigo 152º -A, nº 1 alínea a) do C.P, deve o arguido ser absolvido do crime de maus tratos pelo qual foi condenado.”

O recorrente não suscita, assim, o erro de subsunção enquanto verdadeiro erro na aplicação do direito. Não discute a decisão sobre a interpretação e aplicação de nenhum dos três tipos de crime da condenação – o crime de abuso sexual de crianças agravado dos art.s 171º, nº 1, e 177º, nº 1, al. a), do CP; o crime de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP; e o crime de maus tratos do art. 152º-A, no 1, al. a) do CP).

Defende apenas que deve ser absolvido, pois, em seu entender, não resultariam demonstrados os pontos de facto que impugnou e que relevariam no preenchimento de elementos típicos dos crimes imputados.

Da improcedência do recurso em matéria de facto decorre agora a improcedência do recurso em matéria de direito nesta parte, nada havendo a precisar ou a acrescentar aqui. Relevará, sim, na parte que se aborda seguidamente.

3.b. b. Do número de crimes efectivamente cometidos

Aqui, o recorrente defende que “está em causa um crime de trato sucessivo”. E que seria esta “a melhor solução de direito para casos de abuso sexual em que a homogeneidade de múltiplas condutas concretizadas entre o mesmo agente e a mesma vítima, num período de tempo próximo, autoriza a sua unificação numa mesma resolução criminosa”. Adita que “o crime por trato sucessivo é consentido pelo disposto no artigo 30, nº 3 do CP, e está devidamente enformado e delimitado pela jurisprudência que constitui fonte de Direito.”

Essa jurisprudência existe, mas a única que cita no recurso “a demonstrar o afirmado” é o “acórdão do STJ de 01-10-2008, no qual foi o ali arguido condenado pela prática de 818 crimes de abuso sexual de criança agravados, na forma consumada, e 60 crimes de abuso sexual de criança agravados, na forma tentada, em penas de prisão cuja soma aritmética perfaz, no seu conjunto, 4.086 anos de prisão, vindo em cúmulo jurídico a ser aplicada uma pena única de 15 anos de prisão.”

Conclui o recorrente que “os factos dos autos se caracterizam pela sua homogeneidade, identidade na sua forma de execução, proximidade temporal o que permite a sua unificação numa única conduta criminosa, pelo que deveria o arguido ter sido condenado, pela prática de um crime de trato sucessivo, e uma vez que em causa estão diferentes tipos de ilícito, deverá a respectiva punição fazer-se pelo ilícito mais grave.”

Existe, na verdade, jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a pronunciar-se no sentido da admissibilidade da aplicação da figura jurídica do “crime de trato sucessivo” em processos por crime de abuso sexual de criança. Seria esta uma solução jurídica adequada a tratar o problema da indefinição factual do número de actos praticados pelo agente que age, em determinadas circunstâncias de homogeneidade e de repetição, sobre uma mesma criança vítima.

Assim sucede, por exemplo, com o acórdão do STJ de 29-11-2012 (rel. Santos Carvalho) em que, estando em causa três vítimas diferentes, se decidiu pela condenação do arguido como autor de três crimes (de trato sucessivo) de abuso sexual de criança.

No sumário desse acórdão pode ler-se:

“ I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

Com todo o respeito, não subscrevemos a posição enunciada.

As razões para o afastamento da jurisprudência citada, que é defendida também noutros arestos do mesmo Tribunal, encontram-se expressas no voto de vencido elaborado no mesmo acórdão. Passa a transcrever-se, na íntegra, o voto redigido pelo Conselheiro Manuel Braz, dada a total aplicação ao caso agora em apreciação. E por essas mesmas razões, concretamente transponíveis para o caso presente, se decidirá em conformidade com a jurisprudência expressa no voto de vencido:

“Quanto ao número desses crimes, manteria a decisão recorrida, que considerou haver o recorrente praticado:

-20 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos artºs 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida B); -2 crimes de abuso sexual de menor dependente agravados p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida B); -6 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos artºs 171º, nºs 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do CP (ofendida C).

O entendimento maioritário foi de que nesta parte o recorrente cometeu 3 crimes: -um consubstanciado nas condutas levadas a cabo pelo arguido sobre a enteada B nos anos de 2000/2001; -outro realizado pelas condutas sobre a mesma ofendida entre 2003 e 2004; -e um outro concretizado nas condutas sobre a filha C.

Como fundamento da unificação de cada um desses grupos de actos num só crime apontou-se a unidade de resolução.

