Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1973/16.7T8STR-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SUBORDINADOS
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A aposição de assinatura no título em branco implica, desde logo, na constituição de obrigação cambiária;
2 - A obrigação cambiária dos avalistas não está dependente do preenchimento da livrança, pelo que a reclamação de créditos decorrentes de avales em branco importa que o seu reconhecimento seja integrado no âmbito dos créditos condicionados.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1973/16.7T8STR-A.E1

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Credor Impugnante: Caixa (…), SA

Recorridos: (…), SA (credora reclamante)
(…) e (…) – (devedores)

Trata-se do incidente de impugnação de créditos reclamados por (…), SA nos presentes autos de Processo Especial de Revitalização em que figuram como devedores (…) e (…). A CGD impugnou a inclusão na lista de créditos dos créditos reclamados por (…) aludindo ao seguinte:
- a reclamante não detém créditos sobre os devedores;
- dos documentos juntos não consta qualquer fiança prestada pelos devedores;
- relativamente a 5 identificadas operações de financiamento, os devedores constituíram-se avalistas, encontrando-se em branco as livranças, sendo que em relação a uma delas inexiste pacto de preenchimento;
- as livranças em branco não são títulos suficientes para reclamar créditos sobre os devedores;
- o direito potestativo do preenchimento das livranças cabe ao Banco, e não já à reclamante.

Em resposta, a reclamante (...), SA sustentou o seguinte:
- os devedores, no requerimento inicial, confessam-se devedores de todos os créditos por si reclamados;
- os devedores não se limitaram a assumir a qualidade de avalistas das livranças mas também subscreveram em nome próprio os contratos dos quais emergem os créditos;
- os devedores garantiram um financiamento concedido à sociedade (...) III constituindo penhores.

II – O Objecto do Recurso

Conhecendo do mérito da impugnação da Caixa, foi proferida a seguinte decisão, que se transcreve na íntegra:
«Resulta quer das alegações dos devedores; da credora (…), S.A., e do AJP (que tem contacto com toda a documentação dos devedores e, como tal, no que a decisão dependa do exame simples de documentação junta, está em melhores condições do que o Tribunal para aferir da existência de determinados contratos ou prestação de garantias) que os devedores em alguns dos financiamentos, cujos créditos a credora (…) S.A., reclama, foram outorgantes nos próprios contratos de financiamento, designadamente enquanto fiadores, não se limitando apenas a avalizar a respectiva livrança.
Por conseguinte, assentando a impugnação da Caixa, S.A. na não exigibilidade dos créditos por os mesmos radicarem em livranças em branco, a mesma improcede, naturalmente

Inconformada, a impugnante Caixa, SA apresentou-se a interpor recurso, pugnando pela revogação daquela decisão, antes se julgando procedente a impugnação de créditos por si deduzida, expurgando-se da lista de credores os créditos reclamados pela (…), SA. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. É dever do Tribunal apreciar criticamente a documentação junta por credor reclamante, nomeadamente, quando o respectivo crédito tenha sido impugnado;
2. A reclamante (…), S. A. não juntou aos autos documentação que comprove a existência de fiança;
3. A intervenção dos devedores nos contratos resume-se apenas à prestação de aval nas livranças;
4. Inexistindo fiança autónoma, a livrança em branco não demonstra só por si a existência de um crédito sobre os avalistas;
5. A obrigação de pagar emergente da livrança em branco só se constitui através do preenchimento;
6. As livranças não foram endossadas ao cessionário;
7. Tendo ocorrido cessão de créditos, não notificada aos devedores, o direito potestativo de preenchimento das livranças cabe ao credor originário Banco e não à cessionária;
8. Não lhe assistindo o direito de preenchimento, o crédito não pode, também por esse motivo, ser reconhecido como crédito sob condição;
9. Quanto ao crédito de € 17.000,000,00 concedido à (…), Lda., nem sequer foi junto pacto de preenchimento, pelo que não existe causa para o preenchimento da livrança respectiva;
10. Decidindo como decidiu, foi violado o disposto nos arts. 17º-D, nº 2, 128º CIRE e 154º, nº 2, do CPC.»

