Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
793/08.7TBVRS.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A chamada «servidão de vistas» não é um direito à vista sobre o prédio vizinho; é o direito (que se consolidou por inércia do vizinho) de manter aberta a janela.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 793/08.7TBVRS.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “(…), Lda.”, pedindo que se declarasse a constituição de uma servidão de arejamento, de iluminação, de eliminação do excesso de cheiros e de fumo e de vistas, através da janela identificada nos artigos 7º a 13º da p.i.; assim como a declarar que esta servidão foi adquirida pela Autora (por si e pela sua legitima antecessora) por usucapião ou por destinação do “pater familiae”; e a condenar-se a Ré a reconhecer a constituição de tal servidão, bem como a demolir a parede nascente que ergueu no seu prédio, por forma a permitir o pleno uso e funções da janela do prédio da Autora que foi totalmente obstruído e por ultimo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados com o encerramento da referida janela e a liquidar em execução de sentença.
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A R. contestou a acção invocando a sua ilegitimidade e impugnando o demais.
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No despacho saneador pronunciou-se sobre a excepção de ilegitimidade passiva, julgando-a improcedente e substituindo a sociedade Ré pelos seus sócios liquidatários (…) e (…).
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Em face da morte da Ré (…), foram (…), (…) e (…) habilitados na posição da falecida Ré.
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O processo seguiu os seus termos e, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu o seguinte:
a) Declarar constituída a servidão de vistas do prédio da Autora (…) inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º …/961126 sobre o prédio dos Réus (…), (…) e (…) inscrito na matriz sob o art. (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial desta cidade sob o n.º …/940927, nos termos do art.º 1549º e do art.º 1362º, n.º 1, do Código Civil, e admitir o exercício da servidão de vistas da janela existente no primeiro andar do prédio da Autora sobre o terraço/telhado do prédio dos Réus adequado às funções inerentes a uma janela com as características da analisada nos autos, em conformidade com o art. 1565º, n.º 2, do Código Civil;
b) Condenar os Réus (…), (…) e (…) a demolir a parede Nascente que ergueu no seu prédio, por forma a permitir o pleno uso e funções da janela do prédio da Autora que foi totalmente obstruído;
c) Absolver os Réus do demais peticionado.
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Desta sentença recorre o sucessor habilitado (…): invoca uma nulidade processual (os habilitados não foram notificados para constituírem advogado), defende que devem ser aditados factos e que não existe servidão.
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A A. contra-alegou dizendo que, quanto à primeira questão, existe caso julgado; quanto à segunda, alega que o recorrente não cumpriu o disposto nos art.ºs 640.º e 639.º, Cód. Proc. Civil e, quanto à terceira, defende que existe servidão.
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Por despacho de 25 de Outubro de 2016, foi indeferido o requerimento do recorrente em que pedia que fosse dada sem efeito a data designada para julgamento, bem como que se considerasse relevada a falta do seu mandatário em julgamento, alegando para tanto duas ordens de razões:
1º - Que os habilitados não foram notificados para, em prazo, constituírem advogado, quererem contestar a acção, nem se encontram notificados da data e hora da audiência de julgamento;
2º - Que a ré sociedade (…), Lda., foi dissolvida há muito mais de 1 ano.
Entendeu-se que não havia qualquer nulidade em relação à notificação dos habilitados pois que estes não tinham de ser notificados para constituírem mandatário.
Deste despacho não foi agora interposto recurso (nos termos do art.º 644.º, n.º 3, Cód. Proc. Civil); com efeito, o que o recorrente faz é repetir a questão em si e não pôr em crise o decidido.
Assim, aquele despacho transitou em julgado e as questões nele decididas não podem ser reapreciadas.
Assim, improcede esta parte das alegações.
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Em relação à matéria de facto, o recorrente defende que alguns devem ser aditados, indicado quais são eles e quais os depoimentos que, a seu ver justificam a adição. Assim, está cumprido o ónus do art.º 640.º, Cód. Proc. Civil.
Mas tais factos são puramente instrumentais.
Na verdade, o recorrente tira trechos de alguns depoimentos que foram usados para fundamentar a decisão da matéria de facto que incide sobre os que foram articulados. Tais depoimentos servem como base para aquilo que o deu tribunal deu por provado mas não são factos que aqui estivessem em discussão.