A unidade de resolução foi vista nas afirmações contidas nos factos nºs 12 («No entanto, face ao arquivamento do processo de promoção e protecção então instaurado em prol da defesa dos direitos da ofendida B, instaurado devido à iniciativa de G, o arguido decidiu retomar a prática dos actos referidos nos pontos 8 e 9») e 21 («Ora, em data não concretamente apurada, mas que se reporta ao ano de 2009, o arguido A decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C, então com 11/12 anos de idade»).

A decisão aí referida reporta-se apenas aos dois últimos grupos de factos, não cobrindo o primeiro grupo, em relação ao qual por isso não existe qualquer fundamento para afirmar a unidade de resolução.

Para além disso, a decisão criminosa afirmada naqueles números não passa de um propósito vago que não dispensou a tomada da verdadeira resolução que veio a presidir a cada uma das concretas condutas posteriores do arguido, designadamente a decisão sobre quando e onde agir, como, de resto, é próprio neste tipo de situações. Veja-se, por exemplo, que, no segundo caso, o que se deu como provado foi que o recorrente «decidiu passar a manter relações sexuais com a sua filha C», o que nem sequer identifica o tipo de actos que se propôs praticar, podendo a expressão «relações sexuais» ser reportada a várias realidades.

A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 3, do CPP].

O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854).

Este autor, depois de definir o crime contínuo como o «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de actos sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)», correspondendo «basicamente àquilo que Eduardo Correia chamou o crime único com pluralidade de actos», caracteriza assim o crime habitual:

«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”.

Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles – eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados – eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo.

O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”.

É seguro que, por “actos reiterados”, se deve entender, pelo menos, a pluralidade de actos homogéneos. Actos diversos não são reiterados.

(…) apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime.

Na verdade, embora a caracterização legal não se esgote nisso, os “actos reiterados” são opostos, pela própria lei, aos “actos sucessivos” no sentido de praticados em acto seguido. Isso indica um certo distanciamento temporal – pelo menos suficiente para se não admitir a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico, para passar a estruturar-se numa actividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.

Mas se em relação a todos os crimes fosse de admitir esta forma habitual de perpetração, as restantes figuras a que nos referimos ficariam em crise, se é que lhes sobraria qualquer espaço de aplicação.

Assim se compreende que, como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. Exemplos apontados são o crime de maus-tratos e infracção às regras de segurança (art. 152º), o crime de lenocínio (art. 170º)».

Admite o autor outros casos, como o crime de tráfico de estupefacientes, que considera desdobrar-se ou poder desdobrar-se numa multiplicidade de actos semelhantes, «como claramente resulta da previsão da agravação por diversas circunstâncias, a começar pela da destinação ou entrega a “menores” ou da distribuição “por um grande número de pessoas” (art. 24º, nº 1, als. a) e b), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro)» (ob. cit., páginas 604-620).

Mais incisivo, Figueiredo Dias define crimes habituais como sendo «aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada», dando como exemplo os crimes de lenocínio e de aborto agravado do artº 141º, nº 2, do CP (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 314).

Não é, pois, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de actos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respectivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração.

Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.

Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989).”

Da aplicação, ao caso presente, da jurisprudência expressa no voto de vencido transcrito resulta claro o afastamento da tese defendida pelo arguido em recurso.

Essa tese vinha no sentido de que a proliferação dos actos de agressão sexual por si perpetrados sobre a mesma vítima configurariam crime de trato sucessivo, a punir pelo tipo mais grave.

As dificuldades de determinação do número de actos concretamente praticados por um agente devem resolver-se, primeiramente, no campo da definição da factualidade. Só uma vez definida a matéria de facto juridicamente relevante, o que inclui os factos que interessam à decisão sobre a unidade e a pluralidade de crime, se procederá a subsunção jurídica, identificando também, e decidindo, as situações de unidade e de pluralidade de crime, e de concurso homogéneo e heterogéneo.

No presente caso, e no que se refere ao número de vezes em que o agente actuou, foi possível concluir, no plano da factualidade, que o arguido praticou por quatro vezes (em quatro ocasiões distintas) factos que realizam plenamente o crime abuso sexual de crianças agravado dos art.s 171º nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, por doze vezes (em doze ocasiões distintas) factos que realizam o crime de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, restando ainda o crime de maus tratos do art. 152º-A, no 1, al. a) do CP, cuja decisão sobre a sua unidade (unidade de infracção, decidida no acórdão) não está impugnada em recurso.

Ainda no plano da factualidade, não é aqui descortinável uma unidade de resolução criminosa.