Os devedores contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso, sustentando que:
- desde logo no requerimento inicial, confessaram-se devedores dos créditos reclamados pela (…);
- não se limitaram a assumir a qualidade de avalistas das livranças mas também subscreveram em nome próprio os contratos dos quais emergem os créditos em questão;
- para além de se constituírem avalistas da (…) III, garantiram o financiamento obtido por esta através da constituição de penhores.

A credora reclamante (…), SA apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença quanto aos pontos por si contestados, com fundamento no seguinte:
- os devedores, no requerimento inicial, confessaram-se devedores dos créditos reclamados pela (…);
- os devedores não se limitaram a assumir a qualidade de avalistas das livranças mas também subscreveram em nome próprio os contratos dos quais emergem os créditos em questão;
- os devedores, para além de se constituírem avalistas da (…) III, garantiram o financiamento obtido por esta através da constituição de penhores;
- os devedores assumiram para com a (…) as dívidas das sociedades identificadas nos autos, tomando a obrigação solidária do bom pagamento das dívidas, o que fizeram na qualidade de fiadores;
- em alguns contratos, os devedores foram outorgantes, designadamente enquanto fiadores, não se limitando a avalizar a respectiva livrança;
- por via do instituto da conversão dos negócios jurídicos, consagrado no art.º 293.º do CC, o aval aposto nas livranças não preenchidas assume carácter de fiança;
- a decisão recorrida mostra-se fundamentada, de forma activa e autónoma;
- encontra-se revestida de legitimidade para preencher os títulos, as livranças.

Assim, em face das conclusões da alegação da Recorrente, que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso[1], as questões a decidir consistem no seguinte:
- da falta de fundamentação da decisão recorrida;
- da falta de qualidade de fiadores por parte dos devedores;
- da inexistência de créditos decorrentes da aposição de avales nas livranças em branco;
- da inexistência do direito da reclamante (cessionária do crédito) de preenchimento das livranças, impedindo o reconhecimento do crédito sob condição;
- da inexistência de pacto de preenchimento quanto ao crédito de mútuo com hipoteca n.º (…).

III – Fundamentos

A – Dados a considerar[2]
1 – No âmbito do PER de (…) e de (…), “(…), SA” apresentou reclamação de créditos no valor global de € 53.152.414,91, invocando tratarem-se de 10 créditos por si adquiridos por contrato de cessão de créditos e escritura pública de cessão de créditos hipotecários, celebrados em 25/06/2013, com todas as garantias e acessórios, ao Banco (…) e que este detinha sobre sociedades do grupo (…), cessão essa notificada às referidas sociedades, nos seguintes termos:
a) Crédito decorrente de contrato de locação financeira n.º (…), de que os devedores se constituíram garantes;
b) Crédito decorrente de descoberto bancário n.º DDA (…), de que os devedores se assumiram garantes;
c) Crédito decorrente do contrato de mútuo n.º (…), com intervenção dos devedores, identificados como “avalistas”;
d) Crédito decorrente do contrato de mútuo n.º (…), subscrito pelos devedores, identificados como “avalistas”;
e) Crédito decorrente do contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada n.º (…), de que os devedores de constituíram “avalistas”;
f) Crédito decorrente de descoberto bancário n.º DDA (…), de que os devedores se assumiram garantes;
g) Crédito decorrente de contrato de mútuo com hipoteca n.º (…), tendo os devedores subscrito o aditamento de 1 de Maio de 2011 sob a menção “os avalistas”;
h) Crédito decorrente de descoberto bancário n.º DDA (…), de que os devedores se assumiram garantes;
i) Crédito decorrente de descoberto bancário n.º DDA (…), de que os devedores se assumiram garantes;
j) Crédito decorrente do contrato de financiamento n.º (…), subscrito pelos devedores, identificados como “avalistas”, e que se encontra garantido por penhores constituídos pelos devedores.
B – O Administrador Judicial Provisório juntou aos autos a lista provisória dos créditos, da qual constam todos os créditos reclamados por (…), sem menção de especificidades.
C – Tais créditos foram impugnados pelos credores Caixa (ora Recorrente), (…) e Banco (…).
D – Foi proferida decisão julgando não reconhecidos os créditos enunciados nas als. a), b), f), h) e i), sobre a qual não incidiu recurso.
E – O contrato de mútuo n.º (…), referente a financiamento concedido pelo Banco, encontra-se subscrito pelos devedores na qualidade de “Avalistas”, com menção de que em garantia do bom e pontual pagamento do capital financiado e respectivos juros e encargos é entregue ao Banco uma livrança avalizada pelos Avalistas, ficando o Banco autorizado a preencher a livrança nos moldes ali enunciados, com menção ainda de constar em anexo autorização de preenchimento da livrança – docs. fls. 85 e ss.
F – O contrato de mútuo n.º (…) e respectivos aditamentos, referente a financiamento concedido pelo Banco, encontram-se subscritos pelos devedores na qualidade de “Avalistas”, com menção de que em garantia das obrigações deles decorrentes é entregue ao Banco uma livrança avalizada pelos Avalistas, ficando o Banco autorizado a preencher a livrança nos moldes ali enunciados – docs. fls. 95 e ss.
G – O contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada n.º (…), referente a financiamento concedido pelo Banco, encontra-se subscrito pelos devedores na qualidade de “Avalistas”, com menção de que em garantia das obrigações dele decorrentes é entregue ao Banco uma livrança avalizada pelos Avalistas, ficando o Banco autorizado a preencher a livrança nos moldes ali enunciados – docs. fls. 106 vs. e ss.
H – O contrato de mútuo com hipoteca n.º (…) encontra-se garantido por livrança em branco da qual consta a assinatura dos devedores na qualidade de avalistas, tendo este subscrito o aditamento ao contrato celebrado em 1 de Maio de 2011, na qualidade de “Avalistas”; inexiste menção do modo de preenchimento da livrança relativamente aos campos que se encontram em branco.
I – O contrato de financiamento n.º (…), referente a financiamento concedido pelo Banco, encontra-se subscrito pelos devedores na qualidade de “Avalistas”, com menção de que em garantia do bom e pontual pagamento do capital financiado e respectivos juros e encargos é entregue ao Banco uma livrança avalizada pelos Avalistas, ficando o Banco autorizado a preencher a livrança nos moldes ali enunciados, mais constituindo estes devedores, em favor do BCP, penhores sobre os indicados valores mobiliários – docs. fls. 118 vs., 132 a 136.
J – Das livranças apresentadas pela reclamante (…) não consta menção de endosso em seu favor pelo Banco.
K – As sociedades beneficiárias dos financiamentos supra versados foram declaradas insolventes.
L – No requerimento inicial, os devedores declararam terem constituído penhores e emitido avales pessoais para garantia dos financiamentos concedidos às sociedades (cfr. art.ºs 8.º e 15.º do req. inicial), e incluem a (…) na lista de credores referentes a créditos resultantes de avales dados aos empréstimos e reversões – fls. 10.
M – Inexiste menção de notificação do contrato de cessão de créditos aos devedores (…) e de (…).

B – O Direito

Da falta de fundamentação da decisão recorrida

Nos termos do disposto no art.º 154.º, n.º 1, do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Na senda deste regime legal, o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC estatui que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. É ainda nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC), sendo certo que na sentença devem ser resolvidas todas as questões que as partes tenham submetido à apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada por outras (art.º 608.º, n.º 2, do CPC).

Relativamente à nulidade por falta de fundamentação, é unanimemente entendido, na doutrina e na jurisprudência, que só a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais.[3] A deficiente fundamentação ou motivação pode afectar o valor doutrinal intrínseco da sentença ou acórdão, mas não pode nem deve ser arvorada em causa de nulidade dos mesmos[4]. Só enferma de nulidade a sentença em que se verifique a falta absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, que justifiquem a decisão e não aquela em que a motivação é deficiente. Neste sentido, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão, permite que seja deduzida a nulidade da sentença/acórdão[5]. Quanto à fundamentação de direito, “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença/acórdão contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador”[6].