Por outro lado, eles nenhum efeito para o objecto da lide. Veja-se, por exemplo, o que o recorrente alega sobre o mau uso da janela; em nada contende com o facto de ela estar aberta, sendo certo que o art.º 1360.º, Cód. Civil, apenas exige a abertura de janelas, sem ter em consideração o uso que se lhe dá.
Assim, nada se altera.
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Defende, como se disse, a recorrida que o recurso não deve ser procedente por não indicar o sentido em que as normas aplicadas devem ser interpretadas.
Mas é isso mesmo que o recorrente faz quando alega que não há servidão, ou seja, que não se verificam os respectivos pressupostos.
Assim, o recurso foi admitido, e bem, e nada impede o conhecimento do seu mérito.
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Na exposição que se segue, cremos que existe um lapso na medida que é utilizada para dizer as dimensões da janela; utiliza-se o centímetro quendo o que se quer dizer é o metro (os valores são iguais aos que constam do auto de inspecção).
O que vai rectificado no n.º 11.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. Pela Ap. …/961126, foi registada a aquisição, por legado testamentário, a favor da Autora (…), o prédio urbano, sito na Rua (…), n.º 161, edifício de rés-do-chão e primeiro andar, com quintal, com uma área coberta de 51 m2 e área descoberta de 23 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º …/961126.
2. A Autora adquiriu este prédio em solteira e por morte de sua tia (…), que faleceu em 25.12.1993.
3. (…) outorgou testamento em 05.02.1990, no Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, de fls. 88 a 89 do Livro …-B, no qual legou à Autora a nua propriedade do rés-do-chão e a propriedade plena do 1º andar do prédio supra identificado.
4. Por escritura de compra e venda outorgada em 08.01.1997, no Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, de fls. 65 verso a 66 verso do Livro n.º …-B, a Autora comprou o direito ao usufruto vitalício do rés-do-chão do referido prédio ao seu irmão (…).
5. Em escritura pública de doação com reserva de usufruto, constante de fls. 36 e 37, outorgada em 9 de Fevereiro de 1988, em que foi primeira outorgante (…) e segunda outorgante (…), disseram os outorgantes o seguinte, além do mais que aqui se dá por reproduzido: «(…) E pela primeira outorgante foi dito: Que, com reserva de usufruto para si, doa à segunda outorgante um prédio urbano que consta de um armazém, que serve de arrecadação com um só compartimento sito na Rua Dr. (…), nesta vila, freguesia e concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial desta vila sob o número (…) e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…). Pela segunda outorgante foi dito que aceita a presente doação nos termos exarados. Assim o outorgaram (…)».
6. À data da propositura da acção, a Ré era dona e possuidora de um armazém sito na Rua Dr. (…), n.º 50, R/C, em Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o art.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial desta cidade sob o n.º …/940927.
7. O prédio da Autora confronta do lado Poente com o prédio da Ré (constando na descrição registral deste prédio como confrontação do nascente “Herdeiros de …” – pai da dita …).
8. E na parede exterior poente do prédio da Autora, ao nível do primeiro andar, existe uma janela que deita directamente sobre o prédio da Ré.
9. A janela referida em 8) é a única existente na cozinha do primeiro andar do prédio da Autora e permite a entrada do ar e da luz, bem como a saída de excesso de fumos e de cheiros. 10. A janela referida em 8) permite às pessoas projectarem a parte superior do corpo e apoiarem-se no respectivo parapeito para descansar, para conversar com os vizinhos e desfrutar das vistas.
11. A janela referida em 8) tem as dimensões de 1,19m de altura, 0,79m de largura e está a 0,85m do solo do primeiro andar.
12. E é constituída por um caixilho em madeira, visivelmente deteriorada, por duas portadas em madeira e de vidro e por um parapeito em madeira no lado exterior.
13. A janela referida em 8) foi mandada construir pela anterior proprietária (tia da Autora) …, no ano de 1974, sem licença camarária.
14. E jamais sofreu alterações, mantendo o mesmo formato e a disposição originais.
15. Nos finais de Julho de 2008, a Ré ergueu três paredes de tijolo e de cimento na cobertura do seu supra citado armazém, ao nível do primeiro andar do prédio da Autora.
