Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BACELAR CRUZ | ||
Descritores: | CRIME DE AMEAÇA | ||
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Data do Acordão: | 05/15/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. A fase preliminar do julgamento, ou dos atos preliminares do julgamento, inicia-se, com o saneamento do processo. E com tal atividade procura-se evitar a realização de atos inúteis – de julgamentos inúteis. II. Aceita-se o argumento de que a concretização do mal depende da vontade da própria vítima [ou seja, se ela não voltar a “tocar” na filha do Arguido não estará sujeita a qualquer agressão] com a dimensão que lhe foi dada [ser capaz de afastar a prática do crime de ameaça], porque não foi posto em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de ação – por tal liberdade, in casu, já se encontrar limitada, uma vez que implica a prática de um crime, o de ofensas corporais perpetrado pelo menor Alan na pessoa da filha do Arguido. III. A ameaça proferida pelo arguido não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação do visado com ela, pois que apenas constitui o anúncio de uma ofensa corporal que o motivará a conformar-se com o direito, respeitando a integridade física de terceiro, não praticando qualquer crime. Traduz um apelo dirigido ao queixoso para que não agrida ninguém, ou seja, ao cabo e ao resto, para que não pratique qualquer crime. Pelo que não há crime de ameaça. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora I. RELATÓRIO Nos autos de inquérito que, com o nº 539/10.0GAOLH, correram termos pelos Serviços do Ministério Público de Olhão da Restauração, Paulo A, casado, nascido a 11 de setembro de 1969, em São João de Arroios, Lisboa, residente..., em Moncarapacho, Olhão da Restauração, foi acusado pela prática de um crime de ameaça, previsto e punível pelo n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal. Notificado o Arguido e a Defensora que lhe foi nomeada do teor de tal acusação, e não tendo sido requerida a abertura da instrução, foram os autos remetidos à distribuição. E distribuídos que foram ao 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão da Restauração, o Senhor Juiz, após ordenar a autuação como processo comum, afirmar a competência do Tribunal, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, decidiu rejeitar a acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, por a considerar manifestamente infundada. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: «1ª Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido Paulo A, porquanto, na fase de inquérito, recolheram-se indícios suficientes de o arguido ter cometido, em autoria material, na forma consumada, um crime de ameaça, previsto e punível pelo nº 1 do art. 153º do Código Penal 2ª Todavia, por decisão datada de 18 de Outubro de 2011, o Mº Juiz a quo proferiu decisão de rejeição do recebimento do libelo acusatório, por ser manifestamente infundada, por não se imputar uma conduta punível como crime ao arguido, nos termos conjugados do art. 311º, nº 1 e 2, alínea a), por referência à alínea d), do nº 3, do mesmo artigo, do Código de Processo Penal, porquanto, no seu entendimento, a descrição factual em que se imputa o crime de ameaça ao arguido não consubstancia uma conduta punível, circunstância que importa a rejeição da acusação por ser manifestamente infundada. 3ª Analisados os argumentos esgrimidos acerca desta matéria jurídica expendido pelo Mº Juiz a quo, verifica-se que abordou a muito propalada ameaça condicional que já foi objecto, no passado remoto e recente, de uma discussão meramente jurisprudencial, não obstante a consolidação maioritária da jurisprudência que pugna pela irrelevância da circunstância de a ameaça depender da vontade do agente no seu sentido naturalístico. 4ª Acontece que ameaçar significa pronunciar o propósito de fazer mal a alguém. Pois, o conceito de ameaça pressupõe um mal que constitua crime (contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor), seja futuro e, além disso, que a ocorrência desse mal futuro dependa (ou apareça como dependente), da vontade do agente. 5ª Por seu turno, a ameaça pode ser pessoal ou material, poder ser escrita ou verbal, sendo irrelevante que seja feita pelo agente de forma directa ou que se sirva de interposta pessoa. 6ª Além disso, exige ainda o tipo legal que a ameaça seja adequada a provocar no sujeito passivo medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. 7ª Sobre o elemento volitivo, o seu preenchimento depende de dolo e basta-se com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado. 8ª Por conseguinte, o que releva é o critério do efeito e, portanto, a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo, por isso, irrelevante, que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça. 9ª Crucial, neste aspecto, é a doutrina de Taipa de Carvalho ao advogar que a característica de que a ocorrência de mal futuro depender ou aparecer como dependente da vontade do agente estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso; todavia esclarece que a dependência da vontade do agente não importa a sua compreensão no seu sentido naturalístico, antes visando que o crime de ameaça se preenche apenas com a mera aparência junto do ameaçado como dependente do ameaçador. 