Ora, no âmbito do presente incidente de impugnação de créditos reclamados, a decisão que dele tomou conhecimento não especificou os dados de facto que importava considerar, nem abordou, de per si, cada uma das questões suscitadas pela impugnante Caixa, elencadas na parte inicial do presente acórdão. Por conseguinte, a decisão recorrida enferma de nulidade.

Passar-se-á, pois, a conhecer do objecto da apelação, conforme impõe o art.º 665.º, n.º 1, do CPC, levando-se em linha de conta os factos apontados supra.

Da falta de qualidade de fiadores por parte dos devedores

A Recorrente sustenta que os devedores não se constituíram fiadores das obrigações a que se reportam os créditos reclamados, conforma afirmado na decisão recorrida, pelo que não cabe aplicar o regime decorrente do instituto da fiança.

De facto, assim é.

Dos documentos atinentes aos contratos de mútuo e de abertura de crédito com relevância no âmbito do presente recurso[7], cujo teor se impõe ao Tribunal apreciar para sustentar a tomada de decisão, alcança-se que a intervenção dos devedores não teve lugar na qualidade de fiadores, inexiste declaração dos mesmos ou qualquer menção nesse sentido. Acresce que não cabe aqui aferir, como propugnado pelos Recorridos, se deve operar a conversão dos negócios jurídicos e, por via disso, considerar-se que se trata de fiança a intervenção dos devedores que se declararam avalistas, apondo nessa qualidade as respectivas assinaturas quer nos contratos (em alguns deles, pois no crédito hipotecário n.º … apenas subscreveram o segundo aditamento) quer nas livranças em branco: por um lado, trata-se de questão nova, que não foi suscitada na 1.ª instância, o que impede o seu conhecimento em sede recursional[8]; por outro lado, nem sequer foram invocados os pressupostos previstos no art.º 293.º do CC, nem se vislumbra que estivessem em causa negócios nulos ou anulados a converter.

Termos em que se conclui incorrer em erro a decisão recorrida quando afirma que os devedores outorgaram os contratos de financiamento, “designadamente enquanto fiadores”, pelo que assiste, neste âmbito, razão à Recorrente.

Da inexistência de créditos decorrentes da aposição de avales nas livranças em branco

Na óptica da Recorrente, enquanto não tiver lugar o preenchimento das livranças, inexiste obrigação cambiária por parte do subscritor, pelo que igualmente inexiste a obrigação de pagamento de qualquer importância por via de tal título, mesmo por parte do avalista.

Ora vejamos.

A livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa. Ao subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respectiva obrigação (art.º 75.º, n.º 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art.º 78.º da LULL). Assinando a livrança, o subscritor torna-se um obrigado cambiário, aquele que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título: “Com o aceite, o aceitante assume uma obrigação abstracta que nasce exclusivamente do acto formal da sua assinatura” – Ac. TRL de 30/03/62, in Jur. Rel., 8.º, 289 e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 3.º, 9.

A livrança em branco tem tutela legal, sendo expressamente acolhida a figura por remissão do art.º 77.º da LULL para o art.º 10.º do mesmo diploma. É, no entanto, essencial, nos termos desses preceitos, a existência de um contrato de preenchimento, mediante o qual as partes ajustem os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, o vencimento, o local de pagamento e a estipulação de juros – Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, 1994, p. 28.

A letra/livrança em branco constitui já um título de crédito endossável, sujeito ao regime cambiário. A obrigação cambiária quer do aceitante quer do avalista de letra em branco surge desde logo com a aposição da respectiva assinatura nessa qualidade[9]; a letra/livrança em branco é válida, mas só se torna eficaz depois de preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento[10]. A aposição de assinatura no título em branco implica na constituição de obrigação cambiária, embora esta não possa ser efectivada senão depois do respectivo preenchimento – Abel Delgado, in LULL, 6.ª edição, p. 76. Mais consigna este autor: «Os aceitantes, ao aporem a sua assinatura na letra, constituem-se em uma obrigação cambiária, desde o início, mas que, como tal, não pode ser efectivada senão depois do preenchimento. Quer isto dizer que a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo a letra circular por meio do endosso, mesmo que ainda por preencher, desde que tenha já indicado o nome do tomador. A letra, mesmo antes de preenchida, circula, pois, como título cambiário, estando sujeita ao regime cambiário.»[11]. Nas palavras de Vaz Serra[12], «o crédito e a obrigação não surgem somente com o preenchimento, embora este seja necessário para fazer valer os direitos cambiários».

Seguindo de perto o Ac. STJ de 15/05/2013[13], importa salientar que o «Supremo Tribunal de Justiça vem asseverando relativamente à natureza jurídica dos créditos cambiários e das correspondentes obrigações, concluindo que quando se trate de letras ou de livranças sacadas ou subscritas em branco ou em branco avalizadas, o direito de crédito de natureza cartular se constitui simultaneamente com tais actos.
Assim acontece designadamente para efeitos de determinação da anterioridade do crédito que é pressuposto da procedência da acção de impugnação pauliana, nos termos dos arts. 610º, al. a), e 614º do CC (cfr. os Acs. do STJ, de 29-11-11, e de 2-5-12,
www.dgsi.pt).
Em tais circunstâncias, a constituição da relação cambiária (
maxime a que integra o avalista) ocorre em paralelo com a outorga do pacto de preenchimento que define os termos em que o título poderá ser preenchido no que concerne aos elementos em falta, tais como a data de vencimento ou o montante, correspondendo este à quantia que, de acordo com o relacionamento contratual subjacente, se encontre vencido e seja exigível na data em que o título for preenchido.» É a solução que prevalece na jurisprudência, embora não tenha colhimento unânime na doutrina.[14]

Assim, perfilhando a posição jurisprudencial dominante, temos assente que a obrigação do avalista se constitui com a aposição do aval, mesmo que se trate de aval em branco, não obstante a quantificação da obrigação cambiária e a sua exigibilidade fiquem dependentes do preenchimento dos elementos em falta no título.

Por outro lado, cabe atentar na circunstância de as sociedades beneficiárias das operações financeiras versadas, subscritoras das livranças em branco, terem sido declaradas insolventes. Por via disso, atento o disposto no art.º 91.º, n.º 1, do CIRE, verificou-se a liquidação de todas as responsabilidades que emergem das relações jurídicas materiais subjacentes à emissão de cada uma das livranças, «tanto mais que no contexto do processo de insolvência nem sequer se revela essencial o preenchimento dos títulos criados para facilitar a cobrança dos créditos, a qual deve ser obrigatoriamente exercitada através do processo de insolvência.»[15]

Uma vez que a obrigação cambiária dos avalistas não está dependente do preenchimento da livrança, a invocação de créditos decorrentes de avales em branco importa que o seu reconhecimento seja integrado no âmbito dos créditos condicionados, a que alude, designadamente, o art.º 50.º do CIRE, tratando-se, na verdade, de crédito condicionado sob condição suspensiva.[16]

Da inexistência do direito da reclamante (cessionária do crédito) de preenchimento das livranças, impedindo o reconhecimento do crédito sob condição

A Recorrente sustenta que o direito potestativo de preenchimento das livranças cabe ao BCP e não já à reclamante (…), a quem os avalistas não autorizaram tal preenchimento.

Apurou-se que a reclamante (…), SA adquiriu os créditos reclamados mediante contrato de cessão de créditos e escritura pública de cessão de créditos hipotecários, celebrados em 25/06/2013, com todas as garantias e acessórios, ao Banco (…) e que este detinha sobre sociedades do grupo (…), o que foi notificado às referidas sociedades.

Conforme resulta do disposto no art.º 11.º da LULL, aplicável ex vi art.º 77.º da LULL, a livrança pode ser validamente transmitida a terceiros quer através de endosso quer por via de cessão ordinária de créditos, conforme previsto nos art.ºs 577.º e ss. do CC. Ocorrendo a transmissão por cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, verifica-se a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido (art.º 582.º, n.º 1, do CC).