16. A parede que a Ré ergueu a Nascente, encostada à parede exterior do primeiro andar do prédio da Autora, emparedou e tapou completamente a aludida janela existente nesse andar.
17. A Autora teve conhecimento de que as obras da Ré taparam a dita janela por intermédio da vizinha (…) que a avisou no dia 28 de Julho de 2008.
18. (…) viveu até à sua morte, em 25.12.1993, no prédio referido em 1).
19. A Autora nasceu em 20.09.1963 e viveu no prédio referido em 1) com os seus pais e com a sua tia (…), mesmo após o falecimento desta.
20. A Autora, por si e pela sua antecessora (…), utiliza o prédio e a janela referida em 8) desde 1974.
21. De forma ininterrupta.
22. Praticando no prédio descrito em 1) e na janela referida em 8) os actos de manutenção e de conservação necessários.
23. E à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
24. E na convicção de estarem a exercer um direito próprio, comportando-se como proprietárias do mencionado prédio e da respectiva janela.
25. E ainda na convicção de que estes actos não prejudicam, nem lesam direitos alheios, nomeadamente da Ré.
26. A janela referida em 8) está colocada junto à linha divisória dos prédios referidos em 1) e 6).
27. A anterior proprietária do prédio referido em 6), (…) e a sobrinha da (…), recebeu desta o referido prédio em doação já com a janela referida em 8) e nunca se opôs à existência da mesma.
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Em relação ao direito, o recorrente alega que os prédios não revelam serventia de um para o outro; na construção da arrecadação, devia ter sido tido em conta o disposto no art.º 1360.º, n.º 1, Cód. Civil, não podendo o recorrente opor-se à construção por não ser, na altura, o proprietário do prédio.
Mais alega que a recorrida deu à janela um fim diferente daquele que ela devia ter. Os art.ºs 1543.º, 1544.º e 1565.º não se aplicam ao caso.
Existe ainda abuso de direito da A..
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Salvo o devido respeito, não podemos concordar com nenhuma das alegações.
A chamada «servidão de vistas» não é um direito à vista sobre o prédio vizinho; é o direito (que se consolidou por inércia do vizinho) de manter aberta a janela. É a existência desta, com violação das condições previstas no art.º 1360.º, que constitui o objecto da servidão (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 219).
Claro que esta servidão tem na sua génese uma situação contrária à lei: a abertura é feita em contravenção ao disposto no art.º 1360.º (isto é, sem respeitar o interstício de metro e meio). Mas esta é a própria natureza desta servidão: começa por ser um acto ilegal e converte-se num facto legal, fonte de um direito: o de manter aberta a janela que não devia ter sido aberta.
É indiferente, como é próprio de qualquer direito real, que o recorrente não tenha tido possibilidade de contrariar tal abertura pois que tal atitude competiria a quem quer que fosse proprietário do prédio devassado (e que era, note-se, a sociedade de que o recorrente era sócio).
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Tal como também é indiferente que a janela esteja numa parede de uma cozinha, de uma sala, de um quarto, seja do que for. A lei não exige qualquer tipo de divisão de uma casa para que se possa falar em servidão de vistas a respeito de uma janela aberta em contravenção ao art.º 1360.º. A única coisa que a lei exige é que a janela exista.
Assim, a alegação do recorrente de que a servidão não existe por a recorrida dar à janela um uso diferente daquele que ela devia ter nenhuma relevância tem nesta matéria. Para que se fale em servidão basta só uma janela, pura e simplesmente.
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O recorrente alega também que o uso que a recorrida dá à janela, com a entrada, invasão e ocupação do terraço da R., é ilegítimo, manifestando abuso de direito (supomos que do direito à servidão).
Não concordamos.
A entrada de pessoas de prédio vizinho, sem o consentimento do respectivo dono, é um acto ilícito que, se vier a causar danos, cria uma obrigação de indemnização. Mas, por um lado, este acto ilícito não torna ilegítima a manutenção da janela; nem, por outro, o uso que se lhe dá retira a eficácia à servidão. Ela continua a existir.
Repetimos: a servidão consiste apenas em manter a janela aberta e mais nada.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 10 de Maio de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho