Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
254/20.6GTABF.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: NULIDADES DO INQUÉRITO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETÊNCIA
FALTA DE INSTRUÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Só na fase de instrução pode o juiz de instrução sindicar o inquérito com o escopo de conhecer das nulidades deste e decidir da correcção da decisão de acusação ou de arquivamento pelo Ministério Público.
Isto é, a admissão da instrução constitui pressuposto da competência do Juiz de instrução para conhecer de eventuais nulidades do inquérito.

A instrução foi requerida pelo arguido, pelo assistente e pela ofendida que, concomitantemente com o RAI, impetrou a sua constituição como assistente (sendo que só foi admitida essa constituição pela Mma. JIC aos 19/05/2023, muito depois de ter sido lavrado o despacho recorrido, cumpre se anote). Quer dizer, aparentemente, foi essa fase processual requerida por quem para tanto tem legitimidade e dentro (também com esse condicionalismo), do prazo legalmente estabelecido.

Assim, verifica-se a nulidade de falta de instrução – prevista na alínea d) do artigo 119º, do CPP -, pois, verificados que sejam esses pressupostos esta é obrigatória.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 254/20.6GTABF, do Tribunal Judicial da Comarca de . – Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, foi proferido, aos 14/03/2023, despacho que declarou nulo o despacho de acusação a fls. 255 a 260 e subsequente processado, determinando a remessa dos autos novamente para a fase de inquérito, “para os efeitos tidos por convenientes”.

2. O Ministério Público não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que se determine o prosseguimento dos autos com a abertura da instrução, ou, subsidiariamente, seja o despacho recorrido substituído por despacho de recebimento do requerimento para abertura da instrução.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. Nos presentes autos, em 5 de Junho de 2021, o Ministério Público deduziu Acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada (artigos14.º, n.º 1 e 26.º do Código Penal) e em concurso efetivo, de dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, com referência aos artigos 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, do Código da Estrada (referência n.º 120437281).

2. Inconformado com tal decisão, em 8 de Abril de 2022, o arguido AA veio requerer a abertura de Instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, requerendo a abertura de instrução e a realização de diligências probatórias, designadamente declarações do arguido, inquirição das testemunhas BB, CC, DD e a realização de prova pericial.

3. Em 21 de Abril de 2022, o Assistente EE veio requerer a abertura de Instrução, alegando, em síntese a nulidade de insuficiência do inquérito e discordando do entendimento do MP, quanto aos factos descritos nos pontos 6.º e 12.º da acusação e requerendo a abertura de instrução, audição da testemunha arrolada e a pronúncia do arguido como autor material de dois crimes de homicídio por negligência grosseira, previstos e punidos pelos arts. 137.º n.º 2 e com a correspondente pena acessória de inibição de conduzir nos termos do art.º 69.º n.º 1 a), ambos do Código Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos e para os efeitos dos arts.º 291.º n.º1 b) agravado, pelo disposto no artigo 294º, nº 3 e 285.º, todos do Código Penal e com a correspondente pena acessória de inibição de conduzir nos termos do art.º 69.º n.º 1 a), ambos do Código Penal e dois crimes de omissão de auxilio, agravado, p.p. nos termos do art.º 200.º nº 1 e n.º 2 do Código Penal e com a correspondente pena acessória de inibição de conduzir nos termos do art.º 69.º n.º 1 a), ambos do Código Penal.

4. Na mesma data, FF veio requerer a sua constituição como Assistente e, em simultâneo apresentou requerimento para abertura de Instrução, requerendo que fosse declarada a abertura de instrução, a audição da testemunha GG e que, a final, fosse o arguido pronunciado pela prática de dois crimes de homicídio por negligência grosseira, previstos e punível nos termos do artigo 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 14.º, 44.º e 146.º, alínea o) do Código da Estrada, e com a correspondente pena acessória de proibição de conduzir, previsto e punível pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, dois crimes de omissão de auxílio, p. e p. nos termos do artigo 200.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado, previsto e punível nos termos do artigo 291.º, n.º 1, alínea b), 285.º ex vi do disposto no artigo 294.º, n.º 3 do Código Penal, e com a correspondente pena acessória de proibição de conduzir.

5. Os autos foram remetidos à distribuição para apreciação dos referidos requerimentos de abertura de instrução e constituição como Assistente de FF.

