Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3754/15.6T9PTM.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
CONHECIMENTO DO FACTO OFENSIVO PELO VISADO
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I – O crime de ameaça desdobra-se nos seguintes elementos constitutivos:

a) Uma comunicação feita pelo agente activo;

b) A comunicação verse sobre um mal futuro;

c) A realização desse mal dependa exclusivamente da vontade do agente activo;

d) O conteúdo da comunicação seja adequado a causar ao agente passivo medo ou inquietação ou perturbar a sua liberdade de determinação;

e) A conduta cominada pelo agente activo integrar a prática de crime contra um dos bens jurídicos discriminados na norma incriminadora;

f) O conhecimento pelo agente passivo da comunicação feita pelo agente activo;

g) O dolo do agente activo.

II - A conduta típica do crime de ameaça desenvolve-se num processo de comunicação entre, pelo menos, duas pessoas, o qual inclui sempre um polo emissor (o agente activo) e um polo receptor (o agente passivo). Neste contexto, a consumação do crime de ameaça exige sempre o conhecimento da comunicação pelo agente passivo, sem o que estaremos perante uma conduta meramente tentada, não punível.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

Por sentença proferida em 21/6/2018 no Processo Comum nº 3754/15.6T9PTM, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portimão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro foi decidido:

Julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:

a) Condenar o arguido LF como autor material de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º/1 e 155º/1 alíneas a) e c) do C.Penal na pena de 8 (oito) meses de prisão, por cada um deles;

b) Procedendo ao cúmulo jurídico destas penas, condenar o arguido na pena única de 18 (dezoito) meses de prisão efectiva;

c) Absolver o arguido da prática de um crime de ameaça agravada, ocorrido em 29.06.2016, reconduzindo os factos praticados e dados como provados a um crime de ameaça simples, para o qual o Ministério Público não tem legitimidade para prosseguir criminalmente contra o arguido face à vontade manifestada pela ofendida no decurso do inquérito de não apresentar queixa contra o mesmo;

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. Durante a manhã do dia 14.08.2015, SP e CL, na qualidade, respectivamente, de psicóloga e técnica social da unidade social do Município de Lagoa, efectuaram uma vistoria a uma gaiola de pássaros e um depósito de sucata existentes num terreno do Município, contíguo à casa do arguido LF.

2. Nesse mesmo dia, próximo da hora de almoço, o arguido deslocou-se ao Gabinete de Acção Social do Município de Lagoa e dirigiu-se ao balcão de atendimento dizendo em voz exaltada ”Quem é que foi lá? Quem é que foram as doutoras que foram lá? Eu mato-as!”.

3. Como ninguém respondeu às suas perguntas, o arguido acabou por sair do local, mas manteve-se na rua, em frente á porta que dá acesso ao supra referido gabinete de acção social, proferindo as seguintes expressões: “Quem é que foi, quem é que foi? Suas putas, eu mato-as!”.

4. A hora não concretamente apurada do dia 13.06.2016, o arguido deslocou-se novamente ao Gabinete de Acção Social do Município de Lagoa, dirigindo-se a CI, funcionária daquele Município com a intenção de pedir à Câmara que lhe pagasse uma factura da água.

5. Como aquela lhe transmitiu nada poder fazer para o auxiliar, o arguido desferiu pontapés numa cadeira, enquanto, bastante exaltado dizia “vocês só ajudam nalguma coisa no dia em que eu vier aqui e der um tiro nos cornos a alguém”.

6. Mais uma vez, desta feita no dia 29.06.2016, cerca das 14:45, o arguido dirigiu-se ao Gabinete de Acção Social do Município de Lagoa, mais concretamente à funcionária CI, que estava no balcão de atendimento, e disse-lhe: “foste chamar a bófia…logo te encontro por aí”, o que fez em tom de voz elevado e agressivo.

7. Ao proferir as expressões acima descritas, tinha o arguido intenção de intimidar as visadas SP, CL e CI, de lhes provocar medo, receio e inquietação, assim como prejudicar a sua segurança, liberdade e autodeterminação.

8. O que logrou conseguir.

9. Sabia o arguido que SP, CL e CI eram funcionárias do Município de Lagoa e se encontravam naquele local no exercício das suas funções ou por causa delas, tendo actuado por não concordar com a forma como haviam exercido essas mesmas funções.

10. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas descritas condutas proibidas e punidas por lei, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.

Resultam do relatório social elaborado, ainda, os seguintes factos relativos à situação pessoal do arguido, com relevo para a determinação da sanção:

11. À data dos factos como no presente, o arguido mantém a sua principal referência a família de origem, residente num dos bairros sociais da cidade de Lagoa, ainda que por alguns períodos vá vivendo aparte, em tentativas de organização de vidas maritais, que não correm bem.

12. O agregado é titulado pela progenitora, de 62 anos, cozinheira e agora só inclui o arguido e uma namorada deste, FM, de 25 anos, na sua dependência.

13. LF é desempregado de longa duração, não se conhecendo outras actividades laborais além de biscates eventuais ligados à construção e recolecção de sucata.

