Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
32/14.1TBAVS.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1-A negociação particular é uma forma específica de venda, que não está sujeita aos mesmos requisitos e condicionalismos da venda através de propostas em carta fechada e pressupõe a consulta directa do mercado, mediante a procura de propostas, que possam corresponder a uma correcta intercepção do binómio económico da lei da oferta e da procura, sem a necessária aquiescência do executado.
2-Neste tipo de situações, em caso de divergência quanto aos termos da venda, ao Tribunal está deferida uma apreciação final fiscalizadora do processado e essa avaliação comporta uma componente de estrito controlo da legalidade e outra que visa a emissão de um juízo equitativo de ponderação sobre o equilíbrio das prestações concorrentes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 32/14.1TBAVS.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre – Instância Local – Juízo de Competência Genérica de Fronteira – J1

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – Relatório:
Na presente execução proposta por (…) e (…) contra (…), o exequente (…) veio interpor recurso da decisão que não autorizou a realização da venda do bem penhorado por valor inferior a 70% da avaliação.

Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
I – O Tribunal “a quo” ao identificar os pressupostos da modalidade de venda mediante propostas em carta fechada (artigos 816.º a 829.º, do NCPC) e os “casos em que se procede à venda por negociação particular” atraiçoa o “espírito do legislador”, transformando-se tal decisão em ilegal, inconstitucional e afrontadora dos princípios jurídicos vigentes na ordem jurídica portuguesa (juridicidade).
II – Não se perceberia que um legislador razoável – artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil –, que cria distintas modalidades de venda de bens imóveis, viesse a adoptar pressupostos idênticos para ambas, já que isso tornaria os institutos iguais e desnecessária a duplicação.
III – A Divisão III, que abarca os artigos 830.º a 837.º, do NCPC, afigura-se autónoma e “menos exigente” face à Divisão II, que abrange os artigos 816.º a 829.º, do NCPC. E, de igual modo, a Subsecção III, relativa à “Adjudicação”, tem um âmbito diferenciado e amplo de aplicação, quer a uma quer a outra das duas divisões apontadas. Por isso,
IV – À lide processual executiva inere, forçosamente, pelo não cumprimento haver sido voluntário, uma percentagem sancionatório-expropriativa, sendo, por isso, mirabolante ou utópico pretender que todas as vendas executivas sejam proporcionais, já que a própria lide executiva, com a desigualdade de armas entre exequente e executado, já contém uma certa desproporção, como bem o demonstram os institutos da penhora sem contraditório e da venda abaixo do preço de mercado.
V – Soa a estranho e a contraditório que se tenha afirmado, na decisão judicial, que «(…) o juiz fixar o valor mínimo da venda abaixo dos 70% do valor inicial dos bens, sem o acordo do executado» e que, posteriormente, face a essa proclamação, não se tenha procedido ao cálculo desse valor e contrastado/comparado (diferencialmente) com a 2.ª proposta por negociação particular apresentada e a rondar os € 45.000,00. De facto,
VI – Os tais 70% de € 71.980,00 reconduzem-se, a € 50.386,00. Portanto, temos uma diferença (judicialmente impeditiva, nos critérios do Tribunal) de € 4.614,00. Daí que faça sentido a questão: Será, assim, à luz destas contas, com base no raciocínio judicial, desproporcional o dito valor de € 45.000,00, constante da proposta de compra da sociedade comercial “Construções (…), SA”? Parece-nos que não! E, por isso,
VII – Mesmo contra a vontade da executada – que não se pronunciou, quando o devia se pretendia não concordar! –, o M.mo Juiz tinha, segundo o entendimento jurisprudencial que cita, a obrigação de considerar justa e proporcional a venda por negociação particular à proponente da 2.ª Proposta. E, tudo isto, porque
VIII – O Tribunal, ao interpretar os artigos 799º, nº 3, 816º, nº 2, 822º, n.º 2, 832º, alíneas c) e d), do NCPC 2013, como o faz, isto é, aplicando, “em círculo”, o pressuposto matricial dos 85%, está a matar o regime da venda por negociação particular e a confundir o que no espírito do legislador é claro: primo, venda por carta fechada, com aproximação ao valor máximo cifrado em 85%; secundo, venda por negociação particular, abaixo do valor máximo cifrado em 85%. Pois,
