Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
496/22.0T8CTX.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
APARÊNCIA DE DIREITO
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se a requerente da providência cautelar alega que é titular do direito de propriedade plena, mas apenas integra a sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade, não se mostra preenchido um dos requisitos para o decretamento da providência, a aparência da existência do direito alegado na sua titularidade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc.º 496/22.0T8CTX.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: AA

Recorrido: BB
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No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica ..., no âmbito da Providência Cautelar proposta pela recorrente contra a recorrida, pedindo que seja decretada uma renda mensal no valor de 500,00€, que a recorrida terá de pagar à requerente até à sentença de anulação do registo e à restituição da posse da fração.
Para tanto alegou, em suma, que com o seu ex-marido, CC, durante a pendência do casamento, adquiriu uma fração autónoma identificada pela letra “M” correspondente ao quarto piso frente, destinado a habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ... ....
Apesar do divórcio ocorrido há muitos anos, nunca chegaram a efetuar partilhas do património conjugal.
CC veio a falecer a 7 de junho de 2020, no estado de divorciado da recorrente, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, deixando como único herdeiro, o seu filho, DD.
Na sequência da morte daquele, a recorrente outorgou com o filho escritura de partilha, passando a ser a única proprietária da fração em causa.
Após, foi a recorrente confrontada com a inscrição Ap....60 de 2020.08.12 de um direito de habitação a favor da Requerida, sobre a fração, registado como Legado legal: por morte do membro da união de facto.
Ora, sustenta que tal registo é nulo, uma vez que não sendo o bem próprio de CC, nem sobre ele tendo um direito de habitação, não poderia constituir-se qualquer legado a favor da recorrida, tanto mais que aquele morreu sem qualquer testamento ou disposição de vontade.
Mais acrescenta que, não obstante ser a recorrente a única e legítima proprietária da fração em causa nos presentes autos, se encontra destituída da sua posse, porquanto a recorrida não entrega a fração livre de pessoas e bens.
Tal situação impede-a de colocar a fração no mercado de arrendamento, onde poderia alcançar uma renda superior a 600,00€. Calcula nesta medida os lucros cessantes por cada mês que está desapossada da fração.
Concluiu, a final, pela procedência da providência cautelar.
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A recorrida apresentou oposição, na qual impugnou a obrigação de pagar qualquer valor a título de renda, uma vez que nunca se estabeleceu uma relação de arrendamento que tivesse por objeto a fração em causa.
Defendeu-se também por exceção, invocando que viveu com o falecido CC em união de facto, na fração em causa, durante 10 anos e 5 meses, até à morte deste, sendo titular de um direito real de habitação e uso do recheio da fração.
Acrescenta que tal direito surge na sua esfera jurídica ainda que o unido de facto falecido não fosse proprietário da totalidade, mas apenas comproprietário da fração.
Mais invocou que não tem casa própria, necessitando da casa da morada de família para habitar, não tendo condições económicas para adquirir ou arrendar casa, nem pode ir para a sua terra natal (...).
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Em sede de saneador, foi conhecido do fundo da causa e decidido o seguinte:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente procedimento cautelar.
Custas pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 539.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no n.º 2, do mesmo normativo legal.

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Não se conformando com o decidido, a recorrente apelou formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 do CPC:

a) A Juiz do tribunal a quo considerou perfunctoriamente provado que à data do seu falecimento, CC vivia há mais de 10 anos com BB, em união de cama, leito e habitação, residindo de forma permanente na fração autónoma da qual era comproprietário com a Requerente, tendo por base uma alegada declaração da Junta na presença de duas testemunhas, porém dos autos não consta essa mesma declaração ou pelo menos não foi notificada à Requerente que deduziu oposição à declaração junta pela Requerida, demonstrando exatamente a precaridade dos factos nela atestados.

b) O tribunal decide prescindir da prova testemunhal e não considera provado um facto, cuja prova dependia dessa mesma prova prescindida, resultando clara lesão dos direitos da requerente, e falta de isenção e uma grande parcialidade quanto à versão da Requerida.