14. O arguido tem as origens em Lagoa, num contexto sócio-familiar multi-problemático, de fracos recursos económicos. Integrou uma numerosa fratria, num referencial educativa de negligência e ambiente de violência doméstica, associado a um pai alcoólico, que faleceu quando o arguido contava 26 anos.

15. No processo de desenvolvimento foram sinalizados desde idade precoce problemas comportamentais, a par de dificuldades de integração e aprendizagem escolares que determinaram o envolvimento do sistema de promoção e protecção, do sistema de justiça juvenil e, desde os 16 anos, do sistema de justiça penal.

16. Agravante foi a adopção de hábitos de consumo de produtos estupefacientes, a marcar toda a trajectória de vida, desde a adolescência. As ligações foram tendencialmente com pares igualmente envolvidos em práticas desviantes e criminais.

17. Mesmo nos períodos em que não se encontrava privado de liberdade, nunca se envolveu numa actividade formativa ou laboral continuada. Só conseguiu obter habilitações literárias de 9º ano já em fase adulta, em contexto prisional.

18. Cumpriu pena de prisão efectiva, ininterruptamente, entre os 16 e os 22 anos e entre os 25 e os 34 anos. Em ambos os casos só beneficiou de liberdade condicional aos 5/6 da pena e em ambos os casos observaram-se novos confrontos com o sistema de justiça pouco depois do regresso ao meio livre.

19. Nunca chegou a estruturar um modo de vida socialmente inserido ou produtivo, vigorando sempre a necessidade de dependência de terceiros, apoios sociais, família ou companheiras.

20. Para fazer face às necessidades de consumo, nunca se terá efectivamente desligado de contextos de transacção de produtos estupefacientes. Ainda assim, observa-se no presente uma evolução positiva, pelo menos no que concerne à abstinência de produtos narcóticos.

21. O último retorno ao meio livre ocorreu em Dezembro de 2013, após o que iniciou acompanhamento no SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências). Cumpriu programa de metadona, que concluiu há cerca de um ano. Revela nestes serviços uma evolução relativamente favorável, designadamente no que respeita a consumos mais controlados e no trato interpessoal mais respeitoso. Pese embora os traços de impulsividade e descontrole, não se tem mostrado sensível a um acompanhamento individual complementar do foro psiquiátrico.

22. Mantém uma atitude de revolta face aos múltiplos problemas e alegada discriminação com que se confronta em meio residencial, mas pouco se empenha em mudar, designadamente a habitual atitude de inércia face a uma ocupação laboral estruturada.

23. Os factos na base da acusação em apreço decorreram ainda durante a vigência do período de liberdade condicional (medida que terminou em 25/09/2015), enquadrando-se na atitude geral do arguido de descontrole e desrespeito das regras básicas de vida em sociedade.

24. Não acata a oportunidade do processo, negando o dano causado a terceiros, pelo contrário desresponsabilizando-se face aos factos, pelos seus próprios problemas como a toxicodependência, o estado de descompensação emocional da altura, a falta de ajuda ou a provocação dos outros, vendo-se como vítima de uma alegada discriminação dos serviços.

25. Tem ainda pendente o Proc. ---/16.6GDPTM, envolvendo múltiplas situações a configurar crimes de ofensa à integridade física e de ameaça.

26. Prevalecem factores de risco como o desemprego, a carência económica, os hábitos aditivos e os surtos de descontrole psico-afectivo.

27. Ainda assim, dentro dos recursos limitados que a caracterizam a várias gerações, dispõe de uma família interessada e preocupada em proporcionar a ajuda possível.

28. Por acórdão proferido em 16.10.1996, no âmbito do Proc. ---/96, foi o arguido condenado pela prática, em 09.05.1996, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 20 meses de prisão efectiva.

29. Por acórdão proferido em 11.07.1997, no âmbito do Proc. --/97, foi o arguido condenado pela prática, em 16.01.1996, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão efectiva.

30. Por sentença proferida em 20.10.1997, no âmbito do Proc. --/97, foi o arguido condenado pela prática, em 06.03.1996, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 20 dias de prisão, substituída por igual tempo de multa.

31. Por acórdão proferido em 19.12.1997, no âmbito do Proc. ---/97, foi o arguido condenado pela prática, em 14.02.1996, de um crime de roubo, na pena de 5 anos de prisão efectiva.

32. Por acórdão proferido em 22.06.2004, no âmbito do Proc. --/02.1PAPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 19.01.2002, de um crime de roubo, na pena de 2 anos de prisão efectiva.

33. Por sentença proferida em 06.10.2004, no âmbito do Proc. ---/01.0JELSB, foi o arguido condenado pela prática, em 22.06.2001, de um crime de tráfico para consumo, na pena de 70 dias de multa.

34. Por acórdão proferido em 02.06.2006, no âmbito do Proc. ---/05.2PAPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 06.10.2004, de um crime de roubo, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão efectiva.

35. Por acórdão proferido em 24.03.2006, no âmbito do Proc. ---/04.3GDPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 08.10.2004, de um crime de furto qualificado, na pena de 7 anos de prisão efectiva.

