Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3095/11.8TBEVR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
MÁ FÉ
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- A utilização do processo de insolvência para cobrança de um só crédito não integra o dolo exigido pelo art.º 22.º, CIRE.
II- O tribunal de recurso não pode alterar a matéria de facto se tal não lhe for pedido nos termos do art.º 640.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil.
III- Se o tribunal recorrido se pronunciou expressamente sobre determinados factos (dando-os por não provados), não pode o tribunal de recurso alterar tal resposta por inferência de outros factos que ficaram provados.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

AA, LDA. e BB propuseram a presente acção declarativa comum, que moveram contra a R. CC – SA peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de €650.000,00.
Alegaram, para tanto, a R. intentou um procedimento de injunção, onde reclamava a condenação da ora 1ª A. no pagamento da quantia de €2.677,60. Não tendo havido oposição, foi aposta fórmula executória.
Munida de um título executivo, em vez que ter proposto a subsequente acção executiva, requereu a insolvência da 1ª A., alegando factos que não correspondiam à verdade (ex: existências de acções judiciais contra a 1ª A., pelo facto de esta ter incumprido alguma obrigação; existência de dívidas aos bancos, à Segurança Social e à Fazenda Nacional; inexistência de património que responda pelas dívidas, etc…).
A R. acabou por desistir do pedido de insolvência.
Todavia, a forma como actuou, com negligência grosseira ou com dolo, uma vez que alegou factos que não correspondiam à verdade, acabou por causar prejuízos nos AA.
No que respeito à 1ª A., viu a empresa “DD”, com quem se encontrava a negociar a venda de três armazéns e já havia acordado o preço de venda (€ 6.000.000,00), desistir do negócio. Para além da venda dos três armazéns, a “DD” deixou ainda de pretender participar no capital social da 1ª A. e da sociedade anónima.
Deste modo, ficou impedida de auferir um ganho não inferior a 10% com a venda dos imóveis.
Por outro lado, os fornecedores deixaram ainda de lhe fornecer a crédito e, bem ainda, às sociedades que integravam o grupo empresarial “AA”.
No que respeita ao 2.ª A., alegou que, na sequência do processo de insolvência, se sentiu triste, abalado, confuso, apontado como sendo um mau gestor e colocado em causa o seu bom nome.
Quantificou os prejuízos não patrimoniais no montante de €20.000,00.
A R. contestou invocando as excepções dilatórias da ilegitimidade processual activa do 2º A. e a existência de caso julgado.
Impugnou, grosso modo, a factualidade da petição inicial e peticionou a condenação dos AA. como litigantes de má fe.
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Os AA. replicaram, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pela R..
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Foi proferido despacho, no dia 15.03.2013, transitado em julgado, a julgar procedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual activa, absolvendo a R. da instância no que concerne à pretensão do 2º A. (fls. 267).
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O Tribunal também julgou procedente a excepção de caso julgado, absolvendo a R. da instância (fls. 288). Interposto recurso deste despacho, o Tribunal da Relação de Évora julgou procedente o recurso.
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O processo, então, prosseguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a R. do pedido.
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Desta sentença recorre a R. pedindo a sua revogação e condenação da R. no pedido ou remetendo para liquidação em sede de execução de sentença.
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A recorrida contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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A recorrente alega que foi indicado como tema de prova o saber se a Ré, ao requerer a insolvência da A., teve como escopo único a obtenção do pagamento do seu crédito, sendo certo que a resposta à matéria de facto não se pronuncia sobre isto.
Tem razão nestes dois elementos; o tribunal deveria ter respondido expressamente àquela questão, fosse num sentido ou no outro. E a lei pretende esta resposta expressa no art.º 607.º, n.º 4, Cód. Proc. Civil, o que tem todo o sentido ao conjugarmos esta norma com o disposto no art.º 640.º, n.º 1, al. a) (o que é aqui inviável porque não estamos perante um facto provado ou não provado mas perante uma omissão).
