Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA LEONOR ESTEVES | ||
Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES ARREPENDIMENTO FACTOS RELEVANTES OMISSÃO DE PRONÚNCIA | ||
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Data do Acordão: | 01/14/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
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Sumário: | I -A existência de arrependimento é uma questão de facto relevante porque, a verificar-se, constitui circunstância atenuante a ponderar mormente na determinação da medida da pena, enquanto atitude posterior à prática do facto e indicador de menor probabilidade de reiteração criminosa no futuro. II - No entanto, a simples admissão dos factos, quando ocorra, não implica necessariamente a existência de arrependimento, que nalguns casos não passa de mera estratégia de defesa. III - O arrependimento, para pesar em favor do arguido, não se demonstra em regra através de meras palavras de contrição, mas sim de actos que evidenciem que interiorizou o desvalor da sua conduta, lamenta tê-la praticado, pretende atenuar na medida do possível as suas consequências nefastas e está resolvido a não tornar a delinquir. IV - A omissão de pronúncia a respeito de um facto relevante para a decisão, resultante da discussão da causa, conduz à nulidade da sentença. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório No 1º juízo do Tribunal Judicial de Lagos, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido A., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-lo pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do D.L. 15/93 de 22/1, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86 nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23/2, nas penas parcelares de 6 anos e 2 anos de prisão´, respectivamente, e, em cúmulo, tendo em consideração o disposto no nº 4 do art. 16º do C.P.P., na pena única de 5 anos de prisão. Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela redução da pena para outra não superior a 3 anos, e pela suspensão da sua execução, para o que formulou as seguintes conclusões: I – O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, e pela prática de crime de detenção de arma proibida p. e p. art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23/02; II – O Tribunal a quo aplicou ao arguido/recorrente, um pena de seis anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, e dois anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23/02, sendo que, em cúmulo juridico o tribunal aplicou ao arguida a pena única de cinco anos de prisão, pena essa que o arguido considera excessiva, tanto mais que da prova produzida extrai-se que o arguido colaborou inicialmente com os agentes da GNR – Núcleo de Investigação Criminal que o detiveram, em sede de inquérito, facilitando até a detenção e condenação de um terceiro individuo que foi condenado a nove anos de pena de prisão efectiva; III - O tribunal a quo considerou provado que o recorrente “não se encontra arrependido”. IV - Acontece que, no depoimento do arguido prestado e gravado em CD de 0:00 a 26:30, revelou-se muito claro, preciso e coerente. V - Com efeito, tal depoimento demonstrou que o arguido se mostrou arrependido do seu comportamento tendo o mesmo se dirigido ao tribunal e afirmado por diversas vezes de modo emocionado que: “Sempre tive uma conduta correcta ao longo da vida excepto agora e lamento e peço desculpa não consigo apagar isto”; “Mais uma vez peço desculpa sei que isto era para se evitar, nunca tive necessidade de fazer isto com este fim Sr. Dr. Juiz.”; “Não consigo apagar o que fiz”; “Psicologicamente não consigo fazer nada além de pensar nisto tudo que eu fiz mal.” VI - Tudo isto demonstra, que o comportamento evidenciado pelo arguido foi um acto isolado da sua vida, do qual o mesmo se mostra totalmente arrependido e envergonhado; VII - O facto do recorrente não se ter mostrado arrependido foi incorrectamente julgado como provado pelo tribunal a quo; VIII - O arguido confessou livremente os factos na audiência de julgamento, assumindo a responsabilidade pelos actos cometidos sem qualquer tipo de reserva, e demonstrou arrependimento pela prática dos mesmos; IX - O que tem valor como circunstância atenuante da responsabilidade criminal do arguido é que o mesmo demonstrou estar arrependido. X - O arrependimento é um acto interior. A demonstração do arrependimento tem de ser activa, visível. O agente tem de revelar que rejeitou o mal praticado, de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir; XI - Merece assim censura a ausência, entre os factos dados como provados na sentença, de que o arguido demonstrou arrependimento pela prática dos factos; XII - Por outro lado, não consta dos factos dados como provados na sentença, o facto do arguido após ter sido interceptado pela autoridades policiais, ter na fase de inquérito colaborado e prestado informações às mesmas tendo em vista a descoberta da verdade; XIII - Nessa medida, foi desconsiderado nesta parte por parte do tribunal a quo o depoimento do arguido prestado e gravado em CD de 0:00 a 26:30, onde o mesmo refere que: “Durante oito meses colaborei com as autoridades”; “colaborei com o Sr. J dezenas de vezes.”, o qual foi corroborado pelo depoimento prestado pela testemunha J, militar da GNR do núcleo de investigação criminal o qual foi prestado e gravado em CD de 0:00 a 6:18, onde o mesmo refere que o arguido: “Colaborou”; “Prestou-se a colaborar connosco”; “Prestou informações sobre traficantes, forneceu nomes e num caso concreto permitiu a detenção de uma pessoa que foi condenada a nove anos de prisão por tráfico.” XIV - Deste modo, atenua a sua responsabilidade a colaboração que, na fase de inquérito, deu à policia – neste sentido veja-se Ac. STJ, de 07-02-2007, que pode ser consultado em www.dgsi.pt ; XV - O tribunal a quo considerou provado que “Apurou-se que o arguido tinha um lucro anual superior a cinco mil euros.” XVI - Não consta dos autos qualquer elemento de prova que faça com que se possa concluir que o arguido teve um lucro anual proveniente do tráfico superior a cinco mil euros; XVII - Da análise do extracto bancário do arguido constante de fls. 233 a 242, verifica-se um saldo inicial de € 5.849,89, reportado a 14-04-2010 e um saldo final, em 14-04-2011, de € 14.309,86, sendo certo que, a testemunha JC declarou haver alguma discrepância entre os rendimentos do agregado familiar do arguido, as suas despesas e o saldo global da conta bancária deste, a verdade também é que o arguido logrou demonstrar ao tribunal através da junção mediante requerimento datado de 29-04-2013 de alguns recebidos de vencimento emitidos pela Câmara Municipal de ..., de que nos anos de 2010 e 2011, o mesmo auferia muito mais do que apenas € 600,00 mensais de ordenado. XVIII - Assim: - Em Abril de 2010, o arguido recebeu um vencimento líquido de € 1.143,10; - Em Junho de 2010, o arguido recebeu um vencimento líquido de € 1.276,23; - Em Novembro de 2010, o arguido recebeu um vencimento liquido de € 1.617,01, e; - Em Julho de 2011, o arguido recebeu um vencimento líquido de € 1.407,05. XIX - Dizer-se que o arguido tinha um lucro efectivo anual superior a € 5.000,00 proveniente do tráfico é falso, uma vez que não se produziu qualquer prova nos autos de que o tribunal a quo se possa socorrer, para considerar tal facto como provado. XX - Para considerar tal facto como provado, o tribunal a quo apenas teve em consideração a opinião - muito subjectiva diga-se de passagem - da testemunha JC, Inspector da Policia Judiciária, que num momento do seu depoimento afirmou que tendo em conta a sua experiência profissional e a discrepância dos montantes constantes no extracto bancário do arguido, provavelmente essa diferença de valores provinha do tráfico de estupefacientes; XXI - No entanto, nada consta nos autos em termos de prova documental e/ou testemunhal que se possa considerar com todo o rigor, certeza e segurança que o arguido obtinha um lucro anual proveniente do tráfico de valor superior a € 5.000,00 ou outro qualquer valor; XXII - O tribunal a quo a dar como provados os factos constantes sob os pontos 8 e 18, nas versões que constam na fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º, do CPP; XXIII - Por outro lado, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no art. 355.