IX – Só com esta articulação é que os regimes se distinguem, funcionam e não se paralisam reciprocamente, como é o caso. A acção executiva, com tal entendimento, corre o risco, como é o caso, de se emparedar no beco sem saída da denegação de tutela jurisdicional efectiva. O que, a ser como expusemos, nos leva a desconfiar da conformidade constitucional de tal interpretação jurídica, daí que nos pronunciemos, sem dúvidas, pela inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal aos preceitos processuais civis citados supra, à luz dos princípios do Estado de Direito Democrático (confiança e segurança jurídica), igualdade, tutela jurisdicional efectiva e reserva judicial, ex vi artigos 1º, 2º, 9º, alínea b), 13º, 18º, nos 1 e 3, 20º, nos 1 e 4, 202º, nos 1 e 2, da CRP 1976.
X – A lide processual civil executiva tem, forçosamente, uma vertente sancionatório-expropriativa, como força de “compensar” o não cumprimento voluntário de uma obrigação que livremente se assumiu (in casu, pelo/a executado/a) e que não se honrou à luz do princípio da boa fé e do pacta sunt servanda (artigos 405º a 407º e 762º, nº 2, do Código Civil).
XI – Todas as decisões judiciais, que não sejam de mero expediente, por imperativo constitucional (artigo 205º, nº 1, da CRP 1976), têm de ser fundamentadas, de facto e de direito. E, para isso, mister é que a fundamentação ou motivação obedeça às regras da racionalidade e lógica discursiva jurídica, de tal modo que não se pode dizer, como se faz no libelo judicial decisório, que o Tribunal pode admitir uma venda por negociação particular inferior a 70%, mesmo sem consentimento ou acordo do executado, e, depois, não ser consequente, na presente lide, com tal jurisprudência que convoca e subscreve. Ademais,
XII – Tal ideia igualmente resultaria do princípio da unidade do sistema jurídico ou da não contradição axiológico-valorativa e constitucional ao nível da interpretação dos preceitos legais (artigos 9º do Código Civil e 204º da CRP 1976). Pois, a vingar a tese cumulativa e da identidade, entre os pressupostos da venda por carta fechada e da venda por negociação particular (o tal pressuposto dos 85% do valor de base), tal interpretação renega a ponderação e eficácia de tais distintas vendas, expostas na ponderação e codificação legal operada pelo legislador ordinário. Na verdade,
XIII – Enquanto na venda por propostas em carta fechada é, ainda, o mercado (imobiliário) económico a funcionar, com as regras típicas do jogo da “oferta” e da “procura” (quanto maior a oferta e menor a procura, mais o preço baixa; quanto maior a procura e menor a oferta, mais o preço sobe), já na venda por negociação particular verificamos que o “mercado” é “reduzido” a um leque menor de pessoas, com as quais o agente de execução ou uma imobiliária, para tal contratada, passam a “consultar” no sentido de ficar com o bem. Ora,
XIV – Havendo, constitucionalmente, por força do princípio da proibição de excesso (artigo 18º, nos 2 e 3, da CRP 1976), uma ponderação dos interesses em causa, tal significa que, ao abandonar a venda mediante propostas em carta fechada, o legislador deu acolhimento a outras regras que não as estritamente rígidas do mercado, mormente no que toca à fixação do preço. Enquanto além o mercado leva à aproximação máxima dos tais 85%; aqui, agora, o mercado desaparece e aparecem certas pessoas com as quais o agente de execução (ou imobiliária contratada) decide encetar um processo de negociação que não pode reconduzir-se ao rigidamente típico do “mercado”, sob pena de a “praça ficar deserta”, como, aliás, já ficou no contexto da venda mediante propostas em carta fechada. Isto significa que
XV – O legislador, ao nível da venda por negociação particular, aligeirou os pressupostos e “amoleceu” o tal critério do “mercado”, sendo, por isso, atentador do princípio da igualdade e da proporcionalidade pretender nivelar, a partir de regras idênticas, as vendas por propostas em carta fechadas e essoutras por negociação particular, respectivamente previstas nos artigos 816º a 829º e 832º do NCPC.