6. O Tribunal a quo, após dar cumprimento ao disposto no artigo 68.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, não só não se pronunciou quanto à requerida constituição como Assistente de FF, como decidiu conhecer das nulidades arguidas pelo Assistente EE e determinou que “Em face da fundamentação escrutinada, ao abrigo do disposto nos art. 119.º, al. b), 120.º, n.º 2, al. d), do CPP e 122.º, do CPP, declara-se nulo o despacho proferido a fls. 255 a 260, bem como todo o subsequente processado, determinando a remessa dos presentes autos novamente para a fase de inquérito para os efeitos tidos por convenientes”.

7. O Tribunal a quo decidiu não determinar o prosseguimento dos autos com abertura de instrução ou rejeitar o requerimento de abertura de instrução, limitando-se apenas a apreciar as invocadas nulidades arguidas pelo Assistente EE.

8. Não existindo fundamentos para rejeitar o requerimento de abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, deveria o Juiz de Instrução Criminal declarar aberta a fase da instrução, a qual seria formada pelo conjunto de actos que o juiz entendesse dever levar a cabo, sendo obrigatória a realização de um debate instrutório, oral e contraditório, conforme o previsto no artigo 289.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

9. O Tribunal a quo decidiu apreciar das nulidades arguidas pelo Assistente EE antes se pronunciar sobre os Requerimentos de Abertura de Instrução dos diversos sujeitos processuais, de determinar a abertura da instrução e realizar o debate instrutório, sendo que após tal debate, na decisão instrutória, seriam conhecidas as nulidades e outras questões prévias ou incidentais, no respeito pelo disposto no artigo 308.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

10. O ora despacho recorrido foi proferido pelo Tribunal a quo à margem das fases processuais legalmente estipuladas. Tal decisão só poderia ser proferida – as nulidades de inquérito só poderiam ser conhecidas pelo JIC – depois de admitido os requerimentos de abertura de instrução e depois de realizado o debate instrutório.

11. Com esta omissão – omissão quanto às requeridas aberturas de instrução e designação e realização de debata instrutório – e ao decidir pelo conhecimento prévio de uma nulidade antes de ser declarada aberta a fase da instrução, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 5, 289.º, n.º 1, 297.º e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.

12. A omissão de abertura de instrução e de realização do debate instrutório constitui as nulidades de omissão e insuficiência de instrução, previstas nos artigos 119.º, alínea d) e 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, por não ter sido realizado o debate instrutório, acto legalmente obrigatório, a qual desde já se invoca

13. Perante as invocadas nulidades e perante a violação das aludidas normas processuais, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho recorrido, determinando-se que os autos prossigam os seus termos com a abertura da instrução.

14. Caso assim não se entenda, subsidiariamente, sempre se dirá que as invocadas nulidades, insuficiência de inquérito e falta de promoção do inquérito, não se verificam.

15. O Assistente EE invocou a insuficiência de inquérito, porquanto não foi inquirida uma testemunha por si indicada, ainda em fase de inquérito.

16. O despacho ora recorrido considerou que “se verifica, também, a nulidade suscitada pelo assistente EE, previsto e punido pelo art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, já que em virtude da conduta processual do Ministério Público ficou aquele impedido de intervir como assistente na fase de inquérito, tendo acreditado que após a sua admissão poderia oferecer as provas que entendesse, mas tal nunca veio a suceder.”

17. Pese embora, se constate que o ora Assistente EE requereu a sua constituição como Assistente em 14 de Janeiro de 2021 e que este requerimento apenas foi apresentado à Instrução em 11/06/2021, tendo já sido deduzida Acusação em 04/06/2021, tal não inviabilizou os direitos daquele.

18. Veja-se que o Assistente foi ouvido em sede de inquérito, na qualidade de testemunha, em 23 de Outubro de 2020 (cfr. fls. 89), sendo que declarou não ter presenciado os factos em apreço, nem ter testemunhas a indicar.

19. Mesmo com a apreciação tardia do requerimento de constituição como Assistente, este na qualidade de lesado, não deixou de vir indicar uma testemunha com conhecimento directo dos autos, do que resulta que os seus direitos e a sua posição processual não foram afectados pela irregularidade da tramitação do requerimento de constituição como Assistente.

20. Sucede, que, para além dos autos não constar a existência de quaisquer testemunhas que tivessem presenciado os factos em apreço, aquando da apresentação de tal testemunha a fase de inquérito encontrava-se encerrada, por força do despacho de acusação proferido, sendo que eventuais diligências probatórias apenas poderiam ocorrer ou em sede de intervenção hierárquica ou sede de instrução, atento o disposto nos artigos 278.º e 287.º do Código de Processo Penal.