10ª Por isso, o ponto de partida para o juízo sobre a dependência ou não do mal futuro implica, na senda desse autor, por optar por um critério objectivo-individual, no sentido de ponderar, por um lado, o critério objectivo do homem médio e, por outro, atender às características individuais da pessoa ameaçada. 11ª Devido a essa construção, dir-se-á que a ameaça terá de ser idónea a perturbar um homem sensato na sua liberdade de decisão, ou seja, há-de ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do sujeito passivo. 12ª Por conseguinte, entende-se, salvo melhor opinião, ao contrário do afirmado pelo Mº Juiz a quo, a expressão mencionada no libelo acusatório, naquelas circunstâncias e respectivo destinatário, é adequada a causar medo ou inquietação, assumindo gravidade suficiente revelador do perigo concreto para o bem jurídico protegido com o tipo legal, cujo titular é o ofendido, sendo irrelevante a argumentação expendida na decisão em crise, porquanto o libelo acusatório denuncia que o mal anunciado estava na dependência do arguido, tendo o Mº Juiz a quo violado o disposto no nº 1 do art. 153º do Código Penal. 13ª Porém, mesmo assim não se entendendo, é, pelo menos, facto notório a existência de uma controvérsia interpretativa sobre o preenchimento do mencionado ilícito penal. 14ª Porquanto, tal como resulta de jurisprudência dominante, a rejeição liminar do libelo acusatório, nos moldes efectuados pelo Mº Juiz a quo, desrespeita a estrutura acusatória que informa o processo penal português, na medida em que se substituiu ao Ministério Público ao fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam o libelo acusatório. 15ª Efectivamente, o comando legal consagrado na alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal tem como limite interpretativo quando a factualidade vertida no libelo acusatório não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado ao arguido ou quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento. 16ª Tem, por isso, de consubstanciar um juízo sobre a constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar, de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja, sob pena, tal como enunciado, de desvirtuamento da estrutura acusatória que informa o processo penal português – Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pela Juiz Desembargadora Isabel Valongo, datado de 27 de Abril de 2011, publicado na internet em www.dgsi.pt. 17ª Ora, salvo melhor opinião, a decisão proferida pelo Mº Juiz a quo, ora em crise, não respeitou essa bitola interpretativa, porquanto o seu entendimento sobre o preenchimento dos elementos objectivos e nexo de causalidade do crime imputado no libelo acusatório constante dos autos é, no mínimo, jurisprudencial e doutrinalmente, controverso, violando o disposto na alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal. Em suma, A decisão ora em crise deverá ser revogada e alterada por outra que decida pela admissão do libelo acusatório proferido nos autos, designando-se data para audiência de discussão e julgamento, porquanto a decisão em causa, ora em crise, viola o disposto no nº 1 do art. 153º do Código Penal e na alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. V. Exas. Farão, como sempre, JUSTIÇA!» Não houve resposta. v O recurso foi admitido. Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Invocando que o bem jurídico protegido pela previsão do artigo 153.º do Código Penal é a liberdade individual, recorda que esta tem como limite os direitos, liberdades e garantias de terceiros. Daí que, ficando o mal prometido condicionado à prática de um crime, não ocorre a previsão do artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. Ao que se acrescenta não haver qualquer controvérsia jurisprudencial sobre os elementos do crime de ameaça e que a jurisprudência citada pelo Recorrente se reporta a situações diversas da relatada na acusação formulada nos presentes autos. v Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou. Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. O objeto do recurso interposto, delimitado pelo teor das suas conclusões, reconduz-se a saber se os factos descritos na acusação são suscetíveis de integrar o tipo legal de crime de ameaça. A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]: «Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra Paulo A imputando-lhe a prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. Dispõe o nº 1, do artigo 153º, do Código Penal: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (…)”. O citado preceito pretende proteger o bem jurídico da liberdade de decisão e de acção, isto é, a paz jurídica individual. A ameaça não lesando directamente a liberdade fá-lo indirectamente na medida em que perturba a tranquilidade de ânimo, provocando um estado de agitação e incerteza e tolhendo os movimentos daquele que não se crê seguro na vida ou nos bens. O elemento objectivo do tipo consiste em ameaçar outra pessoa, ou seja, anunciar, por