Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1789/18.6T8PTM-A.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PODER PATERNAL
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1) - A competência internacional dos tribunais portugueses afere-se pelo critério da residência habitual do(s) menor(es).
2) - E o aludido conceito de "residência habitual" – a que alude o artigo 5º, nº 1, da “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 – deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao lugar que traduz uma certa integração da(s) criança(s) num ambiente social e familiar de proximidade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1789/18.6T8PTM-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) instaurou contra (…) a presente acção de regulação das responsabilidades parentais dos filhos de ambos (…) e (…), nascidos respectivamente a 25 de Setembro de 2011 e 24 de Novembro de 2013.
Após ter sido realizada conferência de pais, no qual não foi possível chegar a acordo entre os progenitores, veio a requerida suscitar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgar o pleito, uma vez que, quer os pais, quer os menores, são todos de nacionalidade brasileira e, além disso, encontram-se a residir temporariamente em Portugal.
Pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida decisão, na qual julgou improcedente a excepção dilatória invocada pela requerida e, em consequência, declarou o Tribunal de Família e Menores de Portimão como sendo internacionalmente competente para apreciar e decidir a presente acção de regulação das responsabilidades parentais.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerida, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A) O tribunal “ a quo” na sua decisão ora em recurso, apenas levou em conta para estabelecer o critério da residência habitual, dois factores, que os menores estão em Portugal desde Novembro de 2017 até á presente data, ou seja cerca de um ano e as mesmas frequentam equipamentos escolares em Portugal.
B) O Tribunal “a quo”, não levou em conta para estabelecer o critério da residência habitual, que “resulta que apesar das crianças terem residido a maior parte da sua vida no Brasil, de as mesmas terem a nacionalidade Brasileira tal como os Pais”, de terem todos os seus familiares, os pais, os irmãos, os sobrinhos e primos, dos progenitores e dos menores, os seus amiguinhos de escola e das brincadeiras, a sua cultura ser a brasileira a sua inserção ter sido na sociedade brasileira.
C) O Tribunal “a quo”, deveria ter levado em conta no critério da residência habitual, a jurisprudência dos Tribunais Superiores acima citados, e a interpretação dada também pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo – se pronunciado entre outros, nos acórdãos proferidos em 22 de Dezembro de 2010, e no acórdão de 2 de Abril de 2009.
D) A fim de que o superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, o conceito de residência habitual traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar, pelo que para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física há outros factores suplementares que devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.
E) Há também que levar em conta nomeadamente, a nacionalidade da criança, a sua idade, a duração, a regularidade, ás condições e razões de permanência da criança no território, aos laços familiares e sociais que a criança tiver nesse Estado.
F) Aplicando-se todos esse factores se provam que os menores de seis e cinco anos, de nacionalidade brasileira, sempre viveram no Brasil, até Novembro do ano passado, ali têm todos os seus laços familiares, os avós, os tios os primos, tanto maternos como paternos, ninguém desses familiares vive em Portugal, ali estavam a ser educados, ali, estão inseridos, apenas estão em Portugal, porque o pai se quis separar da mãe, pois a manterem o vínculo conjugal, já teriam voltado, pois vieram com passagens de ida e volta para o Brasil, não estando aqui legalizados.
G) Nestes termos deverão V. Exas. revogar, a decisão, ora em Recurso, devendo ser considerado o Tribunal Português incompetente internacionalmente, para regulação das responsabilidades parentais, pela aplicação da interpretação do que se considera “residência habitual”, que a jurisprudência dos Tribunais Superiores manda aplicar, tendo a lei, no caso “sub judice”, sido mal aplicada, por não considerar o critério convenientemente, assim deverão ser levados em conta os superiores interesses dos menores. Fazendo-se a Costumeira Justiça.
Pelo requerente e pelo Ministério Público foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerida, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se não deverá ser deferida aos tribunais portugueses a competência internacional para decidir os presentes autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores (…) e (…).

Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente a factualidade que foi dada como assente no tribunal “a quo” – a qual, aliás, não foi expressamente impugnada, de acordo com o estipulado no art. 640º do C.P.C – e que, de imediato, passamos a transcrever:
1. As crianças (…) e (…), nascidas em 25 de Setembro de 2011 e 24 de Novembro de 2013, naturais de (…), Belo Horizonte, de nacionalidade brasileira são filhos de (…) e (…), ambos de nacionalidade brasileira.
2. Os progenitores das crianças casaram entre si no dia 24 de Setembro de 2008, todavia, separaram-se em Julho de 2018 e estão separados até à presente data.
3. Os progenitores e as crianças viveram no Brasil, todavia, vieram para Portugal, de comum acordo, onde se encontram a viver desde Novembro de 2017, mais concretamente, em Albufeira.
4. As crianças frequentam equipamentos escolares em Portugal, ingressando o menor (…) na escola de (…), em Albufeira e o menor (…) no jardim-de-infância de (…), tendo ambos ingressado no dia 28 de Novembro de 2017.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela requerida, ora apelante – saber se o tribunal “a quo” é internacionalmente incompetente para dirimir a presente causa – importa desde já ter presente o que estatui o art.59º do C.P.C., relativamente à competência internacional dos Tribunais portugueses:
- Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.
A “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 – a qual vigora na nossa ordem jurídica interna, prevalecendo sobre as normas processuais portuguesas e vinculando internacionalmente o Estado Português (cfr. art. 8º, nº 2, da Constituição da República) – refere, no seu art.1º, ter por objecto:
a) Determinar qual o Estado cujas autoridades têm competência para tomar as medidas orientadas à protecção da pessoa ou bens da criança;
E, no nº 2 do mesmo art. que:
- Para os efeitos desta Convenção, a expressão «responsabilidade parental» designa a autoridade parental ou qualquer outra relação análoga de autoridade que determine os direitos, poderes e responsabilidades dos pais, tutores ou outros representantes legais relativamente à pessoa ou bens da criança.
Esclarecendo ainda, no seu art.3º, que:
- As medidas previstas no artigo 1.º poderão, nomeadamente, envolver:
a) Atribuição, exercício, termo ou redução da responsabilidade parental, bem como a sua delegação;
E estabelecendo, em matéria de competência, no artigo 5º, que:
1 - As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança.
2 - Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência.
Dispondo o ressalvado artigo 7º quanto ao “caso de afastamento ou de retenção ilícita da criança”, o que não se verifica no caso dos presentes autos.
De acordo com o artigo 62º do C.P.C. (para o qual, como se viu supra, remete a segunda parte do artigo 59º daquele Código):
- Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Por sua vez, entre as providências tutelares cíveis previstas no Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) inclui-se “a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes” – cfr. art. 3º, alínea c), do referido RGPTC.
E, o artigo 9º do RGPTC, sob a epígrafe “Competência territorial”, estipula que:
1 - Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado.
2 - Sendo desconhecida a residência da criança, é competente o tribunal da residência dos titulares das responsabilidades parentais.
3 - Se os titulares das responsabilidades parentais tiverem residências diferentes, é competente o tribunal da residência daquele que exercer as responsabilidades parentais.
4 - No caso de exercício conjunto das responsabilidades parentais, é competente o tribunal da residência daquele com quem residir a criança ou, em situações de igualdade de circunstâncias, o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
5 - Se alguma das providências disser respeito a duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
6 - Se alguma das providências disser respeito a mais do que duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal da residência do maior número delas.
7 - Se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido.
8 - Quando o requerente e o requerido residam no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, o conhecimento da causa pertence à secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa.
9 - Sem prejuízo das regras de conexão e do previsto em lei especial, são irrelevantes as modificações de facto que ocorram após a instauração do processo.
Sendo aqui de assinalar que no transcrito nº 8, não se define qualquer critério de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, mas, tão só, de atribuição de competência territorial ao tribunal nacional, na hipótese de ele ser internacionalmente competente.

Ora, da factualidade apurada nos autos – e que se encontra acima transcrita – constata-se que os dois menores, à data do requerimento de regulação do exercício das responsabilidades parentais, tinham a sua residência habitual em Portugal, mais concretamente em Albufeira, no Algarve, tendo vindo viver para o nosso país em Novembro de 2017 com os respectivos progenitores, e de comum acordo entre os pais, estando devidamente integrados em equipamentos escolares que frequentam desde aquela data.
E, não obstante estes dois menores e os seus progenitores terem todos nacionalidade brasileira e que as crianças viveram até Novembro de 2017 no Brasil, país onde têm outros familiares, não podemos olvidar – de todo – que foram os progenitores de ambas as crianças que decidiram de mútuo acordo vir viver para Portugal, onde o pai se estabeleceu profissionalmente (tendo constituído uma empresa), por aqui terem melhores condições para cuidar e educar os filhos, tendo decidido fixar residência definitiva em Albufeira, Portugal.
Aliás, tanto assim é que, mesmo depois da separação dos progenitores (no início do Verão de 2018), a própria requerida, aqui apelante, dirigiu-se aos Serviços da Procuradoria da República do Juízo de Família e Menores de Portimão, em 5/7/2018, solicitando que fosse instaurada com urgência, no nosso país, a regulação das responsabilidades parentais dos filhos, para que a residência dos mesmos fosse fixada junto dela, sendo que tal acção só não foi proposta porque já se encontrava pendente a presente acção instaurada pelo requerente marido…
Na verdade, a “residência habitual” de um menor é o local onde se encontra organizada a sua vida em termos de maior estabilidade e permanência, onde desenvolve habitualmente a sua vida, em suma, onde está efectivamente radicado. Daí que, no caso em apreço, encontrando-se estas duas crianças (o … e o …) bem integradas em termos escolares e de amizades, forçoso é concluir que estas têm, efectivamente, a sua residência habitual em Portugal, não sendo a mesma transitória ou ocasional.
Acresce que, residindo ambos os progenitores em Portugal (ainda que a intenção actual da progenitora seja a de regressar ao Brasil), este tribunal da área da residência actual dos menores e dos pais é também aquele que se encontra melhor colocado, porque mais próximo, para salvaguardar os superiores interesses destas duas crianças.
Assim, na data em que foi instaurada a presente acção de regulação das responsabilidades parentais, que é a que releva para efeito de determinação da competência, resulta claro que os dois menores tinham, pois, a sua residência habitual em Portugal, como, aliás, de forma acertada, se veio a entender na decisão recorrida, na qual, a dado passo, se afirmou o seguinte:
- (…) Do exposto resulta que apesar das crianças terem residido a maior parte da sua vida no Brasil, certo é que se encontram a residir em Portugal com os progenitores, desde Novembro do ano passado, estando integradas, ao que tudo indica em termos escolares e de amizade e por conseguinte, à data da propositura da presente acção as crianças tinham residência habitual e centro de vida em Portugal, mais concretamente, em Albufeira, onde a família ficou a residir depois de vir do Brasil.
Nestes termos, atentas as razões e fundamentos supra expostos, teremos de concluir, necessariamente, que não merece qualquer censura ou reparo a decisão recorrida, na qual a M.ma Juiz “a quo” declarou (e bem) o Tribunal de Família e Menores de Portimão como sendo internacionalmente competente para apreciar e decidir a presente acção de regulação das responsabilidades parentais dos menores (…) e (…).

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- A competência internacional dos tribunais portugueses afere-se pelo critério da residência habitual do(s) menor(es).
- E, o aludido conceito de "residência habitual" – a que alude o art. 5º, nº 1, da “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 – deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao lugar que traduz uma certa integração da(s) criança(s) num ambiente social e familiar de proximidade.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela requerida e, em consequência, confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela requerida, ora apelante.
Évora, 11 de Abril de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).