A cessão de créditos opera, relativamente às partes contratantes, por efeito do contrato, determinando logo este a transmissão do crédito para o cessionário. A existência de um fenómeno transmissivo implica que a identidade do crédito não seja alterada, apesar de mudança de credor, mantendo por isso o devedor em relação ao cessionário a mesma vinculação e a mesma responsabilidade que possuía em relação ao cedente.[17] Em relação ao devedor do crédito objeto de cessão, a eficácia desta só ocorre em momento posterior, quando o devedor é notificado da cessão, a aceita ou dela tem conhecimento – art.ºs 583.º, n.ºs 1 e 2 e 584.º do CC.

Perante este regime legal, é manifesto que tendo a reclamante (…) recebido em cessão os créditos decorrentes dos contratos de mútuo e de abertura de conta identificados nos autos, passou a ocupar neles a posição contratual que cabia ao Banco. Donde, tal como este estava legitimado a preencher os títulos de crédito entregues como garantia de cumprimento integral dos respectivos contratos, por via da cessão de créditos resultou a cessionária (…) legitimada a fazê-lo, na mesma medida que o cedente. Acresce que, neste caso concreto, foi expressamente prevista a transmissão dos acessórios de garantia de cumprimento dos créditos cedidos, tendo a cessão sido notificada às sociedades devedoras nesses contratos, como se impunha – os devedores no âmbito deste processo outorgaram os contratos e subscreveram garantias de cumprimento dos mesmos assumindo-se avalistas, pelo que constituem entidades diversas dos devedores nos próprios contratos nas relações jurídicas subjacentes à emissão dos títulos de crédito; a cessão das letras e livranças feita pelo portador produz efeito em relação ao aceitante ou seu avalista independentemente de notificação.[18]

Inexiste, pois, fundamento para que se afirme que à reclamante não assiste o direito de preenchimento das livranças subscritas em branco, pelo que improcedem, neste segmento, as conclusões da alegação do recurso.

Da inexistência de pacto de preenchimento quanto ao crédito de mútuo com hipoteca n.º (…)

A recorrente considera que não tendo sido junto pacto de preenchimento da livrança quanto ao crédito de 17 M€, inexiste causa para o seu preenchimento, pelo que o crédito reclamado não pode ser considerado.

Ora, efectivamente, relativamente ao contrato de mútuo com hipoteca n.º (…), garantido por livrança em branco, inexiste menção do modo do seu preenchimento. Daí não resulta, porém, que não exista causa para o seu preenchimento.

A livrança em branco destina-se, em regra, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado acordo ou pacto de preenchimento. Esse acordo pode ser expresso – quando as partes estipularam certos termos em concreto – ou tácito – por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.[19] Na verdade, embora se aceite que pode formar-se letra ou livrança em branco sem que haja pacto de preenchimento[20], certo é que a entrega da letra ou livrança em branco para garantia de cumprimento de certo contrato traduz um pacto de preenchimento, pelo menos tácito, relativo ao seu preenchimento pelas importâncias que estiverem em dívida.[21]

Nas palavras de Carolina Cunha[22], «(…) será possível operar-se a emissão voluntária de um título conscientemente não preenchido sem que exista, concomitantemente, uma destinação de preenchimento? O facto de um sujeito assinar uma letra ou livrança, que, sabendo não preenchida, entrega por sua livre e espontânea vontade a outro indivíduo, só se compreende pela intenção de confiar o preenchimento a outrem. Como já foi dito, da subscrição e entrega de um título em branco deduz-se logicamente a vontade do emitente de fazer própria a declaração que um outro sujeito inserirá sucessivamente no título.
Naturalmente, tudo se torna mais simples e cristalino quando as partes (a que emite a que recebe o título) celebram, de modo expresso e directo, um pacto de preenchimento e mais ainda quando o revestem da forma escrita. Nesse contexto, torna-se possível determinar, sem dificuldades, que o subscritor pretendeu cometer o preenchimento do título a outrem; e torna-se ainda possível determinar (embora por vezes, com algumas dificuldades) em que termos pretendeu que o preenchimento viesse a ser feito. Mas é generalizadamente admitido que o acordo de preenchimento não tem que ser expresso; ora, ainda que tal admissão se dirija, normalmente, a permitir desentranhar da relação subjacente os termos ou condições em que a letra deve ser completada, leva pressuposto que a própria vontade de confiar o preenchimento a outrem se infere do facto concludente que é a subscrição e entrega voluntária do título. (…)»

Por conseguinte, a causa para o preenchimento da livrança subscrita e entregue em garantia de cumprimento do contrato de mútuo com hipoteca n.º (…) radica neste mesmo contrato e no respectivo incumprimento.