c) Contrariamente à causa de pedir no presente procedimento cautelar, o tribunal “a quo” fixou como única matéria a decidir – a união de facto da requerida e o consequente direito de residir na casa de morada de família, desde sempre propriedade da Requerente, inicialmente em compropriedade e posteriormente, como única titular.

d) Como consequência, não foi sequer escalpelizado a nulidade do registo do direito real de habitação promovido pela Requerida, e que o Tribunal “a quo” se escusou a tecer qualquer comentário.

e) Para além da Requerente ter demonstrado o seu direito de propriedade, inicialmente como comproprietária e, posteriormente, como única titular, demonstrou desde logo que o registo do alegado direito da Requerida é nulo, por vários vícios que enferma. Não obstante, sem qualquer fundamentação a juiz “a quo” considera o direito real de habitação da Requerida “erga omnes” e impeditivo do exercício do direito de propriedade da Requerente.

f) O alegado unido de facto falecido, nunca teve a propriedade plena, logo por uma questão de equidade, nunca um direito real de habitação pode ser reconhecido sobre uma propriedade plena que o próprio falecido nunca teve. Alias, não sendo o proprietário, jamais pode operar os direitos da união de facto sobre a casa de morada de família.

g) Por outro lado, é contranatura, ser exigido à Requerente que garanta a residência da Requerida a custo zero num imóvel que é seu, muito antes duma suposta união de facto, não existe qualquer suporte legal para credibilizar esta situação que é por si só injusta e lesiva dos direitos da Requerente.

h) O prejuízo da Requerida é exatamente igual ao dano da Requerente, pois o prejuízo daquela, seria o pagamento de uma renda de uma casa de habitação, por não ser proprietária da mesma, (situação normal e básica ao mais comum dos mortais) e, o dano é exatamente a falta de pagamento de uma renda à proprietária, por habitar o seu imóvel.

i) Na senda da falta de imparcialidade da Juiz “a quo”, considerou que pagar uma renda, numa situação análoga à dos comproprietários pelo uso da habitação, colocaria a Requerida numa situação económica difícil, mas sem sequer ter sido feita prova da situação económica desta, por outro lado e, de igual forma não considerou que o facto de não receber uma renda do seu imóvel, poderá colocar a Requerente numa situação económica difícil.

j) É patente em toda a sentença de que se recorre a falta de isenção, parcialidade e acima de tudo de um juízo de equidade, o que justifica a acérrima defesa dos direitos da Requerida quanto à união de facto, ignorando o facto de o falecido unido de facto não era proprietário da casa de morada de família, mas sim e apenas detentor de um direito de meação sobre o património ainda por partilhar na consequência de um divórcio.

k) Ficou, assim, demonstrado que o registo promovido pela Requerida do seu direito real de habitação é nulo.

l) Que o falecido ex cônjuge era proprietário em comum com a Requerente, e sem determinação de partes ou direito, do imóvel onde este residiu até morrer e, em virtude da sua morte, reunidas as condições para a realização da partilha, ficando a Requerente com a propriedade plena.

m) Encontra-se a Requerente impedida da posse da mesma, por a Requerida não entregar o imóvel onde habita ilegitimamente e, como tal impede a Requerente de tirar proveitos económicos do mesmo.

n) Até à anulação do registo a Requerente tem o prejuízo de não poder retirar uma renda decorrente do arrendamento do imóvel.

o) Pelo que, justifica-se assim o decretamento da providência cautelar requerida, devendo a Requerida ficar obrigada a pagar uma renda nunca inferior a 500,00€ pela ocupação ilícita do imóvel e até que seja restituída a posse do mesmo à Requerente.

p) Por fim, mesmo que por uma mera hipótese académica, a Requerida tivesse algum direito a nela residir terão sempre de ser aplicadas as regras da compropriedade de uma casa de habitação, onde os direitos dos comproprietários sãos iguais, podendo ser atribuído a um deles o direito a nela residir mediante o regime de arrendamento que obviamente pressupõe o pagamento de uma renda.

Termos em que, nos melhores de direito e com mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por sua vez ser o procedimento cautelar decretado nos moldes requeridos.