qualquer meio, a intenção de causar um mal futuro, dependente da vontade do autor, que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. Temos assim, desde logo, que um dos elementos essenciais da ameaça é o mal a produzir, que neste caso deve constituir crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. A inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência. Com efeito, se alguém anuncia a outrem perigos que não dependem do seu querer tal não passa de um aviso ou advertência, não sendo esta em si mesma susceptível de perturbar a liberdade de decisão e de acção com ela propondo-se, apenas, consciencializar a pessoa visada de eventuais consequências do seu estado, comportamentos ou atitudes que não dependem daquele que adverte. Com efeito, o crime de ameaça, a par de exigir a cominação de um mal futuro, ainda que mais ou menos próximo, não se compadece, porém, com a subordinação da concretização do mal ameaçado a uma condição dependente da vontade do próprio ameaçado. Tendo isto em mente, consideremos o teor da acusação pública. Ali se imputa ao arguido os seguintes factos: “No dia 15 de Outubro de 2010, pelas 9 horas, nas imediações da Escola Primária da Fuzeta, o arguido aproximou-se do veículo automóvel em que se encontravam Alan A, nascido a 18 de Outubro de 2010 e a sua progenitora Magda A (…) em acto contínuo, o arguido debruçou-se sobre o mencionado veículo automóvel e proferiu a seguinte expressão dirigida a Alan A: Dou-te dois pares de estalos se voltas a tocar na minha filha!” Entende o Digno Magistrado do Ministério Público que, com tal expressão, o arguido teve a intenção de causar receio e inquietação ao menor Alan A, amedrontando-o e condicionando o seu comportamento e, por via disso, imputa-lhe a prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. Em nosso entender, tal declaração – “Dou-te dois pares de estalos se voltas a tocar na minha filha!” – configura antes um aviso ao ofendido de uma consequência caso o mesmo agredisse, de novo, a filha do arguido. Assim, nos termos expostos, tal expressão não configura um crime de ameaça mas um aviso com a subordinação do mal ameaçado na dependência do comportamento do ofendido. Ora, para preenchimento do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 153.º do Código Penal não basta o anúncio de um qualquer mal futuro para o integrar. Com efeito, nem todos os factos socialmente danosos constituem crimes, mas tão só os que o legislador tipificou como tais, por considera-los de tal modo graves para a vida social que justificam a sanção penal para quem os praticar. Do mesmo modo nem todos os comportamentos lesivos dos bens que são objecto de tutela penal constituem um ilícito penal, mas tão só aqueles que ocorram nos termos da previsão legal. O Direito penal tendo por fim a protecção de bens jurídicos fundamentais rege-se por princípios entre os quais merece destaque o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade que significa que este só deve intervir quando for essencial e eficiente para a protecção desses bens jurídicos, sendo, ainda, de notar que a vulgarização da intervenção penal para tutela de interesses que pese embora socialmente incorrectos não são essenciais para a vida em comunidade enfraquece a sua força preventiva de protecção de valores sociais absolutamente fundamentais. Ora, não constituindo a expressão mais do que um aviso, cuja concretização depende do comportamento do próprio ofendido, forçoso se torna concluir pelo não preenchimento do tipo legal de crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal. Por assim se ter concluído, importa tirar consequências: a acusação é manifestamente infundada, porquanto não imputa ao arguido uma conduta punível como crime e, por via disso, deve ser rejeitada, o que se decide, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 1 e 2, alínea a), por referência à alínea d), do n.º 3 do mesmo artigo, do Código de processo Penal. Mais se decide não existir qualquer responsável pelas custas do processo (artigo 513.º, n.º 1, do Código Penal). Notifique e, oportunamente, após trânsito em julgado do presente despacho, arquive os autos.» Da acusação rejeitada constam os seguintes factos [transcrição]: «No dia 15 de Outubro de 2010, cerca das 09H00, nas imediações da Escola Primária da Fuzeta, o arguido aproximou-se do veículo automóvel em que se encontravam Alan A – nascido em 18 de Outubro de 2010 –, e a sua progenitora Magda A, para os confrontar com anteriores ocorrências entre Alan A e a sua filha enquanto estudantes naquela unidade de ensino. Em acto contínuo, o arguido debruçou-se sobre o mencionado veículo automóvel e proferiu a seguinte expressão dirigida a Alan A: Dou-te dois pares de estalos se voltas a tocar na minha filha! O arguido, pela forma descrita, agiu com intenção de causar receio e inquietação a Alan A, bem sabendo que o amedrontava desse modo e que condicionaria o seu comportamento. O arguido igualmente sabia que a sua actuação era proibida e punida por lei, não se coibindo de agir pela forma descrita.» v Conhecendo. Antes de o fazer, importa referir a existência de lapso manifesto, na acusação