Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
82/14.8T8STC.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: Com a actual versão do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, já não é necessário alegar e provar factos que integrem o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente para que haja direito de regresso, bastando a constatação de que o condutor conduzia com uma taxa superior à legalmente permitida para que exista tal direito.
Decisão Texto Integral:




1

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

Em 09.10.2014, na Secção da Instância Local (“J2”) do Tribunal Judicial da Comarca, AA S.A. (A), intentou ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra BB (R), peticionando a sua condenação no pagamento de € 20.544,54, acrescido de juros de mora à taxa legal até integral e efetivo pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que celebrou com a R um contrato de seguro pelo qual assumiu o risco de responsabilidade civil por danos emergentes da circulação de veículo que foi interveniente em acidente de viação.
Alega que a R circulava na via pública de forma imprevidente por se encontrar sob a influência de álcool, já que apresentava uma TAS de 0,80 g/l. Esta taxa de alcoolemia provocou-lhe um estado de otimismo e sobrevalorização das suas capacidades, levando-a a circular com velocidade excessiva, e retardou os seus reflexos e tempo de reação, o que a inibiu de reagir atempadamente e evitar o atropelamento de CC, cuja assistência médica a A pagou, bem como os tratamentos de que necessitou em regime de ambulatório, assistência por terceira pessoa e perdas salariais.
Citada, a R apresentou contestação onde impugnou a versão do acidente apresentada pela A, imputando a CC a responsabilidade pelo embate por, no seu entender, ter atravessado a via fora da passadeira e de modo imprudente, sem prestar atenção ao tráfego automóvel.
Entendeu inexistir causalidade entre o embate e a taxa de alcoolemia que apresentava, já que o acidente teria sempre ocorrido, mesmo que a ingestão de bebidas alcoólicas não tivesse ocorrido.
Pugnou pela improcedência da ação.
Foi realizada audiência prévia, onde foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento.
Foi após proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a R do pagamento à A da quantia peticionada.
Inconformada com esta sentença a A recorreu, apresentando as seguintes conclusões:
“I. O douto Tribunal a quo fez uma errónea valoração da prova produzida nos autos, quer documental, quer testemunhal ao dar como não provados os factos, que ora se analisa.
II. Conforme resulta da douta sentença o douto tribunal a quo considerou como não provado “ O peão CC assegurou-se previamente que podia fazer a travessia da Av. General em segurança, já que não se aproximava qualquer veículo”,
III. Tal facto, salvo melhor opinião, resultou provado através do depoimento prestado pela testemunhas CC, mais concretamente aos minutos 02:40 a 04:43, 10:50 a 14.34 e 14:37 a 14:49.
IV. Pese embora esta testemunha tenha admitido que estava atrasada para a aula de ginástica e por isso seguia apressada, razão pela qual atravessou a via no local em que sabia que a passadeira havia sido desativada, da análise ao seu depoimento é possível inferir que esta antes de proceder ao atravessamento da via certificou-se que o poderia fazer em segurança, cumprindo assim o estatuído no n.º1 do art.º 101º do C.E..
V. Efectivamente, por diversas vezes esta testemunha, a vítima do acidente de viação em apreço afirmou, que a primeira vez que avistou o ZS já se encontrava a finalizar a travessia.
VI. Mais afirmou de forma peremptória que quando avistou o ZS, o veículo circulava na via da direita, alguns metros antes da rotunda, atento o seu sentido de trânsito do peão.
VII. Enquanto efectuava atravessia da via foi-se certificando que o podia fazer. Tanto assim o é que se apercebeu que a R. imprimiu velocidade excessiva ao ZS e que se mantivesse a mesma velocidade de marcha seria colhida, pelo que, a única forma de evitar o sinistro era iniciar o passo de corrida com vista a finalizar atravessia da via.
VIII. Assim, atento o depoimento desta testemunha afigura-se que o douto Tribunal a quo apenas podia concluir que quando CC iniciou a travessia da via certificou-se que o poderia fazer em segurança.
IX. Pelas razões supra expostas este facto deverá ser considerado como provado.
X. O douto Tribunal a quo considerou igualmente como não provado: “C. Com a taxa de álcool que apresentava, a Ré estava em estado de excitação e por isso incapacitada para o exercício da condução”.
XI. Este facto resultou igualmente provado através das declarações das testemunhas DD, Rui Filipe Reis Henrique e EE, conjugadas com o auto de notícia a fls. 16 e 17 e as regras de experiência comum.
XII. Das declarações da testemunha CC aos minutos 02:40 a 03:03, 12:18 a 12:32 e 16:05 a 16:19, da testemunha FF – Cabo da G.N.R., aos minutos 01:11 a a 01:45, 01:50 a 02:11, 04:09 a 04:32, 04:45 a 05:27 e da testemunha Dr. EE aos minutos 02:00 a 04:62, resulta provado que a TAS de 0,80 g/l, que a R. apresentava, considerada uma intoxicação etílica aguda, determinou que tivez incapaz para o exercício da condução.
XIII. Por outro lado, é consabido que uma taxa de alcoolémia de 0,80 g/l influencia os comportamentos e potencia o risco de acidentes rodoviários, sendo um facto notório que proporciona uma sensação de bem estar e optimismo e uma tendência para sobrevalorizar as próprias capacidades, de atenção, concentração, tempo de reacção e reflexos, quando na verdade estas já estão consideravelmente diminuídas.
XIV. Face à taxa de álcool no sangue que a Recorrida apresentava, os depoimentos das testemunhas indicadas no ponto XII e as regras de experiência comum é forçoso concluir que as suas capacidades de condução se encontravam diminuídas.
XV. Aliás diga-se que também é esta a convicção do douto Tribunal a quo a dar como provado que “Tal grau de alcoolemia conduz a uma sobrevalorização das capacidades de atenção, concentração, tempo de reação e reflexos, que na verdade se encontram diminuídos”. (vide artigo 15.º)
XVI.Pelas razões supra expostas este facto deve ser considerado como provado.
XVII. O douto Tribunal a quo considerou igualmente como não provado: “H. Dada a exacerbada confiança, perda de juízo crítico e perceção conferidos pelo álcool, a Ré prosseguiu a sua marcha a uma velocidade excessiva e sem consideração pelas regras de trânsito e pelos demais utentes da via”.
XVIII. Afigura-se que tal facto resultou provado através das declarações das testemunhas DD, prestadas aos minutos 02:40 a 03:03, 16:05 a 16:19, 25:54 a 26:04 e pela testemunha FF – Cabo da G.N.R., aos minutos 04:45 a 05:27, 10:54 a 11:01, 11:08 a 11:20 e 11:28 a 11:50,
XIX. Dos depoimentos resulta demonstrado que a Recorrida acelerou quando se encontrava a descrever a rotunda, que não diminuíu a velocidade quando saiu deste troço, nem efectuou nenhuma manobra defensiva (nomeadamente travar o veículo) com vista a evitar embater no peão e nem conseguiu parar o ZS no espaço livre e visível à sua frente
XX. Conjugando o que foi dito com o art.º 16º da matéria dada como provada, resulta inequivocamente provado que foi a exacerbada confiança, a perda de juízo critico e de percepção conferidos pelo álcool, que levaram a Recorrida a prosseguir a marcha a uma velocidade excessiva e sem consideração pelas regras de transito e pelos demais utentes da via.
XXI. Pelas razões supra expostas este facto deve ser considerado como provado.
XXII. O douto Tribunal a quo considerou igualmente como não provado “ I. Quando se apercebeu da presença de CC, o retardamento dos reflexos e do tempo de reação causados pelo álcool inibiram a Ré de reagir atempadamente e evitar o acidente.
XXIII. Tal facto, salvo melhor entendimento, resultou provado através das declarações das testemunhas FF – Cabo da G.N.R. aos minutos 04:45 a 05:27, 10:54 a 11:01, 11:08 a 11:20, 11:28 a 11:50, 10:54 a 11:01, 11:08 a 11:20, 11:28 a 11:50 e da testemunha Dr. EE, aos minutos 06:57 a 07:13; 07:50 a 08:14, 08:16 a 10:01, 10:20 a 11:52.
XXIV. De acordo com o depoimento da testemunha EE, uma taxa de 0,80 g/l determina a perda da percepção espaço –temporal de um objecto ou de uma pessoa, isto porque há uma lentificação de reagir a uma manobra defensiva, defensiva ao próprio condutor ou para terceiros.
XXV. Assim, dos depoimento referidos em XXIII com o artigo 15º da matéria dada como provada, outra conclusão não podia o douto tribunal a quo chegar senão a que foi o estado de alcoolemia que determinou que a Recorrida avaliasse mal os condicionalismos em que circulava, excedesse a velocidade permitida no local e não se tivesse apercebido da presença do peão na via quando este finalizava a travessia e já se encontrava muito próximo do passeio.
XXVI. Pelas razões supra expostas este facto deve ser considerado como provado.
XXVII. Interpretada a prova nos termos acima citados e analisada toda a matéria dada como provada, dúvidas não restam que quanto à dinâmica do acidente é de concluir que tão desajustada condução só se pode ter ficado a dever ao excesso de álcool no sangue que Recorrida apresentava à data do sinistro.
XXVIII. Assim é de se concluir foi a circunstância da Recorrida conduzir alcoolizada que esteve na origem da ocorrência do acidente, estando, por isso, verificado o nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente.
XXIX. Tendo igualmente resultou provado que a Recorrente regularizou o sinistro, de acordo com o Artº 27º nº 1 c) do DL291/2007 de 21/8, tem direito a ser ressarcida do montante que despendeu com a regularização do sinistro
Caso assim não se entenda, o que não se concede:
XXX. Atenta a matérida dada como provada, mais concretamente os arts. 5 a 15º permite concluir que a Recorrida, para além de conduzir com uma taxa de alcoolémia de 0,80 g/l, seguia a uma velocidade desadequada ao local onde transitava,
XXXI. Nos termos do artº. 24º do C.E. o condutor deve regular a sua velocidade de modo a que, atentas as características e estado da via e do veículo possa, em condições de segurança, executar as necessárias manobras e especialmente fazer parar o veículo no espaço visível à sua frente.
XXXII. Essa velocidade deve ser especialmente moderada nas localidades ou vias marginadas por edificações, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de viabilizada reduzida (alíneas c) e f) do artº. 25º do CE).
XXXIII. Ora, um condutor cauteloso, naquelas circunstâncias concretas, jamais aceleraria numa rotunda e não deixaria de antever a possibilidade de surgir repentinamente algum peão, já que existe uma passadeira muito próxima do local onde correu o embate,
XXXIV. E é este comportamento impõe que se lhe atribua uma parte da culpa na produção do acidente, nos termos dos artºs 483º, 486º e 487º todos do Código Civil, sendo assim a Recorrida responsável pelo ressarcimento dos danos daí advenientes, na proporção da sua culpa.
XXXV. Determina a lei que se um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção do dano, cabe ao tribunal, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída (artº. 570º, nº. 1 do Código Civil).