º, n.º 1, do CPP; XXIV - O ponto 8 deveria ter sido dado como não provado; XXV - Igualmente no ponto 18, deveria ter sido considerado que o arguido se mostra arrependido; XXVI - Igualmente deveria ter sido considerado como provado, pelo tribunal a quo que o arguido prestou toda a colaboração em sede de inquérito com os órgãos de polícia criminal, para a descoberta da verdade; XXVII - Afigura-se-nos pois, de acordo com o sumariamente exposto, que a apreciação da matéria de facto por parte do tribunal a quo merece um reparo, porquanto o mesmo – salvo melhor opinião em contrário - não formou a sua convicção por critérios lógicos, objectivos, e em obediência às regras da experiência comum; XXVIII - O tribunal a quo condenou o arguido na pena única de sete anos de prisão, sendo que de acordo com o n.º 4, do art. 16.º, fixou a pena em cinco anos de prisão, atento a que o Ministério Público fez uso da faculdade constante no n.º 3, do art. 16.º, do CPP; XXIX - Embora a questão não venha concretamente suscitada, diga-se que nos não repugnaria a convolação da conduta do arguido no que se refere ao crime de tráfico de estupefacientes, para o crime de tráfico de menor gravidade, nos termos do art. 25.º, alínea a) do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro; XXX - Isto porque a sua conduta teve por objecto tão só as apontadas quantidades de estupefacientes (2,094 gramas de cocaína – cloridrato, 4 placas de cannabis com peso liquido de 389,820gr, 34 bolotas de cannabis, com um peso liquido de 321,217gr, 3 placas de cannabis, com um peso liquido de 290,110gr, 2 bolotas de cannabis, com um peso liquido de 18,030gr, 10 placas de cannabis, com um peso liquido de 971,201gr), não se provaram elementos concretos, nem sobre o tempo da prática dos factos, nem sobre a sua exacta extensão e tudo aponta no sentido de se estar perante um mero “vendedor de rua”, sem qualquer ligação ou conexão com actividades de tráfico organizado; XXXI - Aliás, diga-se que o caso em apreço não difere significativamente daquele que foi objecto de apreciação e decisão no âmbito do Acórdão do STJ, de 13 de Abril de 2005, publicado na CJ (STJ), 2005, Tomo II, pág. 174, onde se decidiu que “integra um crime de tráfico de menor gravidade a actuação isolada de um distribuidor de droga num bairro, vulgarmente conhecido como sendo “dealer de rua”, (…) quando a mesma se desenvolve em pequena escala, sem qualquer suporte organizativo ou com uma logística mínima, ainda que a qualidade e quantidade dos produtos estupefacientes que lhe foram apreendidos possa já assumir certa relevância, como sucede com a heroína (26 embalagens num total de 6,492gr liquido) e a cocaina (67 embalagens, num total de 20,495gr líquido)” ou, ainda, daquele outro que vem sumariado no CJ (STJ), 2006, Tomo I, pág. 216 (Acórdão de 22-03-06), no sentido de que “a fragmentação por escalas dos crimes de tráfico de estupefacientes, tipificados no DL 15/93, visa responder às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do arguido, distinguindo-se as situações de grande tráfico (21.º e 22.º), do pequeno e médio tráfico (25.º) e do traficante consumidor (26.º). Na distinção entre o tipo base (21.º) e de menor intensidade (25.º) haverá que proceder-se à avaliação global da complexidade específica de cada caso, designadamente o tipo e o modo como a actividade de tráfico se revela. Nos casos em que o tempo de actividade de tráfico foi relativamente escasso (dois meses e meio), a mesma foi desenvolvida sem apoio, isoladamente, sem sofisticação e organização, em que o risco de disseminação é menor, havendo ainda alguma incerteza ou indeterminação sobre as quantidades transacionadas … será de considerar que essa actuação ilícita se encontra consideravelmente diminuída” XXXII - A conduta do arguido, preenche dois crimes, um de tráfico de estupefacientes p e p. art. 21.º, n.º1, do DL 15/93, de 22/01, punido com pena de prisão de quatro a doze anos, e outro crime de detenção de arma proibida p e p. art. 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até seiscentos dias; XXXIII - É dentro destes limites definidos na lei e de acordo com o critério geral estabelecido no art. 71.º, n.º 1 e 2 do CP, que se deverá proceder, em regra, à determinação da medida da pena; XXXIV - Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa ( art.40.º, n.º 2 do C.P.) , designadamente por razões de prevenção; XXXV - O art.72.º do Código Penal estabelece, por sua vez, nomeadamente, o seguinte: «1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. 2. Para o efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;». XXXVI - A jurisprudência tem sido exigente na aplicação deste preceito penal, limitando a atenuação especial da pena a casos extraordinários ou excepcionais de acentuada diminuição da ilicitude do facto , a culpa do agente ou a necessidade da pena. – cfr. entre outros, os Acórdãos do STJ, de 12/07/2006 (proc. n.º 06P796) e de 25/10/2006 (proc. n.º 06P1286), que se podem consultar em www.dgsi.pt; XXXVII - Acerca do pressuposto material da atenuação da pena, escreve o Prof. Figueiredo Dias que “ a diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da(s) circunstância(s) atenuante(s) , se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os «casos normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.”. – cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime”, Editorial Noticias, páginas 306 e 307; XXXVIII - Subscrevemos integralmente este entendimento jurisprudencial e doutrinal; XXXIX - Transpondo para o caso em concreto, verifica-se que o tribunal a quo aplicou ao arguido/recorrente, uma pena de seis anos de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p e p. art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, e de dois anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida p e p. art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23/02; Operando ao cúmulo jurídico das penas parcelares o tribunal a quo condenou o arguido/recorrente na pena única de cinco anos de prisão, pena essa que o arguido considera excessiva, tanto mais que se produziu prova de que o mesmo se mostra arrependido a envergonhado com a sua conduta, bem como, que colaborou em sede de inquérito com os militares da GNR que o interceptaram, facilitando até a detenção de uma pessoa que foi condenada nove anos de prisão por crime de tráfico de estupefacientes; XXXX – Dai que a aplicação, de uma pena única de cinco anos de prisão, se assemelha como demasiadamente exagerada ao recorrente; XXXXI - O facto do arguido/recorrente, em sede de inquérito, ter colaborado com os órgãos de polícia criminal, para a descoberta da verdade, deveria ser tido em conta na determinação da medida da pena, pois, não fazendo parte do crime, depõe a seu favor (art. 71.º, n.º 2, do CP); XXXXII- Atente-se no ensinamento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.03.1999, Processo N° 1135/1998, 3ª Secção, in Primeiro de Janeiro, Supl., Justiça e Cidadania de 24.06.1999, pág. 6: “Sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está a finalidade principal de protecção da bens jurídicos, já não tem a virtualidade para determinar o limite mínimo, este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza eficazmente aquela protecção. Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que, dentro da moldura legal, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social.” XXXXIII- Pelo que, a aplicação e subsequente cumprimento de uma pena de prisão, de cinco anos, acarretará uma dessocialização do arguido/recorrente, tanto mais que o mesmo encontra-se empregado sendo funcionário publico na Câmara Municipal de Lagos, como assistente operacional, é casado, morando com a sua esposa e uma criança menor, em casa própria e pela qual paga a quantia de trezentos euros mensais, não tendo quaisquer antecedentes criminais registados; XXXXIV- Será de referir o péssimo ambiente que se respira nos estabelecimentos prisionais, onde, em vez de se erradicar o vício do crime, se adquirem, infelizmente, novos vícios, o que é do conhecimento generalizado, pois até se ouve, à boca cheia, que as prisões, em vez de corrigirem, são verdadeiras escolas para o cometimento de futuros crimes; XXXXV- O Tribunal “a quo” fundamenta a determinação da medida da pena no “alarme social” e insegurança que este tipo de crimes cria na população. XXXXVI- Sucede que, o arguido à data dos factos também era consumidor de droga, além de que nos autos não existe o indício mínimo desse alarme e de que o arguido pudesse continuar uma actividade criminosa de tráfico de estupefacientes; XXXXVII- No cálculo da medida da pena, deve atender-se ao necessário para a reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário, de forma a aproximá-lo dos princípios dominantes na comunidade; XXXXVIII- Pelo que, tão elevada pena privativa da liberdade causará ao arguido/recorrente um mal maior, pois ao invés de o aproximar dos princípios da comunidade, afasta-o, reinserindo-o no crime, o que se quer evitar; XXXXIX - Deverá assim, o Tribunal Superior, de quem se espera uma melhor e mais adequada aplicação da justiça, quer pela experiência, quer pelo saber reconhecido, dar preferência fundamentada a uma pena não privativa da liberdade, pois que ela se mostra suficiente à recuperação social do arguido/recorrente e satisfaz as exigências de recuperação e de prevenção do crime (cfr. Acórdão da Relação de Évora de 6.11.1984 (R. 142/84), Boletim do Ministério da Justiça, 343, 396); XXXXX - Destarte, deve, salvo opinião mais douta, a pena de prisão aplicada ao arguido/recorrente ser revogada, reduzida no seu quantum, aproximando-se do minimo legal, isto é, nunca superior a 3 anos, suspendendo-se a sua execução, nos termos do disposto no art. 50.º, do C. Penal, de modo a permitir a dissuasão e reintegração do arguido (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.1991 (P. 41940), Colectânea de Jurisprudência, 1991, 4, 15.); XXXXXI - O arguido/recorrente não mais se quer deixar envolver em qualquer espécie de drogas ou de tráfico, sendo que a sua presença no seio da própria família continua, para si, sua esposa e filha menor a ser essencial para a boa harmonia, sendo a sua reinserção social patente; XXXXXII - Assim sendo, a sua permanência na prisão será demasiado chocante e gravosa, na medida em que, ali sim, com alguma permissividade, é difícil abandonar o mundo do crime que ele, a todo o custo, quer conseguir; XXXXXIII - Considerando, ainda, que nos termos do art. 28.º, da Constituição da República Portuguesa, as normas penais hão-de ser estritamente necessárias, devendo os limites máximos da legislação Penal aferir-se pela sua necessidade, cremos, assim, que o recorrente deveria ter sido condenado em pena mais próxima do limite mínimo da norma incriminadora. XXXXXIV - Finalmente e sem prescindir, sempre a pena aplicada será exagerada, porquanto a mesma nunca poderia ir muito além do limite mínimo, violando a douta sentença o disposto nos art.s 40.º, n.º 2, 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal, sendo que “in casu”, a pena pelo crime de tráfico de estupefacientes não deveria ser superior a 4 anos e ao crime de detenção de arma proibida apenas deveria ser aplicada uma pena de multa; XXXXXV - Não obstante o supra exposto, aqui chegados porém, e a serem acolhidas as considerações acima enunciadas a propósito da qualificação jurídica dos factos provados, impor-se-á fixar a pena a aplicar, agora dentro da nova moldura ao caso aplicável: prisão de 1 a 5 anos; XXXXXVI - A esta luz, posto que na moldura do crime do art. 25.º, para a escolha e respectiva medida, afigura-se-nos adequada uma pena não inferior a 2 anos de prisão; XXXXXVII - Esta concreta medida da pena consente a sua substituição pela suspensão da execução de prisão, nos termos do disposto no art. 50.º, n.º 1, do CP; XXXXXVIII - De acordo com este normativo, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição; XXXXXIX - Ora, conforme se argumenta supra, afigura-se-nos que a culpa do arguido e as circunstâncias concretas da prática dos factos, tal como a existente motivação evidenciada para se afastar da senda do crime, pretendendo o mesmo esquecer este episódio isolado e triste da sua vida, do qual se envergonha, permite formular a seu favor aquele juízo de prognose favorável quando à sua conduta posterior que permite concluir que a simples ameaça da pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição; XXXXXX - In casu, estamos em crer que estamos perante ultrapassáveis necessidades de reprovação e prevenção do crime, os quais não se configuram como obstáculos à pretensão do arguido/recorrente no sentido da suspensão da execução da sua pena. O recurso foi admitido. O MºPº respondeu, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso e concluindo como segue: 1 – O arguido interpôs recurso da douta sentença que o condenou na pena única de cinco anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21 nº 1 do Decreto-lei 15/93, de 22/01 e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86 nº 1 al. c) da lei 5/2006, de 23 Fevereiro, advogando que a pena é excessiva. 2 – Em sede de conclusões sustenta o recurso apresentado impugnando parte da matéria dada como provada, nomeadamente que o arguido não revelou arrependimento e que auferia uma media anual de 5000.00Euros proveniente do tráfico de estupefacientes, como ainda defende que não foi tido em consideração a sua colaboração com as autoridades policiais. 3- Refere ainda que em face da prova produzida deveria ter sido condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade, tendo sido a sua conduta meramente episódica para além de ser um mero traficante de rua. 4- Como se sabe, o âmbito, extensão e limite do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente na sua motivação. 5 – Pelo que apenas as questões aí levantadas e suscitadas é que terão de ser tidas em consideração, a menos que se tratem de questões de conhecimento oficioso. 6 - Neste sentido e tendo em conta a prova produzida em sede de julgamento, entendemos que não assiste razão ao arguido, tendo a sentença recorrida feito uma boa apreciação da prova e aplicação do direito, não merecendo qualquer reparo. 7 – Com efeito, a matéria dada como provada e não provada não poderia ser outra que não a elencada na sentença recorrida, como a medida da pena foi a adequada considerando as circunstancias em que os crimes foram praticados, as exigências de prevenção geral e especial e a personalidade revelada pelo arguido. 8 - Na verdade, desde logo há que sublinhar que considerando o período de tempo em que o arguido se dedicou à aquisição para posterior venda e cedência de produto estupefaciente a terceiros, conjugado com a quantidade de produto estupefaciente e dinheiro que lhe foi apreendido e ainda saldo médio que detinha nas suas contas, em contraposição com os rendimentos declarados auferidos pela sua atividade profissional licita, nunca poderia o mesmo ser classificado pequeno traficante, tanto mais detendo o arguido contactos em Marrocos e indicações como ai chegar, sendo esse um dos locais de proveniência do produto estupefaciente que entra, se vende e consome em Portugal, principalmente no Algarve. 9- Circunstancias que não são consistente com um pequeno traficante ou vendedor de rua, como pretende fazer crer o arguido, sendo elevada a sua ilicitude. 10º - Para que estejamos perante um pequeno traficante de rua, nunca poderá este fazer do tráfico modo de vida nem daí obter a maioria dos seus proveitos económicas, devendo os mesmos ser modestos e o tráfico possibilitar ou mesmo destinar-se, em exclusivo, a satisfazer as suas necessidades de consumo, para além de outras circunstancias que apontem para uma especial diminuição da ilicitude, que, conforme está bem de ver, não é o caso. 11- Na verdade em face da prova produzida outra não poderia ser a conclusão de que a maioria dos rendimentos apurados ao arguido não advinha do seu trabalho ou de outras fontes de rendimentos lícitas, mas antes da conduta delituosa que vinha mantendo há largos meses, tendo-se apurado o valor de 5000.00Euros anuais pela confrontação dos valores declarados e saldo médio das suas contas. 12 - Do mesmo modo outra não poderia ser a conclusão do tribunal “a quo” senão pela ausência de arrependimento por parte do arguido. 