36. Por sentença proferida em 08.05.2007, no âmbito do Proc. ----/04.0PTM, foi o arguido condenado pela prática, em 25.11.2004, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 18 meses de prisão efectiva.

37. Por sentença proferida em 17.07.2007, no âmbito do Proc. ---/04.0GDPTM, foi o arguido condenado pela prática, em 02.07.2004, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena 230 dias de multa.

38. Por decisão proferida em 29.11.2013 foi concedida ao arguido a liberdade condicional pelo período de prisão que lhe faltava cumprir, até 25.09.2015.

Da referida sentença interpôs recurso o arguido LF, com a devida motivação, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) Foi o arguido acusado e condenado pelos crimes três crimes de ameaça previsto e punido pelo art.º 153º, n.º 1, al. A), por referência aos artigos131º, 26º e 30º, n.º 1, na pena de18 meses de prisão efectiva.

b) O Douto Tribunal de que ora se recorre esclarece em sede de motivação que fundou a convicção no depoimento das ofendidas e na postura do arguido, que demonstrava traços de uma personalidade extremamente impulsiva e agressiva, à incoerência das declarações daquele.

c) Foi dado como provado que o Recorrente proferiu as seguintes expressões:

a. Durante a manhã do dia 14.08.2015 (…) ”Quem é que foi lá? Quem é que foram as doutoras que foram lá? Eu mato-as!”, “Quem é que foi, quem é que foi? Suas putas, eu mato-as!”.

b. A hora não concretamente apurada do dia 13.06.2016 (…) “vocês só ajudam nalguma coisa no dia em que eu vier aqui e der um tiro nos cornos a alguém”.

d) O Tribunal considerou como provadas que as expressões proferidas pelo arguido consubstanciaram em crimes de ameaça agravada, contudo,

e) Para a consumação do crime de ameaça a expressão proferida tem de anunciar a prática de um mal no futuro, que constitua crime, e da análise das expressões dadas como provadas na sentença o Arguido não está a anunciar um mal futuro, mas um mal presente.

f) Face à matéria provada não ficaram as Ofendidas condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente.

g) Assim, foi entendimento da Mma Juiz do Tribunal Recorrido que, as expressões proferidas pelo Recorrente consubstanciam, assim, um claro prenúncio de mal dirigido, nomeadamente, à integridade física e à liberdade pessoal das três ofendidas, com a qual visou o arguido amedrontá-las, incomodando-as, afectando o seu sentimento de segurança e a sua liberdade e perturbando-as psicologicamente.

h) Salvo o devido respeito por opinião diversa, é nosso entendimento que estamos perante uma ameaça de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objeto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado.

i) A douta sentença recorrida violou, assim, entre outros normativos, o disposto nos artigos 30°, n.º 1, 153°, n.º 1, 155°, n.º1, alínea a), todos do Código Penal e 127°, do Código de Processo Penal, pugnado outrossim, o Recorrente pela sua absolvição e consequentemente proferida Decisão que absolva o arguido dos crimes de que foi condenado, o que se requer.

Mas, caso V. Exas. assim não entendam:

j) Que o Recorrente deva ser condenado pelos crimes de ameaça, sempre se dirá que a medida da pena, 18 meses de prisão efectiva é excessiva, e que deve ser aplicada apenas e sempre como a ultima ratio.

k) Decorre do estabelecido pelo art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal que a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa se o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

l) O arguido, aqui recorrente, pese embora tenha registo criminal, a sua maioria deveu-se a um período conturbado de toxicodependência, tendo sido condenado numa pena de prisão efectiva por crimes de tráfico, furtos, crimes de roubo, todos eles associados à toxicodependência do aqui Recorrente.

m) Sendo certo porém que o Recorrente nunca sofreu condenação por crime de ameaça, podendo-se dizer que in casu é primário.

n) Não se pretende desculpar o comportamento do arguido, mas na verdade não existem quaisquer referências que o mesmo seja portador de armas ou que alguma vez o tenha sido, assim, salvo o devido respeito por opinião diversa, a suspensão da pena de prisão tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar o delinquente da senda do crime, tendo em conta as concretas condições do caso. Importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar, não impedindo que condenações posteriores em pena de substituição possam concretamente revelar uma quebra da confiança na ressocialização do arguido em liberdade, crentes que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade».

o) Cremos, assim que a censura do facto e a ameaça da pena latentes numa pena de prisão suspensa na sua execução, já será suficiente e bastante para afastar o arguido da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção da prática de novos crimes.

p) O tribunal só deve recusar essa aplicação quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.

q) Em consequência deverá o Tribunal "ad quem" revogar a douta Sentença de que ora se recorre, substituindo a mesma por Decisão que estabeleça um quadro fáctico de acordo com o pretendido pelo presente recurso e, consequentemente, proferida Decisão que suspenda a pena de prisão ao arguido, por igual período com regime de prova, ou em alternativa o cumprimento da pena de prião em dias livres.

Nestes termos e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser alterada a matéria de facto dada como provada e o arguido/recorrente absolvido, como é de JUSTIÇA.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Veio o arguido afirmar que as expressões proferidas no dia 17-08-2015, designadamente, “Quem é que foi lá? Quem é que foram asa doutoras que foram lá? Eu mato-as”, “Quem é que foi, quem é que foi? Suas putas, eu mato-as!” e as proferidas no dia 13-06-2016, designadamente, “vocês só ajudam nalguma coisa no dia em que eu vier aqui e der um tiro nos cornos a alguém.”.

2ª - Como tal, segundo o arguido, tais expressões consubstanciam uma ameaça de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal da ameaça, sendo, nesse caso, a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado.

3ª - O crime de ameaça vem previsto no Artº. 153º do Código Penal, explanando o seu nº.1 que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”.

4ª - Trata-se de um crime de perigo abstracto concreto, já que não se torna necessário que a vítima fique, de facto, com medo ou inquietação. No fundo, o que se exige é que o meio utlizado seja idóneo a provocar aquele efeito. O bem jurídico protegido é, assim, a liberdade pessoal da vítima.

5ª - O elemento objectivo do crime em apreço consiste na comunicação de uma mensagem a um destinatário com um significado da prática futura de um mal ao destinatário ou a um terceiro. Ora, o elemento objectivo deste crime é, assim, o anúncio de um mal futuro, o qual está, única e exclusivamente, dependente da vontade do agente.

6ª – Assim, a expressão “mato-te” ou “mato-as”, esta última a utilizada pelo arguido nos presentes autos, só pode ser encarada como se de um mal futuro se tratasse, ou seja, terá de ser entendido como algo que ocorrerá à frente, de futuro.

7ª - Para que não se considere estarmos perante um crime de ameaça, é necessário que as expressões proferidas sejam acompanhadas por actos que extrapolem o elemento objectivo do tipo criminal e entrem no âmbito de um outro tipo criminal, o que não ocorreu nos presentes autos.

8ª - O arguido, cujo historial de violência já era sobejamente conhecido pelas ofendidas, após proferir as expressões, esperou que as testemunhas aparecessem, obrigando-as a resguardar-se e só desmobilizando, após a chegada da GNR ao local. Portanto, dúvidas não restam, em como as expressões proferidas consubstanciam um mal futuro, um mal que ocorreria, forçosamente, algum tempo depois do arguido o ter anunciado.

9ª - Como tal, na nossa humilde opinião, não colhe o argumento do arguido, quando diz que as ameaças que professou eram para um mal presente e não futuro.

10ª - O arguido LF foi condenado na pena de 18 (dezoito) meses de prisão efectiva, pela autoria material de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos Artsº. 153º, nº.1 e 155º, nº.1, a)- e c)- do Código Penal.

11ª – Estamos perante um tipo criminal punido com uma pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Estaríamos, assim, a falar de uma pena de prisão, abstractamente aplicável, até 6 anos.

12ª - O arguido foi condenado a uma pena de prisão relativamente baixa, atendendo os limites agora referidos, considerando que a medida da pena está nos exactos termos do previsto no Artº. 71º do Código Penal, tendo o Tribunal “a quo” ponderado, de forma absolutamente correcta, as circunstâncias que rodeiam a situação em apreço.

13ª - O arguido não confessou os factos, tendo-os negado e não demonstrou qualquer tipo de arrependimento. Ao invés, tentou sempre vitimizar-se e justificar as suas condutas com a discriminação que vem sofrendo por parte dos serviços sociais da Câmara Municipal. Regista, também, inúmeros antecedentes, todos reveladores de manifesta gravidade, tendo cumprido várias penas de prisão efectiva - de referir que o arguido cometeu parte dos factos em discussão nos presentes autos, nomeadamente, os referentes ao dia 14-08-2015, enquanto ainda estava abrangido pela liberdade condicional, referente ao processo nº. ----/10.2TXEVR-A. Mais, a postura demonstrada em julgamento, os traços da sua personalidade, evidenciados no relatório social junto aos autos e a bastante relevante circunstância de todos os factos terem sido praticados no decurso da liberdade condicional de que beneficiou, entendeu o Tribunal “a quo” que a aplicação de penas de multa já não realizaria, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, impondo as exigências de prevenção especial, no caso concreto, a aplicação de penas privativas da liberdade ao arguido.

14ª – Tendo o Tribunal “a quo” analisado toda a situação do arguido, conjugando com as necessidades de prevenção geral, bem como, as necessidades de prevenção especial, que, in casu, são elevadíssimas, leva-nos a concluir que a pena aplicada e a sua medida, não suspendendo a mesma, são as mais adequadas.

15ª - A suspensão da execução da pena de prisão, apenas deverá ocorrer quando é possível um juízo favorável em relação ao condenado, o que, in casu, admitimos como impossível de obter, devido ao seu historial criminoso, à postura demonstrada e à sua incapacidade de auto-responsabilização.

16ª - Como tal, entendemos que, neste caso em concreto, a pena de prisão não deverá ser suspensa na sua execução, já que, se o fosse, estariam irremediavelmente comprometidas as finalidades de prevenção que norteiam aquele regime. Deverá, nestes termos, ser mantida a pena de prisão efectiva a que o arguido foi condenado.

Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmado o Douto acórdão recorrido.

Vossas Ex.ªs, porém, decidirão como for de JUSTIÇA!

Pelo Digno Magistrado do MP em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito do recurso interposto no sentido da respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, ao que ele não respondeu.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença sob recurso, tal como transparece das conclusões do recorrente, versa sobre matéria de direito e desdobra-se nas seguintes questões:

a) Impugnação do juízo de enquadramento jurídico-criminal dos factos, no sentido da respectiva atipicidade, com o consequente pedido da absolvição do arguido da acusação;

b) Subsidiariamente, pedido de suspensão da execução da pena de prisão ou, se assim se não entender, cumprimento desta em regime de prisão por dias livres.

Começaremos por conhecer da vertente da pretensão recursiva respeitante ao enquadramento jurídico-criminal dos factos apurados.

O tipo criminal da ameaça é definido pelo nº 1 do art. 153º do CP:
Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

De acordo com o ajuizado na sentença sob recurso, impende sobre o crime praticado pelo arguido a gravação prevista no art. 155º nº 1 als. a) e c) do CP, cujo fundamento é o seguinte:

Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º- C forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos;
(…)

c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C (…)

Temos entendido que a comunicação a outrem do propósito de lhe tirar a vida implica, na falta de melhor especificação, a ameaça com a prática de um crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do CP, a que é cominada pena de prisão de 8 a 16 anos.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais Superiores a asserção de que a ameaça formulada pelo agente activo só preenche a tipicidade do nº 1 do art. 153º do CP quando consubstanciar a cominação de um mal futuro, cuja realização depende exclusivamente da vontade do agente activo e não de algum comportamento do agente passivo ou de um terceiro.

O recorrente alega que a sua apurada conduta é atípica do crime de ameaça justamente por não comportar um anúncio de um mal futuro e de não preencher a critério da adequação da ameaça, pois as ofendidas não ficaram condicionadas nas suas decisões e movimentos dali para a frente.

As declarações as que se referem os pontos 2, 3 e 5 da matéria provada consubstanciam outros tantos anúncios do propósito de tirar a vida às pessoas a quem forem dirigidas ou a quem se referirem.

Qualquer das mencionadas declarações implica a cominação de um mal futuro, porquanto, em nenhuma das situações em análise, o arguido deu a entender de que forma fosse à pessoa visada que ao anúncio do propósito homicida se seguiria a sua realização.

Antes de mais, importa recapitular que o tipo criminal fundamental da ameaça se desdobra nos seguintes elementos constitutivos:

a) Uma comunicação feita pelo agente activo;
b) A comunicação verse sobre um mal futuro;
c) A realização desse mal dependa exclusivamente da vontade do agente activo;
d) O conteúdo da comunicação seja adequado a causar ao agente passivo medo ou inquietação ou perturbar a sua liberdade de determinação;
e) A conduta cominada pelo agente activo integrar a prática de crime contra um dos bens jurídicos discriminados na norma incriminadora;
f) O conhecimento pelo agente passivo da comunicação feita pelo agente activo;
g) O dolo do agente activo.

Como pode ver-se, a conduta típica do crime de ameaça desenvolve-se num processo de comunicação entre, pelo menos, duas pessoas, o qual inclui sempre um polo emissor (o agente activo) e um polo receptor (o agente passivo).

Neste contexto, a consumação do crime de ameaça exige sempre o conhecimento da comunicação pelo agente passivo, sem o que estaremos perante uma conduta meramente tentada, que, no tocante ao crime em discussão, nunca é punível, mesmo na modalidade agravada do art. 155º do CP

Ora, verifica-se que a conduta objectiva descrita nos pontos 1 a 3, que o Tribunal «a quo» ajuizou serem integradores dois crimes de ameaça agravada, um em detrimento de SP e outro de CL, não inclui que estas ofendidas se encontrassem presentes, no momento em que o arguido proferiu as expressões reproduzidas nos pontos 2 e 3 ou que elas as tivessem, de alguma forma, percepcionado.

A ter sido assim, relativamente aos crimes praticados em 14/8/2015 e de foram vítimas SP e CL, não chegou sequer a estabelecer-se o processo comunicacional, que o tipo criminal da ameaça sempre pressupõe.

Nesta conformidade, tal como se encontra descrita, a conduta objectiva relatada nos pontos 1 a 3 não é típica do crime de ameaça, embora por razões diferentes das invocadas pelo recorrente

Pelo contrário, não vislumbramos óbice à tipicidade da actuação do arguido descrita nos pontos 4 e 5, datada de 13/6/2016 e de que foi ofendida CI.

Na verdade, em caso algum o arguido comunicou à pessoa a quem se dirigiu que a concretização da intenção de lhe tirar a vida estava condicionada a qualquer comportamento da parte dela ou de terceiros.

No que se refere à adequação da declaração ameaçadora, o recorrente parece partir da assunção errónea de que o tipo criminal em referência se caracteriza como um crime de resultado, exigindo para sua consumação que o agente passivo se sinta efectivamente atemorizado ou condicionado na sua liberdade de determinação pela comunicação que lhe foi dirigida pelo agente activo.