Esta lacuna, no entanto e neste caso concreto, pode ser colmatada face aos próprios termos da sentença. Pela leitura desta e pela sua interpretação, é possível a este tribunal dar a resposta que o tribunal de 1.ª instância não deu e que deveria ter dado. Tal resposta é positiva, isto é, no sentido de que a R. ao requerer a insolvência da A., teve como escopo único a obtenção do pagamento do seu crédito. É isto que resulta dos depoimentos das testemunhas EE e FF e consta da própria sentença. Com efeito, e como nota a recorrente, a sentença refere expressamente o seguinte:
«A este respeito [se a R. actuou com a intenção de causar prejuízos], e tendo presente os depoimentos das testemunhas EE e FF, resultou destes depoimentos que a R. não tinha qualquer relação de inimizade com a 1ª A. e que apenas pretendeu obter o pagamento, por parte, desta A., do seu crédito». Só por lapso, este facto não ficou a constar da matéria de facto. Aliás, parece-nos que isto é aceite pela recorrida quando afirma, nas suas contra-alegações, o seguinte: «Ficou amplamente demonstrado na audiência de discussão e julgamento que a Recorrida não teve nenhuma intenção, em causar prejuízos à Recorrente, pretendendo apenas cobrar o seu crédito e nada mais».
Cremos, por isso, que deve ser a ela acrescentado.
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A matéria de facto é a seguinte:
Discutida a causa, encontra-se provada a seguinte factualidade com relevo para a boa decisão:
1. No dia 17.05.2011, a R. instaurou procedimento de injunção contra a 1ª A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 2.360,69, acrescida de juros de mora referente a facturas vencidas entre 31.03.2010 e 31.03.2011, que não foram pagas.
2. A 1ª A. não deduziu oposição à injunção, tendo sido aposta fórmula executória ao requerimento de injunção.
3. No dia 04.07.2011, a R. requereu a insolvência da 1ª A., dando início ao Proc. nº 1712/11.9TBEVR, que correu termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial, alegando, designadamente, que:
«7º
Credores conhecidos:
(…)
Quanto aos cinco maiores credores desde já se requer que a requerida seja notificada para os vir indicar, cfr. artigo 23º, nº 3 do CIRE.
Requer-se, ainda, que sejam notificadas a Fazenda Pública e a Segurança Social para virem indicar as execuções pendentes contra a requerida.
8.º
Tais incumprimentos da requerida, bem revelam o disposto no artigo 3º do CIRE, i. é.
A impossibilidade de cumprir, suas obrigações vencidas.
10º
Para além de ser também um dos factos-índices da situação de insolvência, previstas na alínea b) do nº 1 do artigo 20º do CIRE.
11º
A data dos débitos da requerida remontam ao ano de 2008.
12º
Pelo que a requerida deveria ter apresentado a sua declaração de insolvência nos 60 dias à data dos incumprimentos, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 18º do CIRE.
13º
Assim, o referido incumprimento constituiu a presunção de existência de culpa grave e, como tal, qualifica de culposa a insolvência, como decorre do disposto no nº 3 da alínea a) do artigo 186º do CIRE.
14º
Por essa razão, deve a insolvência da requerida ser qualificada como culposa , com as consequências daí advenientes.
Conclusão:
A requerente é credora da requerida.
A requerida tem inúmeros débitos pendentes de valor elevado.
Deve ao Estado e outros entes públicos.
Deve aos bancos.
Não lhe são conhecidos bens móveis ou imóveis para responder perante os seus credores.
Pelo que se mostram reunidos alguns dos factor-índice do artigo 20º do CIRE, conjugado com o artigo 3º do mesmo diploma.
Deste modo o credor goza da presunção de penúria da requerida, a qual apenas pode ser ilidida pelo mesmo. (…)».
4. A R. desistiu do pedido de insolvência, através de requerimento apresentado no dia 28.07.2011.
5. No dia 29.07.2011, foi proferido despacho a homologar a desistência do pedido.
6. À data do pedido de insolvência, a 1ª A. tinha algumas acções judiciais instauradas contra si, designadamente: a) Numa das acções que a “GG, SA” moveu contra a 1ª A., a GG reduziu o pedido, rectificando um lapso de facturação; b) Numa outra acção, a “GG SA” desistiu da instância, uma vez que reclamava o pagamento de montantes que já se encontravam pagos; c) A “Companhia de Seguros HH SA” intentou uma acção contra a 1ª A., no ano de 2007, a que prontamente pôs termo quando percebeu que reclamava o pagamento de um prémio de seguro, de cerca de € 700,00, que não lhe era devido; d) II deduziu incidente de embargos de terceiro na acção executivo onde a 1ª A. era exequente e a sociedade JJ SA era executada, uma vez o Sr. Agente de Execução procedeu à penhora de bens próprios do casal.