XVI – A venda por negociação particular, tal qual se encontra prevista no artigo 832º do NCPC, deve ser usada, conforme se verifica no condicionalismo da sua admissibilidade (mormente, para o que aqui interessa, as tais alíneas c) e d), do artigo 832º), em situações de “emergência” e de verificação de “bloqueio” da acção executiva, já que assim o exige o princípio da tutela jurisdicional efectiva, a que se alude no artigo 20º, nos 1 e 4, da CRP 1976. De facto,
XVII – A exigir-se sempre uma percentagem mínima de valor base, para a venda coerciva de um imóvel, tal significaria, na prática, uma paralisação da acção executiva civil, pois, sobretudo em tempo de crise económica (e imobiliária), inexistem capitais e capitalistas dispostos a investir no imobiliário.
XVIII – Ressalvado o sempre mui e devido respeito pelo Mm.º Juiz, verifica-se que a decisão proferida em 08/09/2016, nos seus fundamentos, se afigura contraditória e afrontadora da lei e da CRP 1976, mormente no que tange à ponderação axiológico-valorativa e diferenciadora, operada pelo legislador, em sede de venda judicial de bem imóvel, ao distinguir entre a venda mediante propostas em carta fechada (onde o limite de 85% é imperativo e impostergável) e a venda por negociação particular (onde o limite de 85% é indicativo e postergável, concretamente, face às exigências de proporcionalidade lato sensu ou proibição de excesso, igualdade – entre as partes – e tutela jurisdicional efectiva).
Pelo exposto, sem prejuízo do douto suprimento de Vossa Excelência, requer-se que seja admitido o presente recurso de apelação e considerado procedente. Consequentemente, condenar-se o Tribunal «a quo» a aceitar a proposta de € 45.000,00 apresentada pela sociedade comercial “Construções (…), SA”, já que se aproxima do valor de 70% do valor base e é a que permite um não privilegiamento da executada, com realização do imperativo constitucional da tutela jurisdicional efectiva, sem melindre dos princípios do Estado de Direito Democrático e da Proibição de Excesso, denegadores da verificação de uma decisão judicial justa e célere. Nesse sentido, Vossa Excelência realizará a mais lídima Justiça!».

A parte contrária não contra-alegou.
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da possibilidade de venda por negociação particular por um valor inferior a 70% ao montante da avaliação efectuada.
*
III – Da factualidade com interesse com interesse para a justa resolução do recurso (Do histórico do processo):
1) (…) e (…) propuseram contra (…) acção executiva para pagamento da quantia de € 17.831,18 (dezassete mil, oitocentos e trinta e um euros e dezoito cêntimos), acrescida de juros moratórios, contados desde 27 de Setembro de 2013.
2) Foi penhorado o prédio urbano constituído por edifício com cave, rés-do-chão, 1º e 2º andar recuado com 218.65 m2 de área total e 138.65 m2 de área descoberta, sito em (…), em Portimão, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Portimão sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão com o nº (…)/20140507 na mesma freguesia.
3) O prédio foi colocado em venda por um valor de € 71.980,00 (setenta e um mil, novecentos e oitenta euros), sendo aceites propostas de valor superior a € 61.183,00 (sessenta e um mil cento e oitenta e três euros) que correspondem a 85% do valor base.
4) Não tendo sido apresentada qualquer proposta, o Tribunal deprecado determinou a realização da venda por negociação particular.
5) No âmbito da venda por negociação particular foi apresentada uma proposta inicial de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros) por parte da “Construções (…), SA”. Após notificação para o exercício do contraditório, o Tribunal deprecante ordenou a realização de uma avaliação do imóvel.
6) O referido imóvel foi avaliado em € 110.937,85 (cento e dez mil, novecentos e trinta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos).
7) Em função dessa avaliação, não foi autorizada a realização da venda.
8) Seguidamente, a sociedade “Construções (…), SA” apresentou nova proposta no valor de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).
9) Após a executada se ter pronunciado contra a venda por aquele preço, o Tribunal «a quo» entendeu que o valor oferecido se revela desproporcional e demasiado oneroso para a executada e não autorizou a realização da negociação por venda particular do bem imóvel.

IV – Fundamentação:
4.1 – Da violação do princípio do Acesso ao Direito:
Do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimentos e de processo[1].
Neste conspecto, na parte que interessa ao presente dissídio, «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos» (nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa) e «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo» (nº 4 do referido artigo).
A garantia da via judiciária entende-se a «todas as situações juridicamente protegidas»[2]. O direito de acesso à justiça (…) é uma emanação indissociável ao Estado de Direito. Não se pode falar, absolutamente, em Estado Democrático de Direito sem que se garanta aos cidadãos, na sua plenitude, a possibilidade de, em igualdade de condições, socorrer-se dos tribunais para tutelar as respectivas posições jurídicas subjectivas. Cuida-se do direito geral de protecção jurídica, cujo asseguramento é dever inarredável do Estado para com os cidadãos sendo, ainda, uma imposição do ideal democrático[3].
O chamado princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um impedimento ou de um efectivo cerceamento ao exercício do seu direito de defesa e, bem assim, abrange casos de compressão relevante ao nível do exercício de outro poderes estruturantes ao nível do dispositivo, do acautelamento do efeito útil da acção ou da prevenção e da reparação de um direito de agir.
Na doutrina constitucional são habitualmente identificados como direitos fundamentais processuais os seguintes: direito de acesso aos tribunais, à igualdade no processo, à independência e imparcialidade do tribunal, direito à publicidade do processo, à fundamentação das decisões, ao contraditório, direito à prova, ao recurso, à prolação de uma decisão dentro de um prazo razoável; direito à efectividade material e à estabilidade da decisão judicial.
Carecendo de toda a razoabilidade a invocação do princípio da proibição do excesso, o qual não tem qualquer conexão com a hipótese judicanda, o direito de acesso à justiça e o direito à jurisdição estão abstractamente perfectibilizados e o recorrente usufruiu de todas as faculdades e prerrogativas processuais ao atendimento das pretensões em jogo, as quais foram ser accionados sem qualquer entrave de natureza orgânica, funcional, processual ou substantiva.
Não existe aqui qualquer folga valorativa para invocar que o despacho sob censura [que não autoriza a realização de uma venda por negociação particular por o preço oferecido se revelar «desproporcional e demasiado oneroso para a executada»] representa um atentado efectivo ou hipotético ao direito de Acesso à Justiça e nem o mesmo belisca o princípio da igualdade, antes o valoriza ao suscitar o contraditório numa questão nuclear do processo e ao estabelecer um equilíbrio entre os custos e os benefícios que daí decorrem para os sujeitos processuais.
A referida decisão está fundamentada e não encerra qualquer contradição, carecendo assim de razoabilidade a invocação das convocadas inconstitucionalidades.

4.2 – Dos objectivos e requisitos da venda por negociação particular:
A venda por negociação particular é uma das modalidades de venda prevista no processo executivo visando a satisfação do interesse do credor (artigo 811º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil)[4][5].