XXXVI. O acto do lesado a que se reporta o mencionado normativo deve, pois, ser uma das causas adequadas do dano que ele sofreu e envolvido de culpa ou censura ético-jurídica.
XXXVII. Considerando a matéria dada como provada, a actuação de cada um dos intervenientes no sinistro julga-se adequado fixar a contribuição culposa do condutor do veículo ZS e do peão para a produção do acidente dos autos, na percentagem de 80% para a recorrida e 20% para a vítima.
Nestes termos e nos mais de Direito deve ser concedido provimento ao presente recurso no que tange à impugnação da matéria de facto e em consequência serem considerados como provados os factos das alíneas B, C, H e I.
Mais deve ser revogada a douta decisão recorrida e em consequência imputar à Recorrida a culpa exclusiva pela ocorrência do sinistro e condená-la a pagar à Recorrente o peticionado.
Caso assim não se entenda deverá deve ser concedido provimento ao presente recurso e em consequência ser revogada a douta decisão recorrida e a fixar a contribuição culposa do condutor do veículo ZS e do peão para a produção do acidente dos autos, na percentagem de 80% para aquele motorista e 20% para a vítima.”
A R contra-alegou, concluindo que, confinando-se as presentes contra-alegações às conclusões da ora recorrente, deverá a sentença recorrida ser confirmada, não se dando provimento ao recurso interposto.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos dados como provados na 1.ª instância:
“1. A Autora dedica-se, devidamente autorizada, à indústria de seguros em diversos ramos.
2. No exercício da sua atividade, celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado na apólice n.º 45.10.916282.
3. Pelo referido contrato a Autora assumiu o risco de responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do ligeiro de passageiros com a matrícula 00-00-ZS.
4. No dia 28 de Janeiro de 2013, pelas 14:30 horas, junto ao n.º 31 da Av. General ocorreu um acidente de viação envolvendo o automóvel ZS, conduzido pela Ré.
5. O local situa-se no interior de uma localidade e constitui a saída de uma rotunda.
6. Era dia e o tempo estava seco.
7. A Ré circulava pela Av. General, no sentido nascente/poente, tendo contornado a rotunda referida em 5.
8. Na saída da rotunda referida em 5 existia, há cerca de 15 anos, uma passadeira para peões que se encontrava apagada, mas com algumas marcas visíveis na data mencionada em 4.
9. Cerca de 7 a 10 metros após esta passadeira apagada foi colocada uma nova passadeira, devidamente sinalizada horizontalmente no pavimento com a marca transversal M11 e verticalmente com o sinal H7.
10. Na data e hora indicadas em 4 o peão CC fazia a travessia da Av. General, no sentido sul/norte, no local onde há 15 anos havia existido a passadeira apagada mencionada em 8.
11. Quando se encontrava sensivelmente no meio da via, local onde existe um ilhéu de saída da rotunda, o peão CC apercebeu-se do veículo tripulado pela Ré.
12. Nessa sequência, tentou concluir a travessia encetando um passo de corrida em direção ao passeio norte.
13. Quando se encontrava já próximo do passeio, veio a ser embatida na perna direita pelo veículo ZS conduzido pela Ré, imobilizando-se em cima do passeio, do lado direito atento o sentido de marcha do ZS, com as pernas na via viradas para sul.
14. A Ré conduzia com uma taxa de 0,80 g/l de álcool no sangue.
15. Tal grau de alcoolemia conduz a uma sobrevalorização das capacidades de atenção, concentração, tempo de reação e reflexos, que na verdade se encontram diminuídos.
16. A Ré sabia que circulava no interior de uma localidade, conhecia a existência de passadeiras e a probabilidade de nelas circularem peões.
17. Na sequência do embate, CC foi assistida no local referido em 4 e 5 pelo INEM e depois transportada para o Hospital, onde permaneceu internada até ao dia 30.01.2013.
18. Após alta do internamento, CC continuou em tratamentos em regime de ambulatório.
19. Designadamente na Clínica, a quem a Autora pagou a quantia de € 195 pelos tratamentos e exames realizados a Leonor Fortunato.
20. A Autora pagou a CC as seguintes quantias:
a. € 473,90 para reembolso de despesas de deslocação, transporte, refeições, aquisição de arrastadeira e colete e despesas de farmácia;
b. € 17,30 para reembolso de despesas de transporte;
c. € 49,95 para reembolso de despesas de transporte.
21. CC teve necessidade de ser assistida pela filha, que perdeu dias de trabalho para dar assistência à mãe, tendo a Autora pago, a título de tais perdas salariais, a quantia de € 189,78.
22. A Autora e CC acordaram no pagamento pela primeira à segunda da quantia de € 19.614,46, a título de indemnização única e definitiva em consequência do acidente ocorrido em 28.01.2013.
Factos Não Provados:
A. O local referido em 4 configura uma reta com 5,70m de largura.
B. O peão CC assegurou-se previamente que podia fazer a travessia da Av. General em segurança, já que não se aproximava qualquer veículo.
C. A Ré conduzia o veículo a uma velocidade superior a 50 km/h.
D. A Ré embateu com a frente do veículo ZS no peão CC.
E. Com a violência do embate CC foi projetada cerca de 2 metros e caiu de costas no solo.
F. Após o sinistro a Ré abandonou o local.
G. Com a taxa de álcool que apresentava, a Ré estava em estado de excitação e por isso incapacitada para o exercício da condução.
H. Dada a exacerbada confiança, perda de juízo crítico e perceção conferidos pelo álcool, a Ré prosseguiu a sua marcha a uma velocidade excessiva e sem consideração pelas regras de trânsito e pelos demais utentes da via.
I. Quando se apercebeu da presença de CC, o retardamento dos reflexos e do tempo de reação causados pelo álcool inibiram a Ré de reagir atempadamente e evitar o acidente.
J. A Ré, ao descrever a rotunda, parou para dar passagem a um automóvel que entrava na rotunda vindo das “Percebeiras”, e continuou a descrever a rotunda para entrar na avenida, seguindo este veículo.
K. A Ré circulava obrigatoriamente a menos de 25/30 Km/h.
L. CC imobilizou-se no asfalto, encostada ao lancil do passeio, e queixou-se da perna esquerda.

2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são as seguintes:
1.ª - Impugnação da matéria de facto: saber se devem ser dados como provados os factos correspondentes às al. B) C) H) e I).
2.ª – Impugnação de Direito: saber se o direito de regresso da seguradora, nos termos do art.º 27.º, n.º 1 al. c) do DL n.º 291/2007 implica ou não alegar e provar factos que integrem o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente.

3 - Análise do recurso.

1.ª questão - Impugnação da matéria de facto: se devem ser dados como provados os factos correspondentes às al. B) C) H) e I).

A recorrente discorda da sentença na medida em que não deu como provados os seguintes factos:
«B. O peão CC assegurou-se previamente que podia fazer a travessia da Av. General Humberto Delgado em segurança, já que não se aproximava qualquer veículo.
C.Com a taxa de álcool que apresentava, a Ré estava em estado de excitação e por isso incapacitada para o exercício da condução.
(…)
H. Dada a exacerbada confiança, perda de juízo crítico e perceção conferidos pelo álcool, a Ré prosseguiu a sua marcha a uma velocidade excessiva e sem consideração pelas regras de trânsito e pelos demais utentes da via.
I. Quando se apercebeu da presença de CC, o retardamento dos reflexos e do tempo de reação causados pelo álcool inibiram a Ré de reagir atempadamente e evitar o acidente.”
Alega que tal prova resulta do auto de notícia e dos depoimento das testemunhas CC, FF e EE conjugada com a prova documental e as regras de experiência comum.
A este propósito é a seguinte a fundamentação da sentença:
“(…) Quanto à dinâmica do embate, referiu CC que estava atrasada e por isso seguia apressada, razão pela qual atravessou a via no local em que sabia que a passadeira havia sido desativada, passando por cima do ilhéu em triângulo existente na saída da rotunda e visível no croqui e nas fotografias de fls.51, 84 e, em especial, 85.
Referiu igualmente que se deslocava do café para o pavilhão dos desportos, o que constitui uma travessia da via no sentido sul/norte, como é do conhecimento público da comunidade local e igualmente conhecimento funcional deste Tribunal.
Tal depoimento permite concluir pela prova do facto 10.
Inicialmente, mencionou esta testemunha que o carro conduzido pela Ré vinha longe quando iniciou a travessia, tendo posteriormente referido que, quando iniciou a travessia, talvez nem tivesse visto o veículo, só se lembrando dele já na rotunda. Importa ainda ter em consideração que CC usa óculos diariamente e que, no momento em apreciação, não tinha os seus óculos graduados, mas sim óculos de sol sem graduação.
Face a tal depoimento, não pode o Tribunal considerar provado o facto B, uma vez que não resulta das próprias palavras de CC que se tivesse assegurado previamente pela existência de segurança na travessia.
Estando sensivelmente a meio da travessia da via, e vendo o veículo da Ré, iniciou passo de corrida para chegar ao passeio norte, tendo sido embatida na sua perna direita quando já se encontrava muito perto deste.
Veio a cair no passeio norte, sentada, com as pernas ainda na estrada, viradas a sul, não conseguindo explicar em pormenor o movimento corporal subsequente ao embate.
Diga-se que o depoimento desta testemunha apresentou-se consentâneo com as regras de lógica e experiência comuns, revelando algumas dificuldades de memória, naturais face ao tempo entretanto decorrido e à ocorrência em si, merecendo credibilidade.
(…) Relativamente aos efeitos desta taxa na Ré, importa ter em consideração os diversos estudos científicos já efetuados nesta área, e que são contundentes em afirmar uma afetação bastante significativa nas capacidades e comportamentos dos indivíduos.
De acordo com a Segurança Rodoviária, «quando o álcool atinge o cérebro, órgão abundantemente irrigado de sangue, afecta, progressivamente, as capacidades sensoriais, perceptivas, cognitivas e motoras, incluindo o controlo muscular e o equilíbrio do corpo. O álcool interfere, assim, negativamente em todas as fases em que, academicamente, se divide a tarefa da condução.»
Dos diversos efeitos nefastos ao exercício da condução após ingestão de bebidas alcoólicas, chama-se a atenção para (i) a audácia, decorrente do estado de euforia, sensação de bem estar e otimismo, com consequente tendência para sobrevalorizar as próprias capacidades, que efetivamente se encontram diminuídas, (ii) a perda de vigilância, com a diminuição da capacidade de atenção e concentração, (iii) a perda das capacidades sensoriais, em especial as visuais, com redução da respetiva acuidade e diminuição do campo de visão em 30% com uma TAS de 0,50 g/l, (iv) o aumento do tempo de reação e lentificação da resposta reflexa.
Estas mesmas consequências foram elencadas pela testemunha EE, médico com mestrado sobre a alcoologia em acidentes de viação.