13 – Conforme bem se refere na sentença recorrida, pese embora o arguido tenha confessado os factos na sua essência, não nos podemos olvidar que inicialmente apresentou um discurso de negação e posteriormente de desculpação e minimização da sua conduta o que revela falta de sentido de auto critica. 14 – Com efeito, o arguido começou por negar a venda, alegando que se limitou a guardar produto estupefaciente que lhe havia sido entregue por terceiro, acabando por referir que tal produto lhe havia sido entregue por individuo chamado Abdul à consignação para venda, terminando por afirmar que referido Abdul o havia obrigado a vender em virtude de uma dívida que teria para com o mesmo no valor de 2000,00Euros. 15 - O que não é de todo credível considerando que o arguido aufere na sua atividade profissional entre 600 a 800Euros mensais e detém saldos bancários médios de valor superior a 12.000,00Euros, o que resultou documentalmente provado nos autos. 16 – Do mesmo modo tentou justificar a posse de uma das armas que lhe foram apreendidas alegando que a utilizava na pesca submarina, quando na mesma a mesma não foram encontrados vestígios de sal, mas sim de produto estupefaciente. 17 - Ora, considerando toda a prova produzida em sede de julgamento, que aponta no sentido de o arguido fazer do tráfico de produtos estupefacientes atividade principal e com alguma envergadura, revelando dolo intenso, nem o alegado arrependimento do arguido convenceu, como não se poderia concluir ser a sua ilicitude diminuída e por isso considerado um mero e pequeno traficante de rua . 18 - Por outro lado, e contrariamente ao refere em sede de recurso a sua colaboração com as autoridades foi considerada, tendo militado a seu favor na determinação da pena, mas não o suficiente para apagar ou mitigar a sua conduta, associado às necessidade de prevenção especial e geral que o caso exige. 19 - Em conclusão, a pena aplicada pelo tribunal “a quo” considerando todas as circunstancias do caso em concreto, as exigências de prevenção e a personalidade do arguido, foi a adequada e suficiente, para além de, mesmo em cúmulo, ter sido fixada próximo dos limites mínimos previsto para o crime previsto no art. 21 nº 1 do Decreto lei 15/93 de 22 de Janeiro, ainda que por aplicação do disposto no art. 16 nº 3 do Código Processo Penal, não merecendo, por isso, qualquer reparo. No mais, não terá sido violado qualquer inciso. Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual, refutando a argumentação oferecida pelo recorrente para alterar tanto a decisão da matéria de facto como a de direito, e esta quer quanto ao enquadramento jurídico-penal quer quanto a tudo o que concerne às penas aplicadas e ao afastamento da suspensão da sua execução, também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso. Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º C.P.P., não tendo sido apresentada resposta. Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência. Cumpre decidir. 2.Fundamentação Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos: 1. Pelo menos, no período compreendido entre Abril do ano de 2010 e Fevereiro de 2011, o arguido A., com maior ou menor periodicidade, comprou quantidades de “canabis”, cocaína, a pessoas parcialmente não identificadas. 2. No dia 1 de Fevereiro de 2011, cerca das 20h55, o arguido foi interceptado, quando conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ---FN, pela patrulha que procedia à fiscalização de trânsito, na EN 125, rotunda do Campo de Futebol, em Lagos. 3. Naquelas circunstâncias, o arguido detinha na sua posse uma faca de ponta e mola, com 10,5cm de lâmina e 24,5cm de comprimento, e a quantia de 2,094gramas de cocaína - cloridrato, com um grau de pureza de 29,8%, divididas em três sacos de plástico, pelas quais tinha pago o valor de €160,00, no Chinicato, e que destinava à venda a terceiros que a si se dirigissem. 4. O arguido também possui a quantia monetária de €1.410,00 (mil quatrocentos e dez euros), os quais eram produto da venda e distribuição de estupefacientes. 5. Realizada busca domiciliária à habitação do arguido, sita Urbanização Cerro das Mós,...Lagos, foram encontrados: Na arrecadação, localizada na cave, dentro de um balde de banha de porco: a. 4 (quatro) placas de cannabis – resina – com as inscrições MR, com o peso líquido de 389,820gr, com um grau de 14,1% de pureza, que daria para 1100 doses; b. 34 (trinta e quatro) bolotas de cannabis – resina – com a inscrição J, com o peso líquido de 321,217gr, com um grau de 21,7% de pureza, que daria para 1395 doses; c. 3 (três) placas de cannabis – resina – com o peso líquido de 290,110gr, com um grau de 4,1% de pureza, que daria para 238 doses; Na mesma prateleira, dentro de um saco plástico: d. 2 (duas) bolotas de cannabis – resina – com o peso líquido de 18,030gr, com um grau de 24,9% de pureza, que daria para 91 doses; e. 10 (dez) placas de cannabis – resina – com o peso líquido de 971,201gr, com um grau de 13,5% de pureza, que daria para 2623 doses; f. 1 (uma) soqueira prateada; g. 1 (um) revólver, de cor preta, marca Akah, modelo Knall, calibre 7,65mm, 1 cano, liso, com comprimento de cano de 7cm, percussão central, sem funcionar. 6. O arguido destinava aquele produto à venda a terceiros mediante contrapartida económica. 7. O arguido dedicava-se à venda directa aos consumidores daquele estupefaciente, em Lagos e, nos locais de entrega, o arguido recebia o referido estupefaciente, guardava-o, preparava e cortava-o em doses parcelares com a finalidade de os vender, distribuir e de fornecer aos consumidores. 8. Apurou-se que o arguido tinha um lucro anual superior a cinco mil euros. 9. O arguido conhecia as qualidades e as características do estupefaciente que detinha, transitava, transportava e vendia. 10. A arma mencionada em 4. g. não se encontrava manifestada nem registada. 11. O arguido não é titular de qualquer licença válida para uso e porte de arma de fogo e sabia que por esta razão não podia ter em seu poder a identificada arma, cujas características não ignorava. 12. O arguido bem sabia que não podia deter a faca de ponta e mola referida em 3. e a soqueira mencionada em 4. f., cujas características não ignorava. 13. Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei. 14. O arguido é assistente operacional na Câmara Municipal de ..., auferindo seiscentos euros mensais. 15. É casado, morando com a sua esposa e uma criança menor, em casa própria, pela qual paga a quantia de trezentos euros mensais. 16. Possui como habilitações literárias o 7º Ano de Escolaridade. 17. Não tem antecedentes criminais registados. 18. Não se encontra arrependido. Considerou-se não se terem provado quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, e nomeadamente que: a. Apurou-se que o arguido tinha um lucro anual de cinco mil setecentos e setenta e quatro euros e vinte e três cêntimos. A motivação da decisão de facto foi explicada da seguinte forma: A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma, partindo das regras da experiência, assim como da prova escrita e oral que foi produzida, aferindo-se quanto a esta o conhecimento de causa e isenção dos depoimentos prestados, conforme se passa a explicitar. In concretu. Esteou a afirmação da ocorrência histórica do núcleo factual primário vertido na acusação, o teor das declarações prestadas pelo arguido, que assumiu a posse do produto estupefaciente, dinheiro e armas encontradas quer consigo, quer na arrecadação de sua casa – sendo certo que os autos de apreensão de fls. 12 e 59 a 67, evidenciam e documentam tal circunstância, menção igualmente feita pela testemunha J, certificando os exames periciais as características das substâncias e armas apreendidas e comprovando, a informação da PSP de fls. 385, a ausência de licença de uso e porte de arma. Conjugando tais declarações, com os demais elementos constantes dos autos e as regras da experiência, logrou o Tribunal fixar que o arguido destinava o produto estupefaciente à venda a terceiros mediante contrapartida económica, que o guardava, preparava e cortava em doses parcelares com a finalidade de o vender, distribuir e fornecer a consumidores, que a quantia