O disposto no artigo 818º, no nº 2 do artigo 827º e no artigo 828º para a venda mediante propostas em carta fechada aplica-se, com as necessárias adaptações, às restantes modalidades de venda e o disposto nos artigos 819º e 823º aplica-se a todas as modalidades de venda, exceptuada a venda directa[6].
Esta modalidade de venda é adoptada, designadamente, quando se frustre a venda por propostas em carta fechada, por falta de proponentes, não aceitação das propostas ou falta de depósito do preço pelo proponente aceite (artigo 832º, al. d), do Código de Processo Civil)[7].
Em todas as modalidades de venda processualmente admitidas a verba fixada como valor base da transacção serve de referência para a conclusão do negócio intraprocessual executivo.
Se existir acordo de todos os interessados é possível realizar a venda por preço inferior ao valor base sem intervenção do juiz, desde que cumpridas determinadas formalidades relacionadas com as notificações aos sujeitos processuais. Se esse consenso entre as partes não ocorrer a venda por negociação particular só pode ser concretizada mediante autorização judicial[8] [9].
É assim aceite uniformemente que, em sede de negociação particular na sequência da frustração da venda por propostas em carta fechada, se o valor base não for atingido, a proposta apresentada não deve ser rejeitada liminarmente, antes ponderada a sua aceitação casuisticamente, tendo em conta designadamente, o período de tempo já decorrido com a realização da venda, a evolução da conjuntura económica, as potencialidades de venda do bem e o interesse manifestado pelo mercado[10].
Esta solução apoia-se na lição de Lebre de Freitas e de Ribeiro Mendes que defendem que «se o valor base não for atingido, só por acordo de todos os interessados ou autorização judicial será possível a venda por preço inferior. Embora a lei nada diga, releva do poder jurisdicional a decisão de dispor do bem penhorado, pertença do executado e garantia dos credores, mediante a obtenção de um preço inferior àquele que, de acordo com o resultado das diligências efectuadas pelo agente de execução corresponde ao valor do mercado do bem; nem faria sentido que, quando o agente da execução é encarregado da venda (…) lhe cabesse baixar o valor base dos bens, com fundamento na dificuldade em o atingir. O juiz conserva, pois, o poder (…) de autorizar a venda por preço inferior ao valor base»[11] [12].
Na situação vertente, o valor da venda teve em consideração o disposto no artigo 812º, nº 3, al. a), do Código de Processo Civil, ao ter em conta o valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efectuada há menos de seis anos. Porém, em momento posterior, por iniciativa do tribunal foi realizada uma avaliação que incidiu sobre o valor de mercado, o qual por ser mais elevado não pode ser desconsiderado nesta sede, sendo que, como resulta da letra da lei, o valor base dos bens a vender deve corresponder ao maior daqueles que se encontram em concurso.
Na realidade, na venda executiva por negociação particular é possível fixar o valor mínimo da venda abaixo do valor de referência legal, pois se fosse imperativo a manutenção de um limite não sobejaria qualquer benefício para a resolução da execução com a alteração da modalidade de venda, dado que assim se perpetuava a inflexibilidade da venda judicial mediante propostas em carta fechada[13].
A negociação particular pressupõe a consulta directa do mercado, mediante a procura de propostas, que possam corresponder a uma correcta intercepção do binómio económico da lei da oferta e da procura, viabilizando, deste modo, uma decisão adequada a garantir a reparação do direito de crédito em questão no processo executivo, sem a necessária aquiescência do executado.
Porém, neste tipo de situações, ao Tribunal está deferida uma apreciação final fiscalizadora do processado e essa avaliação comporta uma componente de estrito controlo da legalidade e outra que demanda a concretização do princípio da necessidade de contradição e a subsequente emissão de um juízo equitativo de ponderação sobre o equilíbrio das prestações concorrentes, sempre que exista uma discordância fundada apresentada por uma das partes quanto ao interesse na concretização do negócio executivo.
