Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
16/18.0 GCFAR.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: ARGUIDO ESTRANGEIRO
OMISSÃO DE TRADUÇÃO
FALTA DE NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
NULIDADE
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A omissão de tradução ou a falta de nomeação de intérprete a arguido estrangeiro que não percebe a língua portuguesa, aquando da notificação da acusação, ou da notificação do despacho que designa datas para julgamento, constitui uma nulidade relativa ou dependente de arguição, tipificada no art.º 120.º, n.º 1 al.ª c) do CPP.
Porque assim, a invocação de tal nulidade – necessariamente relativa ou sanável – apenas em sede da peça recursiva apresentada, é manifestamente extemporânea.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I

No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 16/18.0 GCFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro, Juiz 2, foi submetido a julgamento, mediante acusação do Digno Magistrado do Ministério Público, sem precedência de contestação, o arguido EK (devidamente identificada nos autos), e por sentença proferida e depositada em 10.04.2019, foi decidido:

“(…)

a) Absolver o arguido EK do crime de condução perigosa de veículo rodoviário que lhe era imputado.

b) Condenar o arguido EK como autor material de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.°, n.º 1 do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;

c) Suspender a execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, pelo período de 3 (três) anos, acompanhada por regime de prova, mediante Plano Individual de Reinserção Social, a elaborar pela DGRSP, orientado para o tratamento e posterior prevenção do alcoolismo;

d) Condenar ainda o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 18 (dezoito) meses. Consequentemente, deve o arguido, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, entregar a respectiva licença de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial (artigo 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 69.°, n.º 3 do Código Penal), sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.

(…).”.

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da motivação de recurso as seguintes conclusões:

a) Declarar-se a nulidade de todo o processado anterior à nomeação de intérprete ao Recorrente, bem assim da própria sentença por não ter sido entregue ao Arguido exemplar escrito na língua russa. Assim não se entendendo,

b) Determinar penas mais justas (principal e acessória), adequadas e equilibradas, sendo a pena justa e equilibrada, a que venha a condenar o ora Recorrente nos termos supra expendidos

Com a serena certeza que farão Vossas Excelências, Venerandos Juízes-Desembargadores DOUTA E COSTUMADA JUSTIÇA”.

Admitido o recurso interposto e notificados os devidos sujeitos processuais, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou articulado de resposta, concluindo nos seguintes termos:

“1- Face ao teor das duas conclusões apresentadas é evidente que o recurso deve ser rejeitado por ser manifesta a sua improcedência (art. 420 nº 1 alínea a) do CPP).

2- Caso assim não se entenda o recurso deve improceder, porque o arguido conhece a língua portuguesa (está em Portugal desde 2001 e face ao teor dos autos) e porque as penas aplicadas são justas e equilibradas.

3- Assim, nenhum reparo nos merece a sentença recorrida.

4- Nenhuma disposição legal foi violada.

5- Deve assim, manter-se a mesma fazendo-se assim

JUSTIÇA”.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando “com o entendimento do Ministério Público na primeira instância”, concluindo que a sentença recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido feito uso do direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar, a relatora entendeu existir motivo para rejeição do recurso, tendo proferido decisão sumária nos termos do estatuído nos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nºs 1, alínea a) e 3, do Código de Processo Penal.

Da decisão sumária proferida veio o recorrente reclamar, reeditando, em síntese, os seus anteriores fundamentos.

O Exmº Procurador-Geral Adjunto chamado a pronunciar-se, querendo, opinou “(…) Mantemos a posição expressa no parecer que antecedeu a decisão sumária (…) Entendemos que aquela decisão tratou as questões suscitadas no recurso interposto e está conforme às disposições legais aplicáveis”.

Colhidos os vistos legais, foi realizada a Conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como decorre claramente do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Por outro, importa não olvidar que se o recorrente não retoma nas conclusões da respectiva motivação as questões que desenvolveu no corpo da motivação, porque se esqueceu ou porque quis restringir o objecto do recurso, o Tribunal ad quem só conhecerá das questões que constam nas conclusões.

Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões aportadas ao conhecimento desta instância são as seguintes:

(i) - Da nulidade do processo e bem assim da sentença proferida por omissão de tradução de todos os actos processuais comunicados ao arguido anteriormente à nomeação de intérprete por ser arguido estrangeiro;

(ii) - Do erro de julgamento em matéria de direito no tocante à dosimetria das penas – principal e acessória – impostas ao arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.