Independentemente daquilo que consta do ponto 8 da matéria provada, que, em bom rigor, não releva para o preenchimento do crime de ameaça, a perfeição deste tipo criminal basta-se com a adequação da comunicação feita pelo agente activo a dar origem no agente passivo a qualquer dos efeitos psicológicos previstos na norma incriminadora, a saber provocar-lhe medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.

Conforme já aflorámos, comunicar a outra pessoa o propósito de lhe tirar a vida é, por definição, adequado a causar-lhe medo, a menos que haja razões concretas para acreditar que a ameaça não é séria, as quais, no caso, não existem.

Nesta conformidade, improcede a impugnação feita pelo recorrente do juízo de enquadramento jurídico-criminal dos factos provados, quanto à conduta descrita nos pontos 4 e 5 da matéria provada.

A propósito dos factos relatados nos pontos 1 a 3, importa ter presente o Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20/11/14 e publicado em DR, I série, de 27/1/15, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Os pontos 1, 2 e 3 da matéria de facto provada reproduzem os artigos correspondentes da acusação e esta não contém qualquer facto concreto, no sentido de as pessoas supostamente visadas pelas frases reproduzidas nos pontos 2 e 3, SP e CL, as tenham percepcionado.

Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do STJ, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o nº 3 do art. 445º do CPP:

A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.

O regime contido na disposição legal agora transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art. 203º da CRP.

Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.

Neste contexto, somos de entender que, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil o propósito unificador da instituição dos Acórdãos a que nos vimos referindo, os Tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida por essas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo STJ é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico basilar, geralmente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.

Quanto ao recente Acórdão nº 1/2015, cumpre verificar, num primeiro momento, que o mesmo tratou directamente de uma situação não totalmente coincidente com aquela com que estamos confrontados nos presentes autos, pois reporta-se a factos integradores do nexo de imputação subjectiva ao agente (dolo ou negligência) de uma determinada conduta objectiva.

No caso em apreço, o facto deficientemente investigado constitui elemento constitutivo, mas de natureza objectiva, do tipo criminal pelo qual o recorrente foi condenado.

Importa então ajuizar se a jurisprudência fixada no Acórdão nº 1/2015 deve ser considerada extensiva à situação processual que agora nos ocupa.

A este propósito, interessará reproduzir aqui parte da fundamentação do identificado Acórdão de Fixação de Jurisprudência (transcrição com diferente tipo de letra):

Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.

Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).

No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.

Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.

Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.»

Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.»

Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.»

O art. 283º nº 3 als. b) e c) do CPP estabelece que a acusação terá de conter, sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.

De acordo com o princípio do acusatório ou da estrutura acusatória do processo, consagrado no nº 5 do art. 32º da CRP, é a acusação que define o objecto de processo, tanto no plano pessoal, dirigindo a acção penal contra um ou mais arguidos determinados, como no dos factos imputados ao arguido e da respectiva qualificação jurídica.

É com base nessa associação entre factos e qualificação jurídica, que se estabelece a relevante distinção entre a alteração substancial e a não substancial dos factos descritos na acusação, cujos contornos são delineados pela al. f) do art. 1º do CPP, a que se alude no trecho da fundamentação do Acórdão nº 1/2005 que acima deixámos transcrito.

A obrigatoriedade da indicação, no libelo acusatório, da qualificação jurídica dos factos narrados nessa peça processual visa explicitar não só o fundamento legal da tipificação desses factos como crime, mas também as sanções a que o arguido se arrisca a ser condenado, caso se prove que ele os praticou.

No Acórdão nº 1/2015, foi entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que a distinção entre alteração substancial e não substancial dos factos descritos na acusação tem como pressuposto que esta contenha a alegação da factualidade integradora de todos os elementos do tipo criminal por que o arguido venha acusado, tanto na sua vertente objectiva como na subjectiva, pelo que qualquer «acrescento» de factos no sentido de suprir uma eventual deficiência a esse nível equivale a transformar uma conduta, que não é punível como crime, noutra que o é, o que não é tolerado pelo princípio do acusatório.

Consequentemente, teremos de concluir pela aplicabilidade da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça à deficiência constatada na matéria de facto fixada pelo Tribunal «a quo», no acórdão sob recurso.

Aqui chegados, diremos que não vislumbramos que possa ser oposta à jurisprudência fixada pelo identificado Aresto alguma objecção (violação de princípio jurídico fundamental ou de norma constitucional), que possa justificar o seu não acatamento por este Tribunal, de acordo com o critério que vimos seguindo.

Em face da publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 e não havendo razão justificativa, de acordo com o critério que vimos seguindo, da sua inobservância, iremos decidir a questão em apreço em conformidade com a jurisprudência firmada por esse Aresto.

Nesta ordem de ideias, à luz do entendimento jurisprudencial a que nos vimos reportando, não é lícito ao Tribunal suprir, por via de ulterior alteração dos factos articulados na acusação, a deficiência da matéria de facto provada, na parte relativa a terem as ofendidas Soraia Ponte e Carla Silva percepcionado as frases reproduzidas nos pontos 2 e 3 da matéria assente e tê-las o arguido proferido em termos de serem por elas percepcionadas.