de mil, quatrocentos e dez euros eram produto da venda e distribuição de estupefaciente e que obtinha lucro anual superior a cinco mil euros. Isto, não obstante o arguido se haver empenhado em se demarcar do acto da venda e acentuar a colaboração que prestou às autoridades, visando inculcar a ideia da pouca dimensão ou gravidade do seu tráfico. Façamos o excurso pelas suas declarações. Primeiramente, declara que se limitou a guardar o produto estupefaciente encontrado na sua arrecadação, pelo período de quinze dias, que era para entregar a uma pessoa, unicamente. Avançando no seu depoimento, esclareceu que o estupefaciente que tinha consigo lhe foi entregue à consignação por um tal de Abdul, pessoa que conheceu no Verão de 2010 e se destinava a vender. Mais à frente, afiança nunca haver vendido nada. Explicou que devia a quantia de dois mil euros ao Abdul, não tendo dinheiro para lhe dar, motivo pelo qual o mesmo o “obrigou” a vender para ele. Explicitou fazer caça submarina, ganhando muito dinheiro, pescando lagostas e havendo semanas em que auferia, por tal actividade, a quantia de oitocentos euros. Ora, sob a capa de uma mudança de atitude e colaboração para com a descoberta da verdade, escamoteando a envergadura da sua actividade, certo é que muito silenciou, minimizou e, não convenceu… Desde logo, a sujeição à ameaça de Abdul, que conheceu no Verão de 2010 e a quem devia dois mil euros. Se com a caça submarina auferia oitocentos euros por semana, tendo um saldo bancário médio superior a dez mil euros – vd. extracto bancário de fls. 234 a 242 – não se descortina como logrou Abdul exercer sobre o arguido um ascendente tão forte nem, tão pouco, como acaba o mesmo a dever “2.180+4 bolotas” – vd. fls. 16. Se não vendia e apenas armazenava, é inusitado haver registado que Dário pagou só metade em 31.12.2010, referindo-se a placas e brancas – vd. fls. 14 – e que levou uma placa, uma bolota e treze brancas – vd. fls. 17 – que Silvino deu mil e quatrocentos e do “total das 220” deve dois mil seiscentos e cinquenta – vd. fls. 18 – que Jorge deva “10x50+2bolotas” e de Agosto de 2009 a Janeiro de 2010 haja entregue mil quatrocentos e cinquenta euros – vd. fls. 77. Tal como é inusitada a circunstância de ter indicações de como chegar a Marrocos – vd. fls. 74 e 75 – tendo os contactos de “Joel Marroquino” e o modo de contactar com o mesmo “de Portugal” e “de Marrocos” – vd. fls. 76. Do mesmo modo é desproporcionada e, em tal medida, reveladora, a quantidade global de produto estupefaciente apreendida ao arguido, ascendendo a um quilo, novecentas e noventa gramas, com um potencial combinado de doses na ordem das cinco mil, quatrocentas e cinquenta e sete, acondicionada ou em placa ou em bolota, sendo certo que o mesmo detinha igualmente um frasco com amónia e dez comprimidos de cafeína [comummente utilizado como produto de corte] – vd. auto de apreensão de fls. 59 a 61 e exames periciais de fls. 265 e 266. O mesmo vai, no que atém com as mensagens por si recebidas e enviadas – vd. Apenso I – em que é recorrente a menção a navalheiras – sendo certo que o arguido pescava lagostas – e encontros, de entre outros locais, no Aldi – onde, segundo declarou, se encontrava com Abdul. Também, a circunstância de a análise do extracto bancário do arguido – constante de fls. 233 a 242 – documentar um saldo inicial de cinco mil oitocentos e quarenta e nove euros e oitenta e nove cêntimos, reportado a 14 de Abril de 2010 e um saldo final, em 14 de Abril de 2011, de catorze mil trezentos e nove euros e oitenta e seis cêntimos, sendo certo que o país se encontra em crise e recessão – não tendo a testemunha JC deixado de verbalizar haver apurado discrepância entre os rendimentos do agregado familiar do arguido, as suas despesas e o saldo global da conta bancária deste. Por fim, o facto de se fazer acompanhar de uma faca que reputa usar na caça submarina – minimizando também a posse das demais armas que lhe foram apreendidas – acabando a mesma por conter resíduos de canabis e não sal – cfr. exame pericial de fls. 431. Como será bom de ver, a imagem global extraída pelo Tribunal ampara a conclusão de que, não apenas o arguido se dedicava à venda de estupefaciente, como o fazia com grande envergadura, indo para lá do mero tráfico de rua e encontrando-se já num patamar de venda e distribuição elevado, guardava, preparava e cortava em doses parcelares, com a finalidade de os vender distribuir e fornecer aos consumidores. Do mesmo modo, que a quantia monetária que lhe foi apreendida era produto da venda e distribuição de estupefacientes e que tal actividade lhe proporcionava lucro anual superior a cinco mil euros – basta ver o registo de valores inscritos nos papéis apreendidos ao arguido. A presunção judicial é um modo válido de apreciação da matéria de facto e assente na afirmação de um facto desconhecido, com base num outro que se apurou e o suporta, por racional, lógica e fundadamente explicável. Julga-se oportuno e quanto a tanto, transcrever o teor do aresto prolatado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 11.05.2005 e relatado pelo Juiz Desembargador Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt, local onde se escreve que, “em matéria de julgamento da prova a nossa lei consagrou o princípio da livre apreciação, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – artigo 127º, do Código de Processo Penal (- Na expressão regras da experiência incluem-se, obviamente, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, as quais se devem basear na correcção de raciocínio, bem como as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado – F. Gomez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 112.) ”. “Por outro lado”, continua, “atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso (- O facto delituoso, atenta a sua censurabilidade e punibilidade, por via de regra, quando materialmente possível, é perpetrado de forma oculta.), vem-se entendendo que a apelidada prova artificial ou por concurso de circunstâncias – prova indiciária ou indirecta – é absolutamente indispensável em matéria criminal (- Cf. Mittermaier, “Tratado de la prueba en material criminal”, Imprenta de la Revista de Legislación, 3ª edição, 352.) (- Segundo a sentença do Supremo Tribunal espanhol de 6 de Junho de 2001, referenciada por Francisco Pastor Alcoy, Prueba de Indícios, Credibilidad del Acusado y Presunción de Inocência (2003), criar-se-iam amplos espaços de impunidade se a prova indiciária não tivesse a virtualidade de ilidir o princípio da presunção de inocência.)”. Conclui-se que, “por isso, na ausência de prova directa, todos reconhecem a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (- Cf. as decisões do Tribunal Constitucional espanhol de 17 de Dezembro de 1985 e de 2 de Julho de 1990, proferidas nos processos n.ºs 175/85 e 124/90, bem como o acórdão desta Relação de 9 de Fevereiro de 2000, publicado na CJ, XXV, I, 51.)”. Somando os elementos a que se fez alusão, conjugando-os entre si e com as regras da experiência e o que usa ser a habitualidade das coisas, conduz-nos tal percurso lógico à conclusão que acima se mencionou que, como tal, se firmou. Por conta dos elementos volitivos não deixou o Tribunal de os fixar com arrimo nas condutas logradas demonstrar, que não deixam de constituir a exteriorização da determinação do arguido, ou a afirmação – ainda que intuída, fundadamente – das intenções ou estados anímicos do arguido, à luz daquilo que é a normalidade das coisas e da lógica – sendo certo que o mesmo demonstrou saber proibida e punível a sua conduta. Fixaram-se as condições pessoais e económicas do arguido, tendo em atenção as declarações prestadas pelo mesmo, que as mencionou de modo coerente e, em tal medida, credível. Para demonstração da ausência de antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos. Extraiu o Tribunal a ausência de arrependimento do arguido atento o modo como enjeitou e minimizou as suas responsabilidades e todo o percurso e afirmações de tal tese servientes. V e O, nenhum conhecimento revelaram dos factos, apenas afiançando que o arguido é um bom amigo. No que tange aos factos não provados, genericamente dir-se-á que a prova produzida se afigurou insuficiente em ordem à sua afirmação. Com especial acuidade, o valor concreto de lucro auferido pelo arguido, uma vez que os elementos constantes dos autos não permitem a sua quantificação ao rigor do cêntimo, nem sendo o mesmo passível de fixar por qualquer outro elemento. 3. O Direito O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2]. No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes: - erro de julgamento quanto aos pontos 8. e 18 dos factos provados e não inclusão da colaboração para a descoberta da verdade nos mesmos; - qualificação jurídica dos factos; - medida das penas; - suspensão da execução da pena. 3.1. O recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, defendendo que o ponto 18. foi incorrectamente julgado na medida em que durante as suas declarações confessou livremente os factos, assumiu a responsabilidade pelos actos cometidos sem qualquer reserva e demonstrou arrependimento pela prática dos mesmos; que devia de ter sido considerado como provado que, após ter sido interceptado pelas autoridades policiais, colaborou e prestou informações durante a fase de inquérito tendo em vista a descoberta da verdade, como resulta das suas declarações e do depoimento prestado pela testemunha J; que também o ponto 8. dos factos provados foi incorrectamente julgado na medida em que não só não consta dos autos qualquer elemento de prova que permita concluir que teve um lucro anual proveniente do tráfico superior a 5.000€ para além da opinião subjectiva da testemunha JC como logrou demonstrar através de documentos cuja junção requereu que auferia mais do que o ordenado de 600€ mensais. Aponta, assim, como violados, o princípio da livre apreciação da prova e o disposto no art. 355º nº 1 do C.P.P. Aceitando como minimamente cumpridos, com o complemento que se retira da motivação do recurso, os ónus de especificação exigidos pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., e tendo presente que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[3] e que a decisão da matéria de facto só pode ser alterada nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância ( ou seja, quando a “impõem”, e já não quando apenas a “permitem” ) -, analisemos as objecções apresentadas pelo recorrente à forma como foi decidida a matéria de facto. Com respeito ao arrependimento, o tribunal recorrido considerou como provado que o recorrente não se encontra arrependido, explicitando na motivação da decisão de facto que assim concluiu “atento o modo como enjeitou e minimizou as suas responsabilidades e todo o percurso e afirmações de tal tese servientes.” É inegável que a existência de arrependimento é uma questão de facto relevante porque, a verificar-se, constitui circunstância atenuante a ponderar mormente na determinação da medida da pena, enquanto atitude posterior à prática do facto e indicador de menor probabilidade de reiteração criminosa no futuro. No entanto, a simples admissão dos factos, quando ocorra, não implica necessariamente a existência de arrependimento, que nalguns casos não passa de mera estratégia de defesa. O arrependimento, para pesar em favor do arguido, não se demonstra em regra através de meras palavras de contrição, mas sim de actos que evidenciem que interiorizou o desvalor da sua conduta, lamenta tê-la praticado, pretende atenuar na medida do possível as suas consequências nefastas e está resolvido a não tornar a delinquir. “À confissão, mesmo se completa, não se segue necessariamente o arrependimento que vai mais além, o arrependimento pode inexistir ainda quando se confesse de pleno os factos cometidos. Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir. Revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se, pelo que as exigências de prevenção, na determinação da medida judicial da pena, são de diminuta relevância.”[4] “A declaração de arrependimento não se confunde com o verdadeiro arrependimento, que é a constatação pelo tribunal de que o arguido interiorizou os maus efeitos do crime, que se inadequa à sua personalidade, convencendo da acidentalidade do acto.”[5] “A simples declaração proferida em audiência pelo arguido de que está arrependido não tem qualquer valor. O que tem valor, como circunstância atenuante da responsabilidade criminal do arguido é que o mesmo demonstrou estar arrependido; O arrependimento é um ato interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir”[6] No caso, o que se verifica é que o recorrente, sempre por entre muitos lamentos, lá foi admitindo o que não podia negar face à evidência fornecida por outros meios de prova, mas quanto ao mais ou nada adiantou ou procurou minimizar a envergadura da sua actividade, fornecendo explicações incongruentes ou inverosímeis, não logrando convencer o tribunal pelas razões, lógicas e perfeitamente perceptíveis, que vêm abundantemente indicadas na motivação da matéria de facto. Na verdade, não vislumbramos com base em que concretos elementos o tribunal recorrido poderia ter concluído que o recorrente se encontra arrependido, por muitos que tivessem sido os seus protestos meramente verbais nesse sentido. No entanto, relevante é apurar, pela positiva, se houve arrependimento, do que no caso claramente não foi feita prova cabal, e não que o não houve, já que a inexistência de arrependimento é um facto inócuo, que não pode ser valorado em desfavor do arguido, pois o direito penal não tem como objectivo a correcção das meras atitudes internas. Daí que à questão da existência do arrependimento a resposta negativa deva pura e simplesmente determinar que o correspondente facto seja levado ao rol dos não provados. Decorrentemente, a alteração a introduzir na decisão da matéria de factos circunscreve-se à eliminação do ponto 18. dos factos provados e à inclusão nos não provados de uma alínea onde se dê como tal que o arguido se encontra arrependido. Deixamos para o fim a objecção acima enunciada em segundo lugar, avançando com a relativa à matéria do ponto 8. dos factos provados. Foi dado como assente que o arguido tinha um lucro anual superior a cinco mil euros, resultando da motivação da decisão de facto que a convicção que o tribunal formou a esse respeito resultou da conjugação do que retirou de vários elementos de prova, nomeadamente o extracto bancário junto aos autos, a discrepância entre os rendimentos e despesas do agregado familiar do recorrente e o saldo da sua conta bancária, a inverosimilhança das explicações que forneceu para a obtenção de rendimentos alternativos à actividade profissional que exercia, a própria expressão das transacções relativas a estupefacientes que se retira das anotações juntas aos autos, a quantidade de estupefaciente que lhe foi apreendida, a quantia monetária que tinha em seu poder. Sendo certo que, como bem foi considerado na motivação da decisão de facto, os elementos constantes dos autos não permitem a quantificação do valor concreto do lucro auferido pelo arguido ao rigor do cêntimo, a conjugação de todos aqueles que deles constam permite concluir, sem que o recorrente tenha logrado demonstrar o contrário, que o lucro anual que ele retirava do tráfico de estupefacientes se situava acima dos 5.000 €. Vejam-se as fotografias do interior da casa do recorrente, que evidenciam um nível de vida que os rendimentos provenientes de actividades lícitas dos elementos do agregado familiar não explicam, veja-se o teor das mensagens constantes do apenso, vejam-se as anotações em que vêm mencionados valores monetários da ordem das centenas e milhares de euros, as indicações de direcções para viagens a Marrocos e Espanha e contactos telefónicos nesses países que, sem outra explicação minimamente plausível, são indicadores de que o recorrente se deslocava para fora de Portugal para concretizar transacções de estupefacientes, vejam-se as quantidades de cocaína e canabis e também de dinheiro que detinha… Não é, pois, apenas, como conveniente e redutoramente quis fazer crer o recorrente, a opinião subjectiva da testemunha JC que, aliás, nem é tão subjectiva como isso pois se baseou, além do mais, na análise do extracto da conta bancária do recorrente. Enfim, a conjugação de todo o acervo probatório, todo ele junto aos autos - examinado