7. A 1ª R. não tinha dívidas vencidas junto das instituições bancárias, dos fornecedores, da Segurança Social e da Fazenda Nacional.
8. Consta da prestação de contas referente ao ano de 2008, depositadas na Conservatória do Registo Comercial, designadamente:
a) Activo:
Facturação: 3.608.725,28.
Resultado líquido de exercício: 27.828,42.
Imobilizações incorpóreas: 5.362,10 (activo bruto).
Imobilizações corpóreas: 2.829.989,30 (activo bruto).
Investimentos financeiros: 295.916,21.
Dívidas de terceiro – médio e longo prazo: 0.
Dívidas de terceiro – curto prazo: 2.770.375,81.
Depósitos bancários e caixa: 104.576,93.
Total do activo: 4.222.335,38.
b) Passivo:
Dívidas a terceiro – médio e longo prazo: 1.651.158,10 (1.441.438,18 a instituições de crédito; 209.719.92 referente a outros empréstimos obtidos).
Dívidas a terceiro – curto prazo: 1.255.885,20 (321.560,74 a instituições de crédito; 167.889,12 a fornecedores; 169,21 e 86.361,50 a fornecedores de imobilizado; 16.615,62 a outros accionistas; 52.923,02 ao Estado e outros entes públicos; 610.365,99 a outros credores).
Total do passivo: 2.961.157,35.
c) Total do capital próprio (activo-passivo): 1.261.178,03.
9. Consta da prestação de contas referente ao ano de 2009, depositadas na Conservatória do Registo Comercial, designadamente:
a) Activo:
Facturação: 3.339.872,15
Resultado líquido de exercício: 5.553,58.
Imobilizações incorpóreas: 6.862,10.
Imobilizações corpóreas: 2.845.394,69.
Investimentos financeiros: 297.416,21.
Dívidas de terceiro – médio e longo prazo: 0.
Dívidas de terceiro – curto prazo: 3.225.421,96.
Depósitos bancários e caixa: 110.257,65.
Total do activo: 4.504.754,74.
b) Passivo:
Dívidas a terceiro – médio e longo prazo: 1.697.956,48 (1.567.207,25 a instituições de crédito e 130.749,23 a fornecedores de imobilizado).
Dívidas a terceiro – curto prazo: 1.493.343,58 (285.332,10 a instituições de crédito; 359.151,09 a fornecedores; 6.617,20 a outros accionistas; 76.725,65 a fornecedores de imobilizado; 73.318,77 ao Estado e outros entes públicos; 692.198,77 a outros credores).
Total do passivo: 3.238.023,13.
c) Total do capital próprio (activo-passivo): 1.266.731,61.
Consta da prestação de contas referente ao ano de 2010, depositadas na Conservatória do Registo Comercial, designadamente:
a) Activo:
b) Resultado líquido de exercício: € 1.068,98.
c) Activo não corrente: 1.244.334,20 (activos fixos tangíveis e intangíveis, participações financeiras). Activo corrente: 873.560,60 (Estado e outros entes públicos, accionistas, diferimentos, etc., havendo € 137.535,41 em caixa e depósitos bancários).
Total do activo: 4.496.237,34.
b) Passivo:
Total do passivo: 3.229.505,73 (constando, entre outros itens, 1.145.359,15 de financiamentos obtidos, 167.313.92 a fornecedores; 47.377,52 ao Estado e a outros entes públicos; 108.342,80 de financiamentos obtidos).
c) Total do capital próprio – passivo: 1.266.731,61.
11. Consta da prestação de contas referente ao ano de 2011, depositadas na Conservatória do Registo Comercial, designadamente:
a) Activo:
Rendimento líquido; 2.129,96.
Activo não corrente: 1.169.762,59 (867.882,82 de activos fixos tangíveis, 279,77 de activos tangíveis, 301.600,00 em outros activos financeiros).
Activo corrente: 710.183,79 (sendo 494,77 em caixa e depósitos bancários).
Total do activo: 1.879.946,38.
b) Passivo:
Total do passivo: 1.239.745,83 (sendo, entre outros, 976.353,94 de financiamentos obtidos, 30.549,44 ao Estado e a outros entes públicos).
c) Total do capital próprio – passivo: 640.200,55.
12. A 1ª A. é uma sociedade por quotas que começou por ter por objecto social o comércio de armazenista de materiais de construção. No dia 13.07.2007, alterou o seu objecto social para o comércio por grosso de ferragens, ferramentas manuais, artigos para canalização e aquecimento, comércio a retalho de material de bricolage, equipamento sanitário, ladrilhos e materiais similares.
13. No dia 23.12.2010, parte do património da 1ª A. foi destacado e incorporado no património da sociedade “LL, SA”.
14. No dia 26.01.2011, a 1ª A. alterou o seu objecto social, passando a ter por objecto a compra, venda e arrendamento de bens imobiliários e, bem ainda, a administração de imóveis por conta de outrem.
15. A 1ª A. sempre procedeu ao depósito de contas junto da Conservatória de Registo Comercial.
16. Tem capital social de € 498.797,90.
17. À data da propositura do processo de insolvência, a 1ª A. tinha registado, em seu nome, como proprietária, os seguintes imóveis:
i. Prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 227/20060714 e na matriz predial urbana com o artigo 662.
ii. Prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 831/20070918 e na matriz predial urbana com o artigo 2185.
iii. Prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 102/20060622 e na matriz predial urbana com o artigo 510.
18. À data do pedido de insolvência, o imóvel referido em 13 – i) tinha registada uma hipoteca em nome do Banco, SA, com o capital de € 550.000,00 e o montante máximo segurado de € 720.401,00.
19. À data do pedido de insolvência, o imóvel referido em 13 – ii) tinha registada uma hipoteca em nome do Banco, SA, com o capital de €174.579,26 e o montante máximo segurado de €229.820,94.
20. Depois de desistir do pedido de insolvência, a R. instaurou contra a 1ª A. a acção executiva com o nº 2032/11.4TBEVR (2º Juízo Cível do Tribunal Judicial), no decurso da qual a 1ª A. liquidou a sua dívida.
21. A Sociedade “DD” encontrava-se a negociar com a sociedade “LL, SA” a aquisição, por parte da primeira, do modelo de negócio da segunda e que consistia na compra e venda por grosso e a retalho de materiais de construção, sanitários, sistema de aquecimento e condução de fluídos.
22. A “DD” teve conhecimento da existência do processo de insolvência, tendo sido um dos motivos que a levou a desistir das negociações referidas em 21).
23. Antes de dar início ao processo de insolvência, a R., por diversas vezes, diligenciou junto da 1ª A. pela cobrança do seu crédito, sem sucesso.
24. A Ré, ao requerer a insolvência da A., teve como escopo único a obtenção do pagamento do seu crédito
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A recorrente defende que os temas da prova ficaram provados à luz das respostas dadas à matéria de facto provada, das quais se destacam as respostas contidas nos n.º 1, 3, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 13, 17, 21 e 22.
Daqui conclui (porque não havia qualquer situação de insolvência) que existe dolo eventual na dedução desse pedido, louvando-se, designadamente no ac. da Relação de Coimbra de 12 de Junho de 2012. Baseia-se ainda na circunstância de ter sido utilizado o processo de insolvência quando se visava só a cobrança de um crédito.
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O art.º 22.º do CIRE é expresso em exigir o dolo por parte do requerente de insolvência; qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual) pode basear um pedido de indemnização.
O facto n.º 24 (que foi, agora, acrescentado) é revelador do dolo? Com base na sua materialidade, podemos dar por assente que a R., ao requerer a insolvência da 1ª A. nos termos em que o fez, admitiu como possível que os factos que alegou no requerimento inicial não correspondiam à verdade e, não obstante, conformou-se com esta possibilidade?
O citado acórdão defende que sim. Para melhor entendimento, transcreve-se parte do respectivo sumário:
I – A dedução de um pedido de declaração de insolvência por um credor do devedor visando pressionar este ao pagamento de determinado valor no quadro da discussão entre os dois do montante de um crédito, consubstancia um uso desviado do processo de insolvência (…).
II – A dedução desse pedido de insolvência, apurando-se a não verificação de qualquer das situações elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 20º do CIRE, confere ao comportamento do credor ao requerer essa insolvência a natureza de comportamento temerário (…).
III – A temeridade desta conduta do credor (…) colocam tal requerimento infundado de insolvência no domínio do dolo eventual.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar.