Esclareceu esta testemunha que os diferentes estádios de sensações e perceções e quem ingere bebidas alcoólicas vão sofrendo alterações à medida que o álcool é absorvido pelo organismo, passando de um estado de euforia e excitação para um estado de confusão e, posteriormente, de sonolência.
Desconhece-se a que horas se verificou a ingestão de bebidas alcoólicas pela Ré, razão pela qual não pode o Tribunal concluir que esta se encontrasse num estado de excitação, o primeiro estádio sentido com a ingestão de bebidas alcoólicas. Isto porque, dependendo do grau de absorção pelo organismo, no momento do embate, do álcool ingerido, a Ré poderia igualmente estar na fase de confusão ou sonolência – facto G.
Desconhecendo-se o estádio em que a Ré se encontraria, não se pode afirmar com certeza que esta tinha uma exacerbada confiança, que perdeu o seu juízo crítico e perceção, mas apenas que sobrevalorizou as suas capacidades de atenção, concentração, tempo de reação e reflexos, uma vez que estes efeitos são comuns às diversas fases de absorção do álcool pelo organismo – facto H.
E também se mostra inequívoco, face aos estudos já realizados sobre a matéria, que os condutores têm, na realidade, a sua capacidade de concentração e atenção diminuídos, tal como a sua capacidade de reação e reflexos, sem que de tal se apercebam e, por isso, sobrevalorizam as suas próprias capacidades para conduzir em segurança – facto 15.
Mas desta conclusão não resulta automaticamente uma incapacidade da Ré para o exercício da condução. A taxa de álcool que apresentava não permite concluir de forma inequívoca que era esta a situação que se verificava no momento do embate, nem qualquer outra circunstância ocorrida no momento do embate ou nos exatos segundos que o antecederam – facto G.
E se é certo que a ingestão de bebidas alcoólicas retarda os reflexos e o tempo de reação, também não consegue o Tribunal afirmar de forma indubitável que o embate não ocorreria se a Ré não tivesse ingerido bebidas alcoólicas.
É preciso atentar que Leonor Fortunato efetuou a travessia da via em local que não tinha, à data, uma passadeira, ainda que esta tivesse ali existido anos antes. E este local situa-se na saída de uma rotunda.
Ora, ao contornarem a rotunda, os condutores têm de atentar às diversas entradas e saídas existentes e, não só aos veículos que nela circulam, como também aos veículos que nela pretendem entrar. Por esse motivo, exige o Código da Estrada a circulação nas rotundas em velocidade moderada e proíbe a paragem a menos de 5 metros das rotundas, por forma a não condicionar a circulação.
Foi precisamente esta a razão para a alteração da localização da passadeira há cerca de 15 anos. De acordo com o depoimento da testemunha GG, naquele local existia um cruzamento, tendo posteriormente sido substituído por rotunda, o que levou à desativação da passadeira que ali existia (local onde CC fez a travessia da via) e à colocação de nova passadeira, mais distanciada da rotunda.
Considerando a proximidade do local onde CC atravessou a via, com a rotunda onde a Ré circulava e de onde saía no momento do embate, acrescendo todas as condicionantes já acima mencionadas, bem como o facto de não ter resultado provado que a Ré circulava a uma velocidade excessiva, não se pode concluir que foi o retardamento dos reflexos e do tempo de reação, causados pelo álcool, que inibiram a Ré de reagir atempadamente.
Razão pela qual se consideram não provados os factos H e I.»
Vejamos:
No nosso entendimento, a sentença recorrida procede a uma correcta avaliação da prova e, de resto, a recorrente não infirma essa avaliação, limitando-se a reproduzir o teor dos depoimentos.
Quanto à al. B), em primeiro lugar, deve dizer-se que o depoimento do peão CC não seria suficiente para dar como provado o facto em causa e, ouvida a prova, verifica-se que o seu depoimento é confuso neste aspecto (diz que viu o veículo lá longe e que já ia atravessar quando vi o carro (…) mais ou menos já quase a terminar a passadeira, mas também diz outra coisa diferente: Mandatária da A: Quando a Senhora iniciou a travessia olhou para a sua direita e viu o carro. Testemunha: Vi o carro sim Senhora. (…) Testemunha: Vi o carro lá longe, bastante longe ainda) confirmando-se assim a resposta negativa.
Quanto à al. C), diz a recorrente que tal facto resultou provado através das declarações das testemunhas CC, FFe EE, conjugados com o auto de notícia a fls. 16 e 17.
Mas também aqui não tem razão.
Trata-se da capacidade da R para o exercício da condução tendo em conta o álcool ingerido.
Nesta matéria os depoimentos são inconclusivos (nada prova a tal respeito o facto da testemunha CC dizer que esta vinha em excesso de velocidade ou a testemunha Cabo da G.N.R. FF ter dito que a Ré falava normalmente e que sentia um bocadinho de cheiro a álcool, ou a testemunha Dr. EEa - como médico e ter o mestrado precisamente no uso de álcool e psicotrópicos no exercício da condução – dizer que o grau de alcoolémia em causa significa uma intoxicação etílica aguda com repercursões que se traduzem em três níveis, uma primeira fase quando realmente a absorção atinge o seu mais alto pico, maior presença de álcool no sangue, a euforia e a excitação; ao fim de um certo tempo vem uma segunda fase, a fase da confusão e uma terceira, a sonolência.