ou passível de ser examinado na audiência, portanto valorável sem qualquer violação do disposto no art. 355º do C.P.P. - e composto por meios de prova ( directa e directa ) legalmente permitida aponta claramente no sentido de que o tráfico a que se dedicava lhe rendia bem mais do que o valor mínimo que foi considerado como provado. E não são os 4 recibos de vencimento, ostentando rendimentos líquidos variáveis entre 1.143 e 1.617 €, com horas extraordinárias e diversos subsídios, que põem em causa o que dos demais meios de prova se retira de molde a impor decisão diversa. Inexiste, pois, fundamento para alterar o ponto de facto em análise. Finalmente, no que toca à questão da colaboração que o recorrente afirma ter prestado com vista à descoberta da verdade. É inegável que se trata de questão de facto relevante, em particular porque o DL nº 15/93 de 22/1 prevê, no seu art. 31º, a possibilidade de atenuação especial e até de dispensa da pena nomeadamente quanto a comportamento especialmente valiosos de colaboração com as autoridades na captura de outros traficantes ou de redes de traficantes. Este preceito apenas se aplica, no entanto, se se mantiver a subsunção da conduta ao crime de tráfico pelo qual foi condenado, não estando prevista a sua aplicação ao crime de tráfico de menor gravidade. Por isso, é mister que, antes de prosseguirmos com a dilucidação desta questão, procedamos à verificação da correcção do enquadramento jurídico dos factos tal como foi feito na decisão recorrida, e em relação ao qual o recorrente também manifestou discordância. 3.2. O recorrente questiona, ainda, a subsunção jurídica dos factos ao crime de tráfico pelo qual foi condenado, sustentando que não repugnaria a convolação da sua conduta para o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º al. a) do DL nº 15/93 de 22/1 porque entende não se terem provado elementos concretos sobre o tempo da prática dos factos nem sobre a sua exacta extensão, tudo apontando no sentido de se estar perante um mero “vendedor de rua”, sem qualquer ligação ou conexão com actividades de tráfico organizado. Vejamos, em primeiro lugar, o âmbito de aplicação das duas normas incriminadoras do tráfico de estupefacientes em equação. O nº 1 do referido art. 21º contém a descrição fundamental relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, enumerando a respectiva factualidade típica de forma muito ampla e abrangente de modo a abarcar as mais diversas modalidades de acção. Reconhecendo, porém, na realidade subjacente à previsão legal, diferentes padrões de ilicitude em que se manifesta a maior ou menor intensidade do perigo para os bens jurídicos protegidos, e tendo em vista manter a relação de proporcionalidade que deve existir entre as condutas ilícitas e as correspondentes penas, o legislador criou, a partir do tipo fundamental, uma escala fragmentada de crimes que também se reconduzem ao tráfico, mas que mais proximamente se moldam àqueles diferentes padrões. A diversificação dos tipos permite, assim, na adequada prossecução dos fins de prevenção geral e especial, uma também adequada diferenciação no tratamento penal reservado aos traficantes, consoante a dimensão da sua actividade delituosa e a finalidade que lhe preside, que encontra concretização na previsão legal dos arts. 21º, 22º, 25º e 26º do DL nº 15/93 de 22/1 e se reflecte de forma expressiva nos limites das respectivas molduras penais. O art. 25º, no qual se acolheu a figura do tráfico de menor gravidade, é considerado como a válvula de segurança do sistema. A pedra de toque da distinção entre este tipo privilegiado e o tipo fundamental situa-se em exclusivo no plano da ilicitude do facto, inferida de um conjunto de circunstâncias objectivas que se verifiquem no caso concreto submetido a julgamento. Tais circunstâncias, de que a lei fornece uma enumeração exemplificativa, hão-de ser valoradas em conjunto e confrontadas com a matriz subjacente à previsão normativa, integrando-a sempre que permitirem afirmar uma considerável diminuição da ilicitude[7]. O campo alargado de indeterminação que este conceito de considerável diminuição da ilicitude comporta terá, pois, de ser preenchido cumulativamente com aquelas circunstâncias que, na valorização global da complexidade específica do caso concreto[8], apontem para uma negação dos valores jurídico-criminais de relevo consideravelmente menor que a tipificada para os arts. 21º e 22º e que a conduta do agente prima facie integra. Essa valorização tem necessariamente de levar em linha de consideração todas as circunstâncias apuradas que interessem àquele elemento do tipo, e não apenas alguma ou algumas delas, individualmente destacadas das demais e eventualmente de sentido contrário. Entre elas contam-se não só as indicadas na lei, como sejam os meios utilizados – as características de organização e logística -, a modalidade ou as circunstâncias da acção – tráfico ocasional ou habitual e/ou frequente, por iniciativa própria ou por conta de outrem -, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações – o grau de pureza do estupefaciente, as quantidades transaccionadas de cada vez e a quantidade total adquirida, detida ou cedida, mas também outras não expressamente previstas que possam ter relevo para o efeito, tais como o papel que o agente desempenha na disseminação dos estupefacientes, o seu grau de profissionalismo, o período de tempo durante o qual desenvolveu a actividade, o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição das aquisições, vendas ou cedências, as quantias e valores envolvidos no negócio, a própria personalidade do arguido e as motivações que o levaram a exercer o tráfico – se é ou não toxicodependente e se o move a mera intenção lucrativa ou a necessidade de angariar meios que lhe permitam sustentar o seu próprio consumo. Como resulta evidente, não é através da circunstância em si, mas sim do concreto conteúdo que cada caso lhe conferir como atenuante ou agravante, que se vai aferir da verificação – ou não – da considerável diminuição da ilicitude e consequente preterição – ou não – do tipo simples pelo tipo privilegiado. Conferido, de seguida, o segmento da fundamentação jurídica da sentença recorrida relativo ao enquadramento jurídico dos factos, verificamos que, para além de citações legais e jurisprudenciais, são muito escassas as considerações a respeito dos contornos do caso concreto que antecedem a conclusão alcançada, mencionando-se apenas as substâncias estupefacientes que o recorrente detinha e os factos integradores do dolo. Pese embora as quase nulas justificações oferecidas para considerar a factualidade apurada integrada no ilícito criminal cuja prática ao recorrente vinha imputada, consideramos acertada a integração dos factos na previsão legal do art. 21º. Com efeito, a valoração global da factualidade apurada não permite vislumbrar sequer uma considerável diminuição da ilicitude do facto que o tipo privilegiado exige. O período de tempo durante o qual o recorrente se dedicou ao tráfico, a quantidade e qualidade dos estupefacientes envolvidos, os indicadores de transacções processadas numa área geográfica que ultrapassa os limites geográficos do país, o inerente perigo de disseminação, os lucros obtidos, a detenção de substâncias habitualmente utilizadas no corte, tudo aponta para uma imagem global do facto que transcende a de um mero vendedor de rua, não podendo a actividade desenvolvida pelo recorrente ser classificada de pequena escala. Daí que nenhuma censura mereça a sentença recorrida quanto a este particular, não assistindo razão ao recorrente nas críticas que, aliás timidamente, lhe dirige. 