21. Quanto à nulidade em apreço, o entendimento jurisprudencial e doutrinal comum é que apenas a falta de inquérito em que se omita acto que a lei prescreve como obrigatório, como seja o interrogatório de arguido quando seja possível notificá-lo podem consubstanciar a nulidade de insuficiência de inquérito. A omissão de diligências, nomeadamente de produção de prova cuja obrigatoriedade não resulte de lei não dá origem àquela nulidade.

22. Ora, a invocada omissão de inquirição de uma testemunha, salvo melhor entendimento, não figura como acto legalmente obrigatório, não se verificando a nulidade invocada.

23. No despacho ora recorrido o Tribunal a quo considerou que “verifica-se, também, que o Ministério Público no libelo acusatório imputa ao arguido a invasão da faixa contrária como a causadora do evento sucedido, donde sempre se impunha uma avaliação da concreta conduta destacada do arguido no sentido de integrar ou não um crime de condução perigosa, que envolvem outros factos atinentes àquele crime previsto e punido pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), do CP, que não mereceu qualquer despacho de arquivamento ou acusação.

24. Assim, considerou o Tribunal a quo que “a falta de acusação ou arquivamento pelos factos assinalados configura uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. b), do CPP,”

25. Nos presentes autos, recebida a notícia da ocorrência de acidente de viação, no dia 13/07/2020, do qual resultou a morte de HH e de II foi o expediente registado, distribuído e autuado como Inquérito, pela eventual prática dos crimes de homicídio negligente.

26. Foram realizadas todas as diligências de investigação consideradas pertinentes, sendo que, aquando da decisão final proferida não se verificavam quaisquer diligências que pudessem ainda realizar-se com efeito útil e, nestes termos, foi proferido despacho de Acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada (artigos 14.º, n.º 1 e 26.º do Código Penal) e em concurso efetivo, de dois crimes de homicídio por negligência, previstos e punidos pelos artigos 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, com referência aos artigos 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, do Código da Estrada (referência n.º 120437281).

27. Ao qualificar os factos investigados no processo como crime de homicídio negligente, o que fez enquanto o único titular da acção penal e ao abrigo da sua autonomia constitucionalmente consagrada, o Ministério Público, excluiu, implicitamente, da sujeição a julgamento, as demais qualificações jurídicas feitas.

28. Assim, e tendo o objecto do processo sido integralmente consumido pelo despacho de encerramento de inquérito deduzido pelo Ministério Público, em caso algum se poderia ter concluído por falta de promoção ou qualquer omissão de pronúncia.

Perante as invocadas nulidades de omissão insuficiência de instrução, previstas nos artigos 119.º, alínea d) e 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal e perante a violação do disposto nos artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 5, 289.º, n.º 1, 297.º e 308.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho recorrido, determinando-se que os autos prossigam os seus termos com a abertura da instrução.

Ou, caso, assim não se entenda, perante a inexistência das nulidades invocadas, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída pelo despacho de recebimento do requerimento de abertura de instrução.

Porém, Vossas Excelências decidindo farão, como sempre, a costumada Justiça!

3 O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. Inexiste resposta à motivação de recurso.

5. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Da inadmissibilidade do conhecimento pelo tribunal recorrido das nulidades de insuficiência de inquérito e falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público/verificação das nulidades de omissão e insuficiência de instrução.

Da não verificação das nulidades de insuficiência de inquérito e falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público.

2. A Decisão Recorrida

2.1 A decisão recorrida tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

O Tribunal é o competente.

Questão prévia – Da nulidade por falta de promoção do Ministério Público Compulsados os autos, entendeu o Tribunal dar contraditório a todos os intervenientes relativamente às eventuais nulidades por falta de promoção do Ministério Público e de insuficiência do inquérito, nos termos do disposto nos arts. 119.º, al. b) e 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, esta última arguida pelo assistente EE – tudo nos termos explanados no despacho de fls. 564 e 565.

Os Assistentes e o Ministério Público não se pronunciaram e o arguido AA arroga que inexiste qualquer nulidade apontada.

Cumpre decidir.

O Assistente AA havia requerido a sua constituição como assistente no dia 12 de janeiro de 2021 e o Ministério Público seguiu com a investigação sem submeter aquele requerimento à apreciação do juiz de instrução criminal, tendo proferido despacho de acusação no dia 4 de junho de 2021, sem que a mesma fosse imediatamente notificada, e no dia 11 de junho de 2021 remete os autos ao juiz de instrução criminal para apreciação daquele requerimento.