Com efeito, trata-se de um depoimento de carácter genérico e não podemos concluir que, em concreto, a R estava em estado de excitação e, por isso, incapacitada para o exercício da condução. (pese embora nos pareça correcto concluir que as capacidades de condução da R se encontravam diminuídas, com a consequente diminuição dos reflexos e capacidades visuais, o que é diferente)
Da mesma forma, quanto às al. I) e H), também se afigura que dos depoimentos das testemunhas CC, FF e Dr. EE, conjugados com o auto de notícia a fls. 16 e 17, não se pode extrair – ao contrário do que pretende a A – a matéria em causa, ou seja que “Dada a exacerbada confiança, perda de juízo crítico e perceção conferidos pelo álcool, a Ré prosseguiu a sua marcha a uma velocidade excessiva e sem consideração pelas regras de trânsito e pelos demais utentes da via e que quando se apercebeu da presença de CC, o retardamento dos reflexos e do tempo de reação causados pelo álcool inibiram a Ré de reagir atempadamente e evitar o acidente.»
Tal conclusão vai muito mais além do que indicam tais meios de prova, para além de que “velocidade excessiva” é uma conclusão e não um facto.
Assim, improcede a requerida alteração da matéria de facto.

2.ª questão - Da impugnação da matéria de Direito - Saber se o direito de regresso da seguradora, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, implica ou não alegar e provar factos que integrem o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente.

A A veio exercer o direito de regresso e invoca que, actualmente (ao contrário do que acontecia na vigência do anterior diploma que regulava o seguro obrigatório), já não é necessária a verificação do nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
A sentença imputa a culpa do acidente exclusivamente ao peão e, por entender que não se conclui que a Ré deu causa ao acidente (apesar de conduzir sob a influência do álcool) absolve-a do pedido.
Na sua impugnação de direito, vem a recorrente defender que com a actual versão do art.º 27.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 291/2007, já não é necessário alegar e provar factos que integrem o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e a produção do acidente para que haja direito de regresso e que basta a constatação de que o condutor conduzia com uma taxa superior à legalmente permitida para que exista direito de regresso.
Será assim?
Pensamos que sim.
O melhor entendimento é o defendido pela recorrente (e não o expresso na sentença recorrida, onde se entendeu que o nexo de causalidade entre a TAS e o acidente era um dos pressupostos do direito de regresso, pelo que na falta de demonstração do mesmo a acção improcedia).
É nesse sentido que vai o Acórdão do STJ de 09.10.2014, proferido no processo n.º 582/11.1TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que seguimos de perto e onde se pode ler o seguinte:
“Esta questão já fez correr rios de tinta na vigência da Lei anterior – DL nº 522/85 de 31 de Dezembro – tendo a jurisprudência contraditória que então foi produzida dado azo a um acórdão uniformizador que, com a alteração legislativa entretanto verificada, parece ter voltado à ordem do dia.
Atentemos, porém, no preceito objecto de interpretações contraditórias.
Consta ele do art. 27º nº1-c) do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto e tem a seguinte redacção:
“1 — Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
a)
b)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”
O sujeito passivo da acção de regresso fundada em alcoolemia é, portanto, o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente.
Quer dizer: o direito de regresso da seguradora contra o condutor responsável pressupõe a responsabilidade civil subjectiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objectiva ou pelo risco.
Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
Que é de 0,5/litro de sangue (art. 81º nº2 do Cód Estrada).
Com efeito, depois de no nº 1 prescrever que
“é proibido conduzir sob influência de álcool…”,
o nº 2 do art. 81º citado prescreve que
“considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.
A lei presume, pois, iuris et de iure, que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.
Assim, os pressupostos cumulativos do direito de regresso previsto no art. 27º nº1-c) do DL nº 291/2007, são a responsabilidade civil subjectiva do condutor responsável e a condução com TAS superior à legalmente permitida, deste facto se inferindo (presumindo) ex vi legis que o condutor está sob a influência do álcool…
A actuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjectivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida.
E esta dupla ilicitude fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica (a que se concretiza na culpa pela eclosão do acidente e a que decorre da condução com TAS proibida).
Este duplo juízo nos planos da ilicitude e da culpa sobre a conduta do condutor deve subsistir autónomo na apreciação do nexo de causalidade entre o acidente e os danos, inquestionável pressuposto da responsabilidade civil subjectiva.
O nosso problema consiste apenas em determinar se, à luz da regulamentação do direito de regresso introduzida pelo DL nº 291/2007, se exige o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos.
(…) Sintetizando: na vigência do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro, o respectivo art. 19º nº 1 - c) – segundo a qual satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso e/ou reembolso, conforme os casos, nos termos da lei geral e ainda contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool – foi interpretado pelo Ac. Uniformizador no sentido de que tal alínea “exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”,
Logo, da expressão “condução sob a influência do álcool” depreende-se que deve ser demonstrado que a ingestão de bebidas alcoólicas afectou a capacidade de condução e que, por isso e como consequência dessa influência, a dita condução se tornou perigosa, a ponto de causar o acidente.
O álcool seria, pois, nesta perspectiva, a causa (remota) do acidente porque teria provocado actuações, atitudes, comportamentos, condutas (agir sob a influência do álcool) inadequadas para a condução e determinantes do sinistro.
A proibição de condução com TAS superior a certo limite – a partir do qual a lei presume ser a mesma influenciada pelo álcool – é uma norma de perigo abstracto (ou de protecção abstracta).
Por via dessa influência objectiva (porque assente em dados científicos) esse perigo abstracto concretiza-se, materializa-se, em actuações concretas do condutor (v.g, velocidade excessiva, dificuldade ou impossibilidade de percepção de obstáculos, violação de regras de trânsito como o circular pela esquerda, em zig-zag, não parar ao sinal de stop, etc, etc), estas sim, as verdadeiras causas do acidente.