Existindo o risco de ocorrer uma depreciação decorrente do passar do tempo ou do eventual desinteresse que possa vir a ser manifestado pela sociedade actualmente interessada, aquilo que transpira dos autos é que, ao não validar a primeira proposta apresentada em sede de negociação particular, a diligência da Mmª Juíza Titular do processo foi essencial para promover um aumento dos valores em discussão [de € 28.000,00 para € 45.000,00].
Em adição, a casa situa-se numa zona com procura de habitação para fins de vilegiatura, o mercado imobiliário encontra-se novamente nova fase de expansão e o tempo decorrido entre a apresentação da primeira proposta (12/12/2015) e a prolação do despacho recorrido (08/09/2016) não é excessivo, justificando-se assim que o Sr. Agente de Execução proceda às diligencias necessárias para, tendo em atenção o valor de mercado do imóvel, tentar encontrar melhor oferta para a sua venda.
Efectivamente, nesta apreciação casuística que está cometida ao julgador[14], a Mmª Juíza do Tribunal «a quo» ao, não ter aceite uma proposta que se situa abaixo dos 70% do valor base (ainda assim de valor inferior a 50% do valor real de mercado de imóvel, montante esse que porventura poderia corresponder à realização da justiça do caso concreto), agiu com ponderação, sensatez e recorreu a critérios hermenêuticos baseados num ideal de justiça comutativa, visando o equilíbrio dos interesses em disputa e não se poderá dizer que a decisão recorrida faz coincidir os pressupostos da venda mediante propostas em carta fechada e a venda por negociação particular.
Desta forma, não existe motivo para revogar a decisão recorrida, tal como é pedido na impugnação por via recursal, mantendo-se a decisão proferida pela Primeira Instância.

VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo do apelante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.

(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).

Évora, 09/03/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
__________________________________________________
[1] Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra 1992, pág. 388.
[2] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra 1984, pág. 180.
[3] Ronnie Preuss Duarte, Garantias de Acesso à Justiça – Os direitos processuais fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra 2007, pág. 330.
[4] Atendendo à data da propositura da presente acção executiva (03/03/2014, cfr. fls. 11 – liquidação da taxa de justiça – e fls. 23 – certificação digital da peça processual da petição inicial executiva) é aplicável aos presentes autos a nova legislação processual civil, que teve o início de vigência em 1 de Setembro de 2013, como ressalta do artigo 8º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho que aprovou o Código de Processo Civil.
[5] A que corresponde o artigo 886º, nº 1, al. d), do Código Processo Civil revogado.
[6] A que corresponde o artigo 886º, nº 2, do Código Processo Civil revogado e neste caso as remissões devem ser reportadas aos artigos 891º, 900º, 892º e 996º do Código de Processo Civil revogado.
[7] A que corresponde o artigo 904º do Código Processo Civil revogado.
[8] Marco Gonçalves Carvalho, Lições de Processo Executivo, Almedina, Coimbra 2016, pág. 380-381.
[9] Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, 2ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 509-510.
[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/01/2015, in www.dgsi.pt.
[11] Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 2003, págs. 601-602.
[12] No mesmo sentido, consultar: Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, pág. 270.
[13] A defender a possibilidade da venda por valor inferior a 70% da avaliação podem consultar-se os seguintes acórdãos: Tribunal da Relação de Évora de 26/02/2015, Tribunal da Relação de Lisboa de 25/09/2014 e do Tribunal da Relação do Porto de 29/04/2008, todos in www.dgsi.pt. No sentido de que pode ser autorizada a venda por valor inferior a 85% sujeita a condições pode ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/01/2015, também em www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/09/2015 e 29/04/2008, Tribunal da Relação de Lisboa de 06/11/2013, do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/12/2015 e do Tribunal da Relação de Évora de 03/03/2010 e 15/01/2015.