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Contra-alegou a recorrida, concluindo:

1ª – O regime jurídico das uniões de facto consta, hoje, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, que revogou a Lei nº 145/99, de 28 de Agosto;

2ª – Na Lei 135/99, escreveu-se “proprietário da casa de morada do casal” e na Lei nº 7/2001 escreveu-se “…casa de morada da família, sendo certo que o significado de uma e de outra é o mesmo;

- Quanto ao facto de ser proprietário, a lei nada especifica quanto à propriedade ser exclusiva do unido de facto ou ser da titularidade dos membros da união, em regime de compropriedade;

4ª – No regime da união de facto verifica-se um reforço da proteção do unido de facto sobrevivo em relação à casa de morada de família constituindo esta um núcleo irredutível da proteção conferida ao unido de facto e que não pode ser afastada;

5ª – Assim, é de admitir que se criem direitos dos unidos de facto quando os mesmos não são os únicos comproprietários do imóvel, conforme bem fundamentou a Juíza do Tribunal a quo na sua douta sentença, cujo entendimento partilhamos;

6ª – A casa de morada da família era a casa de morada dos dois membros unidos de facto, ou seja, um e outra moravam na mesma “casa…”.;

7ª – A união de facto, entendida como é definida nos exatos termos do nº 2 do artº 1º, da Lei nº 7/2001, em termos técnicos-jurídicos, só pode ser eliminada se se afastar a união de facto ou provar uma das exceções e, ainda, nos casos do artºs 2º e 5º, nºs 5 e 6, da Lei nº 7/2001 e, finalmente, provar que os unidos de facto o não vivem em união de facto, há dois anos (Cfr. artº 1º, nº 2) da suprarreferida lei;

8ª – A lei nº 7/2001, entre outros direitos ou benefícios, concede ao unido de facto, sobrevivo, o seguinte:

Proteção da casa de morada da família, nos termos da presente Lei”;

9ª – A prova da união de facto pode ser feita por “ qualquer meio legalmente admissível” nomeadamente por testemunhas (a Requerida arrolou-as), bem como mediante “…declaração emitida pela Junta de Freguesia competente…” (Cfr. artº 2º A, nº 2, da Lei nº 7/2001);

10ª – Existe nos presentes autos um Atestado da Junta de Freguesia, no qual se identificaram duas testemunhas;

11ª – A “Declaração da Situação de União de Facto” foi apresentada à Segurança Social, que concedeu à Requerente a sua pensão de sobrevivência;

12ª – Afirma a Requerente que, na douta sentença sob recurso, decidiu “ignorando o facto de este não ser proprietário do imóvel” (ignora sim que o direito à proteção da casa e o direito de propriedade são distintos mas compatíveis);

13ª – A Recorrente não fez, nem faz, que, em matéria de prova, tivesse ocorrido uma das cinco exceções (previstas na Lei nº 7/2001, artº 2º), nem ocorreu caducidade (artº 5º);

14ª – A Requerente apelidou a douta sentença, i.a., de “desagradável falta de equidade e imparcialidade, sem qualquer fundamento, a Requerente é que se baseia em errados fundamentos, como é, designadamente, a alegada incompatibilidade entre direito de propriedade e o direito real de habitação, concedida ao unido de facto sobrevivo, que não é proprietário exclusivo;

15ª – Este instituto foi criado pela Lei nº 7/2001, lei em que não se descortina qualquer incompatibilidade e, se esta se verificasse, é a lei;

16ª – O procedimento não visou, nem tem que visar, evitar “lesão grave do direito de propriedade da Requerente, pelas simples razões: Não lesão nem esta tem que ser apreciada, nestes autos;

17ª – A permanência da Requerida no imóvel não é “ilícita e abusadora, como a Requerente afirma, sendo certo que a mesma Requerida está a exercer o seu direito legítimo de proteção do direito real de habitação às uniões de facto, concedido pela lei nº 7/2001.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, que Vossas Excelências, Meritíssimos Juízes Desembargadores, não deixarão, bem mais doutamente, de suprir e/ou mandar suprir, requer-se se dignem decretar improcedente, por não provado, o presente recurso de apelação e, em consequência, manter-se a decisão recorrida, para que, como sempre se espera, seja feita justiça.