A condução sob a influência do álcool configura, pois, um perigo real, se bem que genérico e abstracto, implicando uma perigosidade ex ante da conduta para os bens jurídicos protegidos (vida, integridade física, património) que se substancia depois naquelas concretas e típicas actuações violadoras do dever de cuidado.
E, à luz da redacção do art. 19º do DL nº 522/85 citado e do Acórdão Uniformizador nº 6/2002, era essencial relacionar estas concretas actuações, em termos de consequência adequada, com o nível de concentração de álcool no sangue e com os reflexos que este implica no comportamento e nas capacidades psico-motoras do condutor.
Revogado o DL nº 522/86 pelo DL nº 291/2007, o art. 27º nº1-c) deste, actualmente em vigor e aplicável ao caso em apreço, prevê quanto ao direito de regresso, que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”
Ou seja: o requisito da alcoolemia foi com esta última alteração legislativa, enunciado em termos diversos, desconsiderando-se agora a influência (isto é, a relação de causa e efeito) do álcool na condução.
Independentemente dessa influência – que o art. 81º nº2 do Cód. Estrada presume absolutamente quando igual ou superior a 0,5g/l – o direito de regresso basta-se agora – para além da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil subjectiva e do cumprimento da respectiva obrigação de indemnizar - com uma TAS superior à legalmente permitida.
Deixou de relevar para o direito de regresso a questão de saber se in concreto a impregnação de álcool no sangue do condutor medida pela TAS influenciou ou não a condução em termos de constituir a causa remota da actuação culposa do condutor que fez eclodir o acidente: basta que o condutor acuse, no momento do acidente, uma TAS superior à legalmente admitida, para que, se tiver actuado com culpa – e obviamente se se verificarem os demais requisitos da responsabilidade civil subjectiva – possa ser demandado em acção de regresso pela seguradora que satisfez a indemnização ao lesado.
Escreveu-se a propósito deste preceito no Ac deste STJ de 28-11-2013 (Proc. nº 995/10.6TVPRT.P1.S1) de que foi Relator o Exº Cons. Silva Gonçalves:
“O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
Porque, como se referia no Ac deste STJ de 09-01-1997 – no qual, além do mais e no âmbito da controvérsia sobre a questão do nexo de causalidade na vigência do DL nº 522/85, se entendeu que a procedência do direito de regresso da seguradora previsto no art. 19º-c) desse diploma implicava a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente a efectuar pela Seguradora – “se realmente a lei quisesse dispensar o nexo de causalidade, mais clara ela seria se dissesse algo como: «contra o condutor, se este conduzir com álcool» (cfr. BMJ 463, p. 211).
E o certo é que com a revogação do DL nº 522/85 citado pelo DL nº 291/2997, a nova regulamentação do direito de regresso da seguradora no contrato de seguro automóvel obrigatório designadamente em matéria de alcoolemia sofreu, como vimos, uma alteração substantiva cujo alcance não pode ser menosprezado e revela que o legislador quis dispensar o nexo de causalidade; parafraseando o acórdão supra-citado, com a alteração legislativa operada pelo DL nº 291/2007, o legislador quis mesmo dispensar o nexo de causalidade quando exigiu para a procedência do direito de regresso, que o condutor conduzisse com álcool, referenciando este a um dado científico – a TAS – objectivamente determinável e controlável.
Com efeito, ele não podia ignorar a controvérsia gerada na vigência do DL nº 522/85 e o ponto final que lhe foi posto pelo AUJ nº 6/2002.
E então de duas, uma: se era seu propósito manter essa solução, di-lo-ia expressamente, mantendo a redacção do texto legal e esclarecendo mesmo o seu sentido de acordo com a interpretação que lhe foi dada pelo AUJ; algo como, por ex, se tiver agido sob a influência do álcool e por isso tiver dado causa ao acidente.
Não o fez.
Antes, curou de alterar o texto legal, expurgando-o da expressão “agir ou conduzir sob a influência do álcool” e substituindo-a por outra, mais objectiva “conduzir com TAS igual ou superior à legalmente admitida”.
É que, a exigência típica de conduzir sob a influência deve interpretar-se no sentido de que a ingestão de álcool (ou drogas) influa efectivamente na condução, afectando a capacidade do sujeito para conduzir com segurança, tornando a condução perigosa ex ante, potencialmente lesiva para a vida ou integridade dos demais participantes do tráfego; só assim se concretizaria a influência do álcool na condução, competindo o respectivo ónus de alegação e de prova à seguradora.
Com o art. 27º do DL nº 291/2007, a questão foi simplificada: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializava a influência do álcool na condução e que, como se disse, eram relevantes na vigência do DL nº 522/85 na interpretação do AUJ nº 6/2002.
Como escreve Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, a propósito desta alteração legislativa:
“o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício” (cfr. O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, p. 212).
A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve.
E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art. 81º nº1 e 2 do Cód Estrada e 292º do Cód Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280º nº1 CCivil).
Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.
E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.
A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.
O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.
Assim sendo, podemos concluir, tal como o Ac STJ de 28-11-2013 citado, que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.
(…)Repetimos: a questão releva, a nosso ver, como se disse, no âmbito do contrato de seguro e não no da responsabilidade civil extracontratual.
Com efeito, um dos elementos essenciais do contrato de seguro é o risco, definido como “o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro” (cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, p. 127).