Nesta conformidade, teremos de concluir que a matéria de facto provada, tal como se apresenta, é atípica em relação à disposição do nº 1 do art. 153º do CP, o que acarreta a absolvição do arguido de dois dos três crimes por que foi condenado em primeira instância, concretamente, os que foram praticados em 14/8/2015 e tiveram como ofendidas SP e CL.

Diferentemente, mantêm-se os pressupostos da condenação do arguido pela prática do terceiro desses crimes, em detrimento de CI, no dia 13/6/2016.

Em consequência da absolvição do arguido de dois dos três crimes por que foi condenado, ficará sem efeito o cúmulo jurídico de penas operado na sentença sob recurso e retomará a sua autonomia a pena parcelar de 8 meses de prisão, aplicada pelo crime restante.

Aqui chegados, conheceremos da pretensão formulada pelo recorrente, no sentido de lhe ser suspensa a execução da pena de prisão, desta vez com referência à pena parcelar não afectada pelo juízo absolutório, ou, se assim se não entender, do seu cumprimento em regime de prisão por dias livres.

A suspensão da execução da pena de prisão tem os seus pressupostos previstos no nº 1 do art. 50º do CP, que reza:

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

O nº 1 do art. 40º do CP estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos, que se concretiza, em síntese, na prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 estatui que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.

A questão da suspensão da execução da pena privativa de liberdade foi tratada na sentença sob recurso, então com referência à pena emergente do cúmulo jurídico efectuado, nos termos seguintes (transcrição com diferente tipo de letra):

"B) Da não suspensão da execução da pena de prisão

Uma vez fixada a pena de prisão ao arguido, importa determinar se existe esperança na socialização do mesmo em liberdade e nas suas capacidades para não cometer novos crimes, ou seja, se existem razões fundadas e sérias que levem o tribunal a concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que possibilitaria a suspensão da sua execução ao abrigo do art. 50º do C.Penal.

A necessidade de prevenir a prática de crimes da natureza dos em apreço, através da sua punição severa, não é, em regra, incompatível com a suspensão da execução da pena cominada, quando tal suspensão se mostre adequada à ressocialização do infractor.

Todavia, a pena de prisão não deverá ser suspensa na execução se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresente claramente desfavorável e a suspensão for impedida por prementes exigências geral-preventivas ( ).

No caso dos autos, o extenso rol de antecedentes criminais do arguido, todos de elevada gravidade e na sua maioria reveladores de extrema agressividade, praticados ao longo de 20 anos, evidencia, como se deixou exposto supra, uma personalidade absolutamente desconforme ao direito, uma completa ausência de interiorização da gravidade das condutas praticadas e um manifesto desrespeito pelas solenes advertências que lhe têm sido feitas, reincidindo constantemente e revelando que as penas que lhe têm sido, sucessivamente, aplicadas, na sua maioria de prisão efectiva, que cumpriu, não surtiram o pretendido efeito de, em liberdade, inverter o rumo da sua vida, passando a pautá-la de harmonia com os valores subjacentes ao ordenamento jurídico-penal vigente.

De realçar que os factos foram praticados em pleno decurso da liberdade condicional que lhe foi concedida, depois de um longo período de privação da liberdade, o que reforça, em muito, as considerações expendidas.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, entende o Tribunal que o arguido manifesta extrema dificuldade em reagir a situações de frustração e em coadunar os seus comportamentos, evidenciando, nessas ocasiões, descontrolo absoluto e comportamentos de intensa violência, não se coibindo de atingir terceiros, para os quais canaliza toda a sua raiva.

Para além disso, é um individuo marcadamente conflituoso e desafiador, impulsivo e reactivo, com reduzido pensamento consequencial e uma forte tendência para se envolver em situações desajustadas, não revelando qualquer capacidade de “insight” e incapacidade de acatar regras de sã convivência social.

Por seu turno, e apesar da sua mínima inserção, não existem nos autos quaisquer outros factores que militem a favor do arguido e que pudessem ser susceptíveis de convencer o Tribunal relativamente à suficiência de uma ameaça de prisão.

Pelo exposto, conclui-se não ser possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, entendendo o Tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam, de todo, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Assim, cumprirá o arguido LF uma pena de prisão efectiva."

Quanto ao pedido de suspensão da execução da pena de prisão, importa ter presente que a referida sanção substitutiva tem como pressuposto a emissão pelo Tribunal de um juízo de prognose favorável no sentido de a censura do facto e a ameaça da prisão serem suficientes para satisfazer adequada e suficientemente as finalidades da punição, que são, como já vimos, a prevenção geral e especial (em sentido negativo) da prática de crimes e a reintegração social do arguido.

Na generalidade das situações, a integração social do arguido é quase sempre melhor servida por via da imposição de uma pena não imediatamente privativa de liberdade, pressuposto que o condenado beneficie de um mínimo de enquadramento ao nível familiar, laboral, escolar ou o que seja.