No dia 23 de julho de 2021, o Requerente EE vem manifestar que continua a aguardar a apreciação do pedido de constituição de assistente, indicando uma testemunha com conhecimento direto dos factos, e no dia 20 de janeiro de 2022 é admitido como assistente.

O Assistente vem a ser notificado do despacho de acusação no dia 17 de março de 2022.

Veja-se que o Assistente requereu a abertura de instrução sustentando, entre o demais, a nulidade de insuficiência do inquérito, prevista no art. 120.º, al. d), do CPP, por considerar que se preteriu diligência obrigatória, mormente a inquirição da testemunha por si indicada, o que levaria à prolação de despacho final diverso, desde logo, a que incidisse sobre uma decisão de arquivamento ou de acusação pelo crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo art. 200.º, do CP, e fosse analisada uma outra dinâmica dos acontecimentos.

Neste ensejo, para além de se constatar que o Ministério Público não submeteu aquele requerimento a apreciação na fase de inquérito, tendo inviabilizado o direito do assistente de intervir Processo: 254/20.6GTABF Referência: … Tribunal Judicial da Comarca de … Juízo de Instrução Criminal de Faro - Juiz … Rua …: ….instrucaocriminal@tribunais.org.pt Instrução no inquérito, designadamente oferecendo provas, como o fez ao insistir para apreciação do requerido e indicar uma testemunha, quando na sua convicção ainda não existia despacho final, obstando ao apuramento ou arquivamento de outro eventual crime, o de omissão de auxílio, verifica-se, também, que o Ministério Público no libelo acusatório imputa ao arguido a invasão da faixa contrária como a causadora do evento sucedido, donde sempre se impunha uma avaliação da concreta conduta destacada do arguido no sentido de integrar ou não um crime de condução perigosa, que envolvem outros factos atinentes àquele crime previsto e punido pelo art. 291.º, n.º 1, al. b), do CP, que não mereceu qualquer despacho de arquivamento ou acusação.

Todas estas circunstâncias levam, como é bom de ver, ao problema ora deparado com requerimentos de abertura de instrução a proclamar despacho de pronúncia por crimes – condução perigosa e omissão de auxílio – que não foram alvo de despacho final por parte do Ministério Público e que não podem ser apreciados nesta fase sem que sobre os mesmos recaia decisão final do Ministério Público.

Deste modo, entende-se que a falta de acusação ou arquivamento pelos factos assinalados configura uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 119.º, al. b), do CPP, e que se verifica, também, a nulidade suscitada pelo assistente EE, previsto e punido pelo art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, já que em virtude da conduta processual do Ministério Público ficou aquele impedido de intervir como assistente na fase de inquérito, tendo acreditado que após a sua admissão poderia oferecer as provas que entendesse, mas tal nunca veio a suceder.

Pense-se, assim, que o ofendido com legitimidade para se constituir assistente, requer a sua constituição como tal para poder intervir nessa mesma fase processual e não é equacionável que se vede esse direito e se venha a apreciar o requerimento na fase seguinte, ou seja, o ofendido não podia requerer a sua intervenção como assistente no início da fase de instrução e a mesma ser realizada e finda, sem admitir aquela, e ser somente apreciada na fase de julgamento. Não é essa a finalidade da faculdade legal inculcada.

Em face da fundamentação escrutinada, ao abrigo do disposto nos art. 119.º, al. b), 120.º, n.º 2, al. d), do CPP e 122.º, do CPP, declara-se nulo o despacho proferido a fls. 255 a 260, bem como todo o subsequente processado, determinando a remessa dos presentes autos novamente para a fase de inquérito para os efeitos tidos por convenientes.

Notifique.

Apreciemos.

Da inadmissibilidade do conhecimento pelo tribunal recorrido das nulidades de insuficiência de inquérito e falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público/verificação das nulidades de omissão e insuficiência de instrução

O recorrente insurge-se contra o despacho da Mma. Juíza de Instrução Criminal que, sem que fosse declarada aberta a fase de instrução, declarou nulo o despacho de acusação e o processado subsequente, tendo determinado a remessa dos autos para a fase de inquérito, com fundamento em estarem verificadas as nulidades previstas no artigo 119º, alínea b) - falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º - e 120º, nº 2, alínea d) – insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios - do CPP.

Ora, resulta dos autos o seguinte:

- Aos 05/06/2021, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA imputando-lhe factos, em seu entender, integradores da prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, do Código da Estrada.

- Notificado da acusação, o arguido requereu a abertura da instrução aos 11/04/2022.