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A questão que importa decidir é a de saber se estão reunidos os requisitos para o decretamento da providência.
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A matéria de facto a ponderar é a que consta do relatório inicial e a seguinte:
A) Factos perfunctoriamente provados:
Após o exercício do contraditório, encontram-se indiciariamente provados os seguintes factos:
1 – Encontra-se registada a aquisição de CC, casado com AA, no regime de comunhão de adquiridos, pela Ap.... de 02.07.1985, da fração autónoma designada pela letra ... do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...04... e inscrito na matriz urbana da união de freguesas do ... e Vale da Pinta sob o artigo 2680.
2 – O casamento de CC e AA foi dissolvido por divórcio por sentença proferida a 04.05.1994, transitada em julgado a 23.05.1994.
3 – CC faleceu a .../.../2020, sem testamento ou outra disposição de vontade, deixando como único herdeiro o filho que teve em comum com AA, DD.
4 – À data do seu falecimento, CC vivia há mais de 10 anos com BB, em união de cama, leito e habitação.
5 – (…) residindo de forma permanente na fração autónoma referida em 1.
6 – Pela Ap. ...60 de 12.08.2020 encontra-se registada sobre a fração autónoma referida em 1 o Direito de Habitação a favor de BB, indicando como causa: Legado Legal: Por morte de membro de união de facto, proprietário da casa de morada de família.
7 – A 30.07.2022, AA e o seu filho DD outorgaram acordo de partilha da fração autónoma referida em 1, adjudicando-a na totalidade a AA – cf. título de partilha junto aos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
8 – Pela AP ...90 de 08.08.2022 encontra-se registada a aquisição a favor de AA sobre a fração autónoma referida em 1.
9 – BB é nacional da ..., não tem qualquer outra habitação em Portugal.
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B) Factos perfunctoriamente não provados:
Com relevo para a decisão da causa, não resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:
i. A fração autónoma descrita em 1, poderia ser arrendada mediante o pagamento de uma renda mensal superior a 600,00€.
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Conhecendo.
A recorrente alega que o tribunal a quo se fundamentou numa mera declaração da junta de Freguesia que não consta dos autos; que prescindiu da audição de testemunhas; que fixou como única matéria a decidir a união de facto da recorrida e o consequente direito de residir na casa de morada de família; não se debruçando acerca da nulidade do registo do direito real de habitação promovido pela recorrida; que o prejuízo da recorrente é igual ao dano da recorrida.
Por seu lado, o tribunal a quo considerou que, não obstante a recorrente ter em seu benefício a presunção da propriedade conferida pelo artº 7º do Registo Predial, da matéria de facto provada resultou que a recorrida viveu em união de facto com o falecido e comproprietário da casa de morada de família, duramente mais de 10 anos.
O que implica ter a recorrida integrado na sua esfera jurídica um direito real de habitação do imóvel, de uso do recheio e de preferência na venda da casa, ao abrigo do que dispõe o artº 3º/ a), 5º/1 e 9º da Lei 7/2001, de 11-05.
Daqui decorre a constituição de um legado ope legis, a favor da recorrida, no momento do falecimento do unido de facto, sendo, nesta medida, sucessora do de cujus (artº 2030º/1 do CC).
Conclui ainda a sentença em crise, que o direito real de habitação da recorrida é oponível ao direto de propriedade da recorrente, pelo que não se verifica um dos requisitos de que depende a decretação da providência – a probabilidade séria da existência do direito na esfera jurídica da recorrente –, ou seja, o seu direito de propriedade encontra-se onerado com um direito de habitação anteriormente registado.
Quid iuris?
Quanto à prova da união de facto, a recorrida, em .../.../2022, juntou aos autos um atestado emitido pela Junta de Freguesia ... e Vale da Pinta, datado de 12-06-2020, onde se atesta a união de facto da recorrente desde .../.../2009 até à data do falecimento do unido de facto, .../.../2020.
Em 28-11-2022, a recorrente pronunciou-se sobre os documentos juntos pela recorrida, pelo que se não entende a afirmação de que tal declaração não foi junta aos autos.
Por outro lado, a lei 7/2002, permite a prova da união de facto “por qualquer meio legalmente admissível.”, sendo que o documento em causa constituiu também prova suficiente para que a Segurança Social concedesse os benéficos atinentes à recorrida.