Na denegação da suspensão pelo Tribunal «a quo», pesaram em primeira linha as necessidades de prevenção especial, as quais emergem não só dos antecedentes criminais do arguido, mas também o panorama geral do que se apurou sobre as suas condições pessoais e a sua personalidade, sem prejuízo dos factos pontuais que possam militar em sentido contrário.

O recorrente avança como principal argumento, no sentido de lhe ser concedida a suspensão da execução da pena de prisão, a circunstância de ser «delinquente primário» quanto ao crime de ameaça, por cuja prática foi condenado em primeira instância.

É certo que o arguido nunca foi anteriormente condenado pelo tipo de crimes, porque responde nos presentes autos, mas tal aspecto perde toda a relevância, no juízo de avaliação das exigências de prevenção especial, que importa fazer, em face dos antecedentes criminais do ora recorrente.

Tendo o arguido sido absolvido, pelo presente acórdão, dos dois crimes de ameaça agravada, praticados em 14/8/2015, o único crime dessa natureza, pelo qual a condenação se mantém, ocorreu em 13/6/2016, ou seja, já depois de findo o último período de liberdade condicional, a que o arguido esteve sujeito, em 25/9/2015.

De todo o modo, o facto de o arguido ter voltado a delinquir, menos de um ano depois do termo da liberdade condicional, afigura-se-nos fortemente revelador do muito escasso efeito intimidatório que as penas sobre ele exercem.

A postura do recorrente em julgamento tão pouco o beneficia, pois não confessou os factos por que responde, nem manifestou por eles qualquer arrependimento.

Tudo visto, não vislumbramos razão válida reverter ter o ajuizamento feito pelo Tribunal «a quo» no sentido de não ser possível emitir, em relação ao arguido em presença, o juízo de prognose favorável que tem de estar na base da aplicação da pena substitutiva em discussão, pelo que terá de denegar-se a sua decretação, improcedendo a pretensão recursiva nesta parte.

Quanto ao pedido de cumprimento da pena de prisão em dias livres, temos que os factos por que o arguido responde foram praticados na vigência da redacção do Código Penal, anterior à reforma introduzida pela Lei nº 94/2017 de 23/8, cujo art. 45º dispunha:

1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, que não deva ser substituída por pena de outra espécie, é cumprida em dias livres sempre que o tribunal concluir que, no caso, esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - A prisão por dias livres consiste numa privação da liberdade por períodos correspondentes a fins-de-semana, não podendo exceder 72 períodos.

3 - Cada período tem a duração mínima de trinta e seis horas e a máxima de quarenta e oito, equivalendo a cinco dias de prisão contínua.
4 - Os dias feriados que antecederem ou se seguirem imediatamente a um fim-de-semana podem ser utilizados para execução da prisão por dias livres, sem prejuízo da duração máxima estabelecida para cada período.

Embora as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/8 tenham suprimido da lei penal substantiva a figura da prisão por dias livres, entendemos por justificada a sua aplicação aos factos praticados na vigência da lei antiga, de acordo com o princípio consagrado no art. 2º nº 4 do CP, quando se revele concretamente mais favorável ao arguido.

Na redacção do art. 45º do CP, em vigor ao tempo da prática dos factos incriminados, a aplicação da prisão por dias livres dependia também da formulação pelo Tribunal de um juízo de prognose favorável, no sentido que, por meio dela, as finalidades da punição, tal como definidas pelo art. 40º nº 1 do CP, seriam adequada e suficientemente realizadas.

Contudo, a figura penal, que agora nos ocupa, obedece a nítidos propósitos de reintegração social do arguido e visa garantir, na medida do possível, que o cumprimento da pena privativa de liberdade não afecte o grau de integração sócio-económica, que o arguido tenha conseguido em meio livre, permitindo-lhe, inclusivamente trabalhar ou estudar, durante os chamados «dias úteis».

Ora, o quadro factual que se apurou sobre as condições pessoais do arguido, mormente, o que consta dos pontos 13, 17 e 19 da matéria provada é quase o oposto dos valores e interesses que prisão por dias livres visa preservar.

Neste contexto, não se nos afigura plausível que o arguido aproveite o cumprimento da prisão por dias livres para trabalhar ou, pelo menos, exercer alguma actividade socialmente útil, nos dias em que permanecer em liberdade, antes se antevendo como muito mais provável a eventualidade de voltar a delinquir.

Por conseguinte, teremos de concluir pela inviabilidade da formulação do juízo de que depende a aplicação da prisão por dias livres, improcedendo o recurso também nesta matéria.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Conceder provimento parcial ao recurso e revogar a sentença recorrida nos termos das alíneas seguintes;

b) Absolver o arguido de dois crimes de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º nº 1 als. a) e c) do CP, praticados em 14/8/2015, em detrimento de SP e CL, respectivamente;

c) Declarar sem efeito o cúmulo jurídico de penas efectuado e determina que retome a sua autonomia a pena parcelar de 8 meses de prisão, em que o arguido foi condenado, pela prática de um crime de ameaça agravada p. e p. pelos arts. 153º nº 1 e 155º nº 1 als. a) e c) do CP, em 13/6/2016 e em detrimento de CI;

d) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, quanto ao mais.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 8/10/19 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)