III

A decisão sumária objecto de reclamação é do seguinte teor:

“(…)

Apreciando a primeira editada questão, [(i)], trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo recorrente, repristinamos o teor do Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22.04.2010, proferido no processo nº 11/05.0 FCPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre, onde se lê, e se sufraga, a propósito de situação similar que, “(…) 2. No nosso ordenamento penal adjectivo – e em consonância com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem – não existe qualquer norma que imponha a obrigatoriedade da entrega de tradução, quer da acusação, quer do despacho que designa dia para julgamento, a arguidos estrangeiros que não compreendam ou dominem convenientemente a língua portuguesa. Da conjugação do preceituado nos art. 92.º, n.º 2, 111.º, n.º 1, alin. b) e c) e 113.º, n.º 9 do CPP, o que resulta é a obrigatoriedade da intervenção de intérprete nos actos da notificação do arguido estrangeiro que não compreenda a língua portuguesa, com vista a transmitir-lhe o conteúdo, no caso dos autos, da peça acusatória por forma a dar-lhe conhecimento dos factos que na acusação lhe são imputados, e do despacho a designar datas para julgamento. 3. A omissão de tradução ou a falta de nomeação de intérprete a arguido estrangeiro que não percebe a língua portuguesa, aquando da notificação da acusação, ou da notificação do despacho que designa datas para julgamento, constitui uma nulidade relativa ou dependente de arguição, tipificada no art.º 120.º, n.º 1 al.ª c) do CPP, sendo extemporânea a sua arguição apenas em sede de recurso.” [sublinhado nosso].

Porque assim, sem necessidade de acrescidos considerandos, a nulidade – necessariamente relativa ou sanável – invocada pelo arguido apenas e em sede da peça recursiva apresentada, é manifestamente extemporânea, pelo que o indicado vício, a verificar-se, há muito que se mostra sanado – v.g. artigos 118º, nºs 1 e 2 e 120º, nºs 1 e 2, alínea c) e 3, do Código de Processo Penal.

Apreciando a segunda elencada questão, [(ii)], como vem referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.05.2008, proferido no processo nº 08P1145, disponível em www.dgsi.pt/jstj, “É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 197).” [sublinhado nosso].

Considerações que, transpostas para o caso em apreço, impõem que se afirme peremptoriamente a ausência de fundamento legal para a reclamada comutação in mellius das penas principal e acessória de proibição de conduzir veículos com motor impostas ao recorrente, que ademais não invoca argumento algum que não tenha sido sopesado na decisão recorrida, não se vislumbrando no processo de determinação do quantum das penas – principal e acessória – nenhum desacerto, pelo que o decidido a este propósito pelo Tribunal a quo não nos merece qualquer censura ou reparo. Constatada a adequada ponderação das diferentes circunstâncias concorrentes para a determinação da medida concreta da pena principal, de prisão suspensa na sua execução, e da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, impostas ao arguido, ademais fixadas de acordo com as normas aplicáveis, sem ultrapassar a culpa do mesmo e capazes de responder de forma satisfatória às exigências preventivas, forçoso é concluir que não afrontam os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas – cfr. artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa – antes sendo adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico, não ultrapassando a medida da culpa do arguido.

(…)”.

E, ressalvado o devido respeito, nada mais se nos oferece dizer que não seja reafirmar a adesão, na íntegra, aos fundamentos expressos na decisão sumária, sendo certo que as objecções do recorrente/reclamante apenas se compreendem porque dela persiste em discordar, sem que invoque fundamento ou razão que, de alguma forma, a possa beliscar.

E, porque assim, não se detectando que o decidido nesta instância tenha importado a violação de qualquer dos mencionados preceitos legais maxime o contido no nº 6, alínea b), do artigo 417º, com referência ao nº 1, alínea a), do artigo 420º, ambos do Código de Processo Penal, a decisão sumária proferida é de manter.

IV

Decisão

Nestes termos, acordam indeferir a reclamação e, em consequência, manter a decisão sumária proferida de rejeição do recurso interposto por ser manifesta a sua improcedência.

Condenar o recorrente/reclamante em 5 (cinco) unidades de conta de taxa de justiça.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente por ambos os subscritores (cfr. artigo 94º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal)]

Évora, 16 de Dezembro de 2021

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

J. F. Moreira das Neves