formulada nos autos, relativamente ao ano de nascimento de Alan A. Ocorreu no ano de 2001 e não de 2010. É o que resulta, de forma inequívoca, dos autos de denúncia e de inquirição que, respetivamente, constam de fls. 3 e 13 dos autos. I. De forma muito simples, pode dizer-se que o processo penal estabelece um conjunto de regras e de procedimentos que visam a aplicação do direito penal, sendo este considerado como o complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstrata, os factos ou comportamentos humanos suscetíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem. O processo penal comporta diversas fases – a do inquérito, a da instrução e a do julgamento. O inquérito, cuja direção cabe ao Ministério Público, compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação – artigos 262º, n.º 1, e 263º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal. A instrução, que tem carácter facultativo e compete a um Juiz de Instrução, visa a comprovação judicial da decisão [do Ministério Público] de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286º, n.º 1 e n.º 2, e 288º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal. O julgamento surge como um momento, obrigatório, de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa. Interessa-nos a fase do julgamento. Ou melhor, a fase preliminar do julgamento, ou dos atos preliminares do julgamento, e que se inicia, em conformidade com o disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, com o saneamento do processo. Com este saneamento do processo[[2]] procura-se evitar a realização de atos inúteis – de julgamentos inúteis. Diz o artigo 153.º do Código Penal, reportando-se à ameaça, que: «1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 – O procedimento criminal depende de queixa.» O bem jurídico protegido é a liberdade pessoal de decisão e de ação. «As ameaças, ao provocarem um sentimento de intranquilidade ou medo na pessoa do ofendido, afectam, naturalmente, e a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.»[[3]] São elementos constitutivos do crime de ameaça: - a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; - que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima e finalmente; - o dolo. Dito de outra forma, a ameaça tem de representar o anúncio de um mal, que tanto pode ser de natureza patrimonial como pessoal. Esse mal tem de ser futuro, sendo porém indiferente que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal. Ao que acresce ser indispensável que o mal futuro anunciado esteja na dependência da vontade do agente, indispensabilidade essa que deverá ser analisada tendo como ponto de partida a perspetiva do homem comum, atendendo igualmente aos especiais conhecimentos da pessoa ameaçada. Por último, é necessário que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação. De regresso ao processo, adiantamos, desde já, acolhermos a solução consagrada na decisão recorrida. Mas porque aditamos uma razão à razão que dela consta. Ou seja, apenas aceitamos o argumento de que a concretização do mal depende da vontade da própria vítima [ou seja, se ela não voltar a “tocar” na filha do Arguido não estará sujeita a qualquer agressão] com a dimensão que lhe foi dada [ser capaz de afastar a prática do crime de ameaça], porque não foi posto em causa o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja a liberdade de decisão e de ação – por tal liberdade, in casu, já se encontrar limitada, uma vez que implica a prática de um crime, o de ofensas corporais perpetrado pelo menor Alan A na pessoa da filha do Arguido. «Se assim não fosse teríamos de considerar como não violadora da liberdade do visado e como tal não puníveis, as ameaças de que “se sais de casa, dou-te um tiro”, ou “se vais para o trabalho, dou-te um tiro” e outras que tais, já que a concretização do mal anunciado estaria dependente de um acto do visado, sublinhe-se de um acto normal e legítimo de qualquer cidadão, sair de casa ou ir trabalhar.»[[4]] E é o que, em nosso entender, bem refere a Senhora Procuradora Geral Adjunta, no parecer que emitiu nos autos e do qual consta: «(…) como é sabido, a liberdade individual tem como limite os direitos, liberdades e garantias de terceiros. Na acusação refere-se, efectivamente, que o arguido teve em vista condicionar o comportamento do ofendido. No entanto, face ao teor da expressão proferida pelo mesmo, “Dou-te dois pares de estalos se voltas a tocar na minha filha”, o comportamento do ofendido que o arguido pretendia condicionar ao proferir tal expressão era o de aquele voltar a tocar na sua filha, a qual, como consta da acusação, frequentava a Escola Primária da Fuzeta juntamente com o ofendido. Assim, o mal prometido, os dois pares de estalos, só se concretizaria se o ofendido voltasse a tocar na filha do arguido, ou seja, se lhe voltasse a bater. O ofendido ficou, portanto, condicionado no seu comportamento de bater na filha do arguido. Ora, não se pode querer que o tipo legal de crime de ameaças proteja a liberdade individual quando ela contende com os direitos fundamentais de terceiro, como é o caso da integridade física.» Ora, do que se deixou dito resulta que a ameaça proferida pelo arguido não se revela adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação do visado com ela, pois que apenas constitui o anúncio de uma ofensa corporal que o motivará a conformar-se com o direito, respeitando a integridade física de terceiro, não praticando qualquer crime. Ou seja, e como se dá a entender na decisão recorrida, o anúncio do mal concretizado através da expressão acima referida pode entender-se como apelo dirigido ao queixoso para que não agrida ninguém, ou seja, ao cabo e ao resto, para que não pratique qualquer crime. Pelo que não há crime de ameaças. II. Uma palavra, ainda, para o outro argumento do recurso – a existência de controvérsia interpretativa sobre o preenchimento do crime de ameaça, impeditiva da rejeição da acusação porque manifestamente infundada. Reportando-se ao saneamento do processo, dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal: «1 – Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (...) 3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (…) d) Se os factos não constituírem crime.» «Mergulhada a jurisprudência em decisões desencontradas sobre o significado e alcance da expressão acusação manifestamente infundada, que [sem mais] constava do n.º 2, al. a), do art. 311.º, na versão originária do Código, aspecto que seguramente o legislador da Reforma de 1998 não desconhecia, entendeu ele indicar, expressamente, ao aplicador do direito, com a introdução do actual n.º 3 do preceito, os casos em que a acusação deve considerar-se manifestamente infundada. Fê-lo, diga-se, de forma coerente. Na verdade, congruentemente com a norma do art. 283.°, que fulmina com a nulidade a acusação que, no que agora importa, (i) não contenha a identificação do arguido, (ii) a narração, ainda que sintética, dos factos, (iii) a indicação das disposições legais aplicáveis e (iiii) as provas que a fundamentam, previu, expressa e imperativamente, estes casos como aqueles em que o juiz a rejeitará (a acusação, bem entendido), porque manifestamente infundada. E acrescentou-lhe, por fim, outro fundamento de rejeição: o de os factos não constituírem crime – al. d), do n.º 3, do art. 311.º. E tudo isto bem se compreende. É que uma acusação a que falte algum daqueles elementos ou que os factos nela descritos não constituem crime é de tal modo inepta que o juiz, ao ser-lhe remetido o processo para julgamento, só a pode rejeitar porque, claramente, notoriamente, está votada ao insucesso, sendo, pois, manifestamente infundada. Se é assim, então temos por certo que a previsão daquela ai. d), que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime. Quer dizer: a acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na predita al. d), quando for notório, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não constituem crime (vale por dizer: que não preenchem qualquer tipo legal de crime). Já se vê, assim, que tal não pode ser o caso em que o juiz, no despacho de saneamento, fazendo um juízo sobre a relevância criminal desses factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. Procuremos transmitir a mesma ideia numa simples frase: a previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311.º não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.»[[5]] De regresso ao processo, e sem necessidade de grandes considerações, cumpre referir que as decisões do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Lisboa indicadas pelo Recorrente não têm o significado que lhes foi atribuído. E que desconhecemos querela jurisprudencial sobre a matéria versada na decisão em recurso. Pelo que não há obstáculo à rejeição da acusação, nos termos em que ocorreu. Assim sendo, a decisão recorrida não merece qualquer reparo e o recurso improcede. III. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida. Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento. v Évora, 2012-05-15 (processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora) __________________________ (Ana Luisa Teixeira Neves Bacelar Cruz) __________________________ (Edgar Gouveia Valente) __________________________________________________ [1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A. [2] Que visa aspetos adjetivos [questões prévias ou incidentais, nulidades de conhecimento oficioso – n.º 1 e n.º 2, alínea a), do artigo 311.º do Código de Processo Penal] e substantivos [relativos ao mérito da causa, e que tanto podem revelar-se em questões prévias ou incidentais (v.g., a extinção do procedimento criminal), como traduzir o julgamento antecipado da causa (por os factos descritos na acusação não constituírem crime) – n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do artigo 311.º do Código de Processo Penal. [3] Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo 1, pág.342. [4] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19 de maio de 2004, relatado pelo Senhor Desembargador João Trindade, no processo n.º 992/04 - citado pelo Recorrente. [5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Dezembro de 2009 – processo n.º 734/07TAPDL.L1-3 –, relatado pelo Senhor Desembargador Telo Lucas, acessível em www.dgsi.pt . |