3.3. Podemos agora retomar a questão que acima deixámos em aberto. Conferido o texto da decisão recorrida, verificamos que apenas na motivação da decisão de facto se alude à colaboração que o recorrente terá dado para a descoberta da verdade, desvalorizando-a por se considerar que não passou de uma simples “capa”, que não conduziu a resultados concretos porque o recorrente “muito silenciou, minimizou e, não convenceu”. Os elementos constantes dos autos parecem suportar esta conclusão: inicialmente, o recorrente não autorizou a busca à sua residência (fls. 5) e, apesar de ter posteriormente manifestado o propósito de colaborar com as autoridades, certo é que à P.J. não forneceu elementos suficientes e credíveis que levassem à identificação de outras pessoas envolvidas no tráfico (como vem mencionado na informação a fls. 392-396). No entanto, a testemunha J, militar da GNR que interveio na fase inicial da investigação, afirmou durante o julgamento que ainda teve contacto com o recorrente posteriormente porque ele se prestou a colaborar no âmbito de outras investigações, tendo prestado informações sobre diversas situações, algumas que não se conseguiram confirmar, mas que, num caso concreto, permitiu a detenção, em finais de Novembro de 2011, de um indivíduo que veio a ser condenado a 9 anos de prisão por tráfico de cocaína e que nesse caso ele “foi muito útil”. Da motivação da decisão de facto não resulta que este depoimento tenha merecido qualquer reserva, mas o certo é que também não é feita qualquer apreciação a respeito do que a testemunha referiu quanto à colaboração que o recorrente terá prestado às autoridades, sendo que a decisão da matéria de facto é totalmente omissa quanto a tal facto, relevante, como já acima se viu, para a questão da pena. Tratando-se de facto que resultou da discussão da causa, mas que não consta do elenco daqueles que foram considerados como provados ou não provados, a reacção do recorrente contra tal omissão não se pode fazer através da impugnação da decisão da matéria de facto - nem mesmo ser oficiosamente conferida através do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão em virtude de o mesmo não ser evidente no texto da decisão recorrida já que o que neste se menciona e aprecia quanto à questão da colaboração do recorrente se reporta unicamente à sua (ausência de) colaboração na investigação levada a cabo no âmbito destes autos, inexistindo qualquer referência àquela que noutros terá prestado - mas sim através da arguição de nulidade, mecanismo “que confere ao arguido uma plena exequibilidade do seu direito de defesa perante omissões no elenco dos factos provados e não provados”.[9] “(…) o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso considerar provados determinados factos que, no entendimento do recorrente, hajam resultado da discussão da causa, mas que não constam da lista de factos provados e não provados da sentença recorrida. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correção do julgamento da instância inferior que não incluiu tais factos, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso da prova produzida na primeira instância. Isto não quer dizer que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não fazendo recair sobre eles um juízo de prova, não deva ser passível de reação pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa (vide sobre a importância do tribunal incluir na lista dos factos provados e não provados os factos relevantes para a decisão da causa, mesmo que apenas tenham sido referidos em julgamento, SÉRGIO POÇAS, em “Da Sentença Penal – fundamentação de facto”, na Revista Julgar, Setembro-Dezembro 2007, págs. 24-25). Mas o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento pelo tribunal de 1.ª instância. Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º). Ora, o critério sindicado se não admite que possa ser fundamento do recurso da decisão sobre a matéria de facto a pretensão do Recorrente de que sejam considerados provados factos que na sua opinião resultaram da discussão da causa, mas que não foram contemplados na lista dos factos provados e não provados constantes do Acórdão proferido na 1.ª instância, não impede que essa omissão seja qualificada como uma nulidade invocável pelo arguido perante o tribunal superior. Ora, em situações como a dos autos, revela-se suficiente um regime de nulidade que sancione a eventual ocorrência de um vício de omissão de pronúncia sobre determinados factos que o recorrente entenda como relevantes para a decisão da causa, não sendo necessário, por essa razão, conferir a possibilidade de direta impugnação da matéria de facto. A proteção dos direitos de defesa do arguido nesta situação não exige um alargamento da possibilidade de recurso em matéria de facto que permita que o mesmo se estenda a factos sobre os quais a primeira instância não se pronunciou.” Sendo irrelevante o nomen juris que o recorrente deu ao meio de reacção contra a omissão de pronúncia a respeito de um facto relevante para a decisão da causa, devendo o mesmo ser qualificado como arguição de nulidade, é inequívoco que a mesma se verifica. A sentença recorrida padece da nulidade prevenida na al. a) do nº 1 do art. 379º do C.P.P. ao não ter valorado, considerando-o como provado ou não provado – manifestamente também por não ter sido feita a averiguação oficiosa que se impunha em ordem a determinar a exacta medida da colaboração que o recorrente terá prestado e todas as circunstâncias relevantes em que o fez – o facto em questão, incumprindo de forma integral o disposto no nº 2 do art. 374º do C.P.P. Assim sendo, e porque não dispõe esta Relação de elementos que permitam suprir a nulidade, deverá a sentença recorrida ser reformulada, se necessário, como pensamos não poder deixar de ser, após a reabertura da audiência e realização das diligências que se apresentarem como pertinentes em ordem a esclarecer integralmente os pontos acima aludidos, suprindo-se o vício detectado e retirando-se do respectivo suprimento as consequências que dele possam resultar para a decisão. Decorrentemente, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas pelo recorrente. 4. Decisão Por todo o exposto e embora com fundamentos distintos dos invocados, julgam o recurso parcialmente procedente na parte em que dele conhecem e declaram nula a sentença recorrida, determinando que seja proferida nova sentença na qual, para além da alteração da decisão da matéria de facto relativa ao ponto 18. dos factos provados, se proceda ao suprimento do vício de acordo com o que acima se deixou consignado. Em tudo o mais, mantém-se o decidido, nomeadamente no que concerne à qualificação jurídica da factualidade que se deve considerar como definitivamente assente, e com a qual o vício declarado e o respectivo suprimento não contendem. Sem tributação. Évora, 14 de Janeiro de 2014 MARIA LEONOR ESTEVES ANTÓNIO JOÃO LATAS [1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28 [4] cfr. Ac. STJ 21/6/07, proc. n.º 2042/07-5. [5] cfr. STJ 6/12/2003, proc. nº 181/12.0JELSB.L1.S1. [6] cfr. Ac. RC 30/5/12, proc. nº 192/11.3TACBR.C1. [7] Nas palavras do Ac. STJ 15/3/12, proc. nº 15/10.0PECTB.S1: “II - O legislador consagra, aí, a técnica dos exemplos padrão, uma vez que nesse tipo aberto, só exemplificativamente, se indicam os pressupostos legais do tipo, impondo uma valoração de todos eles ou ainda mesmo de outros, por forma a que a imagem global do facto repercuta a sua verdadeira ilicitude, que tem de ascender à categoria de consideravelmente diminuída, próxima da que comporta um acto axiologicamente quase neutro, só assim se logrando obter um tratamento justo, equitativo e proporcionado. III - A ilicitude é um juízo formulado pela ordem jurídica, um juízo de desvalor generalizado que incide sobre o facto; a ordem jurídica formula um juízo negativo sobre quem adopta um certo comportamento que diverge do juízo de culpa que, ao invés, se apresenta personalizado, recaindo sobre o agente por ter agido como agiu no caso concreto. O juízo de i1icitude tem de ser anterior; tem de ser afirmado anteriormente que o facto é ilícito no tipo legal, que transporta ou verte o facto ilícito, enquanto algo que contraria a ordem jurídica na sua globalidade.” [8] Como vem salientado no Ac. STJ 7/12/11, proc. nº 111/10.4PESTB.E1.S1, “Essa apreciação tem de ter em vista uma ponderação global das circunstâncias que relevem do ponto de vista da ilicitude e que tornem desproporcionada a punição do agente, naquele caso concreto, pelo art. 21.º. É necessário analisar a conduta globalmente na interligação das várias circunstâncias relevantes e no seu significado unitário em termos de ilicitude.” [9] cfr. Ac. TC nº 312/2012, ao qual também pertence a transcrição que a seguir se fez. |