A noção de seguro supõe a de risco, isto é, a exposição à eventualidade de um dano à sua pessoa ou ao seu património e, no caso do seguro de responsabilidade civil, o objecto último da protecção é o património do próprio segurado contra a eventualidade do nascimento de obrigações de indemnização de terceiros lesados por danos emergentes da circulação de veículos automóveis; como prescreve o art. 137º da Lei do Contrato de Seguro (DL nº 72/2008 de 16 de Abril), “no seguro de responsabilidade civil o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros”.
Ora, é inquestionável o agravamento do risco de acidentes quando a condução tem lugar com uma TAS superior a certo limite, isto é, sob o efeito do álcool e, por isso, é proibida.
Logo, como já se disse, o risco (agravado) de acidentes nesse caso nunca poderia ser coberto pelo contrato de seguro.
O agravamento do risco de acidentes pelo excesso de álcool no sangue do segurado (ou de pessoas cuja responsabilidade civil é garantida pelo contrato de seguro automóvel implica a perda da cobertura do seguro; agravamento do risco reconduz-se ao aumento das chances de ocorrência de um sinistro.
Pelo que a seguradora não está, em princípio, obrigada a cumprir a sua prestação de ressarcimento do lesado, porquanto ocorrendo um sinistro cuja verificação ou consequência tenha sido influenciada pelo agravamento do risco resultante de facto do tomador do seguro ou do segurado, o segurador não está obrigado ao pagamento da prestação se demonstrar que, em caso algum, celebra contratos que cubram riscos com as características resultantes desse agravamento do risco; é este o princípio normativo geral que se recolhe do art. 94º nº2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro anexo ao DL nº 72/2008 de 16 de Abril.
Ora, a seguradora nem teria que fazer essa prova de que, em caso algum, celebraria um contrato de seguro automóvel que cobrisse os riscos da condução automóvel por condutores etilizados, pois, como se disse, tal contrato de seguro nunca poderia ser celebrado.
Não obstante a falta de cobertura do seguro, a seguradora está obrigada a indemnizar os lesados.
Tal só se compreende por razões de interesse público que se prendem com a necessidade de protecção de terceiros lesados, propósito este bem patente no relatório preambular do DL nº 291/2007.
Tal protecção evidencia-se, entre outras disposições, pela limitação de excepções e meios de defesa que a seguradora pode opor ao lesado: só lhe pode opor as excepções previstas no art. 22º do mesmo diploma, a saber: a cessação do contrato nos termos do n.º 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente, e as exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas nesse mesmo decreto–lei – e não a de ineficácia decorrente do agravamento do risco provocada pelo segurado ou condutor responsável.
Mas, se nas relações externas a seguradora não pode opor ao lesado as excepções fundadas no agravamento do risco causado pelo segurado ou condutor responsável, já o mesmo não acontece nas relações internas, entre a seguradora e o condutor responsável pois que, como já se disse e é óbvio, sendo proibida a condução com TAS superior a certo limite, nunca ela poderia assumir o risco de tal condução.
O direito de regresso compreende-se, portanto, porque, o condutor – que é civilmente responsável – tem a sua responsabilidade garantida pela seguradora para quem foi transferida a sua responsabilidade através do contrato de seguro, seguradora essa que, por sua vez, suportou a indemnização devida aos lesados numa situação em que a cobertura do risco estava excluída.
A responsabilidade primeira é sempre a do condutor, como autor do facto ilícito que desencadeou a sua responsabilidade civil extracontratual e que, por via do contrato de seguro, foi transferida para a seguradora; logo, a responsabilidade da seguradora é meramente derivada daquela e do contrato de seguro.
E se, por qualquer razão (v.g, in casu, agravamento do risco), o contrato de seguro for ineficaz e a seguradora não puder opor essa ineficácia ao lesado e tiver que cumprir a prestação convencionada no contrato de seguro – pagamento da indemnização – o direito de regresso é o único meio que ela tem de recuperar e reembolsar o que despendeu com esse pagamento.»
Assim sendo, voltando ao caso concreto, uma vez que a sentença recorrida julgou improcedente a acção de regresso intentada pela recorrente apenas por falta de prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente - já que os demais elementos constitutivos do direito de regresso se verificam - e entendendo nós que a procedência do direito de regresso da seguradora, tal como se encontra actualmente configurado no DL n.º 291/2007, não exige tal nexo de causalidade, bastando-se com a prova da TAS superior à legalmente permitida, não pode tal sentença subsistir, impondo-se a sua revogação, mesmo com a matéria de facto já assente na sentença.
Uma vez que, estamos em presença de uma situação de concausalidade, em face da verificação de culpas concorrentes do condutor do veículo e do peão na ocorrência do acidente e afigurando-se como adequada a medida da culpa correspondente à proporção da culpa na ocorrência do evento danoso atribuída ao condutor do veículo ZS e do peão para a produção do acidente dos autos, na percentagem de 50% para aquele motorista e 50% para a vítima - existe o direito de regresso da seguradora na medida da repartição das culpas de cada um dos responsáveis.
Logo, deve a Ré BB ser condenada no pagamento à Autora de 50% do valor dos danos peticionados, ou seja, 50% de € 20.544,54, acrescido de juros de mora à taxa legal até integral e efetivo pagamento.
4 - Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a sentença recorrida e condenando a Ré BB a pagar à Autora 50% do valor dos danos peticionados, ou seja, 50% de € 20.544,54, acrescido de juros de mora à taxa legal até integral e efetivo pagamento.
Custas na primeira instância por ambas as partes na proporção de metade.
Custas nesta instância de recurso pela recorrida.

Évora, 05.05.2016

Elisabete Valente

Bernardo Domingos

Silva Rato