Se analisarmos com atenção o facto que neste acórdão se aditou (n.º 24), não vemos que tal constitua dolo eventual; vemos, antes sim, uma espécie de desvio de poder, isto é, a utilização de um meio para um fim diferente daquele para que a lei o estabeleceu. Existe vontade directa de iniciar um processo de insolvência mas só para ser pago de um crédito; não existe, na nua descrição daquele facto, qualquer indicação de que a R. admitiu como possível que os factos que alegou no requerimento inicial não correspondiam à verdade e, não obstante, conformou-se com esta possibilidade. No máximo, estaremos perante um caso de negligência (grosseira ou não), um caso de falta de diligência no apuramento dos fundamentos do pedido de insolvência. E a negligência é arredada da previsão do art.º 22.º.
Por isso, entendemos que o facto n.º 24 teria, ainda assim, que ser conjugado com os descritivos do dolo.
Mas acontece que o tribunal recorrido pronunciou-se expressamente sobre o dolo (que é matéria de facto) directo e eventual da R. na apresentação do pedido de insolvência; e pronunciou-se nestes termos:
«B) Factos não provados:
«Não se provou:
«i) Ao requerer a insolvência da 1ª A., a R. actuou com a intenção de lhe causar prejuízos.
«j) A R., ao requerer a insolvência da 1ª A. nos termos em que o fez, admitiu como possível que os factos que alegou no requerimento inicial não correspondiam à verdade e, não obstante, conformou-se com esta possibilidade».
Estes factos, que, repete-se, foram dados por não provados, retratam a figura do dolo nas modalidades de directo e eventual.
A recorrente (e desta vez havia factos descritos) não aplicou o citado art.º 640.º, n.º 1, al. a). O tribunal de recurso não pode alterar a matéria de facto, ou seja, não pode dar agora por provado o que o tribunal recorrido deu por não provado, se tal não lhe for pedido. E se não for pedido nos exactos termos daquele preceito legal: mediante a indicação dos concretos pontos de facto que a parte recorrente considera incorrectamente julgados. É que se não for feita desta forma precisa que a lei indica, a impugnação da matéria de facto é improcedente (o recurso é rejeitado).
Querer, agora, que, por se ter dado por provado que a utilização do processo de insolvência visava só a cobrança de um crédito e com base neste facto que se conclua pelo preenchimento da previsão do art.º 22.º, CIRE (ou seja, que existiu dolo) é contrariar aquilo que o tribunal recorrido expressamente deu por não provado — e que a recorrente aceitou ao não impugnar estas respostas.
Mesmo que se aceite, como o faz o citado acórdão, que o uso indevido do processo de insolvência para cobrança de um crédito é dolo eventual [«não temos dúvidas em situar a conduta da empresa R. aqui em causa num domínio que já é o do dolo eventual, no sentido em que a cegueira e a obstinação de alcançar um outro objectivo (a sujeição da A. à quantificação de um determinado crédito feita pela R., com ou sem razão), acabam por evidenciar uma enorme indiferença básica pelo resultado desvalioso induzido com o pedido descabido de insolvência»], ainda assim ficaríamos com factos contraditórios sendo que é impossível sanar tal contradição (porque, de novo, a recorrente não impugnou a matéria de facto). De um lado teríamos o dolo que decorre do dito «desvio de poder» e, do outro, teríamos uma pronúncia expressa no sentido de que não houve dolo. Esta pronúncia expressa não permite que o tribunal de recurso sane a apontada contradição dando por provado por inferência (da incorrecta utilização do meio processual) o que o tribunal claramente excluiu.
*
O segundo tema de prova prendia-se com o seguinte: o conhecimento consciente da R. da inexistência dos factores índices a que alude o artigo 20.º, do CIRE.
Aqui valem por inteiro, e até por maioria de razão, o que antes ficou exposto e a que não podemos fugir: a matéria fáctica integradora do dolo foi dada por não provada e esta resposta não foi impugnada.
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Eram estes os fundamentos principais do recurso (o terceiro prende-se com os danos alegados).
A conclusão que se tira é que, na realidade das coisas, não se verifica a previsão do art.º 22.º, CIRE. E, não havendo dolo, não há obrigação de indemnizar.
Tanto basta para improcederem as razões da apelação.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 21 de Abril de 2016

Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos