Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ LÚCIO | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA COMERCIAL DENÚNCIA DOS DEFEITOS | ||
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Data do Acordão: | 11/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1 – O art. 471.º do Código Comercial contém um regime mais restritivo de denúncia dos defeitos que o da lei civil, pelo que, não sendo examinada a mercadoria e reclamados pelo comprador quaisquer defeitos no prazo de oito dias após a entrega, considera-se o contrato concluído e perfeito, passando para o comprador a propriedade e riscos da coisa e caducando o direito que porventura tivesse de reclamar sobre esse ponto. 2 - Este prazo de 8 dias conta-se a partir da entrega do bem, a não ser que o comprador demonstre que só lhe foi possível ter conhecimento do defeito em momento posterior, mesmo usando da diligência normal exigível ao tráfego comercial. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: I – RELATÓRIO Nos presentes autos de processo comum, com o n.º 69511/18.8YIPRT, com início em procedimento de injunção, requerido em 14 de Junho de 2018, a Autora Nova Pelteci – Peles, S.A., demandou a Ré João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., peticionando a condenação da Ré a pagar-lhe da quantia de €198.427,12 (cento e noventa e oito mil quatrocentos e vinte se euros e doze cêntimos) com fundamento no não pagamento pela Ré de facturas emitidas pela Autora e respectivos juros, na sequência de fornecimento de diversas mercadorias fornecidas pela Autora à Ré no exercício da actividade de ambas. A Ré defendeu-se por impugnação e por excepção, alegando concretamente o cumprimento defeituoso por parte da Autora (as mercadorias fornecidas tinham defeito). Entretanto, foi apensado para julgamento conjunto, o processo comum n.º 2603/18.8T8STR (renumerado para 69511/18.8YPRT-A), que teve entrada posterior, e no qual a aqui Ré demandou a aqui Autora, pedindo a condenação desta a pagar-lhe indemnização no valor global de €384.001,44 que seria devida pelo cumprimento defeituoso, por parte da Autora, do aludido contrato de fornecimento de peles. Feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção principal procedente e em consequência condenou a Ré João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., a pagar à Autora Nova Peltéci – Peles S.A. a quantia de €182.652,90 (cento e oitenta e dois mil seiscentos e cinquenta e dois euros e noventa cêntimos), a título de capital, acrescida de juros vencidos contados até 11 de Setembro de 2018, no montante de € 8.637,71 (oito mil seiscentos e trinta e sete euros e setenta e um cêntimos), acrescido de juros vincendos à taxa legal para juros comerciais, sobre o capital em dívida, contados a partir de 12 de Setembro de 2018, até integral pagamento. Na mesma sentença, foi julgada a improcedente a acção apensa e em consequência absolvida a Nova Peltéci – Peles S.A., do que era pedido pela João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. * II – O RECURSONotificada a sentença, a Ré João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda intentou então o presente recurso de apelação, apresentando as suas alegações, que terminou com as seguintes conclusões: “(I) Julgar provado que: a. A Sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos, Lda., reendereçou as reclamações para a sociedade Laborpele – Representação de Curtidos, Lda., em 29 de maio de 2017, comunicando a existência de defeitos. b. 2.2.4 – A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos, Lda., apenas se apercebeu do defeito existente nas peles fornecidas pela sociedade Nova Pelteci – Peles, S.A., em consequência da devolução efetuada pela sociedade “Dubarry of Ireland”; c. 2.2.6 Neste tipo de indústria os defeitos que possa ocorrer na pele não são detetáveis no momento da entrega das peles, mas apenas após o processo de produção a que se destinam e em certos casos após o uso do sapato. (II) Considerar verificada a exceção de não cumprimento invocada pela Recorrente, uma vez que os defeitos da mercadoria entregue por conta do contrato de compra e venda por amostra, celebrado entre Recorrente e Recorrida, foram reclamados em data anterior à última entrega de mercadoria e, sempre e em todo o caso, o prazo estabelecido no art.º 471.º, do Cód. Comercial, se conta a partir do momento em que o comprador, aqui Recorrente, atuando com a diligência exigida ao tráfego comercial, teria descoberto os defeitos. Termos em que o Recurso deve ser julgado procedente, com as legais consequências, absolvendo-se a Recorrente da ação principal e condenando-se a Recorrida aos pedidos efetuados na ação a estes autos apensada, com o que V. Ex.cias, Senhores Desembargadores, farão JUSTIÇA!” * III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕESPela recorrida Nova Pelteci – Peles, S.A., foram apresentadas contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso e a consequente confirmação da sentença impugnada. * IV – DA MATÉRIA A CONSIDERARNa sentença em causa foi proferida decisão sobre a matéria de facto, com o seguinte teor: A - QUANTO A FACTOS PROVADOS Da actividade das partes 2.1.1. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., dedica-se à produção e comercialização de peles. [Vide certidão permanente a fls. 86. a 91 Apenso A] 2.1.2. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., dedica-se à indústria de calçado, designadamente à confecção e comercialização de sapatos de pele. Do fornecimento de mercadorias 2.1.3. No âmbito do desenvolvimento da sua actividade, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., encomendou à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., algumas partidas de peles. 2.1.4. A encomenda de peles foi concretizada através do representante de vendas da sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., designadamente através do Sr. AA, da sociedade comercial Laborpele – Representações de Curtidos Lda. 2.1.5. A relação comercial entre as partes, sempre se desenvolveu através deste representante da sociedade comercial Laborpele – Representações de Curtidos Lda. 2.1.6. Assim, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., com vista a produzir sapatos Mocassins de cor castanha e azul, que tinha como destino o seu cliente Dubarry of Ireland, contactou, via e-mail, no dia 13 de Março de 2017, o mencionado representante da Nova Pelteci-Peles S.A., para proceder à encomenda de “75 000 pes scout Brown; 100 000 pes scout navy, sujeitos à aprovação das cores por parte do cliente” [Vide doc. de fls. 13 no Apenso A] 2.1.7. Por referência a tal encomenda a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., estabeleceu a exigência das peles serem de cor exatamente igual aos catálogos enviados, catálogos esses que teriam de ser entregues juntamente com as peles completamente intactos. [Vide doc. de fls. 13 no apenso A]. 2.1.8. Tais catálogos são comummente conhecidos na indústria do calçado e peles como “A4”. 2.1.9. O total da encomenda eram 75 000 peles scout Brown ao preço unitário de €2,70 o que totalizaria o valor de €202.500,00, e 100 000 peles scout navy ao preço unitário de €2,50 o que totalizaria o valor de € 250.000,00, sendo o montante total de € 452.500,00 [€202.500,00 +€250.000,00 = €452.500,00], valores aos quais acresce IVA [Vide doc. de fls. 13 no apenso A]. 2.1.10. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., estabeleceu as condições de entrega aquando da formalização da encomenda, designadamente, a ser entregue no início de abril “Scout Navy 10 000 pes” e “Scout Brown 10 000 pes”, inícios de maio “Scout Navy 10 000 pes” e “Scout Brown 10 000 pes”, inícios de junho “Scout Navy 10 000 pes” e “Scout Brown 10 000 pes”, prevendo que em abril enviaria as datas seguintes para entrega. [Vide doc. de fls. 13 no apenso A] 2.1.11. Entre 13 de Abril e 09 de Setembro de 2017, a Nova Pelteci-Peles S.A., forneceu à sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., as mercadorias assim descriminadas nas seguintes facturas: 1) Factura nº 2017/194 emitida em 13/04/2017, com vencimento em 12/07/2017, referente a 2.375 peles “Scout Brown”, no valor de € 64,13, acrescido de IVA 23%, num total de €78.88. [Vide fls. 86 autos principais] 2) Factura nº 2017/212 emitida em 21/04/2017, com vencimento em 20/07/2017, referente a 3248 peles “Scout Navy” no valor de € 8.120,00, acrescido de IVA 23%, num total de €9.987,60 e 2 994,75 peles “Scout Brown”, no valor de € 8.085,83, acrescido de IVA 23%, num total de € 9.945,60. [Vide fls. 87 autos principais]. 3) Factura nº 2017/271 emitida em 31/05/2017, com vencimento em 29/08/2017, referente a 6 228,75 peles “Scout Brown”, no valor de € 16.817,63, acrescido de IVA 23%, num total de € 20.685,68. [Vide fls. 88 autos principais] 4) Factura nº 2017/284 emitida em 02/06/2017, com vencimento em 31/08/2017, referente a 8 735,75 peles “Scout Navy” no valor de € 21.839,39, acrescido de IVA 23%, num total de € 26.862,45. [Vide fls. 89 autos principais 5) Factura nº 2017/310 emitida em 14/06/2017, com vencimento em 12/09/2017, referente a 8 342,25 peles “Scout Brown”, no valor de € 22.445,78, acrescido de IVA 23%, num total de € 27.608,31. [Vide fls. 90 autos principais] 6) Factura nº 2017/338 emitida em 30/06/2017, com vencimento em 28/09/2017, referente a 6 195,75 peles “Scout Navy” no valor de € 15.489,38, acrescido de IVA 23%, num total de € 19.051,93 e 5 296,50 peles “Scout Brown”, no valor de €14.300,55, acrescido de IVA 23%, num total de € 17.589,67. [Vide fls. 91 autos principais] 7) Factura nº 2017/367 emitida em 14/07/2017, com vencimento em 12/10/2017, referente a 9 496 peles “Scout Navy”, no valor de € 23.740,01, acrescido de IVA 23%, num total de € 29.200,21. [Vide fls. 93 autos principais] 8) Factura nº 2017/371 emitida em 21/07/2017, com vencimento em 19/10/2017, referente a 8 621 peles “Scout Navy” no valor de € 21.552,21, acrescido de IVA 23%, num total de €26.509,21 e 8 754,25 peles “Scout Brown” no valor de € 23.636,48, acrescido de IVA 23%, num total de €29.072,78. [Vide fls. 92 autos principais] 9) Factura nº 2017/382 emitida 28/07/2017, com vencimento em 26/10/2017, referente a 2 705 pelas “Scout Brown” no valor de € 7.303,75, acrescido de IVA 23%, num total de € 8 983,81 e 927,75 de artigos denominados “Lubock Hidro Navy” no valor de € 2.410,85, acrescido de IVA 23%, num total de € 2.965,34 e ainda 952,75 de artigos denominados “Lubock Hidro Whiskey”, no valor de € 2.477,15, acrescido de IVA 23%, num total de € 3.046,89. [Vide fls. 94 dos autos principais] 10) Factura nº 2017/406 emitida em 08/09/2017, com vencimento em 07/12/2017, referente a 3 930,75 peles “Scout Navy”, no valor de € 9.826,88, acrescido de IVA 23%, num total de €12,087,76. [Vide fls. 95 dos autos principais] 11) Factura nº 2017/425 emitida em 15/09/2017, com vencimento em 14/12/2017 referente a 922 artigos denominados “Lubbock Navy”, no valor de € 2.397,20, acrescido de IVA 23%, num total de €2.948,56. [Vide fls. 112 do Apenso A”] 12) Factura nº 2017/434 emitida em 22/09/2017, com vencimento em 21/12/2017, referente a 19 artigos denominados “Amostra Nubuck”, no valor de € 45,60, acrescido de IVA 23%, num total de €56,09. [Vide fls. 85 dos autos principais] 13) Factura nº 2017/453 emitida em 29/09/2017, com vencimento em 28/12/2017, referente a 18,25 artigos denominados “Pull Up Visaquivart castanho escuro”, 22,75 artigos denominados “Pull Up Visaquivart Navy” e 23,50 artigos denominados “Pull Up Visaquivart Tan”, tudo no valor de € 167,70, acrescido de IVA 23%, num total de € 206,27. [Vide fls. 84 dos autos principais] Pagamentos 2.1.12. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., pagou à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., as facturas nºs 2017/194, 2017/212 e 2017/271, referidas no ponto anterior sob as alíneas 1), 2) e 3). [Admitido no artigo 23º do articulado de resposta às excepções nos autos principais] Defeitos corrigidos 2.1.13. Em 04 de Maio de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. devolveu à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., 2.879,50 pelas Scout Brown, com a finalidade de a mesma fixar o acabamento das mesmas [Vide doc. de fls. 96] 2.1.14 A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., procedeu à rectificação pedida pela sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. e em 11 de Maio de 2017, remeteu a esta sociedade as peles rectificadas, sem debitar qualquer custo. [Vide doc. de fls. 97] 2.1.15. Em 05 de Junho de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. devolveu à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A, 5.320,00 e 908.75 peles Scout Brown, com a finalidade da mesma rectificar a cor das peles. [Vide doc. de fls. 98] 2.1.16. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., procedeu à rectificação pedida pela sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., e em 06 de Junho de 2017, remeteu a esta sociedade as peles rectificadas, sem debitar qualquer custo. [Vide doc. de fls. 99] 2.1.17. Em 20 de Junho de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. devolveu à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A.,3.179,85 peles Scout Navy, com a finalidade da mesma rectificar o brilho das peles.[Vide doc. de fls. 100] 2.1.18. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., procedeu à rectificação pedida pela sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., e em 21 de Junho de 2017, remeteu a esta sociedade as peles rectificadas, sem debitar qualquer custo. [Vide doc. de fls. 101] 2.1.19. Em 12 de Julho de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. devolveu à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., 4.050,00 e 1.539,75 peles Scout Navy, com a finalidade da mesma rectificar a cor das peles. [Vide doc. de fls. 102] 2.1.20. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., procedeu à rectificação pedida pela sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., e em 13 de Julho de 2017, remeteu a esta sociedade as peles rectificadas, sem debitar qualquer custo.[Vide doc. de fls. 103] 2.1.21. Em 21 de Julho de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. devolveu à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., 2.327,75 e 3 818,25 peles Scout Navy, e 2.667,50 peles Scout Brown, com a finalidade da mesma rectificar a cor das peles. [Vide doc. de fls. 104 e 105] 2.1.22. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., procedeu à rectificação pedida pela sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., e em 25 de Julho de 2017, remeteu a esta sociedade as peles rectificadas, sem debitar qualquer custo. [Vide doc. de fls. 106] Defeitos – Denúncia 2.1.23. Após recepcionar as peles fornecidas pela sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., procedeu à confecção de vários pares de sapatos, os quais remeteu à sua cliente “Dubarry of Ireland”. 2.1.24. Em 26 de Setembro de 2017 a “Dubarry of Ireland”, informou a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. que iria devolver 660 pares de sapatos com as peles “Scout Brown” devido a um problema com a cor dos mesmos. [Vide doc. de fls.16 do Apenso A e fls. 11v dos autos principais] 2.1.25. Quantidade não concretamente apurada de peles fornecidas pela sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., quando sujeitas a pressão, designadamente através da fricção com alguma superfície, fica riscada, não voltando à cor e forma original. [Vide relatório pericial] 2.1.26. A sociedade “Dubarry of Ireland” reclamou à sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda, da perda da cor dos sapatos confecionados com peles “Scout Brown”, em 01, 26, 28, 29 de Setembro de 2017 e 2 de Outubro de 2017 [ Vide docs. de fls. 10, 11, 12 e 13) 2.1.27. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., reendereçou as reclamações para a sociedade Laborpele – Representações de Curtidos Lda. 2.1.28. Em 17 de Outubro de 2017, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., enviou à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., o escrito de fls. 24v dos autos principais, no qual informa que em 28/09/2017 emitiu as Notas de Devolução nºs 2017/59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67 e 68 referente a várias facturas de fornecimento de peles, justificando tal devolução “..pelo facto de a mercadoria não estar em condições para entrar em produção” [Vide fls. 24v dos autos principais] 2.1.29. As notas de devolução referidas no ponto anterior são do seguinte teor: 1) Nota de devolução nº 2017/59 emitida em 28/09/2017, referente a 1.618,75 peles “Scout Brown” fornecidas através da factura nº 2017/310 de 14/06/2017, com vencimento em 12/09/2017, com a nota de “Tinta descasca” [Vide docs de fls. 32 e 90 dos autos principais] 2) Nota de devolução nº 2017/60 emitida em 28/09/2017, referente a 2.746,50 e 2.864,50 peles “Scout Brown” fornecidas através da factura nº 2017/371 de 21 de Julho de 2017, com vencimento em 19/10/2017, com a nota de “Fraca qualidade”. [Vide docs. de fls. 32v e 92 dos autos principais] 3) Nota de devolução nº 2017/61 emitida em 28/09/2017, referente a 780,00 e 4,516,50 peles “Scout Brown” fornecidas através da factura nº 2017/338 de 30 de Junho de 2017, com vencimento em 28/09/2017, com nota de “Mercadoria não conforme”. [Vide docs de fls. 26v e 91 dos autos principais] 4) Nota de devolução nº 2017/63 emitida em 29/09/2017, referente a 2.956,50 e 3.146,00 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/284, de 02 de Junho de 2017, com vencimento em 31/08/2017, com nota de “Cor não conforme”. [Vide doc. de fls. 29 e 89 dos autos principais] 5) Nota de devolução nº 2017/64 emitida em 29/09/2017, referente a 6.169,75 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/338, de 30 de Junho de 2017, com vencimento em 28/09/2017, com nota de “Mercadoria não conforme” [Vide doc. de fls. 33 e 91 dos autos principais] 6) Nota de devolução nº 2017/65, emitida em 29/09/2017, referente a 6.452,75 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/367, de 14 de Julho de 2017, com vencimento em 12 de Outubro de 2017, com nota de “Mercadoria N/ conforme”. [Vide doc. de fls.28v e 93 dos autos principais] 7) Nota de devolução nº 2017/66, emitida em 29/09/2017, referente a 5.877,75 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/371 de 21 de Julho de 2017, com vencimento em 19/10/2017, com a nota de “Mercadoria não conforme”. [Vide doc. de fls.28 e 92 dos autos principais] 8) Nota de devolução nº 2017/67 emitida em 29/09/2017, referente a 3.930,75 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/406 de 08 de Setembro de 2017, com vencimento em 07/12/2017, como nota de “Mercadoria não conforme”. [Vide doc. de fls. 27v e 95 dos autos principais] 9) Nota de devolução nº 2017/68, emitida em 29/09/2017, referente a 26,00 peles “Scout Navy”, fornecidas através da factura nº 2017/338 de 30 de Junho de 2017, com vencimento em 28/09/2017, com nota de “Mercadoria não conforme”. [Vide doc. de fls.27 e 91 dos autos principais] 2.1.30. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., recepcionou as notas de devolução supra referida e devolveu as mesmas, não aceitando as devolução, com a seguinte justificação: “Todos os fornecimentos referenciados nas nossas facturas corresponderam à entrega de peles na sequência de encomendas correspondentes a artigos standard sem qualquer requisito específico e que não mereceram da vossa parte qualquer reclamação ou reparo” [Vide doc. de fls.34 a 34v] 2.1.31. Em 07 de Novembro de 2017 a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., enviou à sociedade Nova Pelteci-Peles S.A, mais duas notas de devolução com o seguinte teor: 1) Nota de devolução nº 2017/76 emitida em 07/11/2017 referente a 2.569,50 peles “Scout Brown”, fornecidas através da factura nº 2017/382 de 28 de Julho de 2017, com vencimento em 26/10/2017, como nota de “Fraca qualidade saída de tinta”. [Vide doc. de fls. 40 e 94 dos autos principais] 2) Nota de devolução nº 2017/77, emitida em 07/11/2017 referente a 2.540.75 peles “Scout Brown”, fornecidas através da factura nº 2017/371 de 21 de Julho de 2017, com vencimento em 19/10/2017, com a nota de “Fraca qualidade saída de tinta”. [Vide doc. de fls40v e 92 dos autos principais] 2.1.32. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., recepcionou as notas de devolução supra referida e devolveu as mesmas, não aceitando a devolução, com a seguinte justificação: “Todos os fornecimentos referenciados nas nossas factura corresponderam à entrega de peles na sequência de encomendas correspondentes a artigos standard sem qualquer requisito específico e que não mereceram da vossa parte qualquer reclamação ou reparo” [Vide doc. de fls. 35] Devoluções aceites 2.1.33. Na sequência de reclamação de João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., a sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., aceitou a devolução das seguintes mercadorias: 1) Em 31/07/2017, 2.167,25 peles Scout Brown no valor de € 5.851,58, acrescido de IVA 23%, num total de € 7.197,44, referente à factura nº 2017/271 de 31/05/2017, tendo em 08/09/2017 emitido a Nota de Crédito nº 2017/77, no valor de €7.197,44; [Vide doc. de fls. 107] 2) Em 31/07/2017, 1.933,50 peles Scout Navy no valor de €4.833,75, acrescido de IVA 23%, num total de € 5.945,51, referente à factura nº 2017/284 de 02/06/2017, tendo em 08/09/2017 emitido a Nota de Crédito nº 2017/76 no valor de € 5.945,51; [Vide doc. de fls. 108] 3) Em 28/09/2017, 5.296,50 peles Scout Brown, no valor de €14.300,55, acrescido de IVA 23%, num total de € 17.589,68, referente à factura nº 2017/338 de 30/06/2017, tendo em 30/05/2018 emitido a Nota de Crédito nº 2018/27 no valor de €17.589,68. [Vide doc. de fls. 109] * B – QUANTO A FACTOS NÃO PROVADOSConsiderou o tribunal recorrido que com interesse para a decisão da causa não logrou provar-se: 2.2.1. A devolução de 660 pares de sapatos pela sociedade “Dubarry Of Ireland”, representou para a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., um prejuízo de €45,790,00, referente a desconto por atraso na entrega da encomenda de sapatos confecionados com as peles “Scout Brown”. 2.2.2.O preço de venda dos sapatos confecionados com as peles “Scout Brown” e “Scout Navy” é de €22,10 o par. 2.2.3. De modo a fazer face à encomenda da sociedade “Dubarry Of Ireland”, a sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda. , teve que adquirir novas peles a outro fornecedor. 2.2.4. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., apenas se apercebeu do defeito existente nas peles fornecidas pela sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., em consequência da devolução efectuada pela sociedade “Dubarry Of Ireland”. 2.2.5. A sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., sabia que o tipo de pele fornecido à sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., não é adequado ao tipo de produção de calçado que esta desenvolve. 2.2.6. Neste tipo de indústria os defeitos que possa ocorrer na pele não são detectáveis no momento de entrega das pelas, mas apenas após o processo de produção a que se destinam e em certos casos após o uso do sapato. * V – DO OBJECTO DO RECURSO1 - Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC). No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resumem-se em conhecer antes do mais da impugnação do julgamento da matéria de facto feito na primeira instância e em seguida conhecer da eventual verificação da “excepção de não cumprimento”, invocada pela recorrente, e possíveis consequências jurídicas. * VI – FUNDAMENTAÇÃOA – QUANTO AOS FACTOS Em face da apelação da recorrente, nomeadamente das suas conclusões, constata-se que o recurso visou em primeiro lugar a impugnação do julgamento da matéria de facto, nalguns pontos concretos. Como se sabe, a possibilidade de impugnação do julgamento da matéria de facto por via de recurso está regulada no art. 640º do Código de Processo Civil, que estabelece, nomeadamente, os ónus a cargo do recorrente que pretenda fazer essa impugnação. Vistas as conclusões da recorrente, afigura-se que as mesmas estão longe de corresponder ao que seria expectável, face ao estatuído no referido art. 640º, n.º 1, do CPC. Na verdade, a recorrente indica expressamente nas conclusões aquilo que pretende seja dado como provado, permitindo facilmente entender que pretende que seja feito um aditamento a um dos factos enumerados pelo julgador como provados e pretende que sejam dados como provados dois pontos que o julgador declarou não provados. Porém, essa compreensão plena só se alcança recorrendo ao corpo das alegações, onde se identificam os pontos impugnados e quais os fundamentos para a sua alteração, no que se refere a meios de prova. Vem a propósito sublinhar que para além da função delimitadora do objecto do recurso a obrigação de sintetizar nas conclusões aquilo que o recorrente pretende do tribunal visa também assegurar o exercício eficaz do contraditório, permitindo à contraparte a correcta compreensão do que está em causa. No caso presente, verifica-se que a parte recorrida não teve dúvidas em identificar quais os pontos da matéria de facto que estavam em causa na impugnação deduzida, quais as respostas solicitadas pela recorrente e quais os meios de prova invocados para sustentar as suas pretensões. Assim, e embora se afigure desejável o melhor cumprimento das exigências do aludido art. 640º, afigura-se que será uma consequência excessiva a rejeição do recurso nesta parte da impugnação da matéria de facto. A este propósito, remetemos para o teor do Acórdão do STJ de 17-11-2021, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1.S1, relatado por Tibério Silva (in www.dgsi.pt), no qual se defende expressamente que não deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto quando o tribunal, pela conjugação entre as alegações e as conclusões, possa identificar com clareza as questões colocadas pelo recorrente (os pontos impugnados, as respostas desejadas, os meios de prova que imponham essa alteração). Assim, e pese embora a deficiência técnica apontada, não rejeitamos a impugnação da matéria de facto apresentada, passando a conhecer dos pontos a apreciar, de acordo com as citadas conclusões e antecedente motivação. A recorrente alude em primeiro lugar ao ponto 2.1.27 da matéria de facto provada, que reputa de erradamente julgado, pretendendo que seja aditada a expressão “em 29 de maio de 2017, comunicando os defeitos”. O tribunal consignou apenas o seguinte: “2.1.27. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., reendereçou as reclamações para a sociedade Laborpele – Representações de Curtidos Lda.” Segundo a recorrente, esse aditamento resultaria do depoimento da testemunha AA, representante da referida Laborpele, conjugado com o documento n.º 1 junto com a petição inicial. Acontece, porém, que o aludido 2.1.27. surge na sequência do anterior ponto 2.1.26. no qual o julgador consignou o seguinte: “2.1.26. A sociedade “Dubarry of Ireland” reclamou à sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda, da perda da cor dos sapatos confecionados com peles “Scout Brown”, em 01, 26, 28, 29 de Setembro de 2017 e 2 de Outubro de 2017.” Por conseguinte, a relação entre o conteúdo do ponto 2.1.6 com o ponto 2.1.7 impede obviamente que seja colocada neste segundo a data de 19 de Maio de 2017 como sendo a data de reencaminhamento das reclamações mencionadas no primeiro, todas datadas de Setembro e Outubro (aliás, o julgador consignou até que “ordenou-se cronologicamente a factualidade dada como provada a fim de facilitar a sua compreensão”). E acrescenta-se que, atento o depoimento da testemunha AA, nunca este referiu a data de 29 de Maio de 2017. Antes explicou muito claramente que houve situações diferentes, em momentos distintos, sendo que numa primeira partida da mercadoria entregue surgiram algumas deficiências, esse problema foi identificado e foi reportado à Autora, e terá sido resolvido (como consta da matéria de facto, pontos 2.1.13 a 2.1.22, houve então devoluções aceites). A esse primeiro momento se reporta certamente a comunicação reencaminhada de 29 de Maio, e não aos outros problemas que a testemunha refere quando diz que num momento posterior, que foi já “depois das férias”, começaram a surgir alguns problemas e a recorrente devolveu uma série de partidas da mercadoria por não estarem em condições (sendo estes problemas que estão em causa nos autos). Pelo exposto, indefere-se a pretendida alteração, mantendo-se inalterado o ponto em análise. Segue-se que a recorrente impugna o veredicto de não provado em relação a dois pontos da matéria não provada: 2.2.4. A sociedade João Batista Pereira Coelho & Filhos Lda., apenas se apercebeu do defeito existente nas peles fornecidas pela sociedade Nova Pelteci-Peles S.A., em consequência da devolução efectuada pela sociedade “Dubarry of Ireland”. 2.2.6. Neste tipo de indústria os defeitos que possa ocorrer na pele não são detectáveis no momento de entrega das peles, mas apenas após o processo de produção a que se destinam e em certos casos após o uso do sapato. A este respeito, justificou-se na sentença recorrida que estamos perante uma compra e venda sobre amostra, de acordo com características que o próprio comprador impôs, e ao comprador cabia analisar a mercadoria fornecida de acordo com a amostra, tal como fizeram os peritos. Se as peles foram observadas pelos peritos que verificaram a existência ou não de defeitos, não faz sentido que a sociedade compradora destinando as peles à fabricação de sapatos não verificasse se os mesmo estavam ou não conforme as amostras, tanto mais que, após a recepção, as peles ainda seriam manipuladas durante o processo de fabrico de sapatos, como decorre das regras da experiência comum; finalmente quanto à detecção tardia de defeitos referida, não só a prova produzida sobre tal facto não foi concludente, como, havendo amostra, inexiste qualquer defeito se o produto fornecido for igual à amostra. Para apoiar a sua pretensão de que sejam dados como provados esses pontos a recorrente invoca o depoimento da testemunha AA, o relatório pericial e os esclarecimentos prestados em sede de audiência pelo perito BB. Analisados os meios de prova em referência, entende-se que os mesmos não conduzem de modo nenhum à prova da factualidade pretendida. Com efeito, da prova pericial não pode evidentemente decorrer qual o momento em que a recorrente se apercebeu dos defeitos a que alude, mas esta contraria frontalmente a realidade da afirmação de que esse conhecimento só poderia acontecer após o processo de produção a que se destinam. Na verdade, os próprios peritos trabalharam sobre as partidas de peles rejeitadas, e puderam verificar o que se encontrava conforme às amostras a considerar quais as que não estavam. Do teor do relatório pericial, nomeadamente dos seus pontos 9 e 10 resulta precisamente a possibilidade de detecção dos defeitos através de um exame às peles. Aliás, se, como consta da factualidade provada ( pontos 2.1.13 a 2.1.22), no período entre Maio e Julho de 2017 a recorrente devolveu mercadoria à Autora para que esta fixasse o acabamento das peles e no mesmo período a Autora procedeu à rectificação pretendida, então de igual modo poderia a Ré, responsável pelo processo produtivo e com os seus próprios controlos de qualidade, aperceber-se de eventuais defeitos nas mercadorias recepcionadas em Setembro e Outubro, sem necessitar da comunicação posterior dos seus próprios clientes, após ter fornecido a estes os sapatos. Não leva a conclusão diferente o depoimento da testemunha AA, quando este declara e distingue que houve “duas situações no tempo! Primeiro: a primeira ou a segunda partida deu origem, foi na primeira partida entregue deu origem a alguns pares com deficiência, mas, mas esse problema foi identificado efoi reportado à Nova Pelteci! Entretanto havia a produção em curso. Já estivemos muito mais cuidadosos no que diz respeito à fixação das peles posteriores a essa primeira entrega (…)” Ou seja, deduz-se que era perfeitamente possível à recorrente identificar os problemas na mercadoria que encomendara e recebia. Em conclusão: julgamos que os meios de prova indicados não conduzem à prova dos factos em discussão, pelo que julgamos improcedente a impugnação da matéria de facto, mantendo inalterado o julgamento feito na primeira instância. * B – QUANTO AO DIREITOContinuando a ter presentes as conclusões da recorrente, delimitadoras do objecto do recurso, resta-nos analisar os seus argumentos de Direito, com que pretende atacar o que foi decidido na sentença recorrida. Anota-se que o pedido formulado no final consiste em que se absolva a Recorrente na acção principal e se condene a Recorrida no que se refere à acção apensa. Resultando essas almejadas decisões deste tribunal de recurso como consequência de “considerar verificada a exceção de não cumprimento invocada pela Recorrente, uma vez que os defeitos da mercadoria entregue por conta do contrato de compra e venda por amostra, celebrado entre Recorrente e Recorrida, foram reclamados em data anterior à última entrega de mercadoria e, sempre e em todo o caso, o prazo estabelecido no art.º 471.º, do Cód. Comercial, se conta a partir do momento em que o comprador, aqui Recorrente, atuando com a diligência exigida ao tráfego comercial, teria descoberto os defeitos.” Afigura-se francamente que as pretensões da recorrente não podem proceder. Como realça a sentença recorrida, aplicando o direito à matéria de facto apurada, estamos perante um contrato de compra e venda, contrato que é simultaneamente real e obrigacional. Real por ter como consequência a transferência da propriedade; obrigacional porque do contrato nascem obrigações para ambas as partes (a obrigação de o vendedor entregar a coisa e a obrigação do comprador pagar o preço – cfr. artº 879º do Cód. Civil). Neste caso específico e dada a natureza jurídica da vendedora e da compradora e o destino dos bens objecto do referido contrato estamos perante uma compra e venda mercantil. Com efeito, a sociedade compradora destinava os produtos adquirido à confecção de sapatos para depois os vender a terceiros. [Vide 2.1.3. a 2.1.6.] Segue-se que a sociedade vendedora peticiona o pagamento de diversas facturas, referente a fornecimento de mercadorias, que foram entregues e não foram pagas pela sociedade compradora. Por sua vez, a sociedade compradora invoca em sua defesa a “excepção de não cumprimento” (não discutiremos aqui, por desnecessidade, a adequação dessa qualificação jurídica), alegando a não conformidade das mercadorias vendidas, face ao que foi acordado. (Sendo esse cumprimento defeituoso também o fundamento para os pedidos indemnizatórios apresentados pela Ré na acção apensa, em que é Autora). Contra essa defesa a Autora contrapõe a “caducidade” do eventual direito resultante do cumprimento defeituoso, declarando ter decorrido o prazo de 8 dias a que alude o artigo 471º do Código Comercial, sem que a Ré tivesse reclamado os defeitos que agora alega. O aludido art. 471º do Código Comercial estatui, referindo-se à venda por amostra e à compra de coisas que não estejam à vista, que “As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.” Por outras palavras, nestas modalidades da compra e venda o negócio perfectibiliza-se caso não surja reclamação contra a qualidade dos produtos comprados no prazo de oito dias a contar da entrega. Não pode depreender-se outro critério de contagem, perante a referência expressa ao acto da entrega. O comprador deve examinar as coisas compradas “no acto da entrega”. Se não o fizer no acto, tem ainda oito dias para o fazer e reclamar. Nada fazendo nesse prazo, já não o poderá fazer. Não encontramos motivo para discordar da sentença recorrida quando qualifica a relação em causa nos autos como sendo de compra e venda mercantil, atendendo quer à natureza dos intervenientes (duas sociedades comerciais) quer ao negócio praticado (a vendedora no exercício da sua actividade vende peles à compradora, que as adquire para fabrico de calçado, que posteriormente vende aos seus clientes). Recordamos que o art. 2º do Código Comercial estatui que: "Serão considerados actos do comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e além deles todos os contratos e obrigações dos comerciantes que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar". Assim sendo, também não há que discordar quanto à aplicabilidade do art. 471º do Código Comercial. E a recorrente também não o faz, não contestando estes fundamentos de direito, antes centrando a sua discordância na contagem do prazo previsto no citado art. 471º. Diga-se, todavia, a esse respeito, que, perante o que ficou provado nos pontos 2.1.28. a 2.1.32. dos factos provados, a polémica sobre a contagem do prazo referido não aproveita à recorrente. Na realidade a hipotética relevância dessa questão dependeria de prova que a recorrente não fez. A recorrente argumenta que “o prazo estabelecido no art.º 471.º, do Cód. Comercial, se conta a partir do momento em que o comprador, aqui Recorrente, atuando com a diligência exigida ao tráfego comercial, teria descoberto os defeitos”, mas não ficou provada factualidade que permita concluir que só lhe foi possível descobrir os defeitos dentro dos oito dias anteriores ao momento em que os reclamou, em 17 de Outubro de 2017. E, de acordo com o que consta do ponto 2.1.11., todos os fornecimentos decorreram entre 13 de Abril e 09 de Setembro de 2017. Temos, por isso, que considerar, apenas, face ao conteúdo das notas de devolução e às datas das facturas a que se reportam (vide n.ºs 2.1.28. a 2.1.32. dos factos provados), que todas essas devoluções ocorreram muito depois de decorridos oito dias sobre os fornecimentos de mercadoria a que se referem – e nada nos permite dizer que a recorrente não podia ter constatado as desconformidades que aponta a essas mercadorias dentro do prazo de oito dias após o respectivo fornecimento. Desta forma, as reclamações em referência (pontos 2.1.28. a 2.1.32. dos factos provados), remetidas a 17 de Outubro, estavam manifestamente fora de tempo. Note-se que as reclamações em causa, constantes da comunicação de 17 de Outubro, referem-se a mercadoria que a reclamante considerou não estar em condições para entrar em processo de produção, e que pretendeu devolver, e por isso não se podem confundir com aquela a que se referem as reclamações oriundas do cliente irlandês “Dubarry of Ireland”, mencionadas nos pontos 2.1.24. a 2.1.27. as quais foram recebidos pela Ré em 01, 26, 28, 29 de Setembro de 2017 e 2 de Outubro de 2017 e reencaminhados por esta para a sociedade Laborpele – Representações de Curtidos Lda. Com efeito, referindo-se essas reclamações aos sapatos fornecidos pela Ré à dita sociedade irlandesa, obviamente que estes foram confecionados com outras peles que não aquelas que a Ré pretendeu devolver, que não chegaram a entrar em processo de produção. E uma vez que essas peles utilizadas no fabrico desse calçado tinham sido recebidas e utilizadas pela Ré, sem reclamação alguma, e usadas por ela no seu processo produtivo, elas só podem ter sido recebidas numa fase do relacionamento comercial em causa (os fornecimentos começaram em Abril) bem anterior aos lotes que a Ré pretendeu devolver sem que chegassem a entrar nesse processo produtivo, e a que se referem as suas notas de devolução. Ora, repete-se os fornecimentos terminaram a 09 de Setembro de 2017 e a reclamação da Ré data de 17 de Outubro seguinte, pelo que sempre estaria excedido o prazo de oito dias para reclamações. Acrescente-se ainda que a interpretação e aplicação do art. 471º do Código Comercial, no sentido assumido pela sentença em apreço, afigura-se ser aquela que corresponde ao entendimento da jurisprudência, e que também a nós se nos afigura ser acertada. Veja-se a este respeito, por todos (sempre em www.dgsi.pt): - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 2021, no processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1, relator Fernando Baptista. - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-02-2014, no processo n.º 10737/08.0TBVNG.P1.S2, relator João Trindade. - Ac. Relação de Lisboa de 27-10-2022, no processo n.º 154/20.0T8LRS.L1-6, relator Manuel Rodrigues. - Ac. Relação do Porto de 09-05-2019, processo n.º 9188/18.3YIPRT.P1, relator Carlos Portela. - Ac. Relação de Guimarães de 16-05-2013, no processo n.º 4223/11.9TBGMR.G1, relator Helena Melo. Temos, portanto, como certo que o art. 471.º do Código Comercial contém um regime mais restritivo de denúncia dos defeitos que o da lei civil, pelo que, não sendo examinada a mercadoria e reclamados pelo comprador quaisquer defeitos no prazo de oito dias após a entrega, considera-se o contrato concluído e perfeito, passando para o comprador a propriedade e riscos da coisa e caducando o direito que porventura tivesse de reclamar sobre esse ponto. Este prazo de 8 dias conta-se a partir da entrega do bem, a não ser que o comprador demonstre que só lhe foi possível ter conhecimento do defeito em momento posterior, mesmo usando da diligência exigível ao tráfego comercial, o que não aconteceu no caso sub judice. E repare-se que mesmo aplicando-se ao caso o regime civilista e não o mercantil ainda assim o prazo de 30 dias previsto para a denúncia de defeitos no art. 916º do Código Civil teria sido excedido. Com efeito, este prazo conta-se a partir do conhecimento do defeito, mas face à factualidade apurada é de concluir que a Ré constatou a existência dos defeitos reclamados em momento que não ultrapassa 9 de Setembro, visto que foi nessa data o último dos fornecimentos, e nunca incluiu esses fornecimentos reclamados no seu processo produtivo, como teria acontecido se não tivesse verificado esses defeitos. A reclamação, como se disse, data de 17 de Outubro seguinte. Assim sendo, e regressando ao caso presente, é forçoso concluir que a Ré está adstrita à obrigação resultante do contrato de compra e venda que celebrou, e que é pagar o respectivo preço - cfr. artº 879º do Cód. Civil. Tal como foi entendimento da primeira instância, nada há a opor ao pedido da sociedade Autora, tendo ela direito a receber da sociedade demandada a quantia peticionada. Inversamente, nada na factualidade disponível permite alicerçar as pretensões da Ré contra a Autora (sem cuidar agora de discutir quais seriam os seus direitos, no caso de haver reclamação relevante). Em conclusão, julgamos não assistir razão à recorrente na questão colocada ao tribunal; e, uma vez que mais nenhum fundamento é apresentado na apelação, improcedendo este fundamento improcede também o recurso. * VII - DECISÃOPor todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação em apreço, confirmando a sentença recorrida. Custas pela recorrente, considerando o decaimento verificado (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC). * Évora, 23 de Novembro de 2023* José Lúcio Manuel Bargado Albertina Pedroso |