Para além disso, a matéria de facto fixada pela primeira instância não se mostra impugnada, como o obriga o disposto no artº 640º do CPC, pelo que não mais poderá ser impugnada em recuso ordinário.
Quanto à decisão proferida, adianta-se, desde já, que não nos merece qualquer censura.
Com efeito, mostrando-se provada a união de facto entre o falecido e a recorrida, a questão a decidir era a de saber se na esfera jurídica da recorrente existia uma aparência do direito que invocou para que a providência tivesse sucesso.
Ora, como bem decidiu o tribunal a quo, a Lei das Uniões de Facto (LUF) acima referida, confere ao unido de facto a proteção da casa de morada de família (artº 3º/a)) e, em caso de morte do membro da união, proprietário da casa de morada e família e respetivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de 5 anos, como titular de um direito real de habitação periódica e de um direito de uso do recheio (artº 5º/1).
No caso dos autos, apesar de o registo não ser constitutivo de direitos, o unido de facto sobrevivo registou o seu direito real de habitação e recheio, em momento anterior ao registo da propriedade plena efetuado pela recorrente.
Contudo, a recorrente tinha na sua esfera jurídica patrimonial a compropriedade da casa de morada de família, porque foi casada com o unido de facto falecido, mas nunca foram partilhados os bens após o divórcio.
Assim sendo, no momento do óbito apenas foi legado à recorrida o direito de usar a compropriedade do imóvel que existia na esfera jurídica do falecido.
A questão que se coloca agora é a de saber se, para além da propriedade plena e a compropriedade entre os unidos de facto, a compropriedade apenas do falecido unido de facto também confere, ao unido sobrevivo, a proteção da casa de morada de família nos termos em que dispõe o artº 3º/a) e 5º/1 da LUF.
A resposta só pode ser afirmativa.
A compropriedade é uma das formas que pode revestir o direito de propriedade, havendo uma pluralidade de titulares do direito sobre a mesma coisa.
Os comproprietários são titulares de uma quota, não sabendo em que parte da coisa se situa a sua quota parte.
Por isso, se não houver o acordo quanto ao uso da coisa ela pode ser usada por qualquer dos comproprietários, desde que não faça dela um uso diferente daquele a que a cosia se destina e não prive os outros comproprietários de igualmente a usarem (artº 1406º do CC).
Se, mesmo assim, o desacordo se mantiver, o comproprietário que não usa a coisa pode pedir a sua divisão, judicial ou extrajudicialmente, demonstrando os autos que tal não ocorreu, quer o uso partilhado da coisa, quer o pedido de divisão (artº 925º do CPC) desde o divórcio até ao falecimento.
Ora, a recorrente alega que é titular da propriedade plena da casa de morada de família.
Contudo, esta propriedade plena só foi constituída após o decesso do unido de facto, seu ex comproprietário da casa, o que significa que, após o falecimento, dois direitos reais se confrontaram, protegidos com a mesma força jurídica porque beneficiam ambos de uma das características essencial dos direitos reais – a tipicidade.
O direito de compropriedade da recorrente e o direito real de habitação da recorrida, que nasceu no momento do decesso.
Assim sendo, atendendo a que nos interessa aqui, apenas, saber se a recorrente possuía a aparência do direto que se arroga – o direito de propriedade plena, no momento em que ocorreu o dito confronto de direitos – e tendo-se demonstrado que não o possuía, a conclusão a que chegamos é a de que não beneficia do fumus boni iuri legalmente exigido para a decretação da providência (artº 362º do CPC).
Falecendo este requisito, a providência inominada requerida só poderia improceder, o que obriga à confirmação da decisão recorrida e à improcedência da apelação.
Todas as questões que se poderão colocar quanto à utilização pela recorrida da casa de morada de família e os direitos de crédito de que poderá, ou não, beneficiar a recorrente/comproprietária, deverão ser dirimidos na ação principal.
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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a sentença recorrida.

Custas pela recorrente. – Artº 527º CPC
Notifique.

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Évora, 25-05-2023

José Manuel Barata (relator)

Cristina Dá Mesquita

Rui Machado e Moura