- Notificada da acusação, FF veio, aos 21/04/2022, requerer a sua constituição como assistente e bem assim a abertura da instrução.

- Em 22/04/2022, veio também o assistente EE requerer a abertura da instrução, em que, entre o mais, argui a nulidade por insuficiência do inquérito e pugna pela pronúncia do arguido pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º, nº 2 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal; um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, alínea b), 294º, nº 3, 285º e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal; dois crimes de omissão de auxílio agravado, p. e p. pelo artigo 200º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

- Em 13/01/2023, foi determinado pela Mma. Juíza de Instrução Criminal o cumprimento do estabelecido no artigo 68º, nº 4, do CPP, quanto ao requerimento de constituição de assistente de FF.

- Em 14/03/2023, foi lavrado o despacho recorrido (sem que o tribunal a quo tenha decidido, entre o mais, o pedido de constituição de assistente formulado por FF).

Pois bem.

Nos termos do artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, competindo a sua direcção a um juiz de instrução – artigo 288º, nº 1, do mesmo.

Da conjugação destes normativos com o estabelecido nos artigos 268º e 269º, do CPP (intervenção do JIC durante a fase de inquérito, onde não se inclui o conhecimento de nulidades do mesmo), resulta que só na fase de instrução pode o juiz de instrução sindicar o inquérito com o escopo de conhecer das nulidades deste e decidir da correcção da decisão de acusação ou de arquivamento pelo Ministério Público.

E, também como se elucida no Ac. R. de Évora de 22/01/2021, Proc. nº 180/19.1GDSRP-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, “os princípios da legalidade e da estrutura acusatória, previstos pelo artigo 32º, nº 5, da CRP, proíbem o Juiz de Instrução, antes de aberta a instrução, de declarar a omissão de pronúncia de factos cuja investigação cabe ao MP, bem como declarar a existência de nulidade insanável decorrida na fase investigatória do processo (…) o Juiz de Instrução tem de se pronunciar, em regra, aberta a instrução, salvo nos casos admitidos por lei expressa, sobre os factos apurados no inquérito, mas fá-lo na fase de instrução e depois desta ser aberta e pode nessa fase conhecer de qualquer nulidade (…)”.

Ou seja, a admissão da instrução constitui pressuposto da competência do Juiz de instrução para conhecer de eventuais nulidades do inquérito, seguindo também o Acórdão deste Tribunal da Relação de 18/02/2020, Proc. nº 1710/18.1T9FAR.E1 e bem assim o Ac. Relação de Guimarães de 27/04/2020, Proc. nº 2920/17.4T9VCT-A.G1, que podem ser lidos no referenciado sítio.

A instrução foi requerida pelo arguido, pelo assistente EE e pela ofendida FF que, concomitantemente com o RAI, impetrou a sua constituição como assistente (sendo que só foi admitida essa constituição pela Mma. JIC aos 19/05/2023, muito depois de ter sido lavrado o despacho recorrido, cumpre se anote). Quer dizer, aparentemente, foi essa fase processual requerida por quem para tanto tem legitimidade e dentro (também com esse condicionalismo), do prazo legalmente estabelecido.

Assim, verifica-se a nulidade de falta de instrução – prevista na alínea d) do artigo 119º, do CPP -, pois, verificados que sejam esses pressupostos (e a inexistência de fundamento legal para a sua rejeição, mas esta apreciação igualmente não compete, no âmbito do presente recurso, a este Tribunal da Relação), esta é obrigatória. “(…) obrigatoriedade, supondo que ela foi convenientemente requerida e inexistindo motivo de rejeição do requerimento”, como alumia Souto Moura, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, Coimbra 1988, pág. 118.

Cumpre, pois, verificada a nulidade, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, que se impõe seja substituída por despacho que rejeite ou admita as instruções requeridas pelo arguido AA, pelo assistente EE e pela assistente FF (que com o Requerimento para a Abertura da Instrução impetrou também a sua constituição como assistente, como dito), respectivamente, com observância subsequente da tramitação legalmente prevista.

Fica prejudicado o conhecimento da questão da não verificação das nulidades de insuficiência de inquérito e falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em, julgando verificada a nulidade de falta de instrução, prevista no artigo 119º, alínea d), do CPP, conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar a decisão recorrida, que será substituída por despacho que rejeite ou admita as instruções impetradas nos respectivos requerimentos apresentados, com a subsequente legal tramitação processual.

Sem tributação.

Évora, 12 de Julho de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Laura Goulart Maurício)

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(Maria Clara Figueiredo)