Com efeito, o arguido decidiu actuar como actuou de cada uma das vezes em que o fez, ou seja, actuou imbuído sempre de uma nova intenção, ou de uma intenção renovada. O arguido procurou a vítima quando, ou sempre que, decidiu fazê-lo, não o decidiu por uma única vez, numa única resolução criminosa que abarcasse todas as agressões sexuais posteriormente perpetradas.

Inexiste assim, claramente, a unidade de resolução que, para Eduardo Correia, seria critério determinante da definição da unidade de infracção, critério há muito aceite pela maioria da jurisprudência. Para o autor, o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas (Eduardo Correia, “Unidade e Pluralidade de Infracções”, in Coreia, Eduardo, A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpr.), Coimbra: Almedina, 1963 (pp. 7-291).

Essa unidade de resolução criminosa inexistiu aqui, pois ela não resulta dos factos provados.

A igual solução (de afastamento da unidade de infracção) se chegaria seguindo a doutrina de Figueiredo Dias, pois não é aqui igualmente descortinável uma unidade de sentido da ilicitude, mas sim tantos os sentidos quantos os concretos episódios que tiveram lugar, com a frequência mensal apurada já referida.

Para Figueiredo Dias, sendo o crime o facto punível, que se traduz numa violação de bens jurídico-penais que preenche um determinado tipo legal, o núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico: o que está em causa é então determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz – e é essa determinação que decide da unidade ou pluralidade de crimes (Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007 (1ª ed., 2004), pp. 977 e ss).

A questão do concurso efectivo de crimes não se resolve no campo da abstracção. O caso é sempre único e irrepetível, e para tanto importa sempre apreender o real-concreto, na sua complexidade e na sua completude, em cada processo e em cada julgamento. A questão do concurso de crimes só se decide na situação de vida a regular.

Tal obriga também a um juízo sobre a adequação da solução equacionada em abstracto pela norma – critério de decisão do caso. Ensina Castanheira Neves que a norma prevê um critério de decisão para um certo tipo de problema pensado em abstracto. Esta solução-critério pensada em abstracto tem que ser previamente compreendida para poder ser utilizada como critério de decisão do caso concreto.

Partindo do tipo de ilícito em apreciação, a interrogação que se deve colocar é a de saber se na lógica da previsão dos crimes de abuso sexual de criança, na norma-critério, estará pensada a “proliferação de actos” (de que fala o arguido), ou seja, a proliferação de actos praticados, não na mesma ocasião ou simultaneamente, mas ao longo do tempo, de períodos de tempo extensos.

A realidade social pensada e equacionada pelo legislador não foi esta. Ou seja, no problema pressuposto pela norma-critério em apreciação não está considerada como probabilidade elevada, ou como probabilidade-regra, o desdobramento da conduta descrita em múltiplos actos repetidos sobre a mesma vítima em ocasiões diversas e ao longo do tempo.

Assim sendo, o problema da multiplicidade de actos repetidos sobre a mesma vítima, em ocasiões diversas e ao longo do tempo, não se encontra ponderado, e enquadrado, na norma-critério, ou seja, no tipo, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com o crime de maus-tratos, o crime de lenocínio ou o crime de tráfico de estupefacientes.

Daí que se subscreva inteiramente o voto de vencido já transcrito, e se decline a aplicação da jurisprudência que fez vencimento, sendo para nós também “claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.”

Assim, no presente caso, nem a estrutura do(s) respectivo(s) tipo(s) incriminador(es) supõe(m) a reiteração, nem dos factos provados resulta a existência de uma unidade de resolução criminosa ou a presença de outro indicador seguro que permita descortinar um sentido único de ilicitude.

Por último, e uma vez identificada a pluralidade de infracções, há que deixar consignado que seria também de afastar a figura da continuação criminosa, prevista no art. 30º, nº 2 do CP.

Os crimes, todos os crimes identificados, encontram-se, entre si, numa relação de concurso efectivo. Pois o elemento que fundamentaria o crime continuado, a conexão das actividades que constituem o crime continuado, teria de assentar numa considerável diminuição da culpa do agente, que lhe anda necessariamente ligada (Eduardo Correia, loc. cit. pp. 245 e ss).

Havendo que identificar e traçar, sempre em concreto, o quadro das situações exteriores que, criando um cenário propício à perpetuação da actividade criminosa, diminuam sensivelmente a culpa do agente, é hoje pacífico que essa solicitação tem de ser exterior e não provocada pelo agente, o que desde logo não ocorre aqui. Foi sempre o arguido a procurar a vítima, fazendo-o contra a vontade desta e apesar da oposição permanente manifestada por ela.

Pelo exposto, cometeu o arguido quatro crimes de crime abuso sexual de crianças agravado dos art.s 171º nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, doze crimes de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP, e um crime de maus tratos do art. 152º-A, no 1, al. a) do CP, em concurso efectivo.

3.c. Da medida da pena
O arguido procede à impugnação das penas parcelares, defendendo que a ausência de antecedentes criminais e as suas circunstâncias de vida, constantes do ponto 29. dos factos provados, deveriam ter determinado a fixação das penas próximo do(s) limite(s) mínimo(s).

Os recursos, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, são sempre “remédios jurídicos”. E também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.

Daqui resulta que a Relação intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de 1ª instância, pois o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal a quo enquanto componente individual do acto de julgar.

Dentro desta margem de actuação, impõe-se reconhecer o acerto no processo aplicativo da pena desenvolvido em 1ª instância.

Assim, não só o recorrente não invoca, em recurso, argumentos que, em concreto, se mostrem aptos a prosseguir o resultado pretendido - ou seja, a evidenciar um erro no processo de determinação das penas - como a fundamentação destas, patente no acórdão, se mostra correcta.

As penas parcelares, que nada justifica que, em concreto, se devessem ter aproximado dos limites mínimos, como pretendia o recorrente, mostram-se fixadas sempre abaixo do ponto médio das molduras penais respectivas, à excepção da respeitante ao crime mais grave, esta fixada no ponto médio.

A determinação da pena é sempre uma actividade judicialmente vinculada, como ensinam Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, e no acórdão observa-se que foram percorridos os passos legalmente impostos. Senão, reveja-se a fundamentação das penas parcelares no acórdão:

“Aos crimes pelos quais o Arguido vai condenado, cabem as seguintes molduras penais:

- a cada crime de Abuso Sexual de Criança Agravado, previsto e punível pelos artigos 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Código Penal, prisão de 1 ano e 4 meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses;

- a cada crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, previsto e punível pelo artigo 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do Código Penal, prisão de 1 ano e 4 meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses; e

- ao crime de Maus Tratos, previsto e punível pelo artigo 152º-A, nº 1, al. a) do Código Penal, prisão de 1 a 5 anos.

Dispõe o artigo 71º que "a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes".

Segundo o modelo consagrado no artigo 40º do Código Penal, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo). Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo elas que vão determinar, em último termo, a medida da pena. (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 478 e ss. e, ainda, a título meramente exemplificativo, o acórdão do S.T.J., de 10.04..96, CJSTJ, ano IV, t. 2, p. 168).

Tendo presente o modelo adoptado, importa de seguida eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena referidos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.

Assim, será de considerar o seguinte:

É consabido que a natureza dos crimes praticados pelo Arguido - Abuso Sexual de Criança e de Menor Dependente -, o bem jurídico violado nos crimes em questão (a autodeterminação sexual de menores) e a frequência de condutas deste tipo, bem como o conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade e que constitui um factor de desestabilização social pela insegurança, com reflexos nas famílias, pelos traumas que gera e pelos valores culturais que ofende gravemente, tornam especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, exigindo uma resposta punitiva firme.

Também relativamente ao ilícito de Maus Tratos, as exigências de prevenção geral revelam-se intensas, atenta a expressão que o mesmo assume na sociedade portuguesa, a gravidade e a intensidade dos sentimentos em regra envolvidos por força da excessiva proximidade entre o agente e a vítima e as consequências que o mesmo implica ao nível individual, familiar e colectivo.

Há ainda a considerar o modo de execução dos factos, a repetição dos actos sobre a menor AM, mesmo depois desta lhe dizer que não queria, sendo que numa das ocasiões, tratou-se de sexo oral em que o Arguido empurrou-lhe a cabeça para baixo e para cima, forçando, deste modo, a sua filha a friccionar o seu pénis dentro da sua boca, sendo certo que inexistem circunstâncias anteriores, ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude dos factos ou a culpa do Arguido.

Mais se atentará nas agressões levadas a cabo pelo Arguido e as suas consequências.

Por outro lado e quanto às exigências de prevenção especial, não obstante nada constar, actualmente, do Certificado de Registo Criminal do Arguido, temos que o mesmo revela uma inserção social frágil, marcada por um processo de socialização com um carácter multiproblemático, carências e abusos sofridos no contexto sócio-familiar de origem, embora apresente algumas competências para assegurar a sua própria independência económica. Mais demonstra imaturidade/isolamento relacional, pensamento auto-centrado e atitudes apelativas, fraca vinculação nas relações sociais em geral e baixo sentido empático, em particular para com a vítima.

Deste modo e ponderando todas as considerações numa visão de conjunto, julga-se adequado aplicar ao Arguido as seguintes penas:

- 5 (cinco) anos de prisão pela prática de cada um dos 13 crimes de Abuso Sexual de Crianças Agravado, previstos e puníveis pelos artigos 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Código Penal;

- 5 (cinco) anos de prisão pela prática de cada um dos 51 crimes de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, previstos e puníveis pelos artigos 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Código Penal;

- 6 (seis) anos de prisão pela prática do crime de Abuso Sexual de Menor Dependente Agravado, previsto e punível pelos artigos 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a) do Código Penal e descrito em 10. da matéria de facto provada (cópula oral); e

- 2 (dois) anos pela prática do crime de Maus Tratos previsto e punível pelo artigo 152º-A, nº 1, al. a) do Código Penal.”

As exigências de prevenção geral são, no caso, elevadíssimas. E as exigências de prevenção especial não se afiguram tão reduzidas como o arguido pretende, mesmo tendo em conta a diminuição ora operada no número de crimes cometidos, na sequência da procedência parcial do recurso em matéria de facto. A actividade criminosa, sempre renovada e reiterada, prolongou-se pelo mesmo período de tempo, elevado, sendo de manter o juízo de avaliação das exigências de prevenção, efectuado no acórdão.

Olhando, assim, as circunstâncias referidas no art. 71º, nº 2 do CP, a que se deve atender obrigatoriamente na determinação concreta da pena, é de considerar bastante elevado o grau da ilicitude do facto e da culpa do arguido.

Essa gravidade (elevada) resulta da concreta dimensão da lesão do bem jurídico, da modalidade e intensidade do dolo (sempre directo e persistente, quanto ao tipo base, e eventual, quanto à agravante), dos fins ou motivos desvaliosos que determinaram o crime.

Relativamente às condições pessoais do arguido, está provado que “revela dificuldades em avaliar o dano causado à menor sua filha”, “de quem apresenta uma visão pouco realista”, “baixo sentido empático, em particular para com a vítima identificada”.

Constatando-se que as circunstâncias de peso agravante superam em muito as de sentido atenuante, consideram-se adequadas às exigências de prevenção, e ainda respeitadoras da culpa do arguido, as penas parcelares fixadas no acórdão.

O arguido foi ali condenado na pena única de 18 anos de prisão. Mas da diminuição do número de crimes cometidos em concurso efectivo, deriva a necessidade de reformulação do cúmulo jurídico de penas.

A moldura penal abstracta do concurso mantém-se de 6 a 25 anos de prisão (art. 77º, nºs 1 e 2 do CP).

Como nota Figueiredo Dias, “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena(Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280). Segundo o autor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).

Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam o cúmulo de penas e um cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como não o foi nos códigos penais precedentes (Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156).

Na fixação da pena única o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do CP), exigindo-se uma especial fundamentação também desta pena, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

“Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Figueiredo Dias, loc. cit.).

No caso, o arguido tem 46 anos de idade, não lhe são conhecidos antecedentes criminais, está medianamente integrado, não há elementos que permitam concluir que tenha interiorizado o mal do crime e não revela qualquer empatia com a vítima.

Respeitando à culpa, estas considerações foram já incluídas no processo de determinação das penas parcelares. Mas a sua reponderação na determinação da pena única respeita o princípio da proibição da dupla valoração (art. 72º, nº2 do CP). Como princípio extensível a todas as operações de determinação da pena, ele deve repercutir-se ao longo de todo o processo aplicativo da pena. “Mas aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 292, itálico nosso).

Tudo ponderado, é de concluir que a pena única se deve situar abaixo do ponto médio da pena abstracta, fixando-se em 13 anos de prisão.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, e, em consequência:

- alterar a matéria de facto nos termos decididos no ponto 3.a.b. (fls. 15);

- manter a condenação do arguido, como autor e em concurso efectivo, de quatro crimes de abuso sexual de criança agravado dos art.s 171º nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP (pena de 5 anos de prisão por cada um deles), de doze crimes de abuso sexual de menor dependente agravado dos art.s 172º, nº 1 e 177º, nº 1, al. a), do CP (penas de 5 anos de prisão por cada um de 11 crimes e de 6 anos de prisão pelo crime descrito em 10. dos factos provados) e de um crime de maus tratos do art. 152º-A, no 1, al. a) do CP (pena de 2 anos de prisão);

- absolver o arguido dos restantes crimes, revogando-se o acórdão nessa parte;

- fixar a pena única em 13 anos de prisão;

- manter o acórdão na parte restante.

Sem custas.

Évora, 07.02.2017

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

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[1] - Acórdão sumariado pela relatora.