Não alcança, pois, merecimento a pretensão da Recorrente nesta matéria.

Resulta do exposto que os créditos reclamados cuja apreciação foi submetida à presente instância recursional devem integrar a lista provisória dos créditos reclamados enquanto créditos sob condição suspensiva.

As custas recaem sobre Recorrente e Recorridos em partes iguais, atento o disposto no art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, pois a tributação unitária prevista no art.º 303.º do CIRE não inclui os recursos de apelação interpostos.

Concluindo:
- em sede de incidente de impugnação de créditos reclamados, cabe ao tribunal apreciar os documentos atinentes a contratos e a garantias invocados, ainda que se imponha diligenciar pela junção deles aos autos, não podendo escudar-se na afirmação de que o administrador judicial provisório tem contacto com todo a documentação dos devedores e, como tal, está em melhores condições do que o Tribunal para aferir da existência e determinados contratos ou prestação de garantias;
- a aposição de assinatura no título em branco implica, desde logo, na constituição de obrigação cambiária;
- a obrigação cambiária dos avalistas não está dependente do preenchimento da livrança, pelo que a reclamação de créditos decorrentes de avales em branco importa que o seu reconhecimento seja integrado no âmbito dos créditos condicionados;
- a livrança pode ser validamente transmitida a terceiros quer através de endosso quer por via de cessão ordinária de créditos, operando a transferência dos direitos e faculdades do cedente para o cessionário;
- a entrega da letra ou livrança em branco para garantia de cumprimento de certo contrato traduz um pacto de preenchimento, ainda que tácito, relativo ao seu preenchimento pelas importâncias que estiverem em dívida.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se anula a decisão recorrida, determinando-se que os créditos reclamados pela (…), SA contra os devedores, elencados nas als. c), d), e), g) e j) da al. A) da parte III do presente acórdão sejam reconhecidos como créditos condicionados.

Custas pela Recorrente e pelos Recorridos em partes iguais.

Évora, 23 de Março de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
__________________________________________________
[1] Cfr. art.ºs 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Consultado que foi o processo principal.
[3] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 139 e 140.
[4] Ac. STJ de 16/12/2004 (Ferreira de Almeida).
[5] Ac. STJ de 28/05/2015 (Granja da Fonseca).
[6] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 688.
[7] Aqueles a que respeitam os créditos enunciados nas als. c) a e), g) e j) da al. A dos «Dados a considerar», já que relativamente aos demais foi proferida decisão julgando-os não reconhecidos, o que não foi objecto de recurso.
[8] É unanimemente defendido que não cabe invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido, conforme resulta do regime inserto nos art.ºs 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário (art.º 665.º, n.º 2, do CPC), ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, do CPC) – Cfr., entre muitos outros, Acs. do STJ de 01/10/2002, in CJ-STJ ano X, 3, 65 e de 29/04/98, in BMJ 476/401.
[9] Cfr. Ac. STJ de 28/02/2008 (Alves Velho).
[10] Cfr. Ac. TRP de 31/10/2006, entre muitos outros.
[11] Ob. cit, p. 76.
[12] BMJ 61.º-264.
[13] Relatado por Abrantes Geraldes.
[14] Cfr. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 145; Pereira Coelho, RLJ, 92.º-232.
[15] Ac. STJ de 15/05/2013 (Abrantes Geraldes).
[16] Cfr. Ac. do STJ de 15/05/2013, já citado.
[17] Cfr. Menezes Leitão, Cessão de Créditos, p. 315.
[18] Ac. STJ de 13/03/1942, RLJ 75.º-138.
[19] Cfr. Ac. TRL de 04/06/2009 (Ana Luísa Geraldes).
[20] Cfr. Acs. STJ de 16/03/1999 e de 06/04/2000.
[21] Cfr. Ac. STJ de 06/03/2006.
